17/2 a 4/3 2000:
VISITA DE FREI JOÃO XERRI, OPA TIMOR
LESTE
O
padre Ernanne Pinheiro, que ia pela
CNBB - Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil - e eu, que ia pela CRB -
Conferência dos Religiosos do Brasil
- saímos de SP para Buenos Aires, dia
17 às 19:00, e de Buenos Aires para
Auckland, na Nova Zelândia. De lá fomos
para Sidney, onde chegamos no sábado,
dia 19 às 14:00 hora local.
Estava
no aeroporto Aires Eddie de Almeida,
irmão da Nancy de Almeida Ezequiel,
timorense casada com um brasileiro:
nós a conhecemos quando morava no Brasil,
hoje mora em Sidney. Fomos para a casa
do Aires, onde nos hospedamos e em seguida
para o Centro: East Timor Cultural Center,
fundado pelo Aires, onde a Nancy trabalha.
Lá houve uma recepção para nós, com
a presença da Nancy, sua irmã Filomena
e irmãos, mãe, marido, filho e vários
timorenses. A recepção foi muito calorosa
e simpática: Nancy contou da ajuda da
Igreja no Brasil e especialmente do
"Clamor por Timor", por quem
tem grande carinho.
Um
dos costumes dos timorenses que me impressionou
é o hábito de beijar a mão do sacerdote:
no começo não queria permitir, mas o
Aires me disse que se não deixasse,
estaria ofendendo o povo. Assim, durante
toda a visita a Timor tive minha mão
beijada pelas pessoas a quem era apresentado.
Inclusive se alguém não percebia que
eu era sacerdote, ao saber disso voltava
para se desculpar e beijar minha mão!
O
contato com Aires, Nancy e Filomena
me mostrou que Timor Leste é uma "vocação",
com diferentes características: Aires
segue uma linha mais cultural, Nancy
se pauta pela oração/promoção humana
e Filomena, pela militância política
e partidária, na Fretilin.
O
Centro se localiza numa paróquia, cujo
vigário é maltês, mas foi criado na
Austrália. Outro padre que trabalha
na paróquia é filho de migrantes malteses:
os pais foram primeiro para a Argélia
e Egito, de onde foram expulsos e depois
foram para a Austrália. Há na paróquia
missas em várias línguas: polonês, espanhol,
maltês, italiano, além do inglês; outro
dos padres é filipino.
Jantamos
com Nancy, Aires e Filomena. A família
foi muito marcada pelo pai, que foi
da Índia para o Timor; tinha uma cabeça
mais aberta, mandou as filhas estudarem,
quando na sociedade timorense a mulher
"não é nada". O pai queria
que Filomena fosse médica, e mandou
que estudasse em Lisboa, para depois
ajudar o povo timorense. Daí vem a origem
da "vocação timorense"
da família.
Nancy,
desde nosso primeiro encontro, sempre
quis que eu conhecesse seu irmão, que
estudou e morou com padres em Goa (Índia).
Aires, que é um dos líderes dos refugiados
timorenses e sofreu muita perseguição
inclusive do governo australiano, tem
longa experiência de contato com clérigos,
com quem discutia o futuro do Timor
e naturalmente tem críticas ao nosso
autoritarismo e elitismo.
Domingo,
dia 20: Aires pediu ao Ernanne e
a mim que celebrássemos no acampamento
dos refugiados timorenses. Eu preguei
e foi uma das pouquíssimas vezes em
que tive a oportunidade de falar com
um grupo maior de timorenses: havia
mais de 100 pessoas na missa. O acampamento
é muito vigiado, fica numa vila militar,
mas as condições são muito boas, tanto
que muitos não queriam voltar para o
Timor: além de moradia e comida, recebem
25 dólares australianos (uns R$25,00)
por semana...
De
tarde fomos conhecer o Instituto Mary
MacKillop, onde mora a irmã Josephine
Mitchell, que conheci em Portugal. É
um centro cultural muito importante,
dirigido por 3 irmãs de congregações
diferentes. Uma delas, especializada
em línguas, fez estudo importante de
uma das línguas dos aborígenes australianos,
e agora está estudando o tetum, principal
língua do povo de Timor Leste. Na verdade,
o interesse pelo tetum foi incentivado
por D.Carlos Ximenes Belo, bispo de
Dili e Nobel da Paz de 96. O Concílio
Vaticano II recomendou o uso da língua
vernácula nas liturgias, o que inclusive
fez com que várias línguas faladas só
por povos pequenos não morressem. Em
Timor Leste foi discutido qual seria
a língua litúrgica: português, bahasa
indonésio, inglês? e decidiram pelo
tetum, língua mais falada no território,
apesar de que há pelo menos mais 12
línguas nativas. O Instituto já publicou
muitos textos sobre e em tetum, inclusive
partes da Bíblia e histórias. A Nancy
é uma das que escreve histórias em tetum.
A
irmã Josephine contou que todas as escolas
em Timor Leste foram queimadas, e os
livros que elas tinham conseguido publicar
com enorme dificuldade foram também
queimados, inclusive os originais, os
clichês.
Só
alguns livros escaparam, por exemplo
em Baucau, lugar menos atingido pela
violência. O depósito dos livros em
Dili, onde tinham sido publicados, inclusive
com ajuda de D.Belo, foi queimado, pois
estava na Cúria, inteiramente destruída
como praticamente toda a cidade de Dili.
Uma
das irmãs que trabalha no projeto é
enfermeira e tinha acabado de voltar
de Timor Leste: contou-nos da destruição,
da falta de roupas, de comida... Disse
que o povo bem sabia que haveria matança
se a independência ganhasse no plebiscito,
tanto que houve gente da Igreja que
disse ao povo que votasse pela integração,
para evitar a violência. Isto me fez
pensar na Nicarágua, onde estive acompanhando
a eleição de 1990: o povo participou
em massa dos comícios sandinistas, mas
não votaram neles, pois sabiam que se
os sandinistas ganhassem os "contra"
continuariam a guerra civil, que já
tinha matado muita gente.
O
que houve em Timor foi mesmo uma vingança
contra o povo; e os soldados indonésios,
inclusive a última leva enviada para
controlá-los, antes de regressar a seu
país, saquearam o que puderam: com a
participação dos milicianos timorenses,
faziam o povo sair de suas casas, estacionavam
um caminhão ao lado e o enchiam com
tudo o que tinham roubado, antes de
queimar as casas. A irmã descreveu uma
miséria total em Timor Leste, muita
fome, gente que não tem mais nada...
era um relato pesado, cheio de emoção,
de alguém que estava realmente ao lado
do povo timorense!
Segunda,
21: fomos de manhã para Darwin,
no norte do país; no aeroporto nos recebeu
um jesuíta, padre Maurice Harding. Ele
trabalha com os aborígenes australianos
e Aires e Nancy tinham pedido a ele
que comprasse nossas passagens para
Dili. Foram 2 horas num avião Brasília,
velho...
O
aeroporto de Dili está bem destruído
e havia forte presença militar.
O
único lugar em que vimos timorenses
fazendo um trabalho de "certa categoria"
foi no aeroporto: são eles que fazem
o controle dos papéis, falando mais
inglês, pouco português. Os outros timorenses
que vimos trabalhando eram faxineiros,
porteiros e motoristas da ONU...
Foi
um alívio quando soubemos que havia
alguém nos esperando: Silvério, motorista
de D.Basílio. Comemos num restaurante
em Dili e tivemos nossa primeira visão
da destruição; casas, escolas, banco,
tudo foi queimado. Fomos depois para
Baucau, mais de 2 horas pela estrada
principal do país, com lindas vistas
do mar e da serra, mas perigosa porque
é muito estreita e cheia de curvas fechadas.
Passamos
por vários povoados queimados; até a
cidade de Manatuto, que era grande,
foi totalmente destruída: só a igreja
foi poupada.
Chegamos
a Baucau mais ou menos às 18:00 e logo
fomos falar com D.Basílio, que nos hospedou
na casa de hóspedes da diocese, bastante
confortável, pois cada um tinha seu
quarto com banheiro privativo.
Na
terça, dia 22 conversamos de manhã
com D.Basílio; foi então que notamos
que não havia propriamente um programa
organizado para nós, mas que íamos ter
que aproveitar as ocasiões que se apresentassem.
Por exemplo, D.Basílio disse que não
poderia ficar conosco, pois ia dar posse
ao novo vigário de Laleia; pedimos então
para acompanhá-lo, o que nos proporcionou
uma experiência interessante da vida
timorense. Fazia muito calor e logo
na entrada da cidade havia uma recepção
do povo, uma guarda tradicional, vestida
com as roupas locais, com bandeiras,
crianças, tamborins... Receberam o bispo
com um "tais": tradicional
estola de acolhida. Apesar do calor,
as autoridades estavam todas de terno
e gravata. Havia soldados da ONU - hoje
são 8000 em todo o território. Há soldados
de vários países: Tailândia, Bangladesh,
Austrália... Esses eram filipinos, católicos
e participaram da missa.
Na
missa, o bispo ficou no "trono"
e sacerdotes locais celebraram; Ernanne
e eu concelebramos. Havia meninas coroinhas,
não só lá, mas também em outras cidades.
Notei a participação de mulheres, que
fizeram as leituras em tetum, cantaram
o salmo; houve um belíssimo coral de
música gregoriana em tetum, dirigido
por um leigo. No final da celebração,
várias pessoas falaram, inclusive um
dos chefes da comunidade; achei estranho
não termos sido convidados a falar:
D.Basílio limitou-se a nos apresentar.
Após
a missa, enquanto tirávamos os paramentos,
o "salão", uma tenda, foi
preparado para o almoço. Em primeiro
lugar comeram as autoridades: bispo,
sacerdotes, capitão da ONU... Havia
4 tipos de carne, 3 tipos de arroz:
comida bastante abundante; Laleia não
foi muito destruída e provavelmente
por isso havia comida. Houve um show
muito bonito, com danças; notei que
não havia cantos de protesto. Havia
bonitos enfeites feitos com palha de
milho e frutas. O povo - umas 500 pessoas
- comeu depois, de modo muito ordeiro.
Via-se bem que havia muita organização,
embora discreta; apesar de ser uma Igreja
clerical, o povo organizava a festa
sem que o padre precisasse intervir,
nem uma só vez.
Por
acaso apareceu Ramos-Horta, que tinha
ido procurar o bispo; ele me reconheceu
e conversamos um pouco. Seus seguranças
são brasileiros e pude conversar bastante
com eles, sobretudo com o sargento Antonio
João Benites, que está cursando direito
em Brasília e que me deu bastante informação.
Quando
estava na Austrália já tinha ouvido
falar muito bem dos nossos soldados;
o que vi e ouvi no Timor acabou por
fazer com que eu mudasse minha opinião,
de que era ridículo o Brasil mandar
tão pouca gente. Conclui que afinal
de contas foi bom mandar só 51 soldados.
Eles fazem os serviços mais delicados,
como monitorar os soldados indonésios
logo antes de sairem, evitando que destruissem
casas e bens. Fazem a guarda de Xanana
Gusmão e Ramos-Horta, realizam patrulhamentos
especiais, guardam os prisioneiros milicianos
que cometeram crimes, inclusive os acusados
de homicídio. São muito bem vistos pelo
povo, pois brincam com as crianças,
e têm iniciativas de bom-senso, em vez
de se limitarem a cumprir ordens.
Timor
está como que "invadido" por
tropas estrangeiras, com uma presença
massiva. O Brasil continua a ser muito
querido, inclusive porque sua presença
é mais discreta e simpática. Além dos
soldados, há outros brasileiros como
monitores desarmados da paz e funcionários
da ONU.
O
sargento me disse sua alegria ao ver
o povo celebrando, dançando e cantando:
quando chegou a Dili não se via ninguém
nas ruas, nem cachorros...
À
tarde voltamos para Baucau, onde dormimos.
Na
quarta, dia 23, participamos de
uma reunião do clero da diocese.
Havia
um assunto pendente, que era a atuação
do padre Filomeno Jacob SJ, que é timorense
e responsável pela educação em nome
do CNRT: Conselho Nacional da Resistência
Timorense, uma frente que abriga vários
partidos políticos e organizações civis
e que é atualmente o órgão que representa
o povo. Filomeno morou durante muito
tempo fora do Timor e é acusado de autoritarismo
por alguns membros do clero. O problema
principal é a questão da língua. A mais
falada além do tetum, é o bahasa indonésio,
mas o CNRT decidiu que a língua oficial
será o português; o tetum é a língua
nacional. Para o CNRT, esta é uma decisão
político-estratégica. Entendem que português
e religião católica são elementos fundamentais
da história e identidade timorense.
Se a língua oficial for o inglês, eles
serão engolidos pela Austrália, sendo
tratados como outros aborígenes. E naturalmente
não querem que seja o bahasa indonésio,
que é a língua do invasor... No entanto,
tem gente que reclama dessa decisão.
A
meu ver, existe também a questão de
como lidar com o poder secular: antes
o poder estava nas mãos do inimigo,
os indonésios, com quem a Igreja
só se relacionava à distância e em nome
do povo. Agora o poder civil começa
a passar para as mãos dos próprios timorenses,
inclusive um sacerdote...
E
há também a questão de diferentes modelos
de sacerdócio: tudo isso dificulta o
entendimento. Ficava me lembrando do
que aconteceu na Nicarágua, com os irmãos
Ernesto e Fernando Cardenal, e no Haiti
com o presidente Aristide: muitas vezes
nós, Igreja, incentivamos os membros
da Igreja a participar da política,
mas quando fazem isto, nós os abandonamos...
Como
o padre Filomeno não foi à reunião,
o único assunto ficou sendo a nossa
visita, que seria o segundo assunto.Tínhamos
preparado a reunião junto com D.Basílio,
que traduziu o que dizíamos para o tetum.
Havia uns 20 sacerdotes/religiosos e
10 religiosas.
Eu
me apresentei como dominicano, enviado
pela CRB, mas enfatizei meu trabalho
na Justiça e Paz e no Clamor por Timor.
A pedido de D.Basílio, comentei como
a questão do Timor Leste penetrou no
Brasil e como foi sentida pelo povo
e pela mídia. Acabei contando um pouco
da caminhada do Grupo Solidário São
Domingos, origem do projeto Clamor por
Timor.
O
padre Ernanne contou do projeto atual
da Igreja no Brasil para ajudar o povo
timorense. Um dos sacerdotes nos perguntou
se não íamos agir como mais uma ONG,
que promete muito, gasta rios de dinheiro,
faz um belo relatório e o povo não recebe
nada...
Os
participantes descreveram a situação
atual do Timor, a fome, a presença dos
soldados da ONU.
(Uma
ONG me disse mais tarde que se calcula
que 30% dos soldados da ONU têm AIDS.
Disseram também que durante a ocupação
havia prostitutas indonésias, mas atualmente
as prostitutas são timorenses.)
Os
presentes reclamaram que a ONU é inoperante,
ineficiente, que não cria empregos e
que por isso há fome. Pediram coisas
"pequenas", pontuais, do tipo
sistema de água encanada para uma aldeia:
acham importante conseguir uma pessoa
do tipo "mestre-de-obras",
que trabalhe junto com o pessoal, ensinando
o povo para que depois faça por si mesmo.
A
maioria do clero é jovem; é um clero
autóctone que cursou o seminário na
Indonésia. Não há uma articulação entre
os religiosos, do tipo da CRB.
No
final eu disse que acredito que este
seja um kairós para eles, o momento
de criar uma Igreja que seja fermento
em um Timor livre.
Ao
encerrar, o bispo disse aos presentes
que, se quisessem, poderiam nos convidar
para suas paróquias e comunidades, mas
isto não aconteceu.
O
único convite foi para visitar um grande
colégio em Fatomaca, perto de Venilale,
uma escola profissionalizante dos salesianos,
com internato.
Na
quinta, dia 24, fomos para Dili
com D.Basílio. Como a viagem demorou
mais do que tinha sido previsto, ao
chegar fomos direto almoçar. A casa
de D.Belo foi quase toda destruída,
só sobrou um pedaço onde mora hoje e
onde comemos com ele. Entregamos a ele
a carta da CNBB, convidando-o a participar
da celebração dos "500 anos",
em Porto Seguro. Também dei a ele uma
Agenda Latino-Americana 2000 e uma imagem
de N.Sra.Aparecida.
O
almoço foi simpático, descontraído,
com piadas e comentários sobre
política, até do Vaticano. Comentamos
sobre o projeto de colaboração da Igreja
no Brasil com a Igreja no Timor: disse
que era muito importante. Lembrou-se
logo da irmã Vera Camerotti, salesiana
brasileira amiga nossa, que passou algum
tempo no Timor e lamentou que ela tivesse
voltado para o Brasil.
D.Belo
disse que nossa presença era muito bem-vinda
e enfatizou a necessidade de a Igreja
no Brasil ajudar no ensino de português
e no seminário maior conjunto, que as
duas dioceses estão abrindo em Timor.
Notei
que a questão das comunicações é complicada:
não há um sistema de telefonia funcionando.
Eu mesmo vi uma vez que D.Belo, para
conversar com D.Basílio, foi até Baucau,
uma viagem de no mínimo 2 horas para
ir e outro tanto para voltar!
Depois
do almoço, fomos para a casa das irmãs
canossianas, que fica ao lado, onde
nos hospedamos por uma noite.
À
tarde chegou Sergio Regazzoni, o suiço-italiano
que iria apresentar para a diocese de
Baucau o projeto conjunto do Centro
Lebret, de Paris e do IRFED, onde trabalha
Luís de Sena, brasileiro.
Nessa
tarde estivemos na sede da ONU, em Dili,
que era a sede do governo e que só foi
destruída em parte. Havia dois pedidos
que tinham vindo do Brasil, para que
Sergio de Melo, "governador"
de Timor Leste em nome da ONU, nos recebesse:
um do Itamaraty e outro do deputado
Euclides Scalco, do PSDB, amigo do Ernanne.
Sugeriram que escolhêssemos uma de duas
datas e decidimos ter a entrevista na
terça, dia 29. Lá nos encontramos com
o professor de direito Eugenio Aragão,
da Universidade de Brasília, que estava
no Timor para ajudar a organizar o sistema
jurídico, os tribunais, formar novos
juízes etc. Ernanne ficou conversando
com ele, que por sinal tinha acabado
de se demitir, enquanto eu fui conversar
com Estanislau, membro da direção do
CNRT e marido da Filomena de Almeida,
a quem encontrei na sede da ONU.
Em
seguida, o professor Eugenio nos levou
para a sede do CNRT, que fica perto
da sede da ONU. No caminho ele fez comentários
sobre a ineficiência das Nações Unidas.
Na sede do CNRT encontramos Roque Rodrigues,
nosso conhecido de muitos anos, membro
do CNRT e atual chefe de gabinete de
Xanana. Embora não tivéssemos marcado
hora para falar seja com ele, seja com
Xanana, ele nos levou para uma visita
rápida com o presidente: havia uma fila
de gente que tinha hora marcada para
falar com Xanana.
Quando
Roque disse a Xanana que éramos dois
sacerdotes brasileiros, da solidariedade
a Timor, Xanana nos cumprimentou calorosamente.
Comentamos rapidamente sobre a próxima
visita dele ao Brasil. Disse que entregaria
para Roque dois presentes para ele:
um do Clamor por Timor e o álbum dos
20 anos do PT, enviado por Lula.
Durante
a conversa com Roque, comentamos sobre
as dificuldades que o CNRT enfrenta
neste período de transição; ele disse
que os timorenses são muito gratos porque
a ONU tinha feito algo de extremamente
importante: tinha estabelecido segurança
no país.
No
final da tarde participamos, a convite
de D.Belo, de uma celebração de
de sétimo dia, chamada "flores
amargas" em memória de uma timorense,
religiosa canossiana, muito conhecida,
que trabalhava na casa do bispo. É costume
a família oferecer um jantar após a
celebração: neste caso, D.Belo fez questão
de oferecer o jantar ele mesmo. Nós
ficamos em cima de um palanque, com
as autoridades. Fiquei impressionado
quando D.Belo nos pediu desculpas por
isso, dizendo que sabia que não gostávamos
de ser tratados de modo tão diferenciado,
mas que era o costume local: ele foi
muito gentil conosco. Havia muita gente
no jantar, que foi bastante silencioso,
mas meio festivo também. D.Belo falou
no início, e ficou até o fim. A imagem
que me ficou de D.Belo é a de um pastor
muito próximo de seu povo.
Durante
o jantar eu me encontrei com uma dominicana
do Rosário, timorense, superiora de
uma casa onde há mais uma irmã e várias
postulantes. Convidou-me para celebrar
com elas no dia seguinte. Encontrei-me
também com uma salesiana, a irmã Carmen,
para quem tinha levado carta da irmã
Vera. Combinamos que eu visitaria as
salesianas no dia seguinte: na verdade,
todos as visitas e contatos foram assim,
decididos em encontros ocasionais...
Depois
do jantar, já bem tarde, foram conversar
conosco 3 brasileiros: Flávio d'Amico,
jovem diplomata do Itamaraty, nomeado
por Sergio de Melo secretário do Conselho
Consultivo que ele criou, para assessorá-lo,
formado por 15 pessoas, sendo: 7 membros
do CNRT, inclusive o próprio Xanana
Gusmão, um membro da Igreja Católica:
padre José Antonio Costa vigário geral
da diocese de Dili; 3 membros dos grupos
pró integração à Indonésia (leia-se
"milicianos"...): só 2 vagas
foram ocupadas; 4 membros da UNTAET
(Administração Transitória das Nações
Unidas em Timor Leste), incluindo o
próprio Sergio Vieira de Melo.
Estava
também Kywal de Oliveira, que foi cônsul
do Brasil em Sidney e deve ser o representante
oficial do Brasil em Timor Leste. E
também Fabíola, que esteve na Bósnia
a serviço da ONU, cuja atuação defendia.
Já Flávio e Kywal concordaram com as
críticas quanto à inoperância da ONU
em relação ao Timor: disseram que a
demora em ir pôr fim à violência das
milícias se deve a seus mecanismos complexos
e lentos. A ONU é muito centralizada,
todas as decisões passam por Nova York;
preocupa-se muito mais com os Estados,
membros da ONU, do que com o cidadão,
o indivíduo. Daí sua dificuldade em
atender às necessidades concretas, prementes,
dos timorenses, apesar de já se terem
passado 6 meses.
Foi
uma conversa muito interessante. Fabíola,
a pedido meu, comparou a Bósnia com
o Timor: depois de pensar um pouco,
disse que Timor era pior, porque na
Bósnia não se destruiu o Estado, toda
a infraestrutura, todo o arcabouço legal,
como aqui. Em Timor tudo tem que ser
reconstruído.
Na
sexta, dia 25, fui então celebrar
com as irmãs, às 6:30 da manhã, no bairro
de Bidau. Lá me encontrei com uma irmã
dominicana de Maryknoll, que mora na
mesma comunidade e que me contou de
seu trabalho com um grupo de mulheres.
Lá também conversei mais uma vez com
o padre Filomeno Jacob - com quem já
tinha estado na véspera, durante o jantar
- sobre sua ida ao Brasil.
Em
seguida fui visitar as salesianas, no
bairro de Balide, onde conversei com
a irmã Carmen, mestra de noviças, que
contou muito sobre a destruição. Elas
esconderam os pais de Xanana: como o
pai tinha "desaparecido",
a casa deles tinha sido queimada e ele
não estava nas montanhas com a guerrilha,
foi dado como morto: estava na casa
das irmãs! Apareceu lá um sacerdote
anglicano, capelão das tropas australianas,
que vai sempre rezar com as irmãs, cujo
espírito ecumênico elogiou muito.
Mais
tarde voltei ao CNRT, para conversar
com nosso amigo Mari Alkatiri, líder
timorense que esteve no Brasil mais
de uma vez. Ele me contou que foi encarregado
de negociar o petróleo do Mar de Timor
(Timor Gap) em nome do CNRT, pois o
vergonhoso tratado anterior, entre Austrália
e Indonésia, naturalmente caducou. Mari
tem bem claro que o poder neste momento
está com a ONU. Pensei, então, que a
Austrália é um país anglo-saxão, grupo
que praticamente domina a ONU; logo
se houver uma negociação neste momento,
a Austrália estaria negociando "consigo
mesma"!
Mari
me contou as dificuldades que o CNRT
tem para discutir assuntos tão vitais
para o povo, sem ajuda de assessores.
Os únicos técnicos são os da ONU. Ele
deixou escapar que recebeu ofertas de
suborno... e disse que sua proposta
é que o tratado mantenha os mesmos termos
atuais por enquanto, até que o povo
timorense possa negociar realmente por
si mesmo, de modo soberano.
Almocei
na casa das canossianas; os outros 2
brasileiros: Sergio e Ernanne chegaram
tarde, pois tinham ido à rádio da diocese
de Dili. Existem 3 rádios no Timor:
da ONU, da diocese - que é a mais
antiga - e do CNRT; as 3 só são ouvidas
em Dili. Tinham também conversado com
o vigário geral da diocese, padre José
Antonio da Costa.
No
final da tarde voltamos para Baucau.
Sábado,
dia 26/2: Na parte da manhã, conversamos
com o senhor Henrique de Jesus, chefe
de gabinete da Secretaria do governo
português para Timor Leste, cujo coordenador
é um frade franciscano. Henrique de
Jesus é economista, tinha trabalhado
no Timor no tempo da colônia. Tivemos
uma conversa interessante sobre a atuação
da ONU: sempre me incomodava ouvir dizer
que ela é ineficiente por ser burocrática
e porque existe muito carreirismo; essa
explicação nunca me pareceu suficiente.
A leitura dele é que a ONU vê em Timor
uma Bósnia, Kosovo... 2 facções irreconciliáveis,
em guerra civil; precisa separar os
beligerantes e não pode contar com eles
para administrar, tendo que trazer gente
de fora para isto. As decisões da ONU
são todas tomadas em Nova York e não
no local. Disse ele que a visão de Portugal
é a de que Timor é uma colônia, em processo
de descolonização. Não existem duas
comunidades, apenas um certo número
de pessoas, como em toda colônia, que
prefere continuar como está.
Só
se pode esperar da ONU a construção
de estradas, refazer a telefonia...
Portugal quer criar estruturas econômicas
para que, ao se tornar independente,
Timor seja um país pobre, mas em ascensão
e não como a maioria dos países da África,
pobres, mas em descensão.
Segundo
Jesus, a ONU acabará por sufocar o CNRT
- aliás, Mari Alkatiri também tem medo
disto. Fiz um paralelo com a Igreja:
as instituições religiosas ricas podem
vir a sufocar a Igreja do Timor.
Na
minha opinião, a ONU deveria começar
por pedir desculpas ao povo timorense,
pois o massacre pós plebiscito se deu
por culpa da ONU que aceitou que a Indonésia
fosse responsável pela segurança...
Foi
Jesus quem usou a expressão "Zé
timorense", dizendo que ele não
conta, mas que a situação não vai estourar
porque a maioria do povo vive à margem
do sistema e tem uma enorme capacidade
de resistência.
Essa
conversa me fez ver claramente que nós,
a Igreja do Brasil, deveríamos
fazer projetos diretamente com o povo,
mostrando assim publicamente que o reconhecemos
como sujeito. Não vai ser fácil, porque
na verdade tudo "tem" que
passar pela ONU.
Em
seguida Ernanne e eu fomos a Venilale,
enquanto Sergio ia para Dili buscar
o Luis de Sena, que acabava de chegar.
Em Venilale estive com a irmã Alma,
salesiana, outra amiga da irmã Vera
Camerotti, que viveu lá. As salesianas
têm uma creche para órfãos da guerra
e da miséria. Estivemos de novo com
o padre João, salesiano que dirige o
seminário. Na véspera do plebiscito,
29 de agosto, ele fez uma interessante
homilia, durante uma extraordinária
celebração de reconciliação. A irmã
Alma traduziu as notas dele para o italiano
e me entregou. Venilale não foi destruída.
De
tarde nós 4 conversamos novamente com
o bispo; foi então que as formas de
ajuda começaram a se definir. Vimos
que era importante que a voz do povo
surgisse, fosse ouvida; que se deveria
trabalhar de instituição para instituição,
que a ação da nossa Igreja deveria ser
de "perfil baixo", nada impositiva.
Concretamente, apoiar na formação do
seminário, trazer gente de lá para se
formar aqui. Foi então que D.Basílio
nos deu a grande orientação: "precisamos
de pessoas que animem nossos animadores
de comunidade, para que o povo se sinta
capaz"...
No
domingo, dia 27, celebramos cedo
com o bispo, que fez em tetum uma homilia
sobre a reconciliação a partir da verdade,
da justiça; o evangelho era o do vinho
novo em odres velhos. Ele falou da nossa
presença, mas não tivemos oportunidade
de falar com o povo.
Depois
da missa fomos até o porto de Com ,
em 2 carros, junto com alguns diplomatas
portugueses. Na estrada entre Baucau
e Com passamos pelo local onde foram
mortos 2 religiosas canossianas, uma
das quais era italiana, 3 diáconos,
o motorista e um jornalista indonésio:
esse massacre foi um dos últimos atos
das milicias, no dia em que a ONU ia
chegar. Notei que D.Basílio tem dificuldade
em reconhecê-los como mártires; no entanto,
Ernanne e eu lembramos de vários mártires,
reconhecidos pela Igreja, que foram
mortos por piratas e saqueadores...
Essas pessoas estavam levando comida
para o povo da região de Laga; houve
testemunhas do massacre, membros das
Falintil. As Falintil denunciaram o
massacre e no dia seguinte atacaram
as milícias, matando muitos. Mais tarde
os "gurkhas" (soldados ingleses
do Nepal) da ONU estiveram lá e prenderam
os demais assassinos. Esses criminosos
agora estão presos em Dili, sob a guarda
dos brasileiros. D.Basílio tinha conversado
com esses presos, que disseram que tinham
feito o massacre "para resolver
nosso problema": havia 2 rotas
de fuga do Timor Leste, por terra, pela
fronteira com Timor Oeste, ou de barco,
pelo porto de Com. Na área havia forte
presença das Falintil e os milicianos
queriam chamar a atenção da ONU, pois
estava em jogo a segurança deles e de
seus colaboradores, uma vez que tinham
sido abandonados pelo exército indonésio.
Outro padre João, de Laga, também salesiano,
tinha nos contado que em certa ocasião
havia intermediado a saída de milicianos,
cercados pelas Falintil, pelo porto
de Com.
Pensei
em sugerir à CRB que ajudasse numa reflexão
sobre o martírio, talvez junto às irmãs
canossianas.
Os
corpos foram enterrados em Lospalos,
o carro foi jogado no barranco; no enterro
houve uma grande celebração e no sétimo
dia uma ainda maior.
No
caminho para Com visitamos uma aldeia
paupérrima, que Portugal vai ajudar
a reconstruir. Vimos as ruínas de casas
"sagradas", típicas timorenses.
Era um lugar de confluência de milicianos,
que destruíram tudo.
Vimos
lugares onde estão plantando arroz,
pela primeira vez. Antes, os indonésios
davam comida para o povo, não muita,
para que não alimentassem os guerrilheiros,
embora o povo tenha continuado a dividir
suas rações com eles. Agora estão plantando
e graças inclusive a boas chuvas, vão
ter uma bela colheita. Chamou minha
atenção ver que plantam cantando, em
mutirão, em terras comunais.
É
importante formar técnicos agrícolas,
que ensinem técnicas modernas, que incrementem
a agricultura. Alguém me contou, por
exemplo, que não plantam côco, apenas
o colhem; aparentemente não sabem que
o côco precisa de sal na terra para
dar uma boa produção: na realidade,
só há coqueiros na parte da ilha que
recebe o vento salgado do mar.
Na
segunda, dia 28/2 não tivemos nenhuma
atividade especial. Sempre aproveitava
essas ocasiões para falar com os/as
professores portugueses: tivemos conversas
muito interessantes. Eram 4, um homem
e 3 mulheres, que estavam hospedados
conosco, dando um curso de português
para 100 professores timorenses, com
duração de um mês, em regime de internato.
Gente
muito dedicada e abnegada.
Conversamos
também mais uma vez com D.Basílio.
À
tarde fomos para Dili: no dia seguinte,
o Presidente da Indonésia, Abdurrahman
Wahid, iria visitar Timor Leste e D.Basílio
teria uma entrevista com ele; e eu queria
estar com as irmãs. Tinha pensado em
dormir em Aileu, com as irmãs Maryknoll:
são 5, 3 dos EUA e 2 filipinas, sendo
que uma destas, a irmã Charito Torrafranca,
passa a semana em Dili, com as dominicanas
do Rosário, para trabalhar com o centro
de mulheres. Eu queria não só conversar
com elas, mas conhecer o centro das
Falintil em Aileu. Entretanto, quando
cheguei à casa das irmãs dominicanas
em Dili, a irmã Charito estava me esperando,
para dizer que a coordenadora delas,
irmã Dorothy McGouwan, estava em Dili
a caminho de Darwin, para visitar uma
das irmãs que estava doente. A proposta
de Charito era que eu ficasse em Dili
para conversar com elas e visitar o
centro de mulheres. Decidi então ficar,
enquanto os demais iam para Aileu.
À
noite conversei com ambas, que me contaram
que as Maryknoll tinham ido para a Indonésia
trabalhar com saúde e educação, nos
serviços públicos. Viviam numa área
muçulmana. Disseram que foi uma experiência
interessante, serem consideradas pagãs,
se "sentir do outro lado".
Nunca foram perseguidas, mas o povo
achava "engraçado" como gente
"boa" como elas podia ser
tão atrasada: politeístas, adoradoras
de imagens. Respeitavam sua crença,
tanto que no Natal eram procuradas porque
sabiam que era uma grande festa. Não
conseguiam dar testemunho de sua fé,
totalmente incompreensível para os muçulmanos.
Nunca lhes perguntaram nada sobre sua
fé. A única pergunta, constante, era
a respeito do celibato. As irmãs comentaram
que a educação indonésia era muito autoritária,
tudo tinha que ser decorado, não se
cultivava o espírito crítico e havia
muito ufanismo nacionalista. O serviço
público de saúde era muito paternalista,
assistencialista.
As
irmãs acabaram saindo de lá, devido
a uma lei que exigia que assumissem
a nacionalidade indonésia para poder
permanecer. Depois de refletir decidiram
ficar na região, escolhendo um lugar
onde o povo estivesse passando por grande
sofrimento. Escreveram então para os
bispos de Dili e de Papua Ocidental
(outra área ocupada pela Indonésia,
que chamavam de Irian Jaya): como D.Belo
respondeu em seguida, decidiram ir para
lá, tendo chegado em fevereiro de 91.
D.Belo sugeriu que fossem para Aileu,
centro da guerrilha, local onde hoje
mora Xanana, a uns 40 kms. de Dili por
uma estrada péssima, mas linda. Elas
não têm instituição própria, além de
trabalhar na pastoral, trabalham com
educação e saúde, sendo muito interessadas
em saúde alternativa.
Perguntei
depois como se ligaram ao grupo Fokupers
(sigla em bahasa para Fórum de comunicação
para mulheres de Timor Leste): Charito
faz parte do conselho da entidade. Trata-se
de uma ONG criada por uma indonésia
muçulmana, que foi para Timor para ajudar
a fundar um centro de ajuda à mulher,
para conscientizá-las e sobretudo ajudar
as que tinham sofrido violência: estupro,
tortura, familiares de desaparecidos...
Na
terça, dia 29/2, fui cedo ao aeroporto
para me despedir da irmã Dorothy e em
seguida fui com a irmã Charito para
a casa dos jesuítas, no bairro Taibessi.
Na frente da casa existe um pequeno
monumento - uma cruz - em memória do
jesuíta alemão, Albrecht Arbe, que se
nacionalizou indonésio com o nome de
Karim; ele era como que o animador da
vida religiosa da diocese e foi morto
naquele local pelos milicianos, logo
depois do plebiscito. Na véspera de
sua morte ele tinha ido a Aileu perguntar
para as irmãs se não queriam ser evacuadas.
Os milicianos atiraram muita vezes e
o superior dele teve que ficar deitado
no chão, sem poder acudir por causa
dos tiros.
Ele
está enterrado no fundo do jardim, onde
enterraram também um jovem jesuíta,
que tinha sido enviado para uma paróquia
do interior. Foi morto quando tentou
conversar com milicianos e militares
indonésios, que estavam ameaçando matar
o povo, refugiado dentro de uma igreja.
Fiquei impressionado com o caso, por
ele não ter fugido, mas sendo indonésio
- e ainda mais javanês - ter ficado
para ajudar o povo. Trouxe 3 pedras
do túmulo deles.
De
lá fui ao famoso cemitério Santa Cruz:
no dia 12 de novembro de 1991, depois
de uma missa em memória de Sebastião
Gomes, morto pelos indonésios, os timorenses
foram ao cemitério, conforme seu costume
e foram massacrados pelas tropas indonésias.
Esse massacre foi presenciado por um
jornalista inglês, que fez um vídeo
que ajudou muito a divulgar a tragédia
de Timor Leste.
Várias
irmãs tinham presenciado esse massacre,
inclusive indonésias, que nesse momento
mudaram completamente sua visão sobre
a ocupação.
Quando
chegamos, vimos que havia muita segurança
do CNRT, além da ONU, porque o presidente
Wahid ia visitar o cemitério. A ONU
não organizou ainda uma polícia timorense,
assim o CNRT procura suprir essa falta.
Charito conseguiu que eu entrasse com
3 seguranças do CNRT, que me levaram
ao túmulo de Sebastião Gomes.
De
lá fomos para o Fokupers; eu me apresentei
e depois conversamos: felizmente algumas
falavam português e até inglês! Elas
estão documentando casos de violência
contra a mulher, ocorridos por ocasião
do plebiscito. Conhecem Fátima Guterres,
timorense que esteve no Brasil há alguns
anos e que deu depoimentos impressionantes,
comoventes, sobre as torturas que sofreu
nas mãos dos soldados indonésios. Deram-me
uma cópia do livro em bahasa que documenta
a violência contra a mulher no período
após a invasão indonésia. Mostraram
muito interesse em ter um intercâmbio
com entidades brasileiras afins.
Estão
documentando também a violência atual,
pois há casos de mulheres molestadas
por soldados da ONU. Elas até fizeram
uma manifestação, no barco-hotel em
Dili, contra a prostituição. Esse barco-hotel
foi levado para lá pela ONU, para
ter onde alojar seus funcionários.
Dei
a elas o calendário da "Beleza
Negra" e o das "Católicas
pelo direito de decidir"; ambos
foram muito apreciados. Mostraram um
cartaz que diz que Timor Leste foi invadido
primeiro pelo exército indonésio, agora
pela ONU e pelas ONGs. O cartaz mostra
as raízes da desigualdade da mulher:
violência contra mulher, analfabetismo,
desigualdades urbanas e rurais, discriminação
de gênero na educação das crianças,
no casamento, na herança. Quanto a este
último fato, me explicaram que a mulher
não tem direito a herdar nada: ao casar,
é "vendida" a seu marido,
que tem que pagar por ela para sua família;
se ficar solteira, ao morrer o pai,
não recebe nada, e sendo casada, ao
morrer o marido também não herda. Se
brigar com o marido e quiser voltar
para casa, o pai faz de tudo para que
não volte, pois nesse caso terá que
devolver a quantia que tinha sido paga
por ela pelo seu marido.
As
irmãs disseram que quando chegam a alguma
comunidade, precisam do apoio do padre
para seu trabalho, mas a maioria dos
padres não sabe trabalhar a questão
de gênero. Dizem que se este problema
não for assumido pela Igreja, nada vai
mudar, pois elas não têm como chegar
ao povo. Além de documentar os casos,
estão procurando fazer um processo de
cura das feridas psicológicas deixadas
pela violência; aproveitei para contar
a elas o que o sacerdote anglicano Michael
Lapsley, neo-zelandês, faz na África
do Sul. O estupro foi muito usado pelos
milicianos e soldados indonésios, como
vingança pelo resultado do referendo.
Elas
têm um projeto interessante de organizar
um encontro de mulheres violentadas,
e tinham pensado em realizá-lo no Brasil.
Disse a elas que, conhecendo a história
da Guatemala, me parecia melhor fazer
o encontro lá, pois a história das timorenses
se parece mais com a das mulheres da
Guatemala e de Chiapas.
Esta
é, sem dúvida, uma experiência muito
valiosa, cheia de possibilidades. Pena
que elas sejam muito poucas, principalmente
dado o tamanho do problema.
Voltei
em seguida para a casa, para esperar
os outros. Eles me contaram como foi
o encontro dos bispos com Wahid. Xanana
tinha ido ao aeroporto para recebê-lo
e também D.Belo.
O
presidente Wahid, quase cego devido
a um atentado, é um grande líder muçulmano,
um teólogo conhecido. Inspirado em sua
visão religiosa, ele autorizou este
ano pela primeira vez uma celebração
pública do ano novo chinês na Indonésia,
e ele mesmo participou. Acredita que
o Ministério da Religião não pode definir
o que é religião e o que não é, mas
apenas facilitar o intercâmbio entre
as religiões, coibindo fanatismos e
perseguições. Começa a ser criada, de
fato, na Indonésia uma separação entre
Igreja e Estado.
Ouvi
dizer que Wahid tem agido durante muitos
anos como verdadeiro "evangelizador",
pregando os valores islâmicos, como
líder da maior organização muçulmana
do mundo, mas sem autoritarismo.
Sergio
Regazzoni disse, e eu concordo plenamente,
que devemos prestigiar o Presidente
Wahid, porque isto é muito importante
para a democratização deste grande país,
a Indonésia, e tudo isso terá influência
no mundo muçulmano, pois a Indonésia
é o maior país islâmico do mundo.
Em
Dili, algumas das pessoas que tinham
ido vê-lo começaram a vaiar, por causa
dos massacres, embora tenha havido aplausos
também. Xanana, que estava com as autoridades
no palanque, desceu para pedir que parassem
com as vaias. Ele me deu a sensação
de assumir um papel de pai, como Mandela,
que aconselha e cuida do povo; Xanana
até tem apartado brigas de rua!
Em
seu discurso, o presidente Wahid pediu
desculpas ao povo timorense por toda
a violência e disse que quer normalizar
as relações com os timorenses, as comunicações,
o comércio; desarmar as milícias e desmontar
os acampamentos na fronteira de Timor
Oeste até o fim de março.
Uma
das reivindicações do povo timorense,
e que apareceu nesta manifestação, é
que a Indonésia pague uma indenização
pela destruição feita.
Almoçamos
juntos e em seguida Ernanne e eu tivemos
uma simpática reunião com D.Belo. Ele
aceitou o convite da CNBB, confirmando
sua presença em Porto Seguro dia 26/4,
o que me pareceu muito interessante
por abrir o leque da celebração dos
"500 anos", incluindo outro
país de língua portuguesa. Seria bom
que, aproveitando o ensejo, a CNBB enfatizasse
a importância da Comunidade de Países
de Língua Portuguesa - CPLP. Afinal,
a missa faz a memória do sangue derramado
por todas as pessoas, por todo o mundo...
Seria também um modo de a CNBB começar
a se relacionar com a Ásia, através
não do Japão, Singapura, China, mas
de "Nazaré", isto é, Timor
Leste.
D.Belo
aceitou que sua visita fosse co-patrocinada
pelo Itamaraty. Concordou também em
receber o título de doutor da PUCCAMP,
que foi conferido a ele e a Ramos Horta,
antes de receberem o Nobel da Paz.
Às
17:00 Ernanne, Luiz De Sena e eu fomos
falar com Sérgio de Mello; estava presente
uma secretária brasileira para registrar
a conversa e a encarregada do setor
de educação, mas como não falava português
acabou saindo. O embaixador foi muito
simpático; disse que se alegrava com
nossa visita. Comentou que tinha estudado
filosofia em Friburgo, com os dominicanos;
fiquei impressionado ao constatar que
o nome "dominicano" tem muito
peso. Ao tomar a palavra, eu disse a
ele que tinha ouvido críticas à atuação
da ONU e pedia que fizesse pelo menos
alguns gestos de ajuda aos timorenses,
ainda mais que ele tinha grande credibilidade,
inclusive por ser brasileiro. Citei
alguns dos "gestos" possíveis:
ajuda da FIESP, pequenas iniciativas
de reconstrução em vários pontos do
país, para indicar que a ONU está
realmente comprometida com isso... Ida
de artistas e jogadores de futebol:
uma das atividades de D.Belo é patrocinar
um jogo de futebol de crianças, ao qual
muitas vezes assiste, na praia, num
campo da diocese. Pensei então que um
dos nossos times poderia enviar camisetas
para esse time de crianças.
Falei
da situação das mulheres e da falta
de tato da comissão que foi investigar
os estupros, que não teve nenhuma sensibilidade
ao tratar com as vítimas de violência.
Sergio de Mello concordou, mas disse
que se a Igreja não ajudar, a situação
da mulher não vai melhorar. Ele tem
razão: mas em relação à discriminação
das mulheres ninguém, nem ONU, nem Igreja,
tem as mãos limpas, só que acusações
mútuas não resolvem.
Sergio
nos disse que o projeto da ONU é formar
uma sociedade moderna, pluripartidária,
baseada na economia de mercado, com
uma classe média.
Já
estão começando a cobrar impostos, pois
todos os países do mundo cobram impostos,
menos Cuba, que não é o modelo adequado
para Timor Leste, segundo Sergio. Tive
vontade de perguntar quem é que iria
decidir qual o modelo certo para Timor:
a ONU em Nova York, que não tem acertado
em nada? Ora, hoje a sociedade timorense
é horizontal: até os régulos do interior
do país são plantadores de arroz como
qualquer pessoa...
Pedi
ajuda para a distribuição das roupas
- quase 14.000 peças - que as funcionárias
de uma firma de São Paulo tinham conseguido
com grande esforço, para doar aos timorenses
e que o exército brasileiro tinha concordado
em transportar para Timor. Sergio de
Mello me respondeu que o departamento
humanitário da ONU as receberia e entregaria
a uma ONG para distribuir. Perguntei
então porque não dar ao CNRT, mas ele
disse que este distribui mal, privilegiando
seus próprios membros. Fiquei pensando:
por que exigir tanta "pureza",
tanta perfeição das entidades timorenses
e confiar tanto nas ONGs não timorenses?
que base temos para isso? Na realidade,
nós ouvimos muita reclamação sobre a
distribuição de bens feita pela ONU
e pelas ONGs credenciadas por ela. Estava
preocupado porque um alto funcionário
da ONU tinha me dito que, se fossem
para a ONU, as peças de roupa iriam
desaparecer, se perdendo na burocracia...
Lamentei
que a reunião tivesse sido tão curta;
embora tenha durado mais de uma hora
não pude dizer tudo o que pretendia.
Sergio de Mello tem certas atitudes
muito boas; por exemplo, não realiza
qualquer ato público sem a presença
de Xanana, que age como Presidente do
país, e Sergio o acompanha. O perigo
é Xanana se tornar uma espécie de rei/rainha
da Inglaterra e não mais comandante.
O perigo é a ONU, com sua estrutura
grande e pesada, e sedutora, sufocar
o CNRT, algo que nem a Indonésia conseguiu
fazer.
Na
viagem de volta a Baucau, comentei que
estava aborrecido porque Sergio de Mello
tinha dito que a Igreja em Timor Leste
é conservadora, com exceção de D.Basílio,
e não tinha tido tempo de protestar
contra esse comentário. Na minha opinião,
essa crítica a D.Belo não procede. Além
disto, tenho a impressão de que a crítica
vem do fato de que D.Belo tem criticado
a atuação da ONU, em público. E eu disse
que, entre D.Belo e Sergio de Mello,
escolheria sempre D.Belo, porque sofreu
por estar do lado do povo.
Na
minha visão, as posições da ONU em geral
são colonialistas: o povo está sendo
marginalizado. Toda a verba da ONU está
sendo gasta na infraestrutura da própria
ONU; nada foi feito ainda para o povo,
nem estradas, nem reconstrução de escolas
e casas, nem telefones, luz elétrica,
sistema de água encanada... Outro exemplo
disto é a maneira como os projetos são
apresentados. Quando a ONU apresenta
ao Conselho Consultivo um projeto, por
exemplo, para a construção de portos,
como fica a posição do CNRT, que é membro
do conselho? Eles têm dificuldades,
inclusive financeiras, em conseguir
uma assessoria técnica para fazer uma
avaliação do projeto, e, se fizerem
essa avaliação própria, isso aparecerá
como falta de confiança na "boa
intenção" da ONU...
O
CNRT é alvo, naturalmente, de críticas
e cobranças; tenho consciência de que
não são perfeitos, mas são o único órgão
que tem legitimidade para representar
o povo. No fundo, meu medo é que ocorra
o mesmo que no Haiti e na Nicarágua:
o povo ganha mas não leva... Se, depois
de tanto sofrimento, Timor se tornar
um paraíso turístico, com uma pequena
elite rica às custas do petróleo e o
"Zé timorense" só ficar com
migalhas, será mesmo uma grande derrota!...
Na
quarta, dia 1/3 aproveitamos para
fazer algumas reuniões, inclusive com
D.Basílio, para ver como dar continuidade
aos projetos. Recebi a visita de uma
brasileira, Selene Carvalho, membro
do comitê de solidariedade a Timor Leste
em Brasília, amiga do Pádua, que tinha
dito a ela que fosse me procurar. Luís
de Sena aproveitou para conversar com
o motorista que a tinha levado: ele
lhe deu boas informações sobre o estado
da agricultura no país. Luís me disse
que nesta área há muito o que fazer
e com urgência.
Na
quinta, dia 2/3 fizemos as malas
e fomos para Dili, onde chegamos em
cima da hora para almoçar e pegar o
avião para Darwin. Lá chegando, fomos
de táxi para o Jesuit Refugee Center,
onde mora o padre Maurice Heading SJ,
que tinha nos recebido na ida e nos
hospedou novamente. Jantamos na casa
dele com mais 3 pessoas: as irmãs Barbara
Tippolay AD, indígena australiana e
Robyn Reynolds Olsh, australiana branca,
que trabalha com Maurice, e Peter Smith,
indígena australiano leigo.
Na
conversa, Barbara disse algo que me
chamou a atenção: comentou que como
Ernanne não fala inglês, só tem possibilidade
de reagir ao que é traduzido, mas não
pode colocar um tema, se torna impotente.
Começamos então a falar sobre a situação
do indígena australiano e do timorense:
eles também têm esse problema com a
língua do "grande". Por isso
muitas vezes são marginalizados, ficando
à mercê de tradutores. Falamos como
é importante dar atenção a mecanismos
de discriminação por gênero e raça.
Comentei
com Maurice minha impressão sobre a
ONU; ele concordou, dizendo que ela
é burocrática e só sabe colocar coisas
em pastas e nichos. Quanto ao Timor,
disse que minha visão era que o sofrimento
seria praticamente incurável, mas ele
discordou. Afirmou que nos últimos 25
anos o povo timorense conseguiu vitórias
enormes, ainda mais se compararmos sua
história com a de povos indígenas, seja
da Austrália ou até do Brasil. No decorrer
de uma única geração, fizeram uma guerra
pela independência, foram invadidos
por uma grande potência, apesar do enorme
sofrimento não desistiram e acabaram
conquistando sua liberdade...
Havia
em Darwin um acampamento de refugiados
timorenses. Maurice contou que depois
da chegada da ONU em Timor Leste, todos
os que podiam, voltaram para sua terra,
mesmo sabendo da destruição.
Antes
de partir, fizeram uma grande celebração,
com a presença do bispo, do chefe militar
e inclusive de um chefe indígena local.
Este chefe disse aos timorenses: "ao
partir levem o espírito desta terra,
que ele seja de vida, de reconciliação,
de cura".
No
dia 3/3 partimos para Sidney, onde
fomos recebidos por Aires e Filomena.
Aires nos hospedou de novo e conversamos
muito com eles e com Nancy. Estavam
bem descontraídos, pedindo notícias,
querendo saber nossas impressões. Falamos
muito sobre política e sobre a Igreja.
Uma
pergunta que eu ainda me fazia era:
se não havia trabalho político interno
no Timor, antes de 74, nem discussão
política, nem partidos, como é que houve
uma guerra civil e em seguida se criou
uma guerrilha, tudo isso em menos de
um ano? Filomena comentou que o governo
português não tinha apoiado a Fretilin,
mas que até hoje apoia a UDT. E como
a UDT - União Democrática Timorense
- perdeu a eleição, provocou a guerra
civil com o apoio do governo colonial
português. Antes de 74 não havia partidos
propriamente ditos, mas muita discussão
política nos cafés; as tropas timorenses
estavam descontentes por serem tratados
como inferiores pelos portugueses. Havia
uma elite que tinha estudado fora do
país e estava voltando, conscientizada;
havia um jornal da Igreja, dirigido
por um jesuíta, onde Ramos-Horta escrevia.
Existia muita discussão anti-colonial,
mas a maioria dos funcionários timorenses,
que trabalhavam para o governo português,
eram da UDT. Foi feito um pacto para
unir os partidos, mas ao se ver minoritária,
a UDT rompeu o pacto e provocou a guerra
civil.
A
maioria dos soldados timorenses se uniu
à Fretilin e assim se criou a guerrilha.
Declarada a independência, os líderes
pediram a Portugal que voltasse, para
conduzir a transição, mas este não deu
atenção, dando-se então a invasão da
Indonésia.
-
No dia 4/3 tomamos café na casa
do Aires com toda a família: Nancy,
Luís, Ângelo, Filomena, todos foram
ao aeroporto nos acompanhar.
A
volta para o Brasil levou novamente
mais de 24 horas, mas chegamos no mesmo
dia 4, sábado, devido aos fusos horários...
Durante
toda a visita, o padre Ernanne, que
foi um grande companheiro, e eu ficamos
nos perguntando que propostas poderíamos
fazer para a CNBB/CRB, que realmente
cumprissem o "mandato" que
D.Basílio tinha nos dado, sobre enviar
pessoas que animassem os animadores.
É
sempre muito mais fácil analisar e observar
que encontrar iniciativas rápidas, viáveis
e que de fato socorram o povo, que já
esperou de mais...
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São
Paulo, 28 de março 2000
NB
- 2 de maio de 2000: Acabo de rever
este relatório/diário, tendo feito algumas
correções. Assim sendo, esta se torna
a versão "oficial".
Frei João Xerri, op
Tel:5072.5062;
fax:853.6830 |