Comentário
ao Artigo 1

Fábio
Konder Comparato
A
Declaração abre-se com a proclamação dos três princípios axiológicos
fundamentais em matéria de direitos humanos: a liberdade, a igualdade
e a fraternidade.
A
noção de princípio jurídico conhece atualmente notável desenvolvimento
e precisão técnica.1 Até há pouco, falava-se em “princípios
gerais de direito”, atribuindo-se-lhes mera função de fonte supletiva
do direito positivo.2 Hoje, como reconhece a quase
unanimidade dos autores, os princípios situam-se no mais elevado
nível hierárquico do ordenamento jurídico.
Trata-se,
antes de mais nada, de normas e não de meras diretrizes programáticas,
ou ideais ético-polítiC05. O positivismo kelseniano não aceita
a normatividade dos princípios, porque destaca inteiramente o
direito da ética e da política e porque a sua visão de um mundo
permanece ligada ao pensamento kantiano, Cego) aos valores. Mas
neste final do século XX, mais de cem anos após a revolução axiológica
levada a efeitos por Lotze, Brentano e Nietzsche, é puro anacronismo
conceber o sistema ético-jurídico como separado do universo valorativo.
Especialmente no tocante aos direitos humanos, reconhece-se hoje
que eles constituem um “sistema objetivo de valores”, formando
a base ética da sociedade.4
A
precisão sobre a normatividade dos princípios impõe-se Como) questão
preliminar, uma vez que ainda Li quem denegue à Declaração Universal
dos Direitos Humanos a qualidade de documento vinculante na ordem
internacional, pelo fato de ser ela uma recomendação que a Assembléia
Geral das Nações Unidas faz aos seus membros ((Carta das Nações
Unidas, art. 10).
Esse
entendimento, porém, peca por excesso de formalismo. A doutrina
majoritária reconhece, hoje, que a vigência dos direitos humanos
independe de sua declaração em constituições, leis e tratados
internacionais, exatamente porque se está diante de exigências
de respeito à dignidade humana, exercidas contra todos 05 poderes
estabelecidos, oficiais ou no. Por outro lado, como nos ensinou
a doutrina germânica, há que se distinguir entre direitos humanos
e direitos fundamentais.5 Estes nada mais são do que
direitos humanos positivados em normas constitucionais expressas;
mas não é essa positivação que confere juridicidade às exigências
de respeito à dignidade humana. A mesma distinção, como é óbvio,
há de ser feita também no âmbito do direito internacional.
A
Corte Internacional de Justiça, de resto, ao decidir os casas
que lhe são submetidos, aplica não só tratados e Convenções internacionais,
mas também costumes e princípios gerais de direito (Estatuto,
art. 38). Ora, os princípios e os direitos definidos na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, ainda que não estivessem consagrados,
como agora estão, nos Pactos Internacionais de 1966,6
fazem parte, obviamente, do costume internacional e dos princípios
gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas.
Os
princípios formam, na verdade, uma categoria especial de normas
jurídicas, que se distinguem das demais (as simples regras de
direito) por um conjunto de características próprias, a saber:
a) maior amplidão de seu campo de incidência; b) maior força jurídica;
c) permanência em vigor em caso de conflito normativo.
Usando-se
da distinção feita pelo professor Friedrich Miiller, o programa
normativo (Normprogram)
dos princípios abarca ao mesmo tempo vários campos normativos
(Normbereiche). Assim,
por exemplo, o princípio da isonomia cobre todo o sistema jurídico,
nacional e internacional; no sistema do direito interno, ele vigora
em todos OS ramos, quer do direito público, quer do direito privado.
A
força normativa dos
princípios é muito maior que a das simples regras de direito,
porque estas vigem na exata medida em que não colidem com aqueles.
A função própria dos princípios consiste, justamente, em dar unidade
ao sistema jurídico, direcionando a interpretação e a aplicação
de suas normas e gerando novas regras em caso de lacunas.
Finalmente,
a vigência dos princípios jurídicos, em virtude da
amplidão de seu campo de incidência, não é afetada
na hipótese de conflito normativo, tal como sucede
com as regras de direito, as quais se revogam por normas
ulteriores, que contra elas venham a colidir. A solução
de um conflito entre princípios jurídicos no caso
concreto – a liberdade de imprensa ou a proteção da
intimidade pessoal, por exemplo – faz-se não pela
revogação) de um pelo Outro, mas sim pela escolha do
mais adequado ou pertinente para a justa composição da
lide, segundo o método do sopesamento ou balanceamento
de valores (Güterabwãgung, balancing).
No
que tange à sua função, os princípios fundamentais do ordenamento
jurídico classificam-se em axiológicos ou finalísticos. São desta
última espécie, por exemplo, os princípios enunciados no art.
3º da Constituição brasileira de 1988
A
tríade que compõe os princípios axiológicos supremos do sistema
universal de direitos humanos constituiu-se durante a Revolução
Francesa. Mas a sua consagração) oficial em textos jurídicos só
se fez tardiamente. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
de 1789, tal como o Bill
of Rights de Virgínia, de 1776, só se refere à liberdade e
à igualdade. A fraternidade veio a ser mencionada, pela primeira
vez – e, ainda assim, não como princípio jurídico, mas como virtude
cívica – na Constituição francesa de 1791.8 Foi somente
no texto constitucional da segunda república francesa, em 1848,
que a “santíssima trindade” dos direitos humanos veio a ser oficialmente
declarada.9
O
núcleo do princípio axiológico da liberdade é a idéia
de autonomia, isto é, de submissão de cada qual a
normas por ele mesmo editadas. Uma sociedade livre é
aquela que obedece às leis que ela própria estabelece
e aos governantes por ela escolhidos. O pensamento clássico
vê, pois, no autogoverno, sob o império da lei, a
marca registrada de uma sociedade livre.10
A
partir das declarações de direitos do final do século XVIII, porém,
estabeleceu-se a distinção entre a liberdade
pública, com o sentido político de autogoverno, e as liberdades
privadas, como instrumentos de defesa do cidadão contra as
interferências governamentais. Benjamin Constant.11
expressando a Visão burguesa do mundo, chegou a contrapor estas
àquela, mostrando que, enquanto os antigos só se preocupavam com
a participação política do cidadão e desconheciam a autonomia
privada, os modernos estão sempre prontos a abrir mão da participação
política, contanto que lhes sejam preservadas as liberdades individuais.
A civilização burguesa separou nitidamente, como disse o jovem
Marx, os direitos do homem dos direitos do cidadão, e concebeu
aqueles a modo de divisas demarcatórias entre dois terrenos pertencentes
a proprietários distintos.12
Na
Declaração Universal dos Direitos Humanos, porem, o principio
da liberdade compreende tanto a dimensão política como a individual.
A primeira vem declarada no art. 21, e a segunda, nos arts. 3º
e seguintes. Reconhece-se, com isso, que ambas essas dimensões
da liberdade são complementares e interdependentes. A liberdade
política sem as liberdades individuais não passa de engodo demagógico
de Estados autoritários ou totalitários. E as liberdades individuais,
sem efetiva participação política do povo no governo, mal escondem
a dominação oligárquica dos mais ricos.
No
tocante ao princípio da igualdade, a mesma evolução
dicotômica ocorreu. As revoluções do final do século
XVIII assentaram, com a abolição dos privilégios
estamentais, a igualdade individual perante a lei.
Abriu-se, com isso, uma nova divisão da sociedade, fundada
não já em estamentos, mas sim em classes: os proprietários
e OS trabalhadores. Em 1847, aliás, Tocqueville já
antevia: “Dentro em pouco, a luta política irá
estabelecer-se entre homens de posses e homens desprovidos
de posses; o grande campo de batalha será a
propriedade”.13
Foi
justamente para corrigir e superar o individualismo próprio
da civilização burguesa, fundado nas liberdades
privadas e na isonomia, que o movimento socialista fez
atuar, a partir do século XIX, o princípios da
solidariedade corno dever jurídico, ainda que
inexistente no meio social a fraternidade Como virtude cívica.14
A
solidariedade prende-se à idéia de responsabilidade
de todos pelas carências OU necessidades de qualquer
indivíduo ou grupo social. E a transposição, no plano
da sociedade política, da obligatio
in solidurri do direito privado romano (D. 45,
2, 11). O fundamento ético desse princípio
encontra-se na idéia de justiça distributiva,
entendida corno a necessária compensação de bens e
vantagens entre as classes sociais, com a socialização
dos riscos normais da existência humana. E a mediania
proporcional de que fala Aristóteles.15
Com
base no princípio da solidariedade, passaram a ser
reconhecidos corno direitos humanos os chamados direitos
sociais, que se realizam pela execução de políticas
públicas, destinadas a garantir amparo e proteção
social aos mais fracos e mais pobres, ou seja, aqueles
que não dispõem dos recursos indispensáveis para
viver dignamente. A Declaração Universal dos Direitos
Humanos consagra os direitos sociais em seus arts. 22 a
26.
Os
direitos sociais englobam, de um lado, o direito ao
trabalho e 05 diferentes direitos do trabalhador assalariado;
de outro lado, o direito à seguridade social (saúde,
previdência e assistência social) e o direito à educação.
De modo geral, como se diz no Pacto Internacional sobre
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (art.
11), “o direito de toda pessoa a um nível de vida
adequado para si próprio e sua família, inclusive à
alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim
como a uma melhoria contínua de suas condições de
vida”.
É
também com fundamento na solidariedade que, em vários
sistemas jurídicos contemporâneos, consagra-se o dever
fundamental de se dar à propriedade privada uma função
social.
O
conjunto dos direitos sociais acha-se hoje, em todo o
mundo, severamente abalado pela hegemonia da chamada política
neoliberal, que nada mais é do que um retrocesso
universal ao capitalismo vigorante em meados do século
XIX. Criou-se, na verdade, uma situação de exclusão
social de populações inteiras, inimaginável para os
autores do Manifesto
comunista. Marx e Engels, com efeito, em sua análise
do capitalismo, haviam partido do pressuposto de que o
capital sempre dependeria do trabalho (die
Bedingung des Kapitals ist die Lohna’rbeiíj,
o que daria aos trabalhadores unidos a força
necessária para derrotar o capitalismo no embate
final da luta de classes. Ora, esse pressuposto
revelou-se totalmente falso. Neste final do século XX,
o que se verifica, em todas as partes do mundo, é que a
massa trabalhadora se tornou um insumo perfeitamente
dispensável no sistema capitalista de produção.
“O que se nos depara”, escreveu Hannah Arendt há
quarenta anos, e a possibilidade de uma sociedade de
trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única
atividade que lhes resta”. E acrescentou:
“Certamente, nada poderia ser pior”.
É
este o principal desafio à dignidade humana, na época
contemporânea.
A
Declaração Universal de 1948 apresenta hoje, mais de
meio século após a sua proclamação pela Assembléia
Geral das Nações Unidas, duas deficiências evidentes.
Ela desconhece o direito
à identidade
cultural das minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas
como contraponto necessário ao princípio da
isonomia, direito este que só veio a ser reconhecido
com a aprovação do Pacto sobre Direitos Civis e Políticos
de 1966 (art. 27). Ela é, ademais, anterior ao
surgimento dos chamados direitos
da humanidade, como o direito à paz, à utilização
dos bens comuns a todos os homens17 e à
preservação do meio ambiente.18
Fábio
Konder Comparato – Doutor em Direito pela Universidade
de Paris; Professor titular da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo.
Notas:
1
Cf.,
entre nós, a exposição feita pelo professor Paulo
Bonavides em seu Curso de Direito Constitucional, 7a
ed., São Paulo, cap. 8.
2
Conforme
o disposto no art. 38 do Estatuto da Corte Internacional
de justiça, o julgamento das controvérsias que lhe
sejam submetidas será feito em função de: “a) as
convenções internacionais, quer gerais, quer
especiais, que estabeleçam regras expressamente
reconhecidas pelos Estados litigantes; b) o costume
internacional, como prova de uma prática geral aceita
como sendo o direito; c) os princípios gerais de
direito, reconhecidos pelas nações civilizadas”.
3
Criticando
Josef Esser (Crundsatz und Norni, 4ª ed., Túbingen, 1
990, p. 69), que afirmara que o princípio “é uma
parte jurídico-dogmática do sistema normativo, ou
seja, ele vale normatiuamente”, Kelsen sustentou que
os princípios jurídicos “mantêm o seu caráter como
princípios da moral, da política ou dos costumes
morais, e têm que ser distinguidos das normas jurídicas,
cujo conteúdo a eles correspondem” (Allgemeine
Theorie der Normen, Viena, 979, p. 94).
4
A
expressão objektive Wertordnung foi cunhada pela Corte
Constitucional alemã: cf. Konrad Hesse, qrundzi.lge
des Verfassungsrechts der Bundesrepubiik Deutschland,
20~ ed., Heidelberg, 1 995, n0 299. Sobre o
mesmo assunto, cf. Heiner Bielefeldt, Zum Ethos der
menschenrechtlichen Demokratie, Wúrzburg, 1 99 1, e
Carlos Santiago Nino, The Ethics ol Human Rights,
Oxford, 1 99 1.
5
Cf. Klaus Stern, Das Staatsrecht der
Bundesrepublik Deutschland, 111/1 , IlUgemeine Lehren
der t4rundrechte, Munique, 1 988, pp. 39 ss.
6
Os
Pactos Internacionais sobre Direitos Civis e Políticos,
e sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais foram
promulgados no Brasil pelo Decreto n0 59 1 ,
de 6 de julho de 1 992.
7
Juristische
Methodik, 4~ ed., Berlim, 1 990, pp. 142 ss.
8
“II sera établi des fêtes nationales pour
conseruer le souvenir de la Révolution Franç’aise,
entretenir la fraternité entre les cito yens, et Les
attacher a la Constitution, à la Patrie et aux bis”
(Título Primeiro).
9
“Elle
(la République Française) a pour príncipe la Liberté.
l’Égalité etlafraternité” (Preâmbulo, IV).
10
Cf.
Aristóteles, Política 1 3 1 7 a 40, ao dizer que “o
princípio fundamental de uma constituição democrática
é a liberdade”, sendo que “um dos elementos da
liberdade consiste em governar e ser governado
alternadamente”. Locke (Second treatise cl government,
cap. IV): “The liberty of man, in society, is to be
under no other legisla tive power, but that established,
by consent, in the common wealth: nor under the dominion
ol any will, or restraint of any law. but what that
legisla tive shall enact, according to the trust put in
it’. E Rousseau, nas Lettres écrites de la kontagne
(Carta): “Un peu pIe libre obéit, mais il ne sert pas:
il a des chefs et non pas des maítres: il obéit aux Lo
ix, mais il n’obéit qu’aux Loix et c’est par la
force des Loix quil n’obéit pas aux hommes
11
De
la liberté des anciens com parée à celle des modernes,
conferência feita no Ateneu Real de Paris, em 1819.
12
“Die
Grenze, in welcher sichjeder dem anderen unschádlich
bewegen kann, ist durch das gesetz gestimmt, wie die
Çrenze zweier Felder durch den Zaunpfahl bestimmet
ist” (Karl Marx e Friedrich Engels, .Studienausgabe,
t. 1, Philosophie, Frankfurt, 1 990, p. 50). 7
expressão
“marcos” foi usada, efetivamente, pela Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, em seu
art. 40: ‘La liberté consiste à pouvoir faire tout
ce qui ne nuit pas à autrui: ainsi, (‘exercice des
droits natureis de chaque homme n’a de bornes que
ceUes qui assurent aux autres membres de la société la
jouissance de ces mêmes droits. Ces bornes ne peuuent
être déterminées que par la loi
13
Souuenirs,
em Qeuvres com plêtes. Paris, Gallimard, t. 12, p. 37.
14
Michel
Borgetto, em tese recente (La notion defraternité en
Droit Publicfrançais, Paris, 1993), estudou a evolução
das idéias de fraternidade e solidariedade na França,
desde a Revolução.
15
“Ética
a Nicômaco 131 Ia, IOss.
16
A
condição humana, Forense-Universitária, Salamandra
Consultoria Editorial, Editora da Universidade de São
Paulo, 1 98 1, p. 13. /~\ edição original
norte-americana, sob o título Thehuman condition, foi
publicada em Chicago em 1 958.
17
‘‘Em
1982, foi celebrada a Convenção das Nações Unidas
sobre o Direito do Mar, promulgada entre nós pelo
Decreto n0 1 .530, de 22 de junho de 1995.
18
A
Convenção sobre Diversidade Biológica, celebrada no
Rio de Janeiro em 5 de junho de 1 992, foi promulgada no
Brasil pelo Decreto n0 2.519, de 16 de março
de 1998.
A lei é a mesma para
todo mundo, deve ser aplicada da mesma maneira para todos, sem distinção.
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