Comentário ao artigo 13
Ricardo
Brisolla Balestreri
No dia 10 de dezembro de 1948, quando as Nações
Unidas ofereceram ao planeta a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, imagino que seus signatários intuíssem
palidamente a importância histórica que viria a ter
aquele documento. Não creio que estivessem plenamente
conscientes de todo o alcance e qualidade do que estavam
fazendo. Se assim foi, não importa. Por sendas às vezes
misteriosas, uma espécie de inteligência universal
tecendo a trama evolutiva do destino humano.
Confesso que tampouco hoje, cinquenta anos
passados, me parece suficientemente 9desvelada aos olhos
da contemporaneidade a relevância da Declaração.
Estamos demasiadamente envolvidos com nossas
conquistas tecnológicas, demasiadamente aturdidos por
nossa vaidade científica para vermos outros avanços,
talvez até mais significativos, especialmente os do campo
ético e social.
A Declaração é, contudo,
a expressão revolucionária mais significativa
engendrada nos milênios de história humana: uma
expressão de conteúdo moral.
Pela primeira vez um paradigma solidário,
fundado na igualdade de direitos, foi assumido, de forma
praticamente consensual, pelo conjunto dos países. Que
magnífica transformação da cultura universal, até então
disposta a dar guarida oficial às aviltantes diferenças
de tratamento, com base na suposição da
“naturalidade”, da “inerência” de disparidades
relativas à condição humana!
Reconhecer que todos somos iguais em
direitos, sem, por isso, negar nossas diferenças
individuais, representou um gigantesco passo no processo
civilizatório, certamente o maior.
Se o mundo teve “pernas” para acompanhar
esse passo simbólico, fruto de séculos de luta social,
é uma outra história. Os relatórios de violações de
direitos, produzidos por organizações como a Anistia
Internacional, comprovam que estamos longe da utopia possível
proposta há cinquenta anos. Contudo, em muitos campos, os
avanços não ficaram na mera retórica e podemos, sem
qualquer ingenuidade, cidadãos do novo milênio,
sentir-nos semeados de esperanças. Os paradoxos ainda
encontrados são como dores de parto de uma nova civilização,
que vem surgindo, guiada pelo roteiro seguro da Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
Qualificar essa caminhada
tem, contudo, dependência direta de nosso zelo
pelo cumprimento cada vez mais aperfeiçoado do
que propõem os trinta artigos. A função utilitária
mais importante de um mapa é permitir-nos traçar
os rumos e corrigir os desvios.
Nessa linha, cabe-me, aqui, refletir sobre o
Artigo 13:
- Todo homem tem direito à liberdade de locomoção
e residência dentro das fronteiras de cada Estado.
- Todo homem tem direito de deixar qualquer país,
inclusive o próprio, e a este regressar.
Isto é real, no mundo em que vivemos? Apenas
em modesta parte.
Se acreditarmos nas cifras mais moderadas e
comprovadas do último Relatório Mundial da Anistia
Internacional, saberemos que em 87 países existem
“presos de consciência”, gente que não cometeu
qualquer delito mas que, pacificamente, o9usou pensar
diferentemente do poder. Em 31 países pessoas continuam
“desaparecendo”. Em 55, é praxe o exercício de
“execuções extrajudiciais”. Em 117, é comum o uso
da tortura.
Temos estatísticas precisas sobre restrições
ao direito de ir e vir. Não e nem é preciso que
saibamos que esses direitos, em grande parte do
planeta, não são admitidos. Basta julgar pelos
dados acima. Eles nos fazem perceber que grande
parte da humanidade seencontra esmagada sob o
peso de ditaduras declaradas ou hipócritas. Ora,
não há ditadura liberal quanto a direitos de locomoção.
Nesses lugares, os cidadãos são impedidos
de morar onde desejam, em nome da planificação ou da
segurança nacional, em alguns não podem frequentar as
regiões – mesmo na cidade onde vivem – reservadas às
burocracias ou aos turistas, em praticamente todos não têm
permissão para ir ao exterior, onde podem tentar o refúgio
ou a denúncia.
A inter-relação entre as violações dos
direitos mais básicos é uma constante em todas as
ditaduras de direita ou de esquerda. A restrição da
locomoção é estratégia obrigatória para impedir a
fluidez de informações, a formação de redes, a
capacitação de apoios.
Contudo, até aqui, estamos falando do que é
duramente trivial: a restrição ou negação pura e
simples dos chamados direitos de “primeira geração”.
Quero ir além e refletir um pouco sobre a
interseção entre estes e os da “Segunda geração”:
os direitos sociais.
Como pensar em liberdade de locomoção,
estabelecimento de residência, ir ao exterior e voltar,
em um mundo de um bilhão de famélicos e centenas de milhões
de semifamélicos?
É diferente propor um direito e assegurar as
condições para realizá-lo.
De maneira geral, não é preciso usar a força
bruta para conter os fluxos humanos. A força da miséria
basta. Quem pode escolher o lugar da residência? Quem tem
uma residência? Quem pode sair de sua província, de seu
estado, de seu país, para trabalhar ou fazer turismo? Não
é preciso ir tão sonhadoramente longe: quem pode
garantir mensalmente o dinheiro do trem ou do ônibus para
chegar ao local de trabalho? Quem tem trabalho? Muitas
outras perguntas poderiam enredar-se na malha terrível
dessas anteriores.
Diante disso, é bem estranho, ainda que
necessário, propormos direitos tão sofisticados. As
limitações impostas pela pobreza tornaram-se tão
banalizadas que alguns direitos fundamentais, dos quais não
podemos deixar de falar, acabam parecendo-se com ridículas
e líricas abstrações.
É um equívoco, no entanto, pensar assim.
Sob a pena de não conquistarmos nenhum tipo de liberdade,
não podemos hierarquizar direitos, submetê-los a uma
ordem de propriedades ou cronologias. Todos os direitos
precisam, em nível pessoal e coletivo, se dialeticamente
e horizontalmente alcançados, ou não alcançaremos
nenhum. A submissão das liberdades espirituais, em
sentido amplo, culturais, filosóficas, organizacionais ao
atingimento do bem-estar material reduz e coisifica o ser
humano, constituindo-se uma forma de sociopaternalismo
gerador de passividade e dependência.
De igual maneira, no entanto, ignorar a
inter-relação obrigatória entre direitos civis e políticos
e direitos sociais é restringir pobremente a compreensão
do fenômeno a elementos mecânicos, declaratórios,
legalistas, formais.
É inevitável constatarmos, por exemplo, que
a maior parte da humanidade não tem assegurados os
direitos de ir e vir pelo simples fato de que isso não
pode fazer parte de suas mais básicas aspirações, uma
vez que sequer tem direito de morar, de comer, de ter saúde,
de estudar, de trabalhar. Locomover-se é uma
impossibilidade, exceto quando em fuga de genocídios,
guerras, secas, enchentes, maremotos, terremotos e outras
catástrofes naturais ou provocadas. Assim mesmo, as
fronteiras são fechadas, e essas levas de gente enxotadas
até a morte.
Qual a saída? Continuar denunciando,
pressionando os governos, indignando-se e incendiando
positivamente o planeta com essa indignação, sem dúvida.
Mas não apenas isso. A indignação pode virar, como tem
ocorrido muito comumente, uma desculpa para o imobilismo
de consciências tranquilizadas pela retórica. É preciso
mais do que isso: seguir e ensinar a seguir o mapa. Ter
objetivos. Levar em conta o conjunto de elementos
orientadores. Não segmentar a leitura. Atuar em todas as
frentes mediante a única grande porta de entrada: a educação.
Os direitos humanos, inclusive os de livre
locomoção, só podem ser assegurados pela geração
de uma cultura universal de cidadania. Essa cultura
só será possível quando a humanidade souber que
tem direitos e, ao mesmo tempo, souber as formas
eficazes de luta para alcançá-los e plenamente
exercê-los.
Não há maneira de chegar a isso que não
passe pela educação.
Como aspirar a sair, conhecer, visitar,
escolher onde viver, sem saber que as maravilhas do
planeta são um legado para todos e que é legítimo
desejar partilhá-las, como cidadãos do mundo, superando
as abstrações limitantes das fronteiras inventadas e dos
direitos exclusivos e excludentes? Só a educação
permite o sonho e resgata o passaporte para a utopia.
Temos uma “grade curricular”
pronta para o uso, das melhores: a Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
Temos também os educadores para desafiar
a construção do processo. Talvez nem todos, porém,
se reconheçam nessa condição. Eles não estão apenas
nas salas de aula, como nos fazia crer o antigo
paradigma. Estão, igualmente, nos consultórios
médicos, nas redações dos jornais nas corporações
policiais, nas Igrejas, nos serviços públicos,
nas televisões, nos grêmios estudantis, nas associações
de pais, nas entidades filantrópicas, nas associações
de moradores, nas ONGs, nas fundações, nas empresas,
nas promotorias públicas, nas defensorias, na
magistratura, nos escritórios de advocacia.
Multiplicar, iluminar e educar é tarefa de
todos nós. A Declaração Universal dos Direitos Humanos
é apenas um brilhante roteiro. A realidade será o que
dela se fizer.
Psicopedagogo
clínico; Presidente da Seção Brasileira da Anistia
Internacional; membro do Comitê de Monitoramento do
Centro de Recursos Educacionais (CRE), com base no
Instituto Interamericano de Direitos Humanos e Consultor
independente do Núcleo de Acompanhamento e Fiscalização
do Programa Nacional de Direitos Humanos/Ministério da
Justiça.
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