
A tolerância
religiosa, os direitos humanos e o século XX
Henry
I. Sobel
Rabino
e presidente da Congregação Israelita de São Paulo
O
final do Século XX vem assistindo a um fenômeno cuja velocidade e
consequência ainda não podem ser calculadas: a globalização. Neste
primeiro momento, já se percebem desdobramentos para terrenos fora do
econômico: as comunicações, em sua capacidade de conectar
instantaneamente os pontos diferentes do planeta, tornaram as distâncias
irrelevantes. Computador, Internet, TV a Cabo, organizações virtuais são
nomes e hábitos já incorporados ao padrão de vicia atual.
Um
mundo globalizado, pretensamente sem fronteiras, tende a fortalecer a
impressão de que estaríamos no limiar de uma civilização realmente
ecumênica. Por que, então, ao mesmo tempo, com Ritos étnicos tão
particulares estão presentes? Por que a violência no Timor 1 .este? Por
que as guerras na Iugoslávia, no Zaire, na Argélia? Por que as agressões
no Oriente Médio? Por que tantas manifestações de fundamentalismo
religioso?
Porque
a globalização não é uma panacéia. Porque a globalização não
promove a verdadeira aproximação. A globalização facilita o diálogo,
mas não o substitui.
Formulemos
a nós mesmos uma simples pergunta: o que é que aprendemos durante os
últimos cem anos? Não se pode deixar de perceber que nosso século
começou e está terminando com o mesmo conflito nos Bálcâs. Os tiros
disparados em Sarajevo, em 1914, ainda lá ressoam nos dias de hoje. “Faxina
étnica” tornou-se um eufemismo para extermínios racistas de toda
espécie. O fato é que o século XX se caracterizou pelo brutal
assassinato de dezenas de milhões de pessoas, vítimas de uma ou outra
filosofia — bolchevista, nazista, fascista, comunista. O Holocausto
marcou o apogeu da bestialidade, com o massacre de seis milhões de judeus
europeus. A eliminação de povos inteiros por meio da industrialização
da morte é o sinal distintivo deste século. Duas guerras mundiais e
inúmeros conflitos locais em todos os continentes são o triste ponto de
partida para uma reflexão religiosa sobre o significado do milênio que
ora chega-se fim.
A
intolerância predomina no mundo de hoje. O fanatismo se propaga nas mais
diversas esferas. O fanatismo sempre age em nome de algum grande ideal.
É
por isso que às vezes torna-se difícil diferenciá-lo do autêntico
idealismo. À primeira vista, idealistas e fanáticos têm muito em comum:
a devoção a uma causa “sagrada”, a crença inabalável na justiça
dessa causa, a disposição de fazer qualquer sacrifício por ela. Quando,
porém, o idealista se permite usar quaisquer meios para atingir seu
objetivo — por mais violentos e imorais que sejam —, seu idealismo
descamba para o fanatismo.
Paradoxalmente,
o fanatismo e o preconceito prosperam também em países livres. Os
Estados Unidos têm seu Ku Klux Klan, Israel tem seus radicais
ultra-ortodoxos. A única diferença é que nos regimes totalitários, o
preconceito é oficial, patrocinado pelo Estado. Nos regimes livres, o
preconceito emana do povo, ou de algumas parcelas do povo. Na ex-União
Soviética e em todo o Leste Europeu, o ultranacionalismo preencheu
rapidamente o vazio deixado pelo colapso da ideologia comunista. A
revolução democrática veio acompanhada de uma onda de xenofobia que
se espalhou por toda a Europa, manifestando-se sob a forma de perseguições
contra todas as minorias. O desemprego e a deterioração das condições
econômicas levou à busca de bodes expiatórios. A recém-adquirida
liberdade de expressão trouxe consigo a liberdade de prolongar o ódio
e o preconceito.
Na
verdade, isto já era de se esperar. A própria abertura da democracia
oferece oportunidades ao demagogo, ao radical, ao racista, ao
neonazista. Assim como as minorias têm o direito de se expressar numa
sociedade democrática, aqueles que se opõem a essas minorias sentem-se
no direito de hostilizá-las publicamente.
O
preconceito contra o estrangeiro, a xenofobia, é um velho cúmplice da
Humanidade. A admirável Grécia já exibia o mal. Aos olhos de
Aristóteles, a “inferioridade natural” dos “bárbaros” (isto é,
os não-gregos), justificava que eles fossem escravos dos gregos.
Na
concorrência localiza-se a raiz mais primitiva do preconceito) e do
racismo. Tem-se medo do outro porque ele é mais forte ou mais esperto,
porque ele vai roubar sua caça, porque vai condená-lo à humilhação
ou à fome. Passa-se então a detestar esse outro que causa temor. O que
acontece em tempos de crise econômica reproduz o racismo primitivo.
Quando a luta pela vida torna-se mais dura, o imigrante, o outro, aquele
que tem uma religião diferente, uma cor de pele diferente, passa
subitamente a ser visto como o predador, o ladrão, aquele que invade seu
solo, rouba seu emprego e destrói sua cultura.
E
claro que as nuanças do racismo mudam de pais para país. É preciso
distinguir o racismo eminentemente econômico dos franceses, o racismo
étnico dos sérvios, o racismo religioso dos muçulmanos na Índia, o
racismo infinitamente mais complexo que é o antisemitismo. Contudo, em
todos esses casos, é um mesmo vírus que está agindo: a rejeição do
outro, a idéia de que o outro — embora inferior — é uma ameaça e
deve ser eliminada
O
judaísmo sempre reconheceu a existência de outras religiões e seu
direito inerente de serem praticadas. As aspirações universais do
judaísmo, aliadas à firme determinação de preservar suas próprias
tradições impeliram o povo judeu a criar uma teoria segundo a qual
houvesse lugar no plano de Deus — e no mundo — para pessoas de outras
convicções.
Além
disso, o arraigado respeito pelo valor de cada indivíduo, o espírito
questionador e o apreço pela racionalidade das convicções fizeram da
dissensão uma característica marcante do perfil judaico.
Consequentemente, toda e qualquer corrente dentro do judaísmo tem
direito aos seus próprios pontos de vista e costumes, embora tenha havido
ultimamente, em Israel e em outros lugares, empenhos para suprimir essa
liberdade de expressão.
O
milenar histórico de perseguição e exílio fortaleceu nos judeus o
apego à liberdade de consciência. Além do mais, a experiência
judaica no mundo moderno demonstra que a situação dos judeus, tanto no
plano individual, como no coletivo, melhora consideravelmente num
ambiente de liberdade religiosa.
Assim
sendo, estes três elementos — tradição, temperamento e História —
unem-se para elevar a liberdade de religião ao topo da escala de valores
judaicos, atribuindo-lhe a qualidade não de mera necessidade pragmática,
e sim de idéia permanente e prioritária, tanto para a comunidade
judaica, como para toda a família humana. O judaísmo, a mais antiga
religião do mundo ocidental, lembra à humanidade que a liberdade de
consciência e mais do que o sopro de vida da religião, é o único
alicerce seguro para uma sociedade duradouramente livre.
No
mundo de hoje, raramente a população de um país pertence toda a mesma
Confissão religiosa, ou a uma só etnia e cultura. As migrações em
massa e a movimentação ela população estão criando uma sociedade
cultural e religiosamente plurifacerada. Nesse Contexto, o respeito pela
consciência do outro assume nova urgência e apresenta novos desafios à
sociedade.
Para
combater efetivamente a intolerância, o racismo a violência, o
fundamentalismo religioso, o preconceito, temos ele mudar mentalidades.
Temos de promover, por meio de todos os processos educacionais
disponíveis, a consciência da unidade da humanidade. Temos de tentar
mostrar aos fanáticos que a sua percepção da verdade não passa
disso: uma percepção, a qual — por mais real e dolorosa que seja —
não justifica o Ódio no presente. Temos de tentar mostrar-lhes que somos
todos filhos de um mesmo Deus, embora o chamemos de nomes diferentes, e
que o direito à filiação divina é atributo que não se rompe com atos
de violência. Temos de tentar mostrar-lhes que só atingiremos nossos
objetivos de desarmarmos o espírito e nos empenharmos pela fraternidade
humana. O diálogo paciente e perseverante e o único meio de alcançarmos
uma sociedade verdadeiramente pluralista, sem preconceito, com
autêntica liberdade religiosa e plenos direitos para todas as minorias.
O
erro mais trágico e persistente do pensamento humano e o conceito de que
as idéias são mutuamente exclusivas. Foi este o engano fatal que, não
apenas em nosso século, mas em todos os tempos, fez falhar o ideal da
fraternidade universal. Em cada indivíduo, em cada povo, em cada cultura,
existe algo que é relevante para os demais, por mais diferentes que
sejam entre si. Enquanto cada grupo pretender ser dono exclusivo da
verdade, enquanto perdurar esta estreiteza de visão, a paz mundial
permanecerá um Sonho inatingível.
O
ingrediente básico para a construção da paz em nossa sociedade é a
humildade. Um pouquinho de humildade já é bastante para reconhecer que a
verdade não é monopólio da nossa própria linha religiosa ou política.
Temos de aprender a ser mais tolerantes uns para com 05 outros. Na
verdade, tolerância não é suficiente. Tolerância implica uma falta
de opção: é a obrigação de tolerar o mais fraco. O que se faz necessário
não é tolerância, e sim um espírito de reverência, reverência pela
diversidade, reverência pelas crenças alheias. E somente essa reverência,
esse profundo respeito mútuo que podem conduzir-nos à paz.
Meus
amigos, a paz não virá por obra e graça de um grande líder, nem mesmo
por providência divina. A paz virá somente quando cada um de nós se
conscientizar da sua responsabilidade individual perante a sociedade em
que vive.
Temos
de permanecer, todos nós, enraizados em nossas respectivas tradições,
sem jamais violar aquilo que é sagrado para cada um de nós, mas ao mesmo
tempo, temos de reconhecer a santidade do credo e das tradições alheias.
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