Projeto DHnet
Ponto de Cultura
Podcasts
 
 Direitos Humanos
 Desejos Humanos
 Educação EDH
 Cibercidadania
 Memória Histórica
 Arte e Cultura
 Central de Denúncias
 Banco de Dados
 MNDH Brasil
 ONGs Direitos Humanos
 ABC Militantes DH
 Rede Mercosul
 Rede Brasil DH
 Redes Estaduais
 Rede Estadual RN
 Mundo Comissões
 Brasil Nunca Mais
 Brasil Comissões
 Estados Comissões
 Comitês Verdade BR
 Comitê Verdade RN
 Rede Lusófona
 Rede Cabo Verde
 Rede Guiné-Bissau
 Rede Moçambique


PARA UMA FUNDAMENTAÇÃO ÉTICA
DOS DIREITOS DO HOMEM

Eurico Berti,
Professor de Filosofia da Universidade de Padova, Itália

(Transcrição da sua intervenção no VI Colóquio Internacional sobre “Paz, direitos do homem, desenvolvimento dos povos”, organizado pela prefeitura de Brescia e pela Cooperativa Católica-Democrática de Cultura. O ensaio foi publicado na revista “Humanitas” Nuovas Serie, nº 4, de agosto de 1990).

O tema a ser tratado se apresenta com um caráter de atualidade por várias razões. Antes de tudo porque a luta pelos direitos humanos, no mundo, não tem fim: é inútil relembrar os lugares onde esta luta ainda ocupa enormes contingentes de pessoas, da África do Sul à China e à Europa Oriental.

O tema dos direitos humanos adquire grandes atualidade também do ponto de vista teórico neste ano em que se comemora o II centenário da revolução francesa: 1789 foi a ocasião para uma das mais famosas declarações dos direitos do homem já promulgadas. Talvez se esperava, entre as numerosas manifestações feitas para relembrar a revolução francesa, uma maior atenção à “Declaração dos direitos do homem e do cidadão”, que, no fundo, representa um dos aspectos mais válidos, talvez o mais válido, de todo aquele evento. Ao contrário, os debates entre os estudiosos foi dedicado a outros aspectos do problema: falou-se longamente do terror e de seus aspectos negativos, da existência ou não da continuidade entre as diferentes fases da revolução, porém não foi dedicada muita atenção à “Declaração dos direitos do homem e do cidadão”.

De qualquer maneira, também nesta oportunidade foi se consolidando uma constatação que já é de domínio público: isto é, sobre o tema dos direitos humanos existe hoje um amplo consenso de opiniões.

Não se encontra mais ninguém disposto a contestar a validade dos direitos do homem; sobre eles existe uma convergência, em sentido positivo, entre orientações culturais, políticas e religiosas, embora muito diferentes entre si. Reconhecer a validade dos direitos do homem tornou-se, hoje, quase um lugar comum.

Certamente, porém, ao se observar mais atentamente quais são as motivações e qual é o significado que cada um atribui a este consenso tão amplo e geral sobre os direitos do homem, encontra-se logo diferenças, incertezas, obscuridades. Por exemplo, todos estão de acordo em reconhecer a validade destes direitos, porém o acordo falta tão logo se discute a quem devem ser reconhecidos, se a todos os seres humanos ou somente àqueles que estão na plena posse de suas capacidades físicas e psíquicas.

Percebemos também a existência de várias discordâncias, quando se pergunta, saindo do plano genérico, quais são os direitos humanos que têm que ser reconhecidos. A propósito de alguns deles o acordo é fácil: a vida, a liberdade, a justiça.

Porém, indo um pouco mais longe, e colocando, por exemplo, o problema da assistência médica: é justo reconhecê-la a todos, em todos os 3momentos e em todas as suas formas possíveis? E a instrução, é justo garanti-la para todos até uma idade avançada? É o direito e usufruir de certos tipos de férias, certas comodidades, certos confortos?

Sobre isto, provavelmente nem todos estão de acordo; o consenso se mostra, portanto, bastante superficial, ou pelo menos incompleto.

O ponto, por conseguinte, sobre o qual não existe absolutamente nenhum consenso, é justamente aquele relativo à fundamentação. Quando se pergunta sobre que se fundam, como se justificam, com33 que argumentos e razões podem ser defendidos os direitos humanos, então as posições divergem imediatamente. J. Maritain, filósofo francês católico que muito influenciou a cultura do nosso tempo, em 1948 trabalhou na UNESCO numa comissão incumbida de promover uma pesquisa sobre o que os homens de cultura pensavam a respeito da Declaração Universal dos Direitos do Homem, promulgada pelas Nações Unidas justamente naquele período. O filósofo relata que todos os representantes dos vários países, culturas, filosofias, orientações políticas estavam de acordo quanto ao conteúdo da carta, isto é, quanto a enumeração dos direitos; porém – quando ele perguntou a cada um por quais razões eles defendiam os direitos do homem – cada um deu uma resposta diferente. Existia um desacordo total sobre as razões, isto é, sobre a fundamentação destes direitos.

Também um filósofo italiano de grande prestígio e autoridade, Norberto Bobbio, várias vezes teve a oportunidade de afirmar que os direitos humanos não são demonstráveis, não é possível oferecer-lhes uma fundação filosófica: eles devem ser defendidos, realizados, mas não devem ser colocados em discussão, justamente porque é impossível chegar, com argumentos racionais, a conferir-lhes uma verdadeira e cabal fundamentação.

O que se pode fazer é partir da constatação sobre a qual todos estão de acordo, e ver se é possível retirar disso algumas implicações, isto é, razões que sejam, ainda que não explícita nem conscientemente, porém de fato, efetivamente admitidas por todos aqueles que reconhecem o valor dos direitos. na minha opinião, é possível demonstrar que uma fundação ética esta subentendida, está implícita, e é necessariamente requerida nas posições daqueles que estão dispostos a reconhecer a validade destes direitos.

A fundamentação a que se pode chegar deste modo, talvez não seja uma fundamentação filosófica, no sentido mais rigoroso do termo, isto é, algo de incontrovertível; é uma fundamentação que pode ter todo o valor que possuem geralmente os argumentos da filosofia prática. Ela não é como a matemática ou a geometria, que dispõem de axiomas evidentes e têm condições de construir demonstrações sobre as quais todos estão obrigados a dar a sua anuência. Costuma-se dizer que a matemática não é uma opinião, justamente porque nela não há lugar para o opinável, mas tão somente para o demonstrável: demonstra-se ou não se demonstra.

Na opinião de alguns é possível fazer isto também9 em filosofia; já outros discordam; de qualquer maneira, aquela parte da filosofia, na qual é mais difícil realizar este ideal de rigor matemático, é a filosofia prática, porque ela não lida com princípios universais, de validade absoluta. A filosofia prática ocupa-se com as ações humanas, do indivíduo e da sociedade, que estão sujeitas a variações constantes, a flutuações, possuem uma certa margem de imprevisibilidade, e são frutos de decisões livres e, portanto, não redutíveis a leis imutáveis e eternas. É por isso que, no âmbito da filosofia prática, não podem ser aduzidas razões igualmente rigorosas como aquelas da matemática e da geometria.

Isto significa afirmar 3que, no âmbito da filosofia prática, não seja possível discutir e argumentar, que não seja possível apresentar igualmente razões a favor ou contra uma certa fase, porque, em última instância, pode-se afirmar que uma determinada posição é mais válida, mais fundada, mais justificada do que uma outra.

Se nos satisfazemos com um tipo de fundamentação como esta, com um grau de rigor suficiente, ainda que não absoluto, embora de tal natureza que induza a preferir uma certa posição em lugar da oposta, é possível demonstrar que o consenso geral sobre os direitos humanos implica3 uma determinada ética, isto é, que este consenso pode ser fundado do ponto de vista de uma ética bastante precisa e identificável.

O tipo de raciocínio que proponho remete ao pensamento de um filósofo alemão ainda vivo, muito apreciado: Karl-Otto Apel, um dos expoentes da assim chamada Segunda geração da Escola de Frankfurt. Depois dos famosíssimos Horkheimer, Adorno e Marcuse, que nos anos Sessenta inspiraram a contestação estudantil, surgiu, na Escola de Frankfurt, uma nova geração de filósofos, destacando-se entre eles sobretudo Apel e Habermas, como os mais conhecidos. Apel elaborou uma filosofia chamada de “pragmática transcendental”, que consiste em mostrar que na base do nosso comportamento, isto é da práxis, da ação concreta dos homens, se encontram alguns pressupostos que devem ser explicitados, e que todos aqueles que assumem um determinado comportamento estão obrigados a admitir, se não querem cair na “contradição pragmática ou performativa”, isto é, na contradição entre aquilo que dizem e aquilo que fazem.

Apel, na verdade, usa a expressão “contradição performática ou pragmática” para dizer coisas que já foram ditas há muitos séculos atrás por Aristóteles. Um exemplo de contradição performativa utilizado por Apel e este: se alguém afirmar “Eu não existo”, o fato que ele o afirme desmente o que ele afirma, isto é, existe contradição entre o ato de dizer, que só pode ser realizado se se existe, e o conteúdo da coisa dita, isto é, “Eu não existo”. Este é um caso t;ip3ico, muito elementar, de contradição performativa.

Isto lembra aquilo que Aristóteles objetava aos que negavam o “princípio de não contradição”: quando estes sustentavam que não existe nenhuma diferença entre dizer uma coisa e dizer o seu contrário, ele respondia: “Mas, então, por que, quando ides a Megara, caminhais e não ficais em casa, se para vós é a mesma coisa caminhar e não caminhar? Ou por que, quando caminhais, tomais muito cuidado para não cairdes num poço, se para vós não há nenhuma diferença entre cair ou não cair no poço?” Desta maneira ele revelava uma contradição entre uma verta maneira de agir e um determinado conteúdo de pensamento.

Todos aqueles que admitem a validade dos direitos humanos, se não querem cair numa série de contradições pragmáticas ou performativas, devem honestamente reconhecer que, no fundamento dos direitos humanos, existe uma determinada ética, uma determinada concepção do homem, uma determinada concepção do que é bem e daquilo que é mal. Isto é válido independentemente da orientação filosófica, religiosa e política que alguém possa ter.

Sabe-se muito bem que, em todas as declarações dos direitos humanos (não somente na francesa de 1789, mas ainda antes com a declaração dos Estados Unidos da América, a constituição dos Estado de Virgínia, a própria constituição dos E. E. e depois em todas as constituições modernas, incluindo a italiana) afirma-se que todos os homens sã9o por natureza livres e iguais. Se afirmamos, apelando para os direitos humanos, que não é justo que na África do Sul os negros sejam discriminados pelos brancos e submetidos a uma série de restrições, é porque aceitamos que não há diferença entre ricos e pobres, pessoas cultas e ignorantes, isto é, defendemos que os homens por natureza são iguais e possuem iguais direitos.

Isto significa que existe uma certa característica, uma certa propriedade, que é comum a todos os homens, independentemente de raça, sexo, condição social, nascimento, e que os distingue de qualquer outro ser vivo, por exemplo dos animais. Tanto é verdade que se fa3la de direitos “humanos”, isto é, do homem.

Hoje existem até me3smo pessoas que falam dos direitos dos animais, com um certo fundamento, porque também os animais podem experimentar prazer e dor, e portanto é injusto fazê-los sofrer desnecessariamente.

Todavia, mesmo aqueles que defendem os direitos dos animais, não os colocam no mesmo plano dos direitos do homem: a ninguém passa pela cabeça de propor, por exemplo, o direito à instrução para os animais. Então, implicitamente se reconhece que existe algo que une todos os homens entre si, que os congrega e que, ao mesmo tempo, os distingue dos animais, das plantas, de qualquer outro ser. Isto é aquilo que se chama tradicionalmente de “natureza” humana.

Hoje, para muitos filósofos, utilizar a palavra “natureza” é motivo de escândalo, porque se pensa que exista por trás algum tipo de cilada ideológica. Uma vez que, de fato, se afirma que a natureza é obra de Deus, alguém que admite a natureza teme ser c9ompelido a admitir a existência de Deus, a admitir a criação, com tudo o que lhe é conexo. Ou então se diz que o termo “natureza” provém da filosofia medieval, da escolástica, e assim se receia que ele comporte o imutáveis, não admissíveis do ponto de vista da ciência.

O conceito de natureza estava ainda muito em voga no final do séc. XVIII, tanto é verdade que, em todas as declarações dos direitos do homem, se diz que “por natureza” os homens são iguais, Rousseau dizia: “Os homens nascem livres e iguais”, a natureza nos remetendo até o nascimento, isto é, ao momento em que uma pessoa não deveria ser nem rico nem pobre, nem culto nem ignorante.

Durante todo o século XVIII o conceito de natureza não oferecia dificuldades; ao contrário, a partir do séc. XIX começou a ser posto em discussão, pois tornou-se comum se dizer que, quem acredita na natureza, não leva devidamente em conta a história. A história nos ensina, na verdade, que tudo muda e que também3 a maneira de pensar, de se comportar, isto é os costumes, a moral, são determinados por particulares condições históricas, e, portanto, não se deve falar de uma natureza humana igual para todos os homens. Além disso, o conceito de igual vale não somente para os homens que existem hoje, mas também para aqueles que existiram nos séculos precedentes e para todos aqueles que existirão no futuro, se eles são homens. Esta foi a primeira crítica ao conceito de natureza, feita em nome da história e do historicismo.

No século XX, uma nova crítica foi feita a partir das “ciências humanas”: a etnologia, a antropologia, a psicologia, a sociologia. Estas mostram que 3os homens são diferentes uns dos outros, como também o são os povos, que possuem sentimentos e hábitos diferentes.

Porém, se se duvida que exista uma natureza humana, coerentemente seria preciso recusar a idéia de que os homens têm os mesmos direitos. se, ao contrário, se admite que todos os homens gozam dos mesmos direitos, prescindindo do lugar de nascimento, d momento em que vivem, da raça a que pertencem, significa que, apesar de todas as mudanças e aparências, algo de comum existe, uma base mínima existe e este mínimo chama-se “natureza”.

Em que consiste esta natureza? O que é este mínimo que associa todos os homens? Antigamente se dizia: o homem é um “animal racional”. Também esta parece ser uma afirmação proibida, porque se sabe o que significa “racional”. Alguém pensa logo no espírito, na alma, na razão, e, então, quem não acredita na alma não está mais de acordo. Deixando de lado esta fórmula, parece que o homem se distingue de todos os outros seres porque tem condições de se comunicar, e pode fazê-lo através da linguagem dotada de termos universais. Por essa razão alguém propôs substituir a fórmula tradicional do “animale rationale” por uma nova fórmula: “animale symbolicum”, animal capaz de se expressar através de símbolos. Expressar-se por meio de símbolos significa comunicar-se, porque o símbolo é tal somente enquanto é compreendido por alguém a quem é comunicado.

O dado da comunicação parece constituir a natureza, porém com esta nova definição não se foi muito longe daquilo que se dizia com a expressão “animal racional”, porque ratio em latim era a tradução do grego logos, que não significa somente razão, mas também linguagem, palavra, comunicação. Por isto, um dos mais antigos filósofos, Heráclito, dizia que o lógos é aquilo que congrega todos os homens, isto é, o koinón, aquilo que é comum, e que em virtude do lógos todos os homens vivem no mesmo mundo, não em um mundo particular, como acontece com aqueles que sonham. De fato, a diferença entre estar acordados e sonhar é que, quando acordados, estamos todos no mesmo mundo, isto é, se tem algo em comum, e esta dimensão comum é o lógos.

Depois da igualdade, um outro direito afirmado por todos é a liberdade. “Os homens nascem em todo lugar livres e iguais”, dizia Rousseau, e acrescentava: “e agora estão todos acorrentados”. Portanto, a liberdade é considerada um direito que pertence a todos por natureza. Porém, se se admite isto, se atribui ao indivíduo uma capacidade, uma qualidade, alguma coisa que não se encontra em todos os seres. Ninguém ousaria dizer que uma pedra é livre, que é livre uma planta, que deve crescer numa determinada maneira, ou que é livre um animal, que obedece a determinados instintos. Reconhecer a liberdade é uma maneira para indicar aquilo que antigamente se chamava de espiritualidade do homem. Porém, também aqui, muita gente prefere não falar disto, porque poderia implicar uma série de obrigações desagradáveis do ponto de vista moral; ao contrário, não hesitam em falar de “liberdade”. A liberdade, porém, não é concebível senão quando se admite alguma coisa que vai um pouco além do puro instinto, ou condicionamento biológico, fisiológico ou psicológico, e portanto “transcende”. Chame-se como se quiser, mas isto é de qualquer forma algo que não se deixa reduzir ao simples dado determinístico e ambiental.

Entre os direitos fundamentais se consideram liberdades, bem mais comprometedoras do que aquela elementar de realizar pelo menos um certo movimento, as liberdades de palavra, de opinião, de imprensa, de associações, de criar partidos políticos e de concorrer, na forma permitida pela lei, também à conquista do poder. Quem hoje se permitiria duvidar de tais liberdades? Ninguém pode dizer “Você não tem direito de falar, de pensar deste modo ou de escrever aquilo que pensa”.

Porém, reconhecer isto significa reconhecer que o homem é um sujeito capaz de comunicar aos outros as próprias opiniões, de defendê-las com determinados argumentos, capaz de responder às objeções contrárias, isto é, capaz de inserir-se num certo contexto de relações argumentativas, porque, se houvesse o que argumentar, não teria sido reivindicar a liberdade de opinião, de palavra, de imprensa. Se uma pessoa não devesse se servir disto para difundir a sua maneira de pensar, e para procurar convencer os outros de que aquela maneira é justa, não haveria razão de ser a reivindicação do direito a tais liberdades. No momento em que se admite isto, se reconhece também que o homem é capaz de argumentar, isto é, de dar razão a favor ou contra uma determinada tese, de pedir razões, explicações, isto é, é capaz de realizar toda uma série de operações grávidas de implicações inclusive de ordem moral.

Apel não é o expoente de uma filosofia tradicional, metafísica; ele afirma que hoje vivemos na era da ciência e que, portanto, o ponto de partida de qualquer argumentação nossa deve ser a maneira de operar própria dos cientistas. Acrescenta, porém, que os cientistas em geral formam uma comunidade no interior da qual se discute. A comunidade científica argumenta, os cientistas se fazem objeções, opõem razões entre si. Mas, na discussão científica, conduzida desta maneira, se admite toda uma série de pressuposições, que possuem um significado moral, na medida em que se reconhece a cada um o direito à interlocução, a formular objeções, e cada um se obriga a considerar estas objeções. Portanto, se reconhece a igual dignidade dos interlocutores, a liberdade de palavra, de opinião, a capacidade que cada um tem de pensar. Estes pressupostos acabam por fazer do homem um sujeito particular, bem caracterizado, com uma série de propriedades que não pertencem a outros sujeitos.

Um direito sobre o qual, hoje, em teoria não existe talvez um consenso universal, mas que, na prática, existe mais amplamente do quanto se crê, é o direito de propriedade. No fundo, também Marx, o pensador que mais vigorosamente contestou o direito de propriedade, no momento em que descreve a condição do homem na sociedade capitalista, caracterizando-a por meio do conceito de alienação, isto é, quando diz que o operário é alienado do produto do seu trabalho e deve reapropriá-lo, reconhece que o operário teria direito de possuir o fruto do seu trabalho. O fato de que este lhe seja retirado constitui justamente uma alienação, isto é, uma expropriação indevida, que é preciso remediar por meio da reapropriação. Isto significa reconhecer o direito de propriedade, pelo menos sobre os frutos do próprio trabalho.

Ora, reconhecer este direito significa admitir uma realidade que parece óbvia, mas que muitos filósofos contestam. É verdade que não existe quase nada que não tenha sido contestado por algum filósofo, mas esta é uma realidade de particular importância, isto é, a identidade pessoal. Isto significa que uma pessoa é sempre a mesma e mantém a sua identidade nos diversos momentos de sua vida; consequentemente, quem realizou um certo trabalho tem o direito de possuir o seu fruto, porque se pressupõe que quem trabalhou não mudou depois de ter terminado de trabalhar.

Quando além disso se estende o direito de propriedade até torná-lo um direito de herança, se supõe, e parece óbvio, que nós temos direito de possuir os bens que os nossos antepassados possuíam, porque negam que exista um sujeito, uma substância imutável sob as mudanças ela sofre nas experiências, na maneira de pensar, nos acontecimentos da vida. Em que sentido podemos, portanto, dizer que permanecemos os mesmos? Hume, por exemplo, o grande filósofo escocês do século XVIII, afirma que a identidade pessoal depende3 somente da consciência ou da permanência da consciência, isto é, da memória; somos sempre os mesmos porque relembramos a nossa infância, nosso pai e nossa mãe. Porém se acontece um acidente e perdemos a memória, não somos mais os mesmos.

Isto tem consequências sobre o direito de propriedade se uma pessoa não é mais a mesma pessoa, não é mais o legítimo proprietário de seus bens; quem perdeu a memória não terá mais direito de possuir nada daquilo que possuía. Porém ninguém considera justa esta consequência. Então significa que no reconhecimento do direito de propriedade pressupomos o conceito de pessoa como substância que permanece idêntica e si mesma, quaisquer que sejam as mudanças por ela sofridas a nível físico e psíquico. Este é o conceito antigo de pessoa, definido por Boécio - “rationalis naturae individua substantia”, isto é, uma substância individual da natureza racional.

Também o princípio da responsabilidade pessoal sobre o qual se funda o direito penal, segundo o qual cada um é chamado a responder perante a lei pelas ações que pratica, pressupõe que a pessoa punida seja a mesma que perpetrou o delito.

Outros filósofos contemporâneos negam a identidade da pessoa. Recentemente foi publicado um livro de um filósofo americano, Derek Parfit, intitulado Razões e Pessoas. Parfit, filósofo analítico, afirma que existe na pessoa uma identidade parecida com aquela que existe numa nação: a nação não está sempre composta pelos mesmos indivíduos, porém, se reconhecemos que eram italianos aqueles que há cem anos viviam na Itália, e que também nós somos italianos, admitimos uma continuidade de história, hábitos, tradições e costumes, de maneira de pensamento, não a permanência de um idêntico. Cada um de nós, segundo Partif, é como uma nação, isto é, uma série de indivíduos sucessivos, ligados entre si por vínculos como a memória, a tradição, os hábitos. Aceitamos uma teoria deste tipo, deve-se duvidar das responsabilidades penais. É justo, por exemplo, que se puna uma pessoa por um crime cometido há dez ou vinte anos atrás?

Também sobre o conceito de pessoa hoje a discussão está aberta. Um filósofo italiano, bastante jovem e conhecido, Sebastião Maffettone, escreveu um belo livro em 1989, Valores comuns, onde sustenta que existe justamente um consenso sobre certos valores compartilhados por todos, que são os valores comuns, e que estes constituem o conjunto dos valores que pertencem às pessoas. O ponto chave da questão, ainda que não seja particularmente aprofundado por Maffettone, é este: quem são as pessoas, o que significa ser pessoa? Ele responde que nem todo ser humano é uma pessoa e faz uma diferença entre seres humanos e pessoas: pode-se ser um ser humano, mas não uma pessoa. A pessoa tem que possuir, como seu requisito, a integridade, isto é, a posse plena de todas as suas faculdades físicas e mentais. Se alguém perde uma destas faculdades não é mais íntegro; é sempre um ser humano, mas não é mais uma pessoa. Então, o recém nascido é ou não é uma pessoa? E se não é uma pessoa, possui direitos? se os direitos são somente das pessoas, quem não é pessoa não possui direitos e portanto não tem direito à propriedade: poder-se-ia desprovê-lo de tudo. As pessoas próximas à morte, que perdem suas faculdades, perdem também todos os direitos, cessam por isto de ser pessoas?

A tese que vos proponho é a seguinte: aqueles que se declaram favoráveis aos direitos humanos, aqueles que reconhecem sua validade, têm que admitir que existe uma natureza humana, que o homem é por natureza diferente dos animais, que esta natureza é possuída por um sujeito permanente – se não queremos utilizar a palavra substancial – que se chama pessoa, isto é, têm que admitir toda uma determinada concepção de homem, que não é pacífica, que não é compartilhada por qualquer filosofia. É fácil estar de acordo sobre os direitos e, de fato, o acordo é quase geral, mas muito mais difícil estar de acordo sobre as implicações destes direitos; porém, se alguém é coerente consigo mesmo, se não quer cair na contradição performativa, como acontece com quem afirma “Eu não existo!”, deve admitir coerentemente também estas implicações. Isto significa admitir uma determinada ética, significa procurar encontrar uma fundamentação ética aos direitos humanos.

Todavia, alguém poderia admitir que existe uma natureza humana, que existe uma lei natural, mas como conhecê-la? Ainda que existisse, nós não podemos considerá-la, porque não a conhecemos. A dificuldade aqui é fundamentada, porque os primeiros a sustentar os direitos naturais, por exemplo, os jusnaturalistas, como Hugo Grotius, afirmavam que existe uma natureza e existem leis, princípios, direitos ligados à natureza, os quais são evidentes para todos. Grotius era um pouco cartesiano e, portanto, acreditava que existissem idéias inatas, claras e distintas, evidentes para todos, e, portanto, admitia que também os direitos e as leis da natureza são evidentes para todos e não precisam ser demonstrados. Este filósofo acreditava em Deus e que todos os seres foram criados por vontade divina, mas considerava que esta fosse uma complicação inútil: interessava a ele que o direito natural fosse aceito também pelos não crentes; de fato ele afirmava que o direito natural seria válido “etsi Deus non daretur” (ainda que Deus não existisse).

As objeções aparecem logo: Locke contestou as idéias inatas de Descartes, afirmando que não era verdade que todos os homens pensam da mesma maneira; de fato, observando os costumes dos diferentes povos, nota-se que, verdades óbvias para alguns não o são de modo algum para outros. Portanto, mesmo admitindo que existe uma natureza, pode acontecer que esta não seja conhecida por todos da mesma maneira, como prova o fato de que cada um se comporta de maneira diferente.

Esta dificuldade tinha motivos para existir numa cultura como aquela dos séculos XVII-XVIII que assumiu como modelo indiscutível de saber a matemática. Está claro que, se pretendemos, em qualquer campo da vida humana, a mesma evidência, o mesmo rigor, a mesma força demonstrativa que encontramos nas matemáticas, bem pouco setores serão suscetíveis de ser conhecidos. É fácil dizer que, em relação aos direitos naturais, este conhecimento não existe. Certos direitos e, para nós, parecem evidentes e naturais, como a liberdade, não o eram para os antigos gregos e romanos, os quais consideravam sumamente natural que alguns homens tivessem que ser escravos. Também os Estados Unidos de América fizeram uma tremenda guerra, na metade do século passado, para eliminar a escravidão, que sobrevivia, até aquele momento, nos próprios países cristãos; nem o cristianismo foi suficiente para tornar evidente a injustiça da escravidão. Eis, portanto, que o conhecimento da natureza progride, não é dado imediatamente, de maneira evidente, desde o começo, mas é um conhecimento gradual, em parte obscuro, suscetível de enriquecer.

Isto é aceitável, admitindo-se que a única forma de saber válido não seja somente a matemática, mas seja possível também ou outro tipo de saber, feito de perguntas e de respostas, de objeções, argumentações, que não possuem o mesmo rigor da matemática. Abandonando a pretensão de um conhecimento absoluto, pode-se chegar a um conhecimento da natureza humana.

Finalmente, existe uma última dificuldade e objeção. Muitos afirmam: ainda que admitíssemos que existe uma natureza humana, e que ele possa ser conhecida, não se vê por que deste conhecimento devam se retirar prescrições, isto é, implicações sobre como devemos nos comportar. Esta é uma posição muito difundida no pensamento contemporâneo, a divisão entre juízos de valores. Os fatos são uma coisa e devem ser descritos; admitamos que conseguimos descrevê-los e dessa forma conhecê-los; por que desta descrição tem que se retirar uma norma, um comando?

De uma maneira de “ser”, por que deveríamos retirar um “dever ser”? O ser e o dever são dois planos separados entre eles. Desta maneira se pressupõe uma heterogeneidade entre o âmbito do conhecimento e o âmbito da ação.

Também esta maneira de pensar está, no entanto, ligada a uma visão da realidade já superada, isto é, ligada à visão mecanicista da natureza, própria do século XVII e XVIII. Os filósofos daquele tempo imaginaram a natureza como uma imensa máquina, isto é, como o conjunto de massas sujeitas a deslocamentos, a movimentos no espaço, sob a ação de forças. Se a natureza é isto, verdadeiramente não se entende por que deve ser considerada como lei. Tomemos uma lei qualquer, por exemplo, a da gravidade: um corpo abandonado a si mesmo cai. Quais implicações de ordem moral podem ser retiradas de uma tal lei? É um estado de implicações de coisas, um fato, mas não um valor. Se a natureza é somente isto, não há esperança de se retirar dela prescrições e direitos. mas o conceito de natureza que utilizamos e consideramos é bem diferente: quando falamos de natureza, supomos que exista uma certa ordem natural. Na medicina a saúde é um estado natural, a doença um estado patológico, e é preciso fazer tudo para retornar ao estado natural. E por que a saúde é mais natural que a doença? De um ponto de vista puramente físico são duas situações análogas.

Quando se afirma que o homem não deve perturbar o equilíbrio da natureza, significa reconhecer naquele equilíbrio um valor que deve ser defendido. Falou-se da possibilidade de criar um indivíduo sub-humano, um híbrido entre o homem e o macaco, para empregar nos trabalhos servis. Isto repugna a muitos: por quê? Contra que leis e normas este fato se insurge? Quem afirma que isto está errado, reconhece uma ordem natural contra a qual não se deve agir. Por isso, da existência e cognoscibilidade da natureza retira-se o seu valor prescritivo e normativo, por parte daqueles que reconhecem os direitos humanos. Todos aqueles que reconhecem os direitos humanos, para não cair em contradição, devem, portanto, admitir que, na base deles, existe uma ética.

(Traduzido pelo Prof. Giuseppe Tosi e revisado pelo Prof. Rui Gomes Dantas).
Curso de Especialização em Direitos Humanos
Texto nº 05 – Eixo Sistemático

Desde 1995 © www.dhnet.org.br Copyleft - Telefones: 055 84 3211.5428 e 9977.8702 WhatsApp
Skype:direitoshumanos Email: enviardados@gmail.com Facebook: DHnetDh
Busca DHnet Google
Notícias de Direitos Humanos
Loja DHnet
DHnet 18 anos - 1995-2013
Linha do Tempo
Sistemas Internacionais de Direitos Humanos
Sistema Nacional de Direitos Humanos
Sistemas Estaduais de Direitos Humanos
Sistemas Municipais de Direitos Humanos
História dos Direitos Humanos no Brasil - Projeto DHnet
MNDH
Militantes Brasileiros de Direitos Humanos
Projeto Brasil Nunca Mais
Direito a Memória e a Verdade
Banco de Dados  Base de Dados Direitos Humanos
Tecido Cultural Ponto de Cultura Rio Grande do Norte
1935 Multimídia Memória Histórica Potiguar