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Comentário ao artigo 8º

Antônio Augusto Cançado Trindade

 As comemorações do cinquentenário da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ado­tada pela Assembléia Geral das Nações Unidas aos 10 de dezembro de 1948) representa­ram uma ocasião das mais oportunas para recordar o conteúdo normativo e a projeção da Declaração ao lon­go dos anos, tanto no direito internacional como no di­reito interno dos Estados. A Declaração Universal cons­tituiu, com efeito, o ímpeto inicial do processo histórico de generalização da proteção internacional dos direitos humanos e abriu caminho para a adoção dos mais de setenta tratados sobre a matéria, que em nossos dias operam regular e permanentemente nos planos global e regional. A referida Declaração de 1948 tem, ademais, inspirado diversas normas de direitos humanos incor­poradas a sucessivas constituições e legislações nacionais de numerosos países e tem servido de fundamento a diversas decisões de tribunais internacionais e nacio­nais. A Declaração Universal, como interpretação autêntica das disposições de direitos humanos da Carta das Nações Unidas, encontra-se hoje incorporada ao domínio do direito internacional consuetudinária, sen­do expressão de alguns princípios gerais do direito.

Os travaux préparatoires da Declaração Universal dos Direitos Humanos comportaram fases distintas. A Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas decidiu pela elaboração de um projeto em abril/maio de 1946, quando designou uma comissão nuclear” para os estudos iniciais. Paralelamente, conduziu a Unesco consultas (no decorrer de 1947) a pensadores da época sobre as bases de uma futura Declaração Universal, O projeto da Declaração propriamente dito foi preparado no âmbito da Comissão de Direitos Humanos das Na­ções Unidas por um Grupo de Trabalho que o elaborou entre maio de 1947 e junho de 1948. A partir de setembro de 1 948, o projeto da Declaração passou ao exame da III Comissão da Assembléia Geral das Nações Unidas, para enfim ser aprovado em 10 de dezembro da­quele ano pela própria Assembléia.

Uma das disposições mais importantes da Decla­ração Universal dos Direitos Humanos encontra-se em seu artigo 8º, segundo o qual toda pessoa tem direito a um recurso efetivo ante 05 tribunais nacionais compe­tentes contra os atos violatórios dos direitos fundamen­tais que lhe são outorgados pela Constituição ou pela lei. O artigo 8º, consagra, em última instância, o direito de acesso à justiça (no plano do direito interno), elemen­to essencial em toda sociedade democrática.

O projeto de artigo que se transformou no artigo 8º da Declaração Universal, a despeito de sua relevância, só foi inserido no projeto na etapa final dos travaux prépa­ratoires da Declaração Universal, quando já se encon­trava a matéria em exame na III Comissão da Assem­bléia Geral das Nações Unidas. Apesar disso, significativamente não encontrou qualquer objeção, tendo sido aprovado na III Comissão por 46 votos a zero e três abstenções, e no plenário da Assembléia Geral, por una­nimidade. A iniciativa, tardia mas de tanto êxito, proveio de Delegações dos Estados latino - americanos (tendo tido o México como porta-voz). Pode-se mesmo consi­derar que o artigo 8º representa a contribuição latino-americana por excelência à Declaração Universal.

A iniciativa latino-americana influenciou-se for­temente nos princípios que regem o recurso de amparo, já então consagrados em muitas das legislações nacio­nais dos países da região. Tanto foi assim que, na Con­ferência de Bogotá que adotou a Declaração America­na de Direitos e Deveres do Homem de abril de 1948, uma disposição correspondente, no mesmo sentido, ha­via sido adotada por unanimidade das 21 Delegações presentes. A disposição do artigo 8º da Declaração Uni­versal inspirou-se, desse modo, na disposição equiva­lente do artigo XVIII da Declaração Americana que a antecedeu em oito meses. O argumento básico que levou à inserção dessa disposição nas Declarações Ame­ricana e Universal de 1948 residiu no reconhecimento da necessidade de suprir uma lacuna em ambas: prote­ger os direitos do indivíduo contra os abusos do poder público, submeter todo e qualquer abuso de todos os direitos individuais ao julgamento do Poder Judiciário no plano do direito interno)

Em suma, a consagração original do direito a um recurso efetivo ante os juizes ou tribunais nacionais com­petentes na Declaração Americana (artigo XVIII) foi transplantada para a Declaração Universal (artigo 8º), e desta última para as Convenções Européia e Ameri­cana sobre Direitos Humanos (artigos 13 e 25, respecti­vamente), assim como para o Pacto de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas (artigo 2(3)). A projeção do artigo 8º da Declaração Universal nos tratados de direitos humanos hoje vigentes contribui ao reconheci­mento em nossos dias de que esta garantia judicial fun­damental constitui um dos pilares básicos do próprio Estado de Direito em uma sociedade democrática.

O artigo 8º da Declaração Universal e as disposi­ções correspondentes nos tratados de direitos humanos vigentes estabelecem o dever do Estado de prover recur­sos internos eficazes. E em razão desse dever que se exige dos indivíduos demandantes, que interpõem de­núncias de violações de seus direitos ante instâncias

internacionais, o prévio esgotamento dos recursos de direito interno (como condição de admissibilidade das referidas denúncias). O dever do indivíduo de esgotar tais recursos encontra-se inelutavelmente vinculado ao dever do Estado de prover recursos internos eficazes. O critério que aqui prevalece é o da eficácia dos recursos internos: não basta que estejam formalmente disponí­veis, tem o Estado de demonstrar que são na prática adequados e eficazes. Caso contrário, não há recursos internos que esgotar, e as supostas vítimas de violações têm o campo aberto para acudir de imediato às instân­cias internacionais de proteção. Assim, é o próprio Di­reito Internacional dos Direitos Humanos que atribui funções de proteção ao direito interno dos Estados. Os recursos de direito interno passam, desse modo, a inte­grar os procedimentos da própria proteção internacional dos direitos humanos. O direito internacional e o di­reito interno encontram-se em constante interação no presente domínio de proteção, em benefício dos seres humanos protegidos.

O dever dos Estados de prover recursos internos adequados e eficazes, consagrado nos tratados de direitos humanos a partir da proclamação inicial nas Declara­ções Americana (artigo XVIII) e Universal (artigo 8º) de Direitos Humanos, constitui efetivamente um pilar bási­co não só de tais tratados, como do próprio Estado de Direito em uma sociedade democrática, e sua aplicação correta tem o sentido de aprimorar a administração da justiça em nível nacional. Além disso, essa disposição-­chave encontra-se intimamente vinculada à obrigação geral dos Estados, consagrada igualmente nos tratados de direitos humanos, de respeitar 05 direitos nestes con­sagrados e garantir o livre e pleno exercício dos mesmos a todas as pessoas sob suas respectivas jurisdições (Con­venção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 1(1); Convenção Européia de Direitos Humanos, artigo 1; Pacto de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, artigo 2(1). Assim, por meio da consagração do direito a um recurso efetivo ante os juizes ou tribunais nacionais com­petentes e da obrigação geral – a este direito indissocia­velmente ligada – da garantia dos direitos protegidos, os tratados de direitos humanos atribuem funções de proteção ao direito interno dos Estados Partes.

Nesse sentido, tem-se orientado e construído a ju­risprudência recente da Corte Interamericana de Direi­tos Humanos sobre a matéria. A Corte Interamerica­na tem precisado a natureza jurídica e o alcance do direito consagrado no artigo 25 da Convenção Ameri­cana sobre Direitos Humanos, a partir de sua decisão quanto ao mérito no caso de Castillo Páez versus Peru (1997), e dos julgamentos quanto ao mérito dos casos de Suárez Rosero versus Equador (1997), Paniagua Morales e outros versus Guatemala (1998), e Blake versus Guatemala (1998).

O outro tribunal internacional de direitos huma­nos existente, a Corte Européia de Direitos Humanos, tem igualmente se debruçado sobre a matéria, que for­ma hoje objeto de uma vasta jurisprudência sob a Convenção Européia de Direitos Humanos, a par de um denso debate doutrinário. Tal jurisprudência, em seus primórdios, sustentava o caráter “acessório” do direito consagrado no artigo 13 da Convenção Européia, en­carado – a partir dos anos 80 – como garantindo um direito substantivo individual subjetivo. Gradualmen­te, em seus julgamentos quanto ao mérito nos casos de Klass versus Alemanha (1978), Silver e outros versus Reino Unido (1983), e Abdulaziz, Cabales e Balkandali versus Reino Unido (1985), a Corte Européia passou a reconhecer o caráter autônomo do artigo 13. Enfim, após anos de hesitações, a Corte Européia, em seu jul­gamento quanto ao mérito no caso de Aksoy versus Turquia (1996), determinou a ocorrência de uma violação autonomia do direito a um recurso efetivo ante as instâncias nacionais competentes (artigo 13 da Con­venção Européia).

Importa que tais avanços jurisprudenciais sejam preservados, e ainda mais desenvolvidos no futuro, em benefício das pessoas protegidas. O direito a um recurso eficaz ante as instâncias nacionais competentes terá sua efetividade em muito fortalecida nos Estados que hou­verem incorporado os tratados de direitos humanos em seus ordenamentos jurídicos internos respectivos. Tal incorporação é uma medida das mais desejáveis e necessárias; no entanto, os Estados-Partes que a ela não tiverem procedido nem por isso estão eximidos de apli­car sempre a garantia judicial dos artigos 25 e 13, res­pectivamente, das Convenções Americana e Européia de Direitos Humanos, emanada do artigo 8º da Decla­ração Universal dos Direitos Humanos.

Cumpre ter sempre presente que, ao ratificar os tratados de direitos humanos, os Estados Partes con­traem, a par das obrigações específicas relativas a cada um dos direitos protegidos, a obrigação geral de ade­quar seu ordenamento jurídico interno às normas inter­nacionais de proteção. As duas Convenções de Viena sobre Direito dos Tratados (de 1969 e 1986, respectivamente) proíbem que uma Parte invoque disposições de seu direito interno para tentar justificar o descumpri­mento de um tratado (artigo 27). É este um preceito, mais do que do direito dos tratados, do direito da res­ponsabilidade internacional do Estado, firmemente cristalizado na jurisprudência internacional. Segundo esta última, as supostas ou alegadas dificuldades de ordem interna são um simples fato, e não eximem os Estados Partes em tratados de direitos humanos da responsabi­lidade internacional pelo não-cumprimento das obrigações internacionais contraídas. Esse princípio básico, judicialmente reconhecido, encontra- se devidamente codificado precisamente no artigo 27 das duas Conven­ções de Viena supracitadas.

Desse modo, não é dado àqueles Estados, invocar supostas dificuldades ou lacunas de direito interno, porquanto estão obrigados a harmonizar este último com a normativa dos tratados de direitos humanos em que são Partes (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 2; Pacto de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, artigo 2(2); dentre outros). Assim sendo, se in­vocam a não-incorporação, ou supostas dificuldades ou lacunas de direito interno, para deixar de prover recursos internos simples, rápidos e eficazes para dar aplicação efetiva às normas internacionais de proteção dos direitos humanos, incorrem em uma violação adicional dos trata­dos de direitos humanos em que são Partes.

As normas nacionais e internacionais de prote­ção formam efetivamente um todo harmônico, não mais se justificando abordá-las, como no passado, de forma estanque ou compartimentalizada. Convergem em seu propósito comum e último de proteção do ser huma­no. No tocante ao Brasil, não deixa assim de ser estra­nho que, inexplicavelmente, não se esteja dando apli­cação cabal ao artigo 5 (2) da Constituição Federal brasileira vigente, de 1988, o que acarreta responsabi­lidade por omissão. Por força daquela disposição cons­titucional, os direitos consagrados nos tratados de di­reitos humanos em que o Brasil é Parte se incorporam, ipso jure, ao rol dos direitos constitucionalmente con­sagrados; há que tratá-los dessa forma, como o precei­tua nossa Constituição, para buscar assegurar um maior grau de proteção aos direitos humanos de todos quantos vivam no Brasil.

A relevância do dever do Estado de prover recur­sos internos adequados e eficazes não há jamais que ser mínimizada. O direito a um recurso efetivo ante os juizes ou tribunais nacionais competentes no âmbito da pn4eção judicial – ao qual a Declaração Universal de 1948 deu projeção mundial – é muito mais relevan­te do que até recentemente se supôs. O dever dos Es­tados-Partes de prover aqueles recursos no âmbito de seu direito interno e de assegurar a todas as pessoas sob suas jurisdições a garantia do livre e pleno exercício de todos os direitos consagrados nos tratados de direitos humanos assume unia importância particular ainda maior em uni continente como o nosso, marca­do por casuísmos que não raro privam os indivíduos da proteção do direito.

Antônio Augusto Cançado Trintade — PhD. (Cambridge) – Vice-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos; Professor Titular da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco; Membro dos Conselhos Diretores do Instituto Interame­ricano de Direitos Humanos e do Instituto Internacional de Di­reitos Humanos (Estrasburgo); Associado do Institut de Droit In­ternational.

Artigo 8º

Toda pessoa tem o direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela Constituição ou pela lei.

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