Comentário
ao Artigo 11º

O
artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos elenca
o direito do acusado à presunção de inocência até a sentença final,
ao processo e julgamento públicos e à plenitude de defesa, além
de sufragar a regra de ouro do direito penal como hortus conclusus,
exigindo que a definição legal do delito seja anterior ao fato
denunciado e que a pena aplicável só possa ser a ali prevista,
caso tenha sido posteriormente agravada, deixando espaço para
a retroatividade da lei posterior mais benigna. A anterioridade
da lei bem como a irretroatividade da lei nova que desfavorece
o acusado, estão entre as maiores conquistas humanizadoras do
direito penal e dispensam comentários em anotações assistemáticas
como as que seguem.
Em
todos os seus tópicos, o dispositivo traça uma sábia limitação
ao exercício do mandato de coerção legitimada. Sente-se objetivamente
a preocupação “anti-estado de força” porque a pré-história e a
história do circuito funcional do direito sempre apresentaram
a triste tendência em transformar a dominação, o poder em violência
institucional e até constitucional. O dispositivo cuida de despersonalizar
a inclinação para a violência jurídica deslegitimadora tão profundamente
quanto possível, aspecto sob o qual se pode perceber no direito
à presunção de inocência uma incisiva proteção do arbítrio de
instruir a perseguição processual sob a ótica do agente e não
da conduta. Presumir a inocência é um modo de abstrair a pessoa,
um veil of ignorance no sentido que Rawis dá à imparcialidade,
pois, em direito penal, sempre se retrata uma pessoa abstrata,
o homem comum, o homem médio, ou do que é comum a todos os seres
humanos, salvo na escolha ou dosagem da pena em concreto. Ao presumir
a inocência do réu, o juiz abstrai também a sua própria pessoa,
imparcialidade que não é uma virtude ou estado de espírito, mas
um esforço, uma conquista em cada caso.
Essa
leitura da presunção da inocência tem, ao que parece, uma justificação
metódica, uma vez que a acusação desde sua peça inicial é, por
definição, uma presunção de culpa do acusado. A Denúncia está
necessariamente informada por elementos objetivos, cujos significados
desenham a individualização de uma conduta e de seu agente, o
que estabelece, desde o início do procedimento, mais que uma possibilidade
real, uma probabilidade de culpa, ou seja, se esses elementos
ou seus significados jurídicos não forem desconstituídos, a culpa,
normalmente, confirma-se. Assim, o despacho interlocutório do
recebimento da acusação, por sua natureza, reconhece que ela
tem fundamento, o que, a rigor, envolve, em alguma medida, a presunção
de culpa. Do ponto de vista da vida tal como ela é, a presunção
de culpa comprova-se pelo olhar com que a sociedade passa a ver
o réu, o que hoje, muitas vezes, se produz por intermédio dos
meios de comunicação de massa e se reproduz cruelmente na massa,
às vezes de forma tão irreversível que a própria absolvição do
acusado não tem a força de restaurar a inocência. Diante dessa
realidade, a presunção de inocência do acusado é um princípio
de resistência ao fascínio do Julgamento social intuitivo que
se alimenta da fragilidade psicológica de criaturas cujo sentido
de identidade e cuja inteligência crítica estão seriamente corroídos
pelo zeitgeist, avassaladoramente implantado pela banalização
midiática. A partir dessa constatação, teríamos de admitir uma
grave contradição entre o procedimento tal como ele é, uma presunção
de culpa, e a regra de procedimento que manda presumir a inocência.
Talvez se possa dizer que as duas presunções são a mesma coisa,
servindo-nos da teoria do “ver corno”, que Wittgenstein trabalhou
na segunda parte das Investigações Filosóficas. A presunção de
culpa e a presunção de inocência seriam a mesma prestinção tal
como no desenho CP de Wittgenstein: o coelho e o pato são o mesmo
desenho. Conforme o processo mental do observador, quando ele
vê o coelho não vê o pato, e quando ele vê o pato não vê o coelho,
ou seja, a obrigação de ver a presunção como presunção de inocência
é uma negação do processo mental que vê no procedimento uma presunção
de culpa, projetando toda a responsabilidade de provar e demonstrar
no acusador. Em última análise, não há presunção de culpa porque,
em princípio, não há culpa, ou seja, a culpa é exceção, embora
reconhecível mediante prova capaz de mostrá-la de forma líquida
e certa. A presunção de inocência sobrevive se a instrução deixar
espaço para qualquer dúvida.
UMA
EXTENSÃO NECESSÁRIA
A
preocupação do artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos emerge da evidência de que o teor literal de uma norma
jurídica é uma coisa, e a ação dessa norma jurídica é outra, ou
seja, o que se faz com uma norma jurídica raramente tem a ver,
em sentido estrito, com o seu teor liberal. Normalmente, a subsunção
é ars inveniendi, não apenas em razão) da natureza da linguagem
e dos princípios hermenêuticos que enclausuram o texto, mas sobretudo
em razão das dificuldades inerentes à reprodução probatória do
fato e dos princípios hermenêuticos que enclausuram a faticidade,
ou seja, do que J. J. Rambach, citado por Gadamer, chamou de substilitas
applicandi, no sentido de uma compreensão que atualiza a relação
entre a norma e o fato desenhado pela prova. Diante disso, associa-se
a presunção de inocência com a plenitude de defesa do acusado.
A culpa só pode ser reconhecida quando se der ao acusado acesso
à defesa plena, mas é forçoso reconhecer que o que se tem exigido
à luz desse princípio, quando se trata de um excluído ou de um
supérfluo social, não tem muito a ver com o direito que se pretendeu
consagrar no texto. Não há a mínima relação de identidade entre
a recente defesa de Collor no Supremo Tribunal Federal e o que
é (ou não é) a defesa dos réus marginais. E certo que se exige
alguma defesa, mas também é certo que o estereótipo da defesa
minimal reconhecido jurisprudencialmente como defesa é defesa
nenhuma, ou seja, é meramente formal, só tem a forma ou aparência
de defesa. Aqui a responsabilidade não é do texto do artigo 11,
que se circunscreve ao acesso e não podia entrar nos detalhes
substantivos e, muito menos, nos qualitativos da exigência. Nos
muitos anos em que exerci a magistratura no Rio Grande do Sul,
são incontáveis as vezes em que fui moralmente constrangido a
transformar a presunção de inocência em ação, colhendo ex officio
provas cuja importância para a defesa e cuja praticabilidade cuidava
de predeterminar no curso do interrogatório do réu, ante o deprimente
desinteresse do defensor dativo. Em processos penais, a distância
entre a defesa formal e a presunção de culpa é quase nenhuma.
Acontecem,
entre nós, violações ainda mais intoleráveis. As que acabo de
lembrar são, até certo ponto, institucionais, no sentido de uma
institucionalidade consuetudinária, mas a que a seguir comento,
embora ligeiramente, é institucional em sentido estrito. Refiro-me
às internações de menores realizadas à luz do Estatuto da Criança
e do Adolescente, que pretendem livrar o menor da jurisdição penal,
da linguagem penal, da processualidade penal — que caracterizava
a legislação precedente. A nova lei substitui a punibilidade (disfarçada)
pelo estado de carência pedagógica e compreende a decisão judicial
como uma destinação educativa, a pena como uma educação compulsória,
na pior das hipóteses a de internação. Acontece que o Estatuto
é aplicado pelo mecanismo burocrático que aplicava a lei anterior
sem suficientes reajustes operacionais, estruturais e culturais,
de tal sorte que o menor, na mesma medida em que se diz que não
é acusado, não tem defesa, e na mesma medida em que se diz que
não é punido ou condenado, é internado em estabelecimentos que,
normalmente, são estruturalmente a própria negação do encaminhamento
pedagógico, falsa e conscientemente comemorado pela decisão judicial.
Em suma, a pretexto de uma lei idealmente correta, mas totalmente
alienada da realidade, estamos dispensando aos menores com desvios
de conduta um tratamento penal medieval, sem acusação, sem presunção
de inocência, sem defesa e com pena previamente definida. E o
caso típico e trágico de uma lei excelente em tese, que se torna,
na aplicação, mais cruel que a péssima lei anterior, porque é
aplicada numa sociedade que não tem a organização que ela pressupõe
e em um Estado sem instituições preparadas para aplicá-la, e,
muito menos, para executar as decisões judiciais nela fundamentadas.
UMA
EXTENSÃO DESNECESSÁRIA
A
mídia tem uma função socialmente relevante, tanto que o rádio
e a televisão são serviços públicos. O jornalismo brasileiro tem,
entre outras paixões, a de participar de investigações, a de investigar
ele próprio e, principalmente, a de julgar. Diz-se que isso se
passa na esfera moral da existência, o que, no momento, não importa.
O que importa é que isso se passa em nossa coexistência.
Concretamente,
a mídia assume um papel de poder policial e judiciário paralelos,
mas, enquanto os poderes legítimos estão enclausurados em princípios,
diretrizes e normas legitimadas procedimentalmente em mandatos
de coerção cada vez mais cuidadosamente controlados (hoje se pensa
em mecanismos para o controle social do exercício desses mandatos),
a mídia não apenas se arvora ela própria em titular desse controle,
mas assume, a seu critério, os próprios mandatos de coerção, e
os exerce na mais absoluta permissividade, definindo, depois do
fato, a regra moral a ele referida — precisamente ela que adota
explicitamente o relativismo ético — e aplicando punições não
previstas constitucionalmente e irrecorríveis, destruindo reputações,
estabilidades, carreiras e vidas inteiras sem conceder aos acusados
um espaço de defesa equivalente ao da acusação, quando concede
algum, proclamando, em cima dessa tragédia, o triunfo da liberdade
de imprensa.
Ora,
o conceito dessa liberdade jamais teve tal abrangência e se nega
a si mesmo na medida em que se transforma, seja pelas urdiduras
do monopólio, seja pela clandestinidade da competição gerenciada,
que parceiriza as empresas e as transforma na linguagem doxal
do poder, e, como tal, tende a ser única na medida em que se apropria
da opinião pública. É certo que há legislação a respeito, mas
a elaboração legislativa é controlada pela própria linguagem
doxal. Há também um preceito constitucional prevendo genericamente
a nocividade e a reparabilidade desses desvios de conduta da
mídia. Entretanto, outra vez sob a pressão da linguagem doxal,
raramente a jurisprudência pune a mídia em quotas que ultrapassem
o que ela própria já providenciou orçamentariamente para manter
essa jurisdição paralela, que acaba sendo, seja do ponto de vista
financeiro seja do ponto de vista do marketing, unia de suas mercadorias
de maior consumo. Com seus poderes policiais e jurisdicionais
paralelos, isentos de qualquer controle que não seja uma lei de
imprensa, elaborada indiretamente por ela própria, e no princípio
constitucional de reparação carente ainda de uma legislação que
o complemente condignarnente, a mídia é, hoje, a mais recorrente
violação do artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
UMA
CONCLUSÃO PRIMA FACIE
Na
verdade, porque são princípios, e não propriamente normas, dispositivos
como esses do artigo 11, reproduzidos em nossa Constituição Federal
de 1988, no artigo 5º, funcionam, na prática, de modo geométrico,
ou seja, como assintotas cujas linhas são tangentes em relação
a um ponto que se desloca para um infinito difuso e incerto, que
a gente costuma chamar de futuro, mas que, de certo modo, a gente
pode chamar também de História, se é que o ser humano, embora
não passe de evento, consegue manter alguma coisa advinda de suas
origens, conservada em seu passado e destinada a ter esse tênue
sentido de continuidade em seu futuro. Nesse caso, a Declaração
Universal dos Direitos Humanos é suscetível de aperfeiçoamentos,
porque, mesmo que não tenhamos nenhuma essência, como afirma a
hermenêutica filosófica, é tão certo dizer cartesianamente cogito,
ergo sum, como dizer que a coexistência humana é, por definição,
um direito à justiça, embora esta lhe seja interminavelmente concedida
em parte e em parte negada, talvez porque justiça e injustiça
também sejam como o desenho do coelho e do pato sobre o qual
se torturam as Investigações Filosóficas de Ludwig Wittgenstein.
José
Paulo Bisol — Secretário de Estado da Justiça e
Segurança do Rio Grande do Sul, magistrado aposentado e
ex-senador.
A lei é a mesma para
todo mundo, deve ser aplicada da mesma maneira para todos, sem distinção.
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