
Sentido
Histórico da Declaração
Universal
Fábio
Konder Comparato
Durante a sessão de 16
de fevereiro de 1946 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas,
ficou assentado que a Comissão de Direitos Humanos, a ser criada, deveria
desenvolver seus trabalhos em três etapas. Na primeira, incumbir-lhe-ia
elaborar uma declaração de direitos humanos, de acordo com o disposto no
artigo 55 da Carta das Nações Unidas. Em seguida, dever-se-ia produzir,
no dizer de um dos delegados presentes àquela reunião, “um documento
juridicamente mais vinculante do que uma mera declaração”, documento
esse que haveria de ser, obviamente, um tratado ou convenção
internacional. Finalmente, ainda nas palavras do mesmo delegado, seria
preciso criar “uma maquinaria adequada para assegurar o respeito aos
direitos humanos e tratar os casos de violação”.
A primeira etapa foi
concluída pela Comissão de Direitos Humanos em 18 de junho de 1948, com
um projeto de Declaração Universal de Direitos Humanos, aprovado pela
Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro do mesmo ano. A
Segunda etapa somente se completou em 1966, com a aprovação de dois
pactos, um sobre direitos civis e políticos, e outro sobre direitos econômico,
sociais e culturais. Antes disso, porém, a Assembléia Geral das Nações
Unidas aprovou várias convenções sobre direitos humanos, referidas mais
abaixo. A terceira etapa, consistente na criação de mecanismos capazes
de assegurar a universal observância desses direitos, ainda não foi
completada. Por enquanto, o que se conseguiu foi instituir um processo de
reclamações junto à Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas,
objeto de um protocolo facultativo, anexo ao Pacto sobre direitos civis e
políticos.
A Declaração Universal
dos Direitos Humanos, como se percebe da leitura de seu preâmbulo, foi
redigida sob o impacto das atrocidades cometidas durante a 2ª Guerra
Mundial, e cuja revelação só começou a ser feita – e de forma muito
parcial, ou seja, com omissão de tudo o que se referia à União Soviética
e de vários abusos cometidos pelas potências ocidentais – após o
encerramento das hostilidades. Além disso, nem todos os membros das Nações
Unidas, à época, partilhavam por inteiro as convicções expressas no
documento: embora aprovado por unanimidade, os países comunistas (União
Soviética, Ucrânia e Rússia Branca, Tchecoslováquia, Polônia e Iugoslávia),
a Arábia Saudita e África do Sul abstiveram-se de votar.
Seja como for, a Declaração,
retomando os ideais da Revolução Francesa, representou a manifestação
histórica de que se formara, enfim, em âmbito universal, o
reconhecimento dos valores supremos da igualdade, da liberdade e da
fraternidade entre os homens, como ficou consignado em seu artigo I. A
cristalização desses ideais em direitos efetivos, como se disse com
sabedoria na disposição introdutória da Declaração, far-se-á
progressivamente, no plano nacional, como fruto de um esforço sistemático
de educação em direitos humanos.
A
força jurídica do documento
Tecnicamente, a Declaração
Universal dos Direitos do Homem é uma recomendação,
que a Assembléia Geral das Nações Unidas faz aos seus membros (Carta
das Nações Unidas, artigo 10). Nesta condição, costuma-se sustentar
que o documento não tem força vinculante. Foi por essa razão, aliás,
que a Comissão de Direitos Humanos concebeu-a, originalmente, como etapa
preliminar à adoção ulterina de um pacto ou tratado internacional sobre
o assunto, como lembrado acima.
Esse entendimento, porém,
peca por excesso de formalismo. Reconhece-se hoje, em toda parte, que a
vigência dos direito humanos independe de sua declaração em constituições,
leis e tratados internacional, exatamente porque se está diante de exigências
de respeito à dignidade humana, exercidas contra todos os poderes
estabelecidos, oficiais ou não. A doutrina jurídica contemporânea, de
resto, como tem sido reiteradamente assinalado nesta obra, distingue os
direitos humanos fundamentais, na medida em que estes últimos são
justamente os direitos humanos consagrados pelo Estado como regras
constitucionais escritas. É óbvio que a mesma distinção há de ser
admitida no âmbito do direito internacional.
Já se reconhece aliás,
de há muito, que a par dos tratados ou convenções, o direito
internacional é também constituído pelos costumes e os princípios
gerais de direito, como declara o Estatuto da Corte internacional de Justiça
(art. 38). Ora, os direitos definidos na Declaração de 1948
correspondem, integralmente, ao que o costume e os princípios jurídicos
internacionais reconhecem, hoje, como exigências básicas de respeito à
dignidade humana. A própria Corte Internacional de Justiça assim tem
entendido. Ao julgar, em 24 de maio de 1980, o caso de retenção, como
reféns, dos funcionários que trabalhavam na embaixada norte-americana em
Teerã, a Corte declarou que “privar indevidamente seres humanos de sua
liberdade, e sujeitá-los a sofrer constrangimentos físicos é, em si
mesmo, incompatível com os princípios da Carta das Nações Unidas e com
os princípios fundamentais enunciados na Declaração Universal dos
Direitos Humanos”.
Inegavelmente, a Declaração
Universal de 1948 representa a culminância de um processo ético que,
iniciado com a Declaração dos direito do Homem e do Cidadão, da Revolução
Francesa, levou ao reconhecimento da igualdade essencial de todo ser
humano em sua dignidade de pessoa, isto é, como fonte de todos os
valores, independentemente das diferenças de raça, cor, sexo, língua,
religião, opinião, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou
qualquer outra condição, como se diz em seu artigo II. E esse
reconhecimento universal da igualdade humana só foi possível quando, ao
término da mais desumanizadora guerra de toda a História, percebeu-se
que a idéia de superioridade de uma raça, de uma classe social , de uma
cultura ou de uma religião, sobre todas as demais, põe em risco a própria
sobrevivência da humanidade.
O
teor do documento
A Declaração abre-se
com a proclamação dos três princípios axiológicos fundamentais em matéria
de direitos humanos: a liberdade, a igualdade e a fraternidade.
A formação histórica
dessa tríade sagrada remonta a Revolução Francesa. Mas a sua consagração
oficial em textos jurídicos só se fez tardiamente. A Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, tal como o Bill
of Rights de Virgínia de 1776, só se referem à liberdade e à
igualdade. A fraternidade veio a ser mencionada, pela primeira vez – e,
ainda assim, não como princípio jurídico, mas como virtude cívica -,
na constituição francesa de 1791. Foi somente no texto constitucional da
Segunda república francesa, em 1848, que o tríptico veio a ser
oficialmente declarado.
O princípio da igualdade
essencial do ser humano, não obstante as múltiplas diferenças de ordem
biológica e cultural que os distinguem entre si, é afirmado no artigo
II. O pecado capital contra a dignidade humana consiste, justamente, em
considerar e tratar o outro – um indivíduo, uma classe social, um povo
– como um ser inferior sob pretexto da diferença de etnia, gênero,
costumes ou fortuna patrimonial. Algumas diferenças humanas, aliás, não
são deficiências, mas bem ao contrário, fontes de valores positivos e,
como tal, devem ser protegidas e estimuladas. Como conseqüências dessa
igualdade de essência, o artigo VII reafirma a regra fundamental da
isonomia, proclamada desde as revoluções americana e francesa do século
XVIII.
Na Declaração Universal
dos Direitos do Homem, o princípio da liberdade compreende tanto a dimensão
política, quanto a individual. A primeira vem declarada no artigo XXI e a
Segunda nos artigos VII e XVI a XX. Reconhece-se, com isto, que ambas
essas dimensões da liberdade são complementares e independentes. A
liberdade política, sem as liberdades individuais, não passa de engodo
demagógico de Estados autoritários ou totalitários. E o reconhecimento
das liberdades individuais, sem efetiva
participação política do povo no governo, mal esconde a dominação
oligárquica dos mais ricos.
O princípio da
solidariedade está na base dos direitos econômicos e sociais, que a
Declaração afirma nos artigos XXII a XXVI. Trata-se de exigências
elementares de proteção às classes ou grupos sociais mais fracos ou
necessitados, a saber:
o direito à seguridade
social (arts. XXII e XXV);
o direito ao trabalho e
à proteção contra o desemprego (art. XXIII, 1);
os principais direitos
ligados ao contrato de trabalho, como a remuneração igual por trabalho
igual (art. XXIII, 2), o salário mínimo (art. XXIII, 3); o repouso e o
lazer, a limitação horária da jornada de trabalho, as férias
remuneradas (art. XXIV);
a livre sindicalização
dos trabalhadores (art. XXIII, 4);
o direito à educação:
ensino elementar obrigatório e gratuito, a generalização da instrução
técnico-profissional, a igualdade de acesso ao ensino superior (art. XXVI).
A Organização
Internacional do Trabalho, em particular, tem desenvolvido por meio de
convenções os vários direitos do trabalhador declarados no artigo
XXIII.
Após enunciar, nos três
primeiros artigos, os valores fundamentais da liberdade, da dignidade e da
fraternidade, e proclamar que todos os seres humanos têm direito à vida,
à liberdade e à segurança pessoal, a Declaração assenta a proibição
da escravidão e do tráfico de escravos (art. IV). Teria sido sem dúvida
mais lógico fazer preceder esse dispositivo da declaração de princípios
consignada no artigo VI: “todo homem tem direito de ser, em todos os
lugares, reconhecido como pessoa perante a lei”. Este o princípio
capital em matéria de direitos humanos. Na verdade, os escravos não são
os únicos seres humanos aos quais se denegam todos os direitos: o mesmo
ocorreu com os apátridas durante a 2ª Guerra Mundial, como será
lembrado mais abaixo.
Em aplicação ao
dispositivo no artigo IV da Declaração, uma conferência de plenipotenciários,
convocada pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, aprovou
em 7 de setembro de 1956 uma Convenção Suplementar sobre a abolição da
escravatura e de situações similares à escravidão, bem como do tráfico
de escravos.
Com base nos dispositivos
da Declaração que consagram as liberdades individuais clássicas e
reconhecem os direitos políticos (art. XXI), as Nações Unidas adotaram,
subseqüentemente, três convenções internacionais. A primeira em 20 de
dezembro de 1952, destinada a regular os direitos políticos das mulheres,
segundo o princípio básico da igualdade entre os sexos. A Segunda, em 7
de novembro de 1962, sobre o consentimento para o casamento, a idade mínima
para o casamento e o registro de casamentos (art. XVI da Declaração). A
terceira, em 21 de dezembro de 1965, sobre a eliminação de todas as
formas de discriminação racial.
A par desses direitos e
liberdades tradicionais, a Declaração estende o sistema de proteção
universal da pessoa humana a novos setores.
A 2ª Guerra Mundial
engendrou uma multidão de refugiados, em toda a Europa. Além disso, o
Estado nazista aplicou, sistematicamente, a política de supressão da
nacionalidade alemã judaica. Logo após a guerra, Hannah Arendt chamou a
atenção para a novidade perversa desse abuso, mostrando como a privação
de nacionalidade fazia vítimas pessoais excluídas de toda proteção jurídica
no mundo. Ao contrário do que se supunha no século XVIII, mostrou ela,
os direitos humanos não são protegidos independentemente da
nacionalidade ou cidadania. O asilado político deixa um quadro de proteção
nacional para encontrar outro. Mas aquele que foi despojado de sua
nacionalidade, sem ser opositor político, pode não encontrar nenhum
Estado disposto a recebê-lo: ele simplesmente deixa de ser considerado
uma pessoa humana. Numa fórmula tornada célebre, Hannah Arendt concluiu
que a essência dos direitos humanos é o direito a ter direitos.
Tendo em vista esse
precedente, a Declaração, além de reconhecer o direito de asilo a todas
as vítimas de perseguição (art. XIV), firma o direito de todos a uma
nacionalidade (art. XV). As Nações Unidas ocuparam-se sucessivamente
dessa questão, em três ocasiões. Em 28 de junho de 1951, em obediência
à Resolução 429 (Você) da Assembléia Geral, datada de 14 de dezembro
de 1950, uma conferência de plenipotenciários sobre o status dos
refugiados apátridas aprovou uma primeira Convenção sobre a matéria.
Em 28 de setembro de 1954, outra Convenção internacional, invocando a
Declaração Universal de Direitos Humanos, regulou a situação dos apátridas
não refugiados. Finalmente, em 30 de agosto de 1961, uma terceira Convenção,
tendo por objeto reduzir o número de apátridas, foi adotada por uma
conferência de plenipotenciários, convocada por uma resolução da
Assembléia Geral de 4 de dezembro de 1954.
Outro traço saliente da
Declaração Universal de 1948 é a afirmação da democracia como único
regime político compatível com o pleno respeito aos direitos humanos (arts.
XXI e XXIX, alínea 2). O regime democrático já não é, pois, uma opção
política entre muitas outras, mas a única solução legítima para a
organização do Estado.
É de se assinalar,
finalmente, o reconhecimento, no artigo XXVIII, do primeiro e mais
fundamental dos chamados direitos da humanidade, aquele que tem por
objetivo a constituição de uma ordem internacional respeitadora da
dignidade humana.
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