Comentário
ao artigo 30
João Luiz
Duboc Pinaud
A
proposição que fecha a Declaração Universal dos
Direitos Humanos mantém abertas as possibilidades de
converter-se em discurso jurídico politicamente utilizável
para concretizar valores demarcáveis a partir dela. Em
termos de técnica legislativa, inova, se confrontada com
textos constitucionais nacionais e normas internacionais.
E justamente porque abandonou o esquema de democracia
formal: proclamar direitos e remeter, para um possível
interior do próprio texto (Constituição ou Tratado), ou
para princípios existentes em dado sistema legal, o conteúdo
do direito apontado mas não definido.
Representa,
nessa linha, escolha das possibilidades entre a visão de
direito com resultante negativa (não ser violado, não
ser preso, etc.) e de positividade de afirmá-lo como
valor que não pode ser destruído. Em ponto
diametralmente aposto ao princípio dos direitos implícitos,
no qual dormem ou ficam submersos “direitos” que o
povo não logra postular.
Em ângulo de crítica exclusivamente
epistemológica, a alternativa de depurar os fundamentos
teóricos da própria “teoria dos direitos humanos”
examina as modalidades linguísticas, mediante as quais
alguns valores conotados se expressam ou não, e podem ser
invertidos ou ocultados.
Gregório Robles considera o conceito
“direitos humanos” como representação mítica-simbólica
de uma idéia de valor, sua carga política, etc. Assim,
nessa crítica estritamente epistológica (sobre formas de
concebê-los) desconsidera os possíveis valores que a
expressão “direitos humanos” possa conter. E anota:
palavras e expressões com geral aceitação (democracia,
ju9stiça, paz...) que, por força de convicção
generalizada nas massas humanas gozam de grande
predicamento e se convertem em insígnias políticas,
desembocando em espaços nos quais se acomoda uma
ideologia de exigência. Tal visão de mundo e da vida
justifica o individualismo jurídico-político,
colocando-o como pedra angular dos significados culturais
no âmbito da convivência social. Em torno do que chama
de anquilosamento categorial, Robles anotou sua suspeita
operatividade, pois, em tal contexto, a ratio
transforma-se em auctoritas, qual fosse discurso teológico.
Assim, a teoria positivista de direitos humanos
independente e com substantividade própria é impossível;
seu con9ceito é político, não técnico, existindo em
função da luta política, podendo servir para
transformar a realidade ou conservá-la, mas não para
descrevê-la e conhecê-la. Os direitos humanos dos
sistemas políticos estabelecidos estão em função da
conservação do sistema, negando outra opção que não
seja a existente; uma vez institucionalizados, tornam-se
elementos de integração e fortalecimento dele mesmo, ao
negar a mudança radical, que foi precisamente sua missão
na origem de sua história.
Entretanto, devemos reconhecer que a Declaração
demarca conceitos como condutas exigíveis, sem fornecer
armas de mascaramentos para negar direitos e, nesse
sentido, impede a falsificação das opções políticas
em favor da universalização dos direitos dos homens.
Digamos, um salto qualitativo da confortável e
conservadora teoria dos direitos implícitos para definida
explanação popular, colocando2-os como disponíveis, em
termos de luta pela concretização.
Será útil fixar alguns registros que seriam
prévios para o exame dos problemas colocados, ou seja, a
reflexão sobre o falar e calar liberdades, 9igualdades,
ou seja, direitos das pessoas. Tal exame 9nos obrigaria a
discutir as ligações entre linguagem, pensamento e ação
política.
Sabemos que foram gregas as penetrantes
instituições sobre esses laços entre o pensar, as
palavras e as condutas humanas. Aqui não seria o espaço
para falar dos que encaminharam o conhecimento crítico
acerca de símbolos e coisas simbolizadas. Bastaria anotar
que a virada epistemológica nesse trajeto da percepção
da linguagem como meio de representação do mundo
interior e circundante consistiu no deslocamento do eixo:
não mais a mente que conhece, mas as palavras, como meios
de conhecer. Nova atitude crítica, atualmente parecendo
simples, coloca a linguagem, ela mesma, objeto de
investigação, quanto à sua gênese, estrutura e alcance
descritivo, não mais vista como possível tradução do
pensamento e das coisas. O grande avanço consistiu no
duvidar da construção da frase como imitação da ordem
necessária do pensamento. Linguagem e pensamento não
mais usados como sinônimos. Se Georges Poulet admitiu a
substituição do termo “linguagem” por
“pensamento”, sem nada alterar, a objeção de Roland
Barthes aponta o cerne do problema: a linguagem, não o
pensamento, revela este mais pelas palavras evitadas do
que pelas empregadas.
Isso nos remete para o alcance novo do art.
30 por não calar seu conteúdo: os direitos ali
estabelecidos não podem ser negados por qualquer ato (ou
interpretação) de pessoa, grupo ou Estado. E no contexto
histórico em que está situada a Declaração é
inaugural. Evita, justamente, a opacidade e a incomunicação
diante da clarificação e da defesa dos direitos
pertencentes ao homem.
Uma atenção especial é de ser dada aos códigos
com seus enunciados auto-alimentadores, auto-referentes,
fechados, fechantes e, por isso mesmo, excludentes da
participação de qualquer outro locutor colocado fora de
um dado esquema de poder. O empenho analítico deverá
concentrar-se sobre textos normativos maiores (declarações
universais, constituições nacionais) enquanto interditam
o ingresso de diferentes conteúdos de valores e bloqueiam
os contradiscursos, partindo dos que não são
reconhecidos como sujeitos da locução. A mobilização
dos discursos apenas dentro dos códigos e conceitos
estabelecidos possibilitará para a consciência alienada
o que podemos chamar de conciliação verbal dos contrários,
ordem/desordem, liberdade/opressão,
igualdade/desigualdade.
Caberia lembrar Lewis Carroll (Alice no país
das maravilhas): “Quando utilizo uma palavra”, disse
Humpty Dumpty num tom de desdém, “ela significa
exatamente aquilo que decido que signifique – nem mais
nem menos”. “A questão é”, disse Alice, “se você
pode fazer com que as palavras signifiquem tantas coisas
diferentes”. “A questão é”, disse Humpty Dumpty,
“quem deve mandar – isso é tudo”.
Estudando tais problemas, Michael Riffaterre
assinala a crença do leitor diante do texto escrito,
quando as palavras não se relacionam com os referentes,
mas com o instituído em um grupo ou arbitrariamente os
liga a conceitos sobre os referentes, criando uma
mitologia do real: nessa ilusão referencial, substitui-se
o autor pelo texto, a realidade pela sua representação,
que resultará (fora, por certo, de uma visão crítica),
no substituir a representação pela interpretação, como
se as palavras engendrassem a realidade.
O artigo 30 possibilita dissipar a névoa semântica
que sempre envolveu os referentes “direitos”,
“liberdades”, “igualdades”, “justiças”,
principalmente. Traduz o rompimento com as técnicas
legi9slativas de deslocar para outra modalidade legal, não
explanada no texto da lei, o conteúdo de direitos que se
declara proteger.
Leituras das sucessivas Constituições
editadas no Brasil apontam exemplos desse jogo semântico
que disfarça seu sabor tautológico: define por meio do
termo a ser definido, ou que se mantém indefinido.
Domi9nantemente, o que se oculta para não ser cobrado
pelas pessoas.
A chamada não especificação legal de
direitos, na tradição legislativa brasileira, por
exemplo, não proclama nem refere direito algum. E nem tal
“ausência” assusta ninguém. O calmante é o princípio
correlativo: o fato de o direito não ser expressado não
exclui a existência de outros que não puderam ser
indicados. A Outorga do Império foi omissa. Na Constituição
de 1891 (art. 78) estava:
Na mesma pauta, a de 1934 (art. 114), como a
Carta de 1937 (art. 123), usando a expressão “princípios
consignados”. Mas sua tônica fascista não logrou ser
mascarada pela seguinte inclusão:
-
O
uso desses direitos e garantias terá por limite o bem público,
a necessidade de defesa do bem-estar, da paz e da ordem
coletiva, bem como as exigências da segurança da Nação
e do Estado, em nome dela constituído nesta Constituição.
A de 1946, na atmosfera de pós-guerra (art.
144), o princípio de ressalva:
-
A
especificação dos direitos e garantias expressas nesta
Constituição não exclui outros direitos e garantias
decorrentes do regime e dos princípios que ela adota.
-
Portanto, afirmou por sua vez a existência
de outros direitos e garantias, mas enquadrando-os, também,
como decorrentes do regime e dos princípios
constitucionalmente adotados.
O antecedente legal foi a Nona Emenda da
Constituição dos Estados Unidos:
O
fundamento de tais dispositivos é rousseauniano. A hipotética
“vontade geral” aparece como resultante das vontades
particulares jamais inteiramente alienadas para a formação
do “contrato social”. Em tal esquema, o povo cede
parte de sua liberdade, não toda, mas o necessário para
instituir o contrato, detendo certos direitos acima das
leis, dos atos, do poder. É o que denota a expressão
“outros direitos que conserva o povo”. Semanticamente,
a Nona Emenda (o poder estatal de interpretar está no
povo que a lei explicita ou implicitamente positiva)
aponta para a democracia e não os esquemas brasileiros,
nos quais a compreensão dos outros direitos não
especificados é colocada numa vaga conceituação de
“regime” e de “princípios” latitudinários que a
Constituição adota. As leis brasileiras descrevem giros
linguísticos que não revelam direito algum, assim tácitos,
não passando de mera circunavegação estritamente verbal
em torno da possibilidade deles. Com traços democráticos
mais nítidos, a Constituição Espanhola de 1978, define,
no preâmbulo, os valores que considera superiores.
Gregorio Pesce-Barra, examinando os valores de Justiça,
Liberdade e Igualdade, do ponto de vista dos conceitos e
sentidos, viu o art. 1º da Constituição Espanhola de
1978 como rutura da tradicional dialética direito
natural-direito positivo mediante referência à Justiça
e à Liberdade como fins a alcançar, embora careça de
valor normativo. Apresenta-se como norma jurídica que
coloca tais princípios como de organização do regime e,
portanto, os vincula com o direito, como forma dessa
organização.
Com razão, Genaro R. Carrió anotou: a
teoria geral do direito européia é prisioneira de um
conceito de direito pressupondo a imagem simplista do
Estado como organismo definidor das regras do jogo e
sempre capaz de instituir o árbitro. E nesse jogo de sanção
e coação, o atribuir uma função a um dado conceito de
direito apela para um modelo de sistema de organização
social já perempto. Norberto Bobbio, analisando as
possibilidades da “funzione promozionale del diritto”,
toma o problema reabrindo a questão do direito como função
protetiva ou repressiva. Entretanto, no Manifesto do
Partido Comunista (Parte II) Marx desmistificou: “O
vosso direito é somente a vontade da vossa classe elevada
à lei”. Ponto epistemológico não superado pelos
iluministas jurídicos posteriores, pois o desenvolvimento
de um povo não estava no “espírito das leis”,
desvalendo mudá-las para mudar as sociedades.
O exame do art. 30 ainda exige enfrentar,
entre outros, o dilema: capacidade de o direto influir nas
mudanças sociais, ou seja, precisamente, os limites de
suas funções como instrumento de controle social, mas
como linguagem apontando os referentes, superando os
enunciados serventes dos ocultamentos, distorções,
interdições e inibidores das lutas em favor de opções
políticas não falsificadas. Em suma, o que sempre deve
postular inspeções como condição de vigência dos
discursos. O famoso Sábios do Lagado, segundo Swift,
achando impossível falar sobre algo – as palavras meros
nomes – transportavam as próprias coisas de um lugar
para outro. Às vezes exaustos pelo peso carregado,
deitavam os sacos ao chão e sentavam para “conversar um
pouco”. Pois esse “transportar coisas” e “sentar e
conversar um pouco” remete-nos para as linguagens
populares que, se referem valores vivenciados, se tornam
caminhos de concretizações.
O pensamento grego apontou a alternativa de
existência concreta de pessoas em planos separados de
suas próprias linguagens. E só as crianças acreditavam
nesse universo de palavras. Homero ilustrou tal atitude:
-
Não
tentes assustar-me com palavras, como se eu fosse uma
criança.
-
Não
nos verão voltar do combate tendo resolvido o nosso
combate muito simplesmente, com palavras infantis...
Não
é casual a linguagem pedante (etimologicamente, de paidós
e ante) dos governos contra o povo: falam como se
estivessem diante de crianças. Cumpre, pois,
desmistificar os discursos dos poderes demagógicos.
Tais questionamentos, entre outros, podem
servir como aclaramento das possibilidades teóricas de
direitos humanos como valores superiores, mais fortes que
os atos e interpretações contrárias. E, quem sabe,
servir ao encaminhamento de outras lutas políticas
buscando alternativas concretas de igualdades, liberdades,
ou seja, justiça para as pessoas oprimidas e mutiladas.
Advogado;
Presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros e
Professor Titular de Teoria do Direito da
Universidade Federal Fluminense. |