Comentário
ao Artigo 17º

O
artigo 17 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que em
1998 completou cinquenta anos de existência, consagrou o direito
à propriedade como um direito inalienável do ser humano, desdobrando-o
em suas duas dimensões básicas.
De
um lado, o direito à propriedade é assegurado como meio para garantia
de subsistência, é o direito universal à terra como fonte provedora
das condições mínimas para que a família e a comunidade possam
levar uma vida digna.
Mas
o direito à propriedade vem também conceituado como garantia individual
contra a arbitrariedade do Estado e de terceiros, contrapondo-se
a idéia do arbítrio à da legalidade.
Na
doutrina de Hobbes, o proprietário tinha direito não só
ao uso do bem, mas também à exclusão de terceiros
deste mesmo uso, excetuado apenas o soberano: “O que
é necessário para uma propriedade de bens não é que
um homem seja capaz de usá-los, mas os use sozinho, o
que é feito proibindo-se outros de serem um estorvo
para ele.” Para Rousseau, “o fundamento do pacto
social é a propriedade, e sua primeira condição é
que cada qual se mantenha no gozo tranquilo do que lhe
pertence
A
contribuição do cristianismo deve ser lembrada por sua
extrema relevância. Partindo de um direito à
propriedade visto como um direito natural absoluto —
de origem divina — a Igreja Católica evoluiu para o
conceito de função social da propriedade.
Essa
evolução pode ser traçada, com relativa facilidade,
mediante o estudo das encíclicas papais.
Entre
os direitos da pessoa humana, Pio XII arrola “o
direito ao uso dos bens naturais, consciente dos seus
deveres e das limitações sociais”.
Um
limite à propriedade é imposto ao proprietário pelos seus deveres
de solidariedade para com os outros homens. A obtenção de um benefício
próprio não deve ser realizada com o sacrifício de um legítimo
interesse alheio.
Em
sua encíclica do Quadragésimo Anno, Pio XII estabelece
os limites desse conceito:
A
dignidade da pessoa humana exige normalmente, como
fundamento natural para existir, o direito ao uso dos
bens da terra: a esse direito corresponde a obrigação
fundamental de conceder a todos, tanto quanto possível,
uma propriedade privada.
O
estudioso Guido Goneila, à luz da Rerum Nova-rum, de Leão
XIII, afirma que:
Para
tornar possível o uso comum dos bens é preciso que seja criada
uma limitação fundamental da propriedade pessoal, a que, por isso,
no seu fim encontra, portanto, o seu limite. Isto é, a propriedade
— que está ligada ao homem antes de tudo como meio necessário
para o desenvolvimento de sua personalidade, e depois como instrumento
de organização da produção e da satisfação de necessidades econômicas
— não é o seu próprio fim nem tem por objetivo único o bem-estar
do titular do direito de propriedade.
Entretanto,
tratando-se de reflexão sobre a importância da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, não se pode deixar de ponderar que no mundo
“globalizado” de hoje o direito à propriedade há de ser enfocado
não mais COMO um direito vinculado exclusivamente à terra, mas
sim como um direito à propriedade sobre os bens em geral.
Afinal,
já no início dos anos 1960, a Mater et Magistra, de João XXIII,
invocava a necessidade de uma difusão efetiva da propriedade,
dizendo:
Afirmar
que o caráter natural do direito de propriedade privada refere-se,
também, aos bens de produção não é suficiente; é preciso insistir,
além disso, em que ela seja efetivamente difundida em todas as
classes sociais.
Com
efeito, os valores ligados à propriedade lembrados na obra de
Norberto Bobbio, tais
como o poder, o prestígio, o sucesso, a estabilidade e a segurança
(estes dois últimos talvez os mais profundamente gravados na consciência
cultural dos brasileiros como vinculados à propriedade imobiliária)
encontram-se, na atualidade, bastante dissociados da imagem do
grande proprietário de terras, agora atrelados à figura do empresário,
do profissional liberal bem-sucedido.
Porém,
independentemente das mudanças históricas relacionadas aos bens
sobre os quais recai, o direito à propriedade continua a exercer
o papel de eixo reprodutor das estruturas sociais.
Corno
observa o filósofo italiano, embora o direito à propriedade se
apresente como igualitário, isto é, teoricamente acessível a todos,
os mecanismos previstos para sua aquisição impõem, na realidade,
limitações à possibilidade de que todos possam ser dele titulares
em igual medida.
Assim,
a estrutura da propriedade privada, como estrutura de poder em
sentido político, toma mais evidente a sua característica de fator
de desigualdade, de uma desigualdade que se auto-alimenta (Simmel),
e de fator de não-liberdade — ainda que a burguesia, em sua origem,
tenha equiparado os três “valores” num conjunto que pretendia
ser indivisível (liberdade, igualdade e fraternidade).
O
destaque excessivo que vem sendo destinado ao direito à propriedade
em sua segunda dimensão — cumulativa, privatista, de exclusão
de terceiros não associados —,
em muito reforçado por discursos legalistas, acaba por
relegar à teoria o caráter de direito à subsistência inerente
à primeira dimensão do direito à propriedade.
O
impasse é delineado com precisão por Fábio Konder Comparato:
A
concepção privatista da propriedade, a que se fez referência no
início desta exposição, tem levado, freqüentemente, autores e
tribunais à desconsideração da verdadeira natureza constitucional
da propriedade, que é um direito-meio e não um direito-fim. /\
Constituição não garante a propriedade em si mesma, mas como instrumento
de proteção de valores fundamentais.
Entre
nós, o artigo 59, inciso XXIII, da Constituição Federal em vigor,
dispõe que a propriedade atenderá à sua função social”.
Destarte,
o direito à propriedade somente estará inserido na órbita de proteção
dos direitos humanos fundamentais, de aplicação imediata e status
constitucional (CF artigo 59, § 1º), na medida em que servir
à liberdade do homem e ao sustento da população.
Ainda
de acordo com a visão crítica de Fábio Comparato:
Daí
decorre, em estrita lógica, a conclusão — quase nunca reconhecida
em doutrina — de que nem toda propriedade privada constitui um
direito fundamental da pessoa humana, a merecer, por isso, uma
proteção constitucional. Seria, com efeito, evidente contra-senso
que essa qualificação fosse estendida ao domínio sobre um latifúndio
improdutivo, ou sobre uma gleba urbana não utilizada ou subutilizada,
em cidades com sérios problemas de moradia popular. Da mesma sorte,
é da mais elementar evidência que a propriedade do bloco acionário,
com que se exerce o controle de um grupo empresarial, não pode,
sem ofensa à razão jurídica, ser incluída na categoria dos direitos
humanos.
Assim,
se nas origens, sob a capa do jusnaturalismo, a propriedade foi
exaltada como um direito fundamental, assim Como a vida e a liberdade,
proclamando a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
1789 a propriedade inviolável e sagrada, o artigo 17 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos do pós-guerra tem alcance inteiramente
diverso.
Se
nos países desenvolvidos a terra está distribuída em pequenas
propriedades, o capitalismo opera por meio de inúmeras pequenas
empresas ou o controle das grandes corporações está disseminado
entre uma multidão de investidores, de forma que a propriedade
seja eficaz como meio para a produção dos recursos que garantem
o bem-estar social, no Brasil, a propriedade continua concentrada
nas mãos de poucos, e talvez por isso mesmo improdutiva, não atingindo
seu fim social.
Some-se
a isso que nos países que se supõem “em desenvolvimento”, de aspiração
capitalista, a gradativa diminuição da propriedade pública (titulada
pelos membros do Estado Nacional) torna ainda mais premente a
necessidade de o cidadão ser um proprietário privado — além da
casa, o cidadão envidará esforços desmedidos para ser proprietário
de um plano de saúde, de uma educação razoável...
A
luta contínua dos movimentos como o Movimento dos Sem-Terra (MST),
vinculada à partição e à exploração de terras improdutivas, não
só se aproxima dos objetivos de justiça social, mas aproxima o
Brasil de um modelo mais eficiente de capitalismo, há tempos já
adotado nos países desenvolvidos.
É
dentro dessas condicionantes que o direito de
propriedade deve ser visto no mundo e no Brasil de hoje
como um direito básico do ser humano.
Márcio
Thomaz Bastos — Advogado, ex-presidente do Conselho
Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
A lei é a mesma para
todo mundo, deve ser aplicada da mesma maneira para todos, sem distinção.
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