
Ética e
violência:
Reflexões sobre a natureza do mal
MARCONI PEQUENO
Professor do Departamento de Filosofia
e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia
CCHLA - UFPb
E-mail: marconip@bol.com.br
Trata-se de
refletir sobre a violência, o mal que a engendra e suas implicações
no campo da moral. A palavra violência sugere inúmeras significações.
Quase sempre seu sentido é tomado de forma pejorativa. Definir um
ato como violento significa considerá-lo como algo negativo. Eis
o que nos permite de dar uma definição persuasiva do termo,
caracterizando como violento aquilo que nos horroriza, constrange,
envergonha, ou seja, todo ato moralmente reprovável (Persuasive
definitions, Alfred Ayer & Charles Stevenson).
Por outro lado, somente podemos formular uma definição
pejorativa da violência se aceitarmos a noção de que se trata
de um ato moralmente negativo, ou seja, de um ato que provoca no
ser humano um dano qualquer. Uma definição adequada do termo
violência deve, pois, justificar o julgamento que considera um
ato violento como um fato moralmente negativo. Porém, toda violência
pode ser considerada um ato moralmente negativo, mas nem todo ato
moralmente negativo se caracteriza como violento.
Costuma-se definir a violência como sendo toda ação intencional
que implique a morte de uma ou mais pessoas, o constrangimento, o
sofrimento ou lesões físicas e psicológicas contra a sua
vontade. Ora, mas existem atos reputados violentos praticados por
indivíduos contra si mesmos. O suicídio individual ou coletivo,
o ato de imolação com o fogo em sinal de protesto, bem como a
greve de fome, são atos executados com o concurso da vontade da vítima.
Nesse sentido, o princípio da vontade não garante a adequação
do conceito aos casos possíveis.
O constrangimento, da mesma forma, parece ser uma condição
necessária da violência, mas não é uma condição suficiente.
Toda violência é um ato de constrangimento, mas nem todo
constrangimento é violento. A violência não precisa da força física
para se manifestar. Aliás, pode ela mesma se expressar sem que se
constate a presença de lesões físicas ou psicológicas no indivíduo
por ela atingido. A violência, muito dela se fala, pouco sobre
ela se reflete.
O uso indiscriminado do termo violência identificando-a com toda
espécie de poder coercitivo produz o grave erro de se colocar sob
a mesma categoria relações que são diversas entre si pelos
caracteres estruturais, pelas funções, pelos efeitos. Por isso,
convém diferenciá-la da coação, da opressão, da ameaça, da
manipulação do poder e, em particular do poder político. E
mesmo que tal poder possa basear-se no exercício e no monopólio
da violência legítima, esta não é o fundamento exclusivo
daquele. O poder da violência nem sempre se traduz em violência
do poder. Nem todo poder é exercido violentamente. O poder age
sobre a vontade do outro, a violência freqüentemente sob sua
condição física ou psicológica.
Até o momento abordamos o problema da violência de um ponto de
vista antropocêntrico, ou seja, do homem que a pratica contra o
seu semelhante (homo homini lupus). Mas o que dizer da violência
cometida contra o meio-ambiente ou contra os animais ? Deixemos
por enquanto de lado este aspecto. Concentremo-nos no caráter
humano da violência. Ou seria correto dizer desumano da violência
? O que de humano há na violência ? Poder-se-ia afirmar que a
violência é algo que vem do homem é transborda para além do
humano ? À guisa de respostas, façamos uma breve digressão à
filosofia de alguns autores do século XVII.
Os teórico do contrato social (Locke, Hobbes, Wolff) confrontavam
o estado social ao estado de natureza, conferindo a este a
responsabilidade pela violência onipresente na espécie humana.
Para Hobbes, os homens preferem a tirania do Leviatã à insegurança
e à violência do mundo natural. Mas o que de maligno há na
natureza ? Em que sentido podemos encontrar nela o mal ? Trata-se
de uma realidade inerente à sua constituição ou um valor que
elaboramos a partir dos nossos julgamentos e vivências ? Se o mal
e o bem estão enraizados na natureza, como o homem poderia ser
responsável pela sua bondade ou maldade ? Mas por que
consideramos a violência como um mal e a tipificamos segundo sua
intensidade, profundidade, amplitude ? Antes, porém, de definir a
violência como algo maligno devemos enfrentar uma das mais
complexas e inquietantes questões filosóficas : o que é o mal ?
A filosofia em seu primeiro momento compreende o mal como uma espécie
de não-ser em contraposição ao ser, expressão absoluta do bem.
Os estóicos consideravam bom tudo que existe, enquanto o mau
seria a marca do nada, da ausência de substância, da falta de
essência. Santo Agostinho, por exemplo, afirmava que “nenhuma
natureza é má, sendo que esse nome indica apenas a privação do
bem" (De Civitas Dei , XI, 22). Para ele, “todas
as coisas são boas, e o mal não é substância porque se o fosse
seria o bem” (Conf. VII, 12). Boécio, da mesma
forma, associa o mal ao nada, “porque não o pode fazer
Aquele que pode todas as coisas”(Phil. Cons., III,
12). Thomás de Aquino, por sua vez, ratifica tal idéia ao
afirmar que o mal não pode significar algum ser, alguma forma ou
natureza, ele é a ausência de ser, ou seja, de bem. Não-ser,
nulidade, irrealidade do mal é a tese que se depreende da atitude
metafísica que identifica o ser com o bem.
Uma outra concepção metafísica do mal o considera como um
elemento do conflito interno do ser, como a luta entre dois princípios
antagônicos. O mal é tanto real quanto o bem, e, como tal, tem
causa própria, antitética à do bem. O mal surgiria no seio do
ser como uma sombra que desliza em sua superfície. Esta noção
tem o mérito de evitar a redução do mal ao não-ser, ao nada,
refutando o idéia de que se trata de um fenômeno irreal. A
nulidade do mal continuou sendo a tese adotada pela doutrinas que
identificam o ser com o bem ou, em termos modernos, com a
racionalidade e o dever-ser. O pensamento moral kantiano reflete
bem essa nova concepção, acrescentando-lhe uma idéia nova : o
mal não apenas é real, com se afigura radical. Para Kant, “os
únicos objetos da razão prática são o bem e o mal. Pelo
primeiro entende-se um objeto necessário da faculdade de desejar,
pelo segundo, um objeto necessário da faculdade de refletir; mas
ambos somente segundo os princípios da razão" (Crítica
da razão prática, cap. 2). O mal, segundo Kant, exige também
o concurso da consciência. Kant, com isso, adere à teoria
subjetivista ao julgar que o bem e o mal não podem ser
determinados independentemente da faculdade de desejar do homem.
Isto significa que eles não são realidade ou irrealidade por si
mesmos, como preconizava a noção metafísica.
Kant interpreta o mal radical da natureza humana como um princípio
que alicerça o comportamento próprio a todos os seres racionais
finitos, levando-os a se afastar ocasionalmente da lei moral. Para
Kant, a mal reside nas nossas ações na medida em que damos
prioridade às inclinações situado o desejo acima do dever. A
questão do mal está circunscrita à esfera da moralidade, posto
que remonta à atitude racional do sujeito. Esse princípio revela
a nossa possibilidade de transgredir as leis morais elaboradas
pela razão. A prática do mal torna-se não apenas possível, mas
inexorável já que o mesmo é um elemento constitutivo da espécie
humana.
Contra os moralistas clássicos, Kant afirma que o mal não provém
da irracionalidade das paixões. As inclinações sensíveis, os
desejos são moralmente neutros : eles podem somente fornecer a
ocasião para o surgimento do mal. Mas a disjunção do mal da
sensibilidade não conduz o filósofo a procurar o mal na depravação
da razão, o que faria do homem um ser diabólico, movido pela
intenção de fazer o mal pelo mal. Kant não acredita na
causalidade do demoníaco. Mesmo horrorizados pelo caráter atroz
do mal radical, devemos concebê-lo como algo inerente à espécie.
Kant denuncia a boa consciência dos que vêem o mal como algo atípico
e anômalo no curso da evolução humana. Porém, o fato de ser próprio
à espécie, não torna inimputável aquele que o pratica.
Justamente porque o mal não se encontra numa inclinação, num
instinto natural, mas numa “regra que o livre-arbítrio forja
para si mesmo visando o uso da sua liberdade” (A religião
dentro dos limites da simples razão, p. 39). O mal é radical
porque pertence ao domínio da vontade em sua relação ao
universal. Não é por originar-se das profundezas da psiquê que
ele é radical, mas por ser o fundamento que corrompe o princípio
de todas as máximas. Em suma : o mal não é estranho à razão.
Mas a razão que pode nos conduzir ao mal, seria uma verdadeira
razão ? Como julgar razoável a prática do mal se sua manifestação
tende a conspurcar todos os valores constituídos pela própria
racionalidade ? Enfim, estamos diante do seguinte impasse: o que
concorre mais para o surgimento do mal no mundo : é a decisão do
nosso arbítrio ou é a fraqueza da nossa vontade ?
A prática voluntária do mal nos coloca em face do problema da
fraqueza da vontade ou da escolha do pior. Esse problema se
apresenta desde o intelectualismo moral socrático que Aristóteles
apresenta no livro II de sua Ética a Nicômacos segundo o qual “ninguém
age mal deliberadamente”. Ora, temos bastante dificuldade do
ponto de vista moral para admitir que o mal possa ser praticado
por aqueles que sabem o que é o bem. No entanto, constatamos que
certas pessoas têm o prazer em fazer o mal por escolha própria e
em fugir ao bem por decisão autônoma. Nesse caso, não vale a máxima
de Demócrito para quem “procuramos o bem sem o encontra e
encontramos o mal sem o procurar”. Porém, a ação com
vistas ao mal seria mesmo decorrente da acrasia, da fraqueza da
vontade, da intemperança ou da ausência de controle de si mesmo
? Existe o mal voluntário ? Toda ação malévola está de fato
atrelada a uma decisão consciente ? A teoria do silogismo prático
tenta responder a essa questão.
A teoria do silogismo prático em sua versão causal propõe que o
princípio que rege o mecanismo da ação humana e o raciocínio
dedutivo são o mesmo. Assim, toda ação estaria vinculada a uma
decisão enquanto causa determinante daquela. Nesse caso, a recusa
em agir contra as determinações da reta razão (ortos logos)
seria uma contradição. Mas a idéia de contradição pode ser
aplicada à relação entre as razões de agir e a ação ? A
conclusão (ação conforme a decisão) aparece como um efeito
cuja relação com a causa é contingente, provável, não necessária.
Eis porque convém falar aqui de relação causal e não de relação
lógica. Enquanto isso, a versão lógica desse silogismo sugere
que o agente que renuncia a suas escolhas sem ser obrigado a fazê-lo
é irracional. O problema é que se ele é considerado irracional
não pode ser responsabilizado plenamente pelos seus atos. Para
que possamos afirmar que uma má ação foi praticada
conscientemente devemos provar que o culpado não estava
completamente louco ou destituído de razão no momento em que a
realizou.
Se aceitarmos que não há uma relação lógica nem causal entre
nossas razões de agir e nossas ações, podemos nos recusar a
praticar o que julgamos ser o bem sem ser ilógico e sem deixar de
assumir as responsabilidades pelas nossas ações. Podemos, com
efeito, afirmar que a relação causa-efeito, ou seja, decisão-ação
é contingente ou simplesmente provável, jamais certa. Ou ainda
julgar valoroso o bem e mesmo assim praticar o mal sem ser ilógico
ou contraditório. Podemos, enfim, pensar com kant contra Aristóteles.
Mas se a prática do mal não é algo necessariamente insano, ilógico
ou contraditório, por que nos horrorizamos diante da malignidade
de certos atos de violência, ao mesmo tempo em que convivemos com
imposturas cujos malefícios são tolerados ? Quando é que a violência
é mais perversa ou deletéria em sua malignidade ? É correto ou
justo definir o caráter malévolo da violência segundo as
interpretações que conferimos às suas repercussões e conseqüências
? Finalmente, pode uma vontade perversa se explicar a partir de
motivos inteligíveis ?
O mal é obra da liberdade humana, razão pela qual quem o pratica
não pode ser desresponsabilizado. De onde vem o mal ? pode ser
uma pergunta sem resposta. Mas, por que fazemos o mal, diz
respeito à nossa liberdade enquanto fato inteligível e à sua
efetivação na experiência vivida. Em suma : o mal não depende
de um espírito maligno para se manifestar.
Hannah Arendt afirma que há situações em que atos monstruosos são
praticados por pessoas ordinárias destituídas de toda motivação
especificamente malígna ou demoníaca. Em seu livro Eichmann em
Jerusalém, ela demostra que o personagem título Adolf Eichmann,
o funcionário do mal, o gestor da solução final, não é um
inimigo da lei. Ele supostamente não fazia o mal pelo mal. Ele se
dizia obediente às ordem, proclamando-se até mesmo como um
sujeito kantiano que agia por dever. À radicalidade do mal se opõe
a condição de um homem medíocre, desprovido de motivações,
incapaz de pensar no outro, usuário de uma linguagem
estereotipada, de um discurso confuso. Eichmann era banal porque não
era monstruoso no sentido em que ele teria uma intenção diabólica,
uma crueldade essencial em cometer gestos desumanos.
Em sua obra O sistema totalitário, a mesma Hannah Arendt
qualifica de radical o mal que procede da hipótese de que tudo é
possível, compreendendo-se também aqui a idéia de que os homens
são supérfluos. Todavia, aos poucos, ela abandona a idéia de
mal radical em favor da idéia de banalidade do mal. O mal deixa
de ser radical porque não possui profundidade ou dimensão.
Deve-se, com isso, recusar o conceito de mal radical e evidenciar
a banalidade ou a normalidade de seus autores, mantendo-se o
paradoxo atroz e a ameaça aterradora de se viver num mundo onde
homens ordinários podem se transformar em assassinos monstruosos.
A mudança da noção de mal radical para a de banalidade do mal
permite que se reflita sobre a personalidade desse novo tipo de
criminoso : o inimigo do gênero humano em carne e osso.
Arendt não minimiza o mal ao banalizá-lo, ao reenviar o seu
autor à comunidade humana. Ao contrário, a incomensurável
monstruosidade do mal radical repousa sobre a aparente normalidade
dos criminosos. Este é um dos mais trágicos paradoxos dos nossos
dias : é mais fácil ser vitima de um diabo com formas humanas,
do que de uma entidade metafísica que exala malignidade.
Mas tanto é perigoso afirmar que existe um mal inato, quanto
acreditar que há um Eichmann em potencial a repousar em cada um
de nós. Não se pode diluir o horror numa espécie de culpa
universal que dissolve toda culpa particular : se todos são
culpados, ninguém é culpado; se ninguém é culpado, ninguém é
responsável. Não podemos nos identificar com a normalidade
desses criminosos. Certos gestos não devem ser compreendidos,
pois em algumas situações compreender o mal significa às vezes
justificá-lo. Paul Ricouer afirma que “o mal exige uma
explicação, mas como o tempo o mal não pode ser completamente
explicado. Há um ponto para além do qual o mal pode ser apenas
contado, narrado, descrito por intermédio da história, dos
mitos, da ficção” ( Le mal : un défi à la philosophie
et à la théologie). Ora, vimos que não é o mal extremo ou
banalizado que o torna radical, mas o fato de ele provir da nossa
liberdade. Mas o fato de ser oriundo da nossa liberdade nem sempre
o explica O mal exige uma interpretação a partir de onde cai por
terra toda explicação. O mal desafia o pensamento, pois o
pensamento busca a explicação e, no caso do mal, ele pode
encontra apenas ausência de explicação. O mal coloca em falência
a potência da explicação.
O mal radical, ao revelar o que os homens são capazes de fazer ao
semelhante, instala a possibilidade do inumano no humano. Com o
mal radical, enquanto obra da liberdade dos homens, desaparece a
medida do humano, já que elimina a capacidade de o indivíduo
viver e dividir a sua existência com o outro. A natureza
subjetiva do mal nos coloca ainda em face do problema referente à
prática voluntária da perversidade. Significa dizer que a
profilaxia do mal, o desejo de supressão da barbárie tão-somente
nos conduz para fora do universo humano. A assepsia do mal não
mata o bacilo da maldade, apenas antecipa outra tipos de desastre.
Mas se isto é verdade e se os fenômenos totalitários são, como
pensa Hannah Arendt, o marco do nosso século, como podemos nos
conciliar com um mundo onde tais acontecimentos são sempre possíveis
? Ou ainda, se o mal pode ser controlado, mas jamais extirpado, se
ele pode ser contido, mas jamais abolido, se, enfim, a nossa
disposição para o bem não é soberana para arreferecer a nossa
propensão para o mal, como podemos de fato acreditar no progresso
moral da humanidade?
Tais perguntas se impõem porque o aniquilamento do homem
orquestrado pelo Estado é o símbolo maior do caráter bestial da
violência humana neste século. Mais ainda porque a partir de
tais eventos ficou difuso o traço comum da humanidade que nós
julgamos possuir. A violência para além do humano, a constatação
de que existem diabos com formas humanas : eis o que nosso século
nos legou. O escritor Primo Levi, sobrevivente do holocausto em
seu livro Si c’est un hommme afirmava: “não podemos
nem devemos compreender a motivação de certos atos violentos sob
pena de nós nos identificarmos com aqueles que o praticam ou nos
vermos um dia no lugar daqueles que o sofrem” (Primo Levi,
1964: 58). Então como podemos aceitar aquilo que não pode ser
compreendido ? O espanto e a perplexidade talvez sejam as únicas
posturas que nos restam diante da barbárie humana.
Até porque sabemos que no teatro de horrores que marcou o nosso século,
muitos cenários foram esculpidos pela dor, muitas paisagens foram
delineadas pelos desencanto. A violência não deixou de ser
personagem principal nesse drama. O roteiro do macabro parece não
ter fim. Depois que a violência se esvai ao cumprir o seu desígnio,
o mundo se revela um palco composto de um amontoado de escombros.
Antígona, personagem título da celebre tragédia de Sófocles, já
vaticinava: “numerosos são os demônios da natureza, mas de
todos eles o mais demoníaco é o homem”. Os gregos, é
certo, já previam : o trágico dominou a história e a
transformou não em destino, mas em terror. O terrível assume a
feição disso que o homem faz ao outro, aniquilando-lhe a
humanidade, edificando o templo do inferno na terra, fazendo com
que ele desapareça ainda que permaneça vivo : o que é pior do
que a própria morte. Por isso, convém perguntar : como fazer
avançar a nossa humanidade se, diante da violência e da
banalidade do mal, não sabemos nem mesmo identificar o que de
humano ainda resta em todos nós ?
|