
A
ATUALIDADE RETROSPECTIVA DA CONFERÊNCIA DE VIENA SOBRE
DIREITOS HUMANOS*
J. A. Lindgren
Alves**
Sumário:
1. O precedente esquecido: a Conferência de Teerã de 1968. 2. O
contexto internacional da Conferência de Viena. 3. O processo
preparatório. 4. O papel das ONGs. 5. A conferência oficial e
seus comitês. 6. A Declaração e Programa de Ação de Viena. a)
A universalidade dos direitos humanos. b) A legitimidade da proteção
internacional aos direitos humanos. c) O reconhecimento consensual
do direito ao desenvolvimento. d) O direito à autodeterminação.
e) A tríade democracia, desenvolvimento e direitos humanos. 7.
Outros avanços de Viena. a) A indivisibilidade dos direitos. b)
Os direitos humanos em situações de conflito armado. c) Os
direitos humanos da mulher. d) Grupos e categorias vulneráveis,
racismo e xenofobia. e) O reconhecimento das ONGs. f) O Alto
Comissário para os Direitos Humanos e o Tribunal Penal
Internacional. g) Racionalização do sistema. 8. Conclusão.
A década de 90,
que se iniciou tão cheia de esperanças, encerra-se com
perplexidade e incertezas. As expectativas otimistas de um novo
mundo de cooperação e respeito pelos direitos humanos,
propiciadas pelo desmonte do Muro de Berlim, logo se desvaneceram.
A idéia de liberdade, que inspirava a onda democratizante da
virada do decênio, viu-se rapidamente reduzida à da liberdade de
mercado. Intrinsecamente desinteressado em valores não-monetários
e comprovadamente incapaz de produzir por si só a democracia, o
mercado livre da economia mundializada convive, sem problema de
escrúpulos, não somente com o desemprego e a exclusão "estruturalizados",
mas também com os fundamentalismos mais esdrúxulos, religiosos e
seculares. Enquanto a volatilidade do capital financeiro ergue e
derruba economias com a rigidez do fogo-fátuo, as "limpezas
étnicas" e as tentativas de impedi-las marcam o cenário
deste fim de século.
Se, por um lado, a
tranqüilidade e a convivência pluricultural pacífica, esperadas
no início da década, cedo deram lugar ao desassossego e à
intolerância, por outro os direitos humanos, ainda que
apreendidos de forma seletiva, permanecem em alta posição no
discurso contemporâneo. Integram agora, regularmente, qualquer
agenda de discussões interestatais, multi ou bilaterais;
respaldam a institucionalização de instâncias judiciais
supranacionais, como o tribunal penal aprovado pela Conferência
de Roma de 1998 ou propostas de cortes ad hoc, a exemplo
das existentes para a ex-Iugoslávia e Ruanda, para o julgamento
de responsáveis por violações antigas e recentes, no Cambódia,
no Kossovo e em Timor Leste; embasam iniciativas processuais
previstas em convenções anteriores, mas nunca implementadas até
recentemente, como o pedido de extradição do General Pinochet;
motivam sanções coletivas contra diversos países; dão margem a
campanhas internacionais menos seletivas do que nos tempos da
Guerra Fria, como se pode notar da presente massa de denúncias da
Anistia Internacional contra os Estados Unidos; pautam ações
armadas disciplinadoras, com ou sem aval das Nações Unidas. Para
tudo isso – e muito mais – contribuiu decisivamente a Conferência
Mundial sobre Direitos Humanos, realizada em Viena, em junho de
1993.
Na época de sua
realização, a Conferência de Viena pode ter parecido frustrante
para uns e estimulante para outros. Apreciando ou não seus
resultados, quase todos os que dela participaram, como delegados
ou observadores, sabiam estarem envolvidos numa negociação
importante. Intuíam que os direitos humanos, tantas vezes
relegados a posições secundárias nas grandes questões
internacionais do passado, tendiam a afirmar-se no mundo pós-Guerra
Fria como fator de peso. Não poderiam antever, porém, que o
objeto de suas negociações, em seus múltiplos aspectos, já
abrigava, até mesmo em pormenores, o cerne das questões mais
significativas da década.
Reflexo natural das
circunstâncias em que se realizou, a Conferência de Viena,
quando vista em retrospecto, aparece muitas vezes profética do
que se conseguiu de positivo e do que não se conseguiu fazer, de
1993 até o ano 2000. Sua Declaração Final permanece como o
documento internacional mais abrangente e legítimo (porque
adotado por consenso planetário) sobre os direitos humanos de que
dispõe a humanidade. Se observada a sério, como parâmetro
normativo e instrumento de cobrança, por todos os agentes capazes
de influir na conjuntura atual, pode ainda servir de bússola para
o reencontro de nortes perdidos em nossa realidade desorientada.
É a releitura
desse documento e do evento que o produziu que o presente texto se
propõe. Para fazê-lo com um mínimo de adequação, a retrovisão
necessita estender-se um pouco além no passado, até 1968, e
procurar entender primeiramente por que sua antecessora sobre o
mesmo tema, a Conferência de Teerã, tornou-se um precedente
deliberadamente esquecido. Pois é, no mínimo, curioso que, de
todo o arsenal de referências legislativas invocadas nas resoluções
das Nações Unidas convocatórias e preparatórias da Conferência
de Viena, a Proclamação de Teerã tenha sido a única omitida. E
que esse ostracismo se tenha repetido na própria Declaração e
Programa de Ação de Viena sobre os direitos humanos.
1. O precedente
esquecido:
a Conferência de
Teerã de 1968
A primeira conferência
das Nações Unidas especificamente dedicada ao tema dos direitos
humanos realizou-se no auge da Guerra Fria, de 22 de abril a 13 de
maio de 1968, na capital do Irã monárquico e
"ocidentalizado" do Xá Reza Pahlevi (cujo governo era
conhecido também pela truculência da polícia política).
Em 1968, o sistema
internacional emergia a custo da fase "abstencionista"
de promoção dos direitos humanos, ainda sem qualquer mecanismo
para sua proteção. A Convenção Internacional sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Racial havia sido adotada
pela Assembléia Geral em 1965, e os dois Pactos Internacionais,
sobre Direitos Civis e Políticos e sobre Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, em 1966, mas nenhum desses instrumentos
conseguira o número de ratificações necessárias à sua entrada
em vigor.1 Não dispondo de tratado jurídico abrangente a
respaldar com força cogente os direitos proclamados na Declaração
de 1948,2 o sistema não contava com os comitês previstos
nos textos dos pactos e convenções para acompanhar sua observância
pelos Estados-partes (os chamados treaty bodies, ou "órgão
de implementação"), nem, muito menos, de mecanismos de
monitoramento extraconvencionais (relatores ou grupos de trabalho
estabelecidos por simples resoluções) habilitados a denunciar
violações. A noção clássica de soberania como atributo
"absoluto" dos Estados apresentava-se formalmente
sacrossanta, não podendo a Comissão dos Direitos Humanos tomar
qualquer atitude diante da comunicações de violações que
recebia, ou aprovar resoluções sobre países específicos, sem
incorrer na acusação de infringir o princípio da não-intervenção
em assuntos internos, previsto no artigo 2º, parágrafo 7º, da
Carta das Nações Unidas.3 As ONGs atuantes eram poucas,
pouquíssimas as credenciadas para assistir como observadoras aos
trabalhos da ONU, não lhes sendo facultado criticar países nas
sessões dos órgãos competentes – os quais eram, sem embargo,
por elas regularmente denunciados na imprensa internacional.4
Limitada em sua
atuação pelas disputas ideológicas Leste-Oeste, a ONU contava
em seu ativo sobretudo com os avanços obtidos no processo de
descolonização. Estes se traduziam no grande número de países
afro-asiáticos recém-emersos do sistema colonial e acolhidos na
Assembléia Geral, todos mobilizados contra o colonialismo, a
discriminação racial e o regime aparteísta sul-africano, de
efeitos sensíveis por toda a África Austral. Em contraste com os
apenas 58 Estados soberanos que haviam participado, em Paris, da
votação da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948
(dois terços da humanidade viviam, na época, em territórios
coloniais), da Conferência de Teerã, em 1968, já participaram
delegações de 84 países independentes.5
De acordo com a
Resolução n. 2.081 (XX), de 20 de dezembro de 1965, pela qual a
Assembléia Geral das Nações Unidas convocou a Conferência
Internacional dentro da programação do "Ano Internacional
dos Direitos Humanos" – conforme 1968 havia sido designado
para marcar o vigésimo aniversário da Declaração Universal6
–, os objetivos do encontro seriam de:
a) rever os
progressos realizados desde a adoção da Declaração Universal;
b) avaliar a eficácia
dos métodos utilizados pelas Nações Unidas no campo dos
direitos humanos, especialmente com respeito à eliminação de
todas as formas de discriminação racial e as práticas da política
de apartheid;
c) formular um
programa de medidas a serem tomadas na seqüência das celebrações
do Ano Internacional dos Direitos Humanos.
A Conferência de
Teerã adotou 28 resoluções e encaminhou outras 18 à consideração
dos órgãos competentes das Nações Unidas. Seu documento
conceitual mais importante foi a Proclamação de Teerã, composta
de um preâmbulo, dezessete artigos declaratórios e dois artigos
dispositivos.7
Adiantando o
trabalho que iria ser formalmente arrematado pela Conferência de
Viena (não sem dificuldades, como se verá mais abaixo) e
fortalecendo um pouco a marcha da universalização dos direitos
humanos documentalmente iniciada em 1948, a Proclamação de Teerã
se referia à Declaração Universal como um "entendimento
comum dos povos do mundo sobre os direitos inalienáveis e invioláveis
de todos os membros da família humana", que constitui
"uma obrigação para os membros da comunidade
internacional" (art. 2º). O estabelecimento de normas
internacionais nessa esfera era louvado (art. 4º), com menção
dos principais instrumentos jurídicos recém-adotados, mas ainda
não-vigentes (o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos,
o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Racial), juntamente com a
Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e
Povos Coloniais (art. 3º).8
Segundo a Proclamação
de Teerã, o "objetivo primário" da ONU na área dos
direitos humanos seria de lograr o alcance "por cada indivíduo
do máximo de liberdade e dignidade", devendo os Estados
adotar leis antidiscriminatórias para esse fim
(art. 5º), bem
como "reafirmar sua determinação de aplicar efetivamente os
princípios consagrados na Carta das Nações Unidas e em outros
instrumentos internacionais concernentes aos direitos humanos e
liberdades fundamentais" (art. 6º). Numa época em que os
direitos humanos eram reputados domínio exclusivo dos Estados,
aos Estados cabiam, pois, na linguagem da época,
responsabilidades exclusivas para a implementação de tais
direitos, não podendo a ONU ir além de sua "promoção".
Mais abrangentes eram as preocupações prioritárias com o apartheid,
o racismo, o colonialismo, os conflitos armados e "a
crescente disparidade entre os países desenvolvidos e em
desenvolvimento", problemas para cuja solução os artigos
pertinentes (do 7º ao 11) recomendavam as atenções da
"comunidade internacional". O apartheid era
condenado como "crime contra a humanidade", que ameaçava
a paz e a segurança internacionais, sendo reconhecida como legítima
a luta para sua erradicação (art. 7º).
A Proclamação foi
pioneira em alguns pontos importantes, como na condenação explícita
à discriminação de gênero, afirmando que o status
inferior a que as mulheres são relegadas em várias regiões do
mundo é contrário à Carta das Nações Unidas e à Declaração
Universal dos Direitos Humanos (art. 15); na redação de artigo
específico sobre as aspirações dos jovens em conexão com os
direitos humanos e liberdades fundamentais (art. 17); na preocupação
com o analfabetismo como obstáculo à realização das
"disposições da Declaração Universal" (art. 14); na
referência aos desenvolvimentos científicos e tecnológicos como
faca de dois gumes que abre imensas perspectivas de progresso ao
mesmo tempo em que ameaça os direitos e liberdades (art.18).
De relevância
especial para outros temas – com repercussão direta nas conferências
sociais da década de 90 – foi a consagração de um novo
direito humano, atinente à paternidade e à maternidade responsáveis,
não-constante da Declaração Universal. Ela se encontra no
artigo 16, que diz:
"16. A
proteção da família e da criança constitui preocupação
da comunidade internacional. Os pais têm o direito humano básico
de determinar livre e responsavelmente o número e o espaçamento
de seus filhos".
Apesar dessas notáveis
exceções, a Proclamação de Teerã foi pouco inovadora ou
estimulante para a proteção internacional dos direitos humanos,
e aparentemente não o poderia ser mais perante as adversidades da
época. A própria explicitação da invisibilidade de todos os
direitos fundamentais, geralmente apontada como o avanço mais
importante do documento, acabou sendo responsável por seu
ulterior ostracismo. Ela se encontrava no artigo 13, que
declarava:
"13. Como
os direitos humanos e liberdades fundamentais são indivisíveis,
a plena realização dos direitos civis e políticos sem o
gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais é impossível.
O alcance de progresso duradouro na implementação dos
direitos humanos depende de políticas nacionais e
internacionais saudáveis e eficazes de desenvolvimento econômico
e social."
Ainda que a
indivisibilidade de todos os direitos humanos estivesse implícita
na Declaração Universal de 1948, a pouca atenção que recebiam
os direitos econômicos e sociais e as resistências doutrinárias
com que costumavam ser encarados por alguns países ocidentais
justificavam esforços para reiterá-la mais claramente. Tal
explicitação vinha sendo feita em resoluções de diferentes órgãos
das Nações Unidas, mas não constavam de documento
significativo, de alcance planetário. A bandeira da Nova Ordem
Econômica Internacional propugnada pelos países em
desenvolvimento, com apoio dos países socialistas, aproveitou a
oportunidade propiciada pela Conferência de Teerã para assinalar
a indivisibilidade dos direitos humanos de maneira enfática. O
problema é que, nos termos em que foi redigido, o artigo 13 da
Proclamação conferiu à idéia da indivisibilidade um caráter
de condicionalidade para os direitos civis e políticos que servia
como luva a regimes não-democráticos de todos os tipos. Já
muito disseminados no final dos anos 60 e prestes a multiplicar-se
na década seguinte, sobretudo na América Latina, governos
autoritários de direita e de esquerda iriam invocar ad nauseam
esse "condicionalismo" como justificativa para a supressão
de liberdades e direitos civis e políticos. Ainda que logicamente
correta, a redação do artigo 13 demonstrou-se tão perniciosa
que, pelo menos desde meados dos anos 80, os esforços
internacionais mais sérios em prol dos direitos humanos
procuraram corrigi-la, afirmando, ao contrário, que a
indivisibilidade dos direitos humanos não pode servir de escusa
para a denegação dos direitos civis e políticos. Conseqüentemente,
a Proclamação de Teerã passou a ser quase sempre omitida da
relação de documentos internacionais relevantes, e a Conferência
de 1968, propositalmente "esquecida".
A indivisibilidade
dos direitos humanos, pouco respeitada na prática de qualquer país
e sempre desconsiderada no contexto das relações internacionais,
não foi, contudo, jamais descartada nos foros multilaterais, nem
na doutrina jurídica preocupada com a realização efetiva dos
direitos fundamentais. Foi precisamente seu reconhecimento por
todos os Estados, em Viena, reforçado pela aceitação consensual
do direito ao desenvolvimento, que permitiu à Conferência de
1993 realizar avanços.
2. O contexto
internacional da Conferência de Viena
Um dos
complicadores históricos dos esforços internacionais para a
proteção dos direitos humanos, assim como para a do meio
ambiente e todos os temas de abrangência global, era e é,
obviamente, o nunca equacionado conflito Norte-Sul. Na esfera dos
direitos tal conflito sempre se manifestou de maneira oblíqua,
provocando distorções na abordagem internacional da matéria. As
distorções começavam pelas atenções dirigidas exclusivamente
para os direitos civis e políticos, em detrimento da construção
de condições conducentes a uma melhor fruição dos direitos
econômicos e sociais em qualquer parte. Em matéria de
monitoramento, prosseguiram, ao longo de toda a Guerra Fria, pelo
estabelecimento de relatores apenas para situações de países em
desenvolvimento, enquanto a Europa socialista e o Ocidente
desenvolvido se escudavam no equilíbrio bipolar do poder.9
No início da década de 90, as distorções do conflito
estrutural Norte-Sul encontravam-se ainda mais acirradas por
temperos culturais, manifestados, de um lado, na visão ocidental
reducionista que localizava nos países subdesenvolvidos a origem
de todos os males e, de outro, pela reação das culturas autóctones
hipervalorizando o nativismo contra a importação de valores do
Ocidente.
Um complicador
cultural menos generalizado, ou menos percebido em toda sua extensão
nos anos iniciais do período pós-Gerra Fria, decorria da reemergência
do fundamentalismo religioso como fator político de peso.
Primeira manifestação dos paradoxos que a década de 90 iria
testemunhar nessa área, o cancelamento do último turno das eleições
argelinas, em janeiro de 1992, a fim de impedir a vitória da
Frente Islâmica de Salvação (que, segundo alegado, suprimiria
eleições futuras em nome do integrismo muçulmano), teve apoio
compreensivo do Ocidente. Levantava-se assim séria questão sobre
a validade universal da democracia: seria legítimo em seu nome
desconsiderar a vontade majoritária do povo livremente expressa
em sufrágio democrático? Independente da resposta, se é que
alguma poderia ser aceitável, o fato é que, por convicção própria,
onde o fundamentalismo era a força motriz de governos
estabelecidos, ou como preempção à popularidade de
oposicionistas fanáticos em Estados muçulmanos moderados, todos
os países de organização política não-secular passaram a
adotar posições crescentemente "culturalistas".
Intelectualmente fortalecido no próprio Ocidente pelo apoio pós-estruturalista
e "pós-moderno" à noção identitária do
"direito à diferença", esse anti-universalismo
particularista, que sempre fora bandeira da Ásia
anti-imperialista, ganhava ímpeto renovado com os êxitos econômicos
obtidos pelos chamados "Tigres Asiáticos" sob regimes
autoritários.
Com incidência
ampla, afetavam substancialmente as questões de direitos humanos
para a Conferência de Viena outros fenômenos específicos dos
anos 90, como a exacerbação do micronacionalismo em áreas antes
pertencentes a Estados socialistas – com efeitos já
devastadores nos territórios da antiga Iugoslávia – e o
aumento extraordinário do número de refugiados e de populações
deslocadas, além dos fluxos intensificados de emigrantes movidos
pela falta de condições econômicas de sobrevivência nos países
de origem. Tendo por pano de fundo o desemprego crescente em todos
os continentes, dramatizado exponencialmente pelo desmonte
neoliberal dos remédios da segurança social, esses fenômenos
eram acompanhados pelo ressurgimento, no Ocidente, de partidos políticos
ultranacionalistas, que cresciam eleitoralmente em paralelo às ações
terroristas de grupos nazi-fascistóides. Estes representavam
expressões paroxísticas da xenofobia e do racismo renascentes
nas respectivas sociedades.
A esse quadro de
fatores e tendências intrínsecamente complexo sobrepunham-se
novos conceitos e experiências internacionais, formulados com espírito
construtivo para enfrentar os novos desafios do mundo
"desorganizado" pós-Guerra Fria, mas que causavam
arrepios em áreas supostamente vulneráveis a intervenções de
fora no exercício do "direito de ingerência humanitária"
– expressão cunhada pouco antes e difundida sobretudo a partir
da Guerra do Golfo.
Enquanto a integração
de elementos de direitos humanos (com inclusão de monitores e
funcionários do Secretariado especializados na matéria) nas
novas operações de paz das Nações Unidas, cada vez mais
polimorfas e geograficamente espraiadas – como a UNTAC, no Cambódia,
a UNOSOM, na Somália e a UNPROFOR, na ex-Iugoslávia – era, em
geral, acolhida positivamente, ela representava também uma forma
de absorção do tema dos direitos humanos pelo Conselho de
Segurança. Por mais evidentemente necessária que fosse nas situações
em questão, essa transferência de facto da competência
sobre (alguns aspectos dos) direitos humanos no âmbito da ONU,
entre a Assembléia Geral e o Conselho de Segurança, era uma
novidade que provocava temores de extrapolação. Afinal, durante
a Guerra Fria, os direitos humanos nunca haviam integrado como tal
a agenda da "paz e segurança internacional" da alçada
do Conselho. Nessas condições, muitas das idéias apresentadas
pelo Secretário Geral Boutros Boutros-Ghali em sua "Agenda
para a Paz", de 1992, como os sistemas de inspeções in
loco (fact finding) e alerta imediato (early warning)
contemplados para promover uma "diplomacia preventiva",10
quando adaptadas à esfera da proteção aos direitos humanos,11
geravam rejeição veemente entre governos mais desconfiados.
Recrudesciam, assim, e multiplicavam-se as posturas contrárias a
qualquer evolução significativa no tratamento internacional dos
direitos e liberdades fundamentais.
A deterioração
das expectativas entre o momento da convocação da conferência e
o de sua realização pode ser observado até mesmo na questão da
sede. Ao contrário da Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, que desde a resolução convocatória,
em dezembro de 1989, tinha sede prevista no Rio de Janeiro, o
local de realização da Conferência Mundial sobre Direitos
Humanos ficou indefinido por longo tempo.12
Aventada no ano em
que Francis Fukuyama publicara seu famoso ensaio sobre o fim da
História, segundo o qual a democracia liberal e o sistema
capitalista constituiriam o porto de destino incontornável de
todos os Estados,13 a idéia de uma conferência mundial
sobre tais direitos foi primeiro discutida no âmbito da Assembléia
Geral em 1989, logo após a queda do muro de Berlim. Das discussões
emergiu, não sem resistências de alguns países do Terceiro
Mundo, a Resolução n. 44/156, de 15 de dezembro de 1989, que
solicitava ao Secretário Geral a realização de consultas sobre
a "desejabilidade da convocação de uma conferência mundial
sobre direitos humanos com o propósito de abordar, no mais alto nível,
as questões cruciais enfrentadas pelas Nações Unidas em conexão
com a promoção e proteção dos direitos humanos". À luz
das respostas obtidas, a Conferência foi finalmente convocada, no
ano seguinte, pela Resolução n. 45/155, de 18 de dezembro de
1990, para 1993, sem indicação da cidade em que se realizaria.
Na sessão da
Comissão dos Direitos Humanos de fevereiro/março de 1991, a
Tchecoslováquia, redemocratizada numa "Revolução de
Veludo" e ainda unida em Estado binacional, ofereceu Praga
como sede da Conferência. A oferta foi, porém, com o passar do
tempo, senão propriamente retirada, deixada propositalmente
esquecida, enquanto se acirrava o movimento eslovaco pela partição
do país. De Praga, a possível sede passou, por oferecimento
verbal da Argentina, a Buenos Aires, logo experimentando destino
semelhante. Cogitou-se, em seguida, de Berlim, que chegou a
figurar nominalmente como cidade anfitriã em resolução da
Assembléia Geral de 1991.14 Tampouco o Governo alemão pôde
manter seu convite após eleições havidas na Alemanha recém-reunificada
(onde, aliás, as agressões anti-imigrantes, sobretudo turcos,
vinham aumentando assustadoramente15). A capital da Áustria
surgiu, pois, como penúltima alternativa (a derradeira, que
chegou a ser contemplada, seria Genebra, nas salas de reunião da
ONU), tendo-se em conta oferta do Governo austríaco acolhida pela
Assembléia Geral já em 1992,16 facilitada pelo fato de
Viena, na qualidade de sede permanente de alguns órgãos das Nações
Unidas, contar com instalações adequadas, sem necessidade de
rearrumação.
As idas e vindas
nas diversas ofertas nada tinham a ver, em princípio, com a
disposição dos respectivos governos em matéria de direitos
humanos. Relacionavam-se, sim, aos avatares da situação interna
e da política doméstica, associados, sem dúvida, à
sensibilidade do tema e à reversão de expectativas sobre ele no
contexto internacional. Este, entre 1989 e 1993, havia se
transformado de tal maneira que, no campo da teoria, o otimismo
triunfalista de Fukuyama tivera que ceder lugar ao
"realismo" sombrio do paradigma de Huntington sobre o
choque de civilizações, trazido a público no exato momento em
que a Conferência de Viena iniciava suas deliberações.17
3. O processo
preparatório
De fato, no
processo preparatório para a Conferência Mundial sobre Direitos
Humanos, entre setembro de 1991 e maio de 1993, as civilizações
pareciam crescentemente inclinadas a chocar-se. O Ocidente
desenvolvido se mostrava cada dia mais exigente nas propostas de
novos mecanismos de controle voltados para a proteção dos
direitos civis e políticos postulados na tradição liberal,
secular e individualista, enquanto o Oriente assumia posturas cada
dia mais defensivas das respectivas culturas, com ênfase nas
obrigações individuais e direitos coletivos. A essas divergências
civilizacionais se sobrepunham as disputas ideológicas entre os
países capitalistas mais ortodoxos e os remanescentes
socialistas. Em posições intermediárias se colocavam a América
Latina e a África: a primeira, já quase totalmente
redemocratizada, assumia, com raras exceções, sua posição
geo-estratégica no Ocidente e a herança cultural iluminista, sem
abdicar de reivindicações por um ordenamento mais justo; a
segunda, não-ocidental, mas sem o peso de culturas milenares,
procurava valorizar seu processo incipiente de democratização e
obter apoio econômico. Inexpressivo como conjunto, os antigos
componentes do bloco socialista e os novos Estados resultantes do
desmembramento de unidades federadas assimilavam, em geral, posições
das respectivas áreas geográficas.
Ao contrário da época
da Conferência de Teerã, quando o processo de asserção
internacional dos direitos humanos ainda havia caminhado pouco, no
período em que se deu a convocação da Conferência Mundial
sobre Direitos Humanos para 1993, o sistema internacional nessa
esfera havia evoluído enormemente. O Direito Internacional dos
Direitos Humanos, com seus desdobramentos regionais,18
tinha-se convertido no ramo mais regulamentado do direito
internacional. Ao "abstencionismo" de antanho
contrapunha-se uma determinação "intrusiva", ainda que
os mecanismos existentes não fossem
"intervencionistas".19 Os objetivos da Conferência
de Viena seriam, pois, muito mais amplos e sensíveis do que os da
Conferência de Teerã.
Ao convocar a
Conferência da 1993, o preâmbulo da Resolução n. 45/155 –
que não mencionava sequer a Conferência de 1968 – já
rejeitava o condicionalismo dos direitos civis e políticos
inferido da Proclamação de Teerã, reconhecendo, ao contrário,
que todos os direitos humanos e liberdades fundamentais são
indivisíveis e interrelacionados, mas "a promoção e proteção
de uma categoria de direitos não pode nunca isentar ou escusar os
Estados da promoção e proteção das outras". Dos seis
objetivos estabelecidos para a nova Conferência, dois se referiam
à avaliação dos progressos e obstáculos observados desde a adoção
da Declaração Universal e à relação existente entre o
desenvolvimento e o desfrute dos direitos humanos, enquanto quatro
diziam respeito às atividades internacionais de controle, a
saber:
1) examinar meios e
modos para aprimorar a implementação das normas e
instrumentos existentes de direitos humanos;
2) avaliar a eficácia
dos métodos e mecanismos usados pelas Nações Unidas no campo
dos direitos humanos;
3) formular
recomendações concretas para aumentar a eficácia dos mecanismos
e atividades das Nações Unidas por intermédio de programas
destinados a promover, encorajar e monitorar o respeito aos
direitos humanos e liberdades fundamentais;
4) fazer recomendações
com vistas a assegurar os recursos financeiros e de outra ordem,
necessários às atividades das Nações Unidas na promoção e
proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais.
Dada a delicadeza
política de qualquer sistema internacional de proteção a
direitos que se realizam dentro de territórios nacionais, aguçada
pelos fatores conjunturais que acrescentavam dificuldades de ordem
cultural aos problemas estruturais existentes, os desentendimentos
entre as delegações participantes do Comitê Preparatório
chegaram a reabrir, com força revigorada, a questão da
aplicabilidade universal da Declaração de 1948. O nível de
divergências foi tal que somente na quarta e última sessão
desse Comitê, em abril de 1993 – estendida por semana
adicional, já em maio, em decorrência da falta de consenso sobre
qualquer item discutido –, conseguiu-se proceder à
"primeira leitura" (ou seja, a aprovação ad
referendum, após deliberação superficial) do anteprojeto de
documento final, elaborado pelo Secretariado das Nações Unidas,
para consideração pela Conferência, no mês seguinte. O texto
encaminhado a Viena pelo Comitê Preparatório continha, porém,
tantas passagens sem acordo que o consenso desejado parecia uma
esperança perdida. Não eram, portanto, descabidos os temores de
que a Conferência de 1993, ao invés de oferecer avanços ao
sistema internacional de proteção aos direitos humanos, viesse a
ocasionar-lhe retrocesso.
Curiosamente, tais
temores, bastante realistas, tendiam a limitar-se às delegações
governamentais, quando reunidas no Comitê Preparatório, de
composição planetária. Entre as organizações não-governamentais
(ONGs), nos encontros acadêmicos e nas contribuições das agências
especializadas, as dificuldades observadas nas discussões
oficiais não pareciam arrefecer os ânimos. E nas reuniões
regionais preparatórias, realizadas em São José da Costa Rica
(entre os países latino-americanos e caribenhos), em Túnis
(entre os países africanos), e em Bangkok (entre os países asiáticos),
as disposições pareciam mais construtivas, com expectativas
otimistas também entre os delegados governamentais.20 Isto
não ocorria somente porque os encontros regionais congregavam países
com preocupações e interesses relativamente próximos. Ocorria
também porque neles a interação entre as delegações
governamentais e não-governamentais era maior do que no Comitê
Preparatório – cujas regras limitavam a atuação das ONGs.
Qualquer que seja a
razão para a diferença de disposições observadas entre as
reuniões regionais e as inter-regionais, é fato inegável que as
declarações regionais, adotadas por consenso, contribuíram
substancialmente com propostas, idéias e o próprio exemplo, para
os avanços obtidos em Viena.
4. O papel das ONGs
Havendo contado no
Rio de Janeiro, em 1992, com o Fórum Global do Aterro do
Flamengo, paralelo às negociações intergovernamentais do
Riocentro, as entidades da sociedade civil avançaram um pouco
mais em 1993, tendo seu foro próprio em Viena no mesmo edifício
da Conferência governamental e conseguindo entreabrir as portas
das sessões deliberativas à sua observação. É claro que isso
não correspondeu exatamente ao que elas pleiteavam em matéria de
participação, mas confirmou uma tendência à inserção cada
vez maior das ONGs e de outras entidades da sociedade civil nos
trabalhos das Nações Unidas – tendência que se afirmou
vigorosamente ao longo de toda a série de conferências da década
de 90.
Imediatamente antes
da inauguração da Conferência Mundial de 1993, o Fórum Mundial
de Organizações Não-Governamentais congregou, no Austria
Centre de Viena, de 10 a 12 de junho, cerca de duas mil ONGs,
sob o lema "Todos os Direitos Humanos para Todos".
Inaugurado pelo Senhor Ibrahima Fall, Diretor do Centro das Nações
Unidas para os Direitos Humanos e Secretário Geral da Conferência,
o Fórum das ONGs foi multiforme e fervilhante, a exemplo do Fórum
Global do Rio de Janeiro. Nele se promoveram eventos variados,
envolvendo palestras de personalidades influentes, julgamentos
simbólicos de casos, depoimentos de vítimas de violações em várias
partes do mundo, espetáculos artísticos, exposições de
fotografias e artesanato étnico e muitas outras atividades, todas
as quais atraíram as atenções da imprensa para a causa comum
dos direitos humanos e para a situação de grupos e países
particularizados.
Com vistas à
formulação de recomendações à Conferência Mundial em relatório
que refletisse o consenso de todas as entidades participantes, o fórum
formou grupos de trabalho divididos por temas.21 Deles
emergiram múltiplas sugestões, consolidadas em documento único,
muitas das quais, antes conhecidas, tinham sido incorporadas no
anteprojeto de documento final para a Conferência.
As recomendações
das ONGs, apresentadas coletivamente, abrangiam desde a rejeição
aos particularismos culturais como justificativa para a inobservância
de direitos até a abolição do veto dos membros permanentes do
Conselho de Segurança. Elas inter alia reafirmavam o
direito ao desenvolvimento; defendiam o estabelecimento de um
sistema de petições sobre violações de direitos econômicos e
sociais; assinalavam a necessidade de compatibilização entre os
programas de ajuste estrutural definidos pelos organismos
financeiros e o respeito aos direitos humanos; propunham a
ratificação dos instrumentos jurídicos internacionais sobre a
matéria como requisito à participação de qualquer Estado nas
Nações Unidas; sugeriam a redução de despesas militares e a
reorientação dos recursos poupados nesse setor para a área
social; propunham aumento nas alocações orçamentárias da ONU
para as atividades de direitos humanos; instavam à adoção de
novos métodos e mecanismos de proteção, entre os quais a criação
do cargo de Alto Comissário para os Direitos Humanos e o
estabelecimento de um tribunal penal internacional para julgar os
responsáveis por violações maciças desses direitos e do
Direito Internacional Humanitário. Muitas recomendações
dirigiam-se a segmentos populacionais específicos, como as
minorias étnicas, os portadores de deficiências, os indígenas e
as mulheres. A propósito da violência contra a mulher, as ONGs
estimulavam iniciativa já encaminhada na Comissão dos Direitos
Humanos de designação de um(a) relator(a) especial para
acompanhar esse tema, recomendando atenção particular para os países
cujos governos se orientam pelo fundamentalismo religioso.22
Embora a Conferência
Mundial tenha sido formalmente inaugurada dois dias após a data
prevista de encerramento do Fórum das ONGs, este, na prática, não
se dissolveu. Continuou abrigando no subsolo da Austria Centre
a maioria dos representantes não-governamentais durante a realização
da Conferência oficial, cujas delegações nacionais (algumas das
quais, como a do Brasil, incluíam membros designados por instituições
não propriamente do Governo) com eles se encontravam a todo
instante, nos corredores e ante-salas, intercambiando informações
e opiniões. Muitas delegações faziam-no de maneira metódica e
voluntária; outras, forçadas pelas circunstâncias.
Não foi fácil,
porém, entre as delegações governamentais, chegar-se a fórmula
consensual que permitisse o acesso de ONGs como observadoras às
sessões de trabalho da Conferência. As resistências eram fortes
e a regra preliminar sobre o assunto, oriunda do Comitê Preparatório,
facilitava a reabertura da questão.
De um modo geral,
as reservas à participação de ONGs em reuniões das Nações
Unidas partiam de países do Terceiro Mundo e do antigo bloco
socialista, enquanto os países do Grupo Ocidental (Europa
Ocidental mais Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia)
eram os principais propugnadores de sua incorporação como
observadoras. Essa divisão de posições enraizadas devia-se a
fatores diversos, a começar pelo fato de que a maioria esmagadora
das ONGs era de procedência euro-americana – o que não
surpreende, na medida em que a própria noção de sociedade civil
como espaço social separado do Estado é de origem ocidental. É
verdade que suas denúncias nunca se dirigiram exclusivamente aos
países do Terceiro Mundo ou da Europa Oriental. Mas os países em
desenvolvimento – e a fortiori os países comunistas –,
com raras exceções, sempre tenderam a encarar as ONGs com
desconfianças, tanto porque os respectivos governos tinham muitas
vezes sua atuação repreendida, como porque tais entidades
privadas de objetivos públicos configuravam um fenômeno
praticamente inexistente nas respectivas sociedades até tempos
recentes. Além disso, o financiamento dessas organizações por
fundações filantrópicas norte-americanas e européias dava azo
à interpretação, corrente na Guerra Fria, de que as ONGs eram
instrumentos de propaganda ideológica das potências ocidentais.
A essas razões
históricas para as desconfianças da maioria dos Estados, algumas
características intrínsecas às ONGS complicavam – e complicam
ainda – em qualquer circunstância sua acolhida por foros
intergovernamentais: a facilidade com que se formam e proliferam,
a imprecisão jurídica de sua representatividade, a questão da
legitimidade (que só se afirma para cada uma pela prática
comprovada de sua atuação) e, até mesmo, a elasticidade da
expressão "organização não-governamental". Esta,
como se sabe, cobre desde as ONGs mais típicas atuantes na esfera
internacional, como a Anistia Internacional, a Human Rights Watch
ou a Federação Internacional de Juristas, até micro-associações
nacionais voltadas para grupos muito específicos; aplica-se
igualmente a entidades com objetivos políticos claramente
determinados (como a independência do Tibete ou a separação da
Cashemira do Estado indiano) e a movimentos sociais amplíssimos
de natureza variada (como as organizações que representam o
movimento de mulheres nas esferas nacionais e internacionais).
Para a participação
na Conferência de Viena, o regulamento provisório, adotado com
dificuldades na terceira sessão do Comitê Preparatório,
autorizava a acolhida às ONGs de direitos humanos ou atuantes na
esfera do desenvolvimento que já contassem com status consultivo
junto ao Conselho Econômico e Social das Nações Unidas –
ECOSOC – ou outras que tivessem participado do próprio Comitê
ou das reuniões regionais preparatórias. Como para a participação
nessas reuniões regionais a facilidade de acesso era ampla,
bastando as ONGs terem sede na região e não serem objetadas
pelos países da área, essa fórmula abria a Conferência à
observação pelas mais diversas entidades sem status
consultivo nas Nações Unidas (as que o tinham não chegavam a
duas centenas)23. O regulamento provisório falava ainda na
participação das ONGs como observadoras "na Conferência,
em suas Comissões Principais e, conforme apropriado, em qualquer
das Comissões ou Grupos de Trabalho, sobre questões concernentes
a sua esfera de atividades".24
Essa abertura total
da Conferência às entidades da sociedade civil era, sem dúvida,
significativa das melhores tendências da época quanto à
participação da cidadania nas decisões atinentes a sua situação.
Não era, porém, reflexo de um consenso real de todos os
Governos. Parecia representar, além disso, um complicador formidável
para as negociações a ocorrerem no âmbito do Comitê de Redação,
que tinha por atribuição a conciliação de posições de todos
os Estados com vistas à adoção sem voto do documento final –
após três anos de negociações inconclusas!
A questão foi,
portanto, reaberta em Viena. Diante das posições radicalmente
conflitantes entre o Grupo Ocidental, favorável às ONGs em todas
as instâncias, e a maioria – ou, senão a maioria, os governos
mais veementes – do Terceiro Mundo, profundamente restritiva à
sua presença nas negociações, coube ao Presidente do Comitê de
Redação, o Embaixador Gilberto Sabóia, subchefe da delegação
brasileira, decidir o impasse. Para tanto, precisou usar de
criatividade. Aceitando, em suas palavras, "o ônus da
impopularidade", dividiu as sessões do comitê em sessões
informais, sem a presença de observadores, e sessões formais,
abertas às ONGs, nas quais lhes seria facultado enunciar posições
coletivas.25 Malgrado seu aspecto limitativo, essa decisão
representava uma conquista inédita da sociedade civil em foro
negociador intergovernamental. Em todas as demais instâncias da
Conferência de Viena, os representantes de entidades não-governamentais
tiveram acesso livre, desde que devidamente credenciados.
Se, por um lado, a
interação permanente entre delegações governamentais e não-governamentais
num nível superior ao de qualquer conferência anterior
representou o passo mais relevante para a legitimação do papel
das ONGs na agenda global das Nações Unidas, por outro, o Fórum
Mundial foi importante pelo que evidenciou de per si.
No Fórum,
reuniram-se militantes procedentes de todo os cantos do mundo.
Nele se pôde verificar o quanto as entidades não-oficiais
voltadas para a defesa dos direitos humanos haviam deixado de ser
exclusividade do Ocidente desenvolvido. Por sua composição
diversificada, o Fórum demonstrou, com exemplos vivos de
determinação construtiva e pelo testemunho de vítimas de violações,
que a aspiração pelos direitos humanos é hoje fenômeno
transcultural, nem etnocêntrico, nem imperialista. Suas recomendações
consensuais à Conferência Mundial confirmavam e explicitavam que
o universalismo dos direitos fundamentais não fere, ao contrário
auxilia, a singularidade das diversas culturas no que elas têm de
mais humano. E sua preocupação com a necessidade de "Todos
os Direitos Humanos para Todos", respaldada por propostas
consensuais conseqüentes na área da proteção aos direitos econômicos
e sociais, indicava que as ONGs em geral, até porque não sofrem
as mesmas pressões que os Governos, têm postura mais correta e
coerente sobre a indivisibilidade dos direitos humanos do que os
principais atores internacionais – tanto aqueles que as
defendem, como os que delas desconfiam.
5. A Conferência
oficial e seus comitês
A Conferência
Mundial sobre Direitos Humanos propriamente dita realizou-se de 14
a 25 de junho de 1993. Diferentemente da Cúpula Mundial sobre a
Criança ou da Conferência do Rio de Janeiro com sua "Cúpula
da Terra", a Conferência de Viena não contou com um
segmento em nível de Chefes de Estado e de Governo, sendo a
maioria das 171 delegações governamentais participantes
chefiadas por Ministros de Estado. Congregou, ainda assim, ao
todo, segundo estimativas divulgadas na ocasião, mais de 10.000
pessoas. Aí se incluíam "representantes de 2 movimentos de
libertação nacional, 15 órgãos das Nações Unidas, 10
organismos especializados, 18 organizações intergovernamentais,
24 instituições nacionais de promoção e proteção dos
direitos humanos e 6 ombudsmen, 11 órgãos da ONU de
direitos humanos e afins, 9 outras organizações, 248 organizações
não-governamentais reconhecidas como entidades consultivas pelo
Conselho Econômico e Social e 593 outras organizações não
governamentais"26, juntamente com acadêmicos e
ativistas ilustres, alguns detentores do Prêmio Nobel, funcionários
das Nações Unidas, jornalistas e pessoal de apoio. Foi, sem dúvida,
o maior encontro internacional jamais havido sobre o tema.
Os trabalhos da
Conferência se desenvolveram em três instâncias: o Plenário, o
Comitê Principal e o Comitê de Redação. No Plenário, como de
praxe, eram feitas as alocuções mais importantes, exortatórias
e definidoras de posições: do Secretário Geral das Nações
Unidas, do Presidente da República e do Primeiro Ministro da Áustria,
de convidados especiais (Elena Bonner, Jimmy Carter, Hassan bin
Talal, Rigoberta Menchú, Wole Soyinka e Corazón Aquino), de
representantes de organizações intergovernamentais e não-governamentais
oficialmente inscritas e de todos o Chefes de delegações
governamentais. No Comitê Principal, outros membros das delegações
nacionais, ligados ou não ao Poder Executivo, assim como
representantes de ONGs credenciadas, podiam apresentar suas
contribuições.27 O Comitê de Redação, encarregado de
preparar o documento final, não comportava discursos, podendo
falar, quando assim o solicitava, qualquer membro negociador das
delegações. O Plenário – e a Conferência como um todo –
foi presidido, como é habitual nesse tipo de evento, pelo país
anfitrião, na pessoa do Senhor Alois Mock, Ministro dos Negócios
Estrangeiros da Áustria; o Comitê Principal pela diplomata
marroquina Halima Embarek Warzazi, ex-Presidente do Comitê
Preparatório; o Comitê de Redação, pelo Embaixador Gilberto
Vergne Sabóia, Representante Permanente Alterno do Brasil junto
às Nações Unidas em Genebra, por solicitação das demais
delegações.
O Plenário e o
Comitê Principal foram veículos não-negligenciáveis de divulgação
da idéia dos direitos humanos, malgrado os enfoques diferentes. E
o Plenário, ademais de locus dos principais discursos, foi
– como sempre, por definição – a instância suprema, única
com capacidade para aprovar ou rejeitar qualquer texto. A instância
de efetiva negociação parlamentar foi, porém, somente o Comitê
de Redação.
Em qualquer conferência
internacional, o Comitê de Redação é sempre o local onde se
negociam os documentos a serem adotados – ou não. O que
diferenciou o Comitê de Redação de Viena de seus equivalentes
em eventos congêneres foi a resistência de muitas delegações
à constituição de grupos de trabalho, comuns em circunstâncias
semelhantes, que facilitassem a conciliação de divergências e a
redação de textos alternativos aos que se achavam entre
colchetes no anteprojeto examinado.
Tendo em conta que
o anteprojeto se dividia em três partes – Preâmbulo, Declaração
e Recomendações –, todas as quais com áreas de desacordo, era
intenção do Embaixador Sabóia constituir dois grupos de
trabalho, um para a parte preambular e outro para as recomendações,
ficando a parte declaratória, conceitual e mais delicada, a cargo
do plenário do Comitê. Sua proposta não teve êxito face à
argumentação de delegações africanas e asiáticas de que não
poderiam acompanhar os trabalhos de todos esses grupos
negociadores.28
O fato de várias
delegações a eventos internacionais não contarem com número
suficiente de delegados para acompanhar todas as negociações
simultâneas, também é bastante comum. A solução normalmente
adotada por tais delegações consiste em concentrar atenções
nas questões que lhes interessem de maneira especial, deixando os
trabalhos sobre as demais fluírem sem sua participação. Isso não
representa distanciamento desinteressado ou voto de confiança no
que decidirem os outros, uma vez que qualquer acordo de comitê
pode ser reaberto em Plenário. O problema verificado em Viena é
que todas as partes do texto pareciam relevantes para todas as
delegações.
Quase dois dias se
passaram sem que o Comitê de Redação, reunido em sessões plenárias,
conseguisse avançar na obtenção de consenso para qualquer parte
ou parágrafo do anteprojeto. O impasse somente foi rompido a
custo e graças novamente à engenhosidade do Embaixador Sabóia,
que conseguiu estabelecer informalmente uma inusitada "força
tarefa", de composição aberta a quem tivesse interesse em
participar, cabendo ao Autor destas linhas, na função não-oficial
de coordenador, a atribuição de coligir e transmitir-lhe as posições
predominantes. Reunida de início, com pouquíssimos
participantes, essa "força tarefa" heterodoxa aos
poucos foi atraindo a curiosidade das demais delegações. Acabou
por constituir, na prática, grupo de trabalho – nunca
denominado como tal – bastante numeroso, que logrou reescrever e
adotar ad referendum do Comitê, com promessa dos
participantes de que não reabririam os textos ali coletivamente
aprovados, boa parte dos parágrafos que iriam constituir a parte
programática do documento final. A existência dessa instância
auxiliar permitiu ao plenário do Comitê concentrar-se nas questões
mais sensíveis, contorná-las todas – muitas vezes em sessões
longuíssimas que se prolongavam até a madrugada – e,
referendando os textos oriundos da "força tarefa",
obter consenso para todo o documento.
Não há dúvidas
de que as alocuções no Plenário e no Comitê Principal da
Conferência foram, conforme já assinalado, importantes. Além de
apresentarem visões diferenciadas do tema no mundo contemporâneo,
as intervenções dos chefes de delegação constituíam o
referencial em que se deveria pautar a atuação dos respectivos
delegados. É também inegável que, se obedecidas estritamente as
posições expostas, elas seriam tão inconciliáveis a ponto de
inviabilizarem avanços para os direitos humanos. E, do ponto de
vista documental, Viena teria sido um fracasso.
As discussões no
Comitê de Redação foram intensas, cansativas, muitas vezes
exasperantes. As dificuldades não se prendiam apenas, como se
imaginava de longe, a interpretações divergentes dos direitos
humanos no sentido Norte-Sul, nem necessariamente às posturas
distintas de países democráticos e governos autoritários.
Deviam-se igualmente a contenciosos regionais e querelas
bilaterais (conflito árabe-israelense, questão da Cashemira
entre Paquistão e Índia, embargo norte-americano contra Cuba
etc.), que são invariavelmente transpostas para os foros
multilaterais. Conseguiu-se, porém, no final, flexibilizar as
posturas apresentadas em Plenário como "princípios pétreos"
e encontrar fórmulas acomodatícias das disputas bilaterais. Ao
trabalho do Comitê de Redação e à habilidade de seu Presidente
se deve, portanto, a existência de um documento final de
legitimidade inquestionável porque adotado sem voto.
Ao contrário da
Conferência de 1968, que, ademais da Proclamação de Teerã,
adotou diversas resoluções, encaminhando outras à consideração
de órgãos específicos das Nações Unidas, a Conferência de
Viena deveria concentrar todas as atenções no anteprojeto de
documento – abrangente e sem acordo – oriundo do Comitê
Preparatório. De um modo geral foi isso o que ocorreu, com apenas
três exceções, de efeito meramente simbólico. Diante da violência
que grassava, com feições especialmente graves, na Bósnia e em
Angola, foram apresentadas e aprovadas diretamente em Plenário
uma decisão pela qual a Conferência instava o Conselho de
Segurança a adotar "medidas necessárias para pôr fim ao
genocídio na Bósnia- Herzegovina" e duas declarações
especiais, mais longas e incisivas, uma também sobre a Bósnia
(adotada com voto contrário da Rússia e mais de 50 abstenções)
e outra sobre Angola (adotada por consenso).29 O documento
final da Conferência, a Declaração e Programa de Ação de
Viena, inteiramente negociado no Comitê de Redação, foi, na prática,
o único texto normativo que conferiu relevância ao encontro de
1993.
6. A Declaração e
Programa de Ação de Viena
Retirados os
colchetes que envolviam as passagens controversas do anteprojeto
recebido do Comitê Preparatório, com muitos trechos inteiramente
reescritos, o projeto de documento negociado no Comitê de Redação
foi encaminhado ao Plenário da Conferência na tarde da data de
encerramento, e finalmente adotado, sem voto, na noite de 25 de
junho de 1993. Por sua abrangência e pelas inovações que o
permeiam, ele constitui o referencial de definições e recomendações
mais atualizado e mais amplo sobre direitos humanos, acordado sem
imposições, na esfera internacional.
À primeira vista,
o documento de Viena se assemelha aos dois textos emergentes da Cúpula
sobre a Criança de 1990: a Declaração Mundial sobre a Sobrevivência,
a Proteção e o Desenvolvimento da Criança e o Plano de Ação
para a implementação dessa Declaração. É, entretanto,
diferente, na forma e no conteúdo. Seu nome composto, Declaração
e Programa de Ação de Viena,30 subentende dois
documentos, quando se trata de um só, dividido em três
partes. Essa confusão não foi fortuita. Decorreu de objeções
formuladas, desde as sessões do Comitê Preparatório e
reiteradas na capital austríaca, à idéia de um plano com metas
definidas ou um programa de ação internacional para os direitos
humanos. Por essa razão a palavra "programa" não
constava do anteprojeto, e sim "recomendações". No
Comitê de Redação logrou-se recuperar a idéia de programa,
pelo menos na denominação geral do documento. O simbolismo político
do termo no título de um texto negociado entre 171 Estados, que,
no período contemporâneo pós-colonial, oficialmente
representavam toda a humanidade, compensaria sua imprecisão – e
as dificuldades que os dois substantivos de gêneros distintos impõem
à sintaxe de um documento singular, sobretudo nas línguas
neolatinas.31
A Declaração e
Programa de Ação de Viena é composta (e não, como seria
correto, "A Declaração e o Programa de Ação de Viena são
compostos") de um preâmbulo com dezessete parágrafos, uma
primeira parte com trinta e nove artigos de conteúdo declaratório
(que corresponderia, portanto, à Declaração propriamente dita)
e uma segunda parte com cem parágrafos ou artigos com propostas
de ações, agrupados por títulos e subtítulos oriundos das
"recomendações" do anteprojeto (que corresponderia ao
Programa de Ação de Viena, raramente referido como tal, separado
da Declaração).
Os avanços da
Declaração e Programa de Ação de Viena encontram-se tanto na
esfera conceitual da Parte I, como nas recomendações da Parte
II, havendo nítida interligação entre as inovações
"declaratórias" e várias das recomendações
"programáticas". Todas elas adquirem relevo particular
na medida em que, diferentemente do que se verificava na época da
Conferência de Teerã, a grande preocupação em 1993 era com a
proteção e não a simples promoção, ou a normatização legal,
dos direitos humanos, já amplamente regulados em instrumentos
internacionais vigentes. E com vistas à proteção de direitos
consagrados em normas positivas freqüentemente violadas, a
necessidade de consenso legitimante era maior do que para a
simples difusão dos direitos como "princípios", mais
éticos do que jurídicos, como ocorria em 1968.
Do Preâmbulo, que
reitera os compromissos assumidos pelos membros das Nações
Unidas com os direitos humanos, os comentaristas costumam
ressaltar a referência oportuna "ao espírito de nossa era e
a realidade de nossos tempos", no antepenúltimo parágrafo,
como reflexo das esperanças propiciadas pelo fim da Guerra Fria.
Na mesma veia, e de maneira mais explícita, insere-se o nono parágrafo
preambular, com menção às "importantes mudanças em curso
no cenário internacional e as aspirações de todos os povos por
uma ordem internacional baseada nos princípios consagrados na
Carta das Nações Unidas", enumerando-se em seguida, como
condições necessárias a sua realização, "paz,
democracia, justiça, igualdade, estado de direito, pluralismo,
desenvolvimento, melhores padrões de vida e solidariedade".
Algumas dessas condições, como as da democracia, do estado de
direito e do pluralismo, indicativas do otimismo liberal do início
dos anos 90, dificilmente apareceriam em épocas passadas entre os
requisitos indispensáveis à realização dos direitos.
Menos observado tem
sido o fato de que o Preâmbulo se refere, enfática e
repetidamente, a todos os direitos humanos: "(...)
todos os direitos humanos derivam da dignidade e do valor
inerentes à pessoa humana (...)" (parágrafo 2º);
"(...) a comunidade internacional deve conceber formas e
meios para eliminar os obstáculos existentes e superar desafios
à plena realização de todos os direitos humanos (...)"
(parágrafo 13); "(...) a tarefa de promover e proteger todos
os direitos humanos e liberdades fundamentais (...)" (parágrafo
14). Se, em princípio, tal reiteração visava tão-somente a
reafirmar uma vez mais a indivisibilidade dos direitos humanos em
linguagem menos deturpável do que a da Proclamação de Teerã,32
tal insistência adquire em retrospecto outro sentido. É possível
que com ela alguns governos pretendessem sobretudo escamotear suas
resistências a novas iniciativas de monitoramento internacional
dos direitos civis e políticos, discutidas no Comitê Preparatório
e nas instâncias da Conferência, assegurando-se de meios
conceituais para defender-se contra a seletividade esperada. Sem
embargo, na virada do século, mais do que um expediente
defensivo, essa insistência se afigura uma necessidade concreta,
baseada em visão realista – premonitória em 1993 – dos
efeitos devastadores que a aceleração do processo de globalização
viria a ocasionar aos direitos humanos, em escala planetária, ao
longo da década de 90.
Enquanto a Parte I
do documento apresenta-se inteiriça, a Parte II, programática,
é dividida, por títulos, em seções e subseções. Os títulos
e subtítulos, indicativos da abrangência de todo o texto,
distribuem-se da seguinte maneira:
A) Aumento da
Coordenação do Sistema das Nações Unidas na Área dos Direitos
Humanos
1. Recursos
2. Centro para os
Direitos Humanos
3. Adaptação e
fortalecimento dos mecanismos das Nações Unidas na área dos
direitos humanos, incluindo a questão da criação de um Alto
Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos
B) Igualdade,
Dignidade e Tolerância
1. Racismo,
discriminação racial, xenofobia e outras formas de intolerância
2. Pessoas
pertencentes a minorias nacionais, étnicas, religiosas e lingüísticas;
Populações indígenas; Trabalhadores migrantes
3. A igualdade de
condição e os direitos humanos das mulheres
4. Os direitos da
criança
5. Direito de não
ser submetido a tortura; Desaparecimentos forçados
6. Os direitos das
pessoas portadoras de deficiências
C) Cooperação,
Desenvolvimento e Fortalecimento dos Direitos Humanos
D) Educação em
Direitos Humanos
E) Implementação
e Métodos de Controle
F) Acompanhamento
dos resultados da Conferência Mundial sobre Direitos Humanos
Na medida em que a
Declaração e Programa de Ação de Viena consolida conceitos e
recomendações extremamente variados, cada usuário do documento
apontará, naturalmente, diferentes passagens como aquelas prioritárias
para a consecução dos objetivos em vista. Para o movimento de
mulheres, por exemplo, os parágrafos declaratórios sobre os
direitos da mulher na Parte I e as respectivas recomendações da
Parte II são, evidentemente, as conquistas mais importantes da
Conferência de 1993. Mutatis mutandi o mesmo se aplica às
populações indígenas, às minorias em geral, às organizações
não-governamentais e assim por diante. Há, contudo, cinco áreas
não-específicas – portanto, de impacto global – em que a
Conferência apresentou avanços conceituais extraordinários, que
deveriam, pela lógica, superar antigas discussões doutrinárias
sobre a matéria. Todos localizados na Parte I, tais avanços
incidem sobre cinco questões: a) a universalidade dos direitos
humanos; b) a legitimidade do sistema internacional de proteção
aos direitos humanos; c) o direito ao desenvolvimento; d) o
direito à autodeterminação; e) o estabelecimento da inter-relação
entre democracia, desenvolvimento e direitos humanos.
a) A universalidade
dos direitos humanos
Em paralelo às
discussões filosóficas inconclusivas sobre universalismo e
relativismo, a universalidade dos direitos humanos vinha sendo
politicamente questionada desde a fase de elaboração da Declaração
dos Direitos Humanos, adotada por voto e com oito abstenções
pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1948 com o título
de Declaração Universal. Embora tal questionamento nunca
tivesse sido consistente, tendendo os Estados a recorrer a ele
apenas quando tinham seu comportamento criticado, é inegável que
a falta de consenso em que se deu a adoção da Declaração de
1948 e o fato de que dois terços da humanidade viviam em regime
colonial sob domínio do Ocidente, sem qualquer participação na
definição internacional de tais direitos, davam fundamento às
objeções.
Com o acirramento
das divergências "culturais" que substituíram os
enfrentamentos ideológicos da Guerra Fria, a universalidade dos
direitos humanos proclamada na Declaração de 1948 voltara a ser
seriamente contestada no processo preparatório da Conferência de
Viena e continuou a sê-lo no Plenário daquele evento. A delegação
da China, por exemplo, afirmava em sua intervenção:
"Para um
grande número de países em desenvolvimento, respeitar e
proteger os direitos humanos é sobretudo assegurar a plena
realização dos direitos à subsistência e ao
desenvolvimento. (...) Não há quaisquer direitos e
liberdades individuais absolutos, exceto os prescritos pela
lei e no âmbito desta. A ninguém é dado colocar seus próprios
direitos e interesses acima do Estado e da sociedade
(...)".33
Para a delegação
de Cingapura, um dos países que, respaldados por êxitos econômicos
recentes, mais vigorosamente vinham advogando o particularismo dos
"valores asiáticos", os direitos seriam sempre produto
da respectiva cultura, trazendo a Declaração de 1948
"essencialmente conceitos contestados", inclusive dentro
do próprio mundo ocidental.34 As delegações de Estados
muçulmanos, de um modo geral, evitavam contrapor a cultura islâmica
à noção de direitos fundamentais, mas rejeitavam o secularismo
dos direitos "ocidentais" relacionados na Declaração
de 1948, atribuindo, no seu caso, os direitos humanos em geral ao
legado divino maometano. Mais sutil por um lado e mais explícita
por outro, a delegação do Irã declarava:
"Os
direitos humanos são sem dúvida universais. São inerentes
aos seres humanos, que deles são dotados por seu único
Criador. Não podem assim sujeitar-se ao relativismo cultural.
(...) A predominância política de um grupo de países nas
relações internacionais, temporária por natureza e pela
história, não oferece licença para a imposição de um
conjunto de diretrizes e normas para o comportamento da
comunidade internacional inteira".35
A delegação da Arábia
Saudita invocou uma Declaração do Cairo sobre Direitos Humanos
no Islã, adotada pela Organização da Conferência Islâmica em
1990, como expressão do apoio de mais de um bilhão de fiéis à
universalidade dos direitos humanos, acrescentando, mais conseqüentemente:
"(...)
enquanto os princípios e objetivos em que se baseiam os
direitos humanos são de natureza universal, sua aplicação
requer consideração da diversidade das sociedades, levando
em conta seus vários backgrounds históricos,
culturais e religiosos e seus sistemas jurídicos".36
Embora a referência
à Declaração islâmica do Cairo, proposta por algumas delegações
muçulmanas sobretudo no âmbito do Comitê Preparatório, tenha
sido rechaçada – como, sem dúvida, o seria qualquer declaração
unilateral cristã, judaica, budista ou de outra religião
particular – nas negociações mundiais, a idéia da variedade
das formas de aplicação dos direitos humanos foi essencial à
obtenção do consenso sobre a universalidade de tais direitos.
Tal idéia já havia sido enunciada coletivamente pela Declaração
de Bangkok, da reunião preparatória asiática, sendo retomada e
modificada pelo Comitê de Redação de modo a rejeitar a
possibilidade de invocação das tradições culturais como
justificativa para violações. A formulação do artigo 5º da
Declaração de Viena, que aprofunda igualmente a noção da
indivisibilidade dos direitos humanos, afirma:
"5. Todos
os direitos humanos são universais, indivisíveis,
interdependentes e inter-relacionados. A comunidade
internacional deve tratar os direitos humanos globalmente de
forma justa e eqüitativa, em pé de igualdade e com a mesma
ênfase. As particularidades nacionais e regionais devem ser
levadas em consideração, assim como os diversos contextos
históricos, culturais e religiosos, mas é dever dos Estados
promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais, independentemente de seus sistemas políticos,
econômicos e culturais."
Como era previsível,
essa redação um tanto confusa, pela qual se procurou conciliar o
particularismo cultural com o universalismo dos direitos
fundamentais, não agradou a todos. Mas ela deixa claro que, se as
culturas devem ser respeitadas na implementação dos direitos
humanos, aos Estados incumbe adaptá-las no que elas possam
contrariá-los. Além disso, ela foi imprescindível para que se
pudesse chegar à afirmação mais importante na matéria, contida
significativamente no artigo 1º, aprovado posteriormente no Comitê
de Redação, de que a natureza universal dos direitos humanos
"não admite dúvidas". Num documento adotado sem voto,
de cuja elaboração participaram representantes oficiais de
praticamente todos os Estados e, por extensão, de todas as
culturas, é difícil imaginar algo mais eloqüente. A Declaração
de Viena foi, assim, o primeiro documento internacional a outorgar
concordância planetária à validade transcultural teórica dos
direitos humanos, antes postulada sem consenso e sem participação
representativa de todas as culturas pela Declaração de 1948.37
b) A legitimidade da
proteção internacional aos direitos humanos
Tendo a Carta das
Nações Unidas estabelecido, em seu artigo 1º, parágrafo 3º,
"a promoção e o encorajamento do respeito" dos
direitos humanos entre os propósitos da Organização e, no
artigo 2º, parágrafo 7º, a não-intervenção em assuntos
"essencialmente da jurisdição doméstica" dos Estados
entre os princípios de sua ação, a proteção internacional aos
direitos humanos sempre foi questão controversa. Por mais natural
que se afigure o sentimento transnacional de solidariedade, a
induzir condenações às violações onde quer que se verifiquem,
o respeito e o desrespeito a tais direitos ocorrem necessariamente
dentro da órbita jurídica interna dos Estados.
Diferentemente da
questão da universalidade dos direitos humanos, cujos
questionamentos sempre foram formulados por países
extra-ocidentais, a proteção internacional a esses direitos
provocava – e provoca ainda – desconforto em Estados de
qualquer origem histórico-cultural, inclusive quando iniciadores
das ações protetivas. Isto porque, conforme assinalado antes,
ela afeta a concepção clássica de soberania, inspiradora do
princípio da não-intervenção e base do sistema de relações
internacionais (pacíficas) desde o Tratado de Westfália de 1648.
Para contornar a
antinomia entre o propósito que a obrigava a agir e o princípio
que determinava inação na matéria, durante duas décadas, até
1965,38 a ONU concentrara suas atividades na fixação de
parâmetros e normas para a atuação dos Estados, sem estabelecer
mecanismos próprios para lidar com as violações. E todos os
Estados acusados de violações invocavam regularmente o princípio
da não-intervenção para fazer calar seus acusadores. Sem
embargo, desde o início da década de 70, vários mecanismos de
monitoramento foram estabelecidos e multiplicados nas Nações
Unidas e em âmbitos regionais, com o objetivo de oferecer alguma
proteção internacional aos direitos humanos.39 Ainda que
as sanções nessa esfera nunca tivessem passado de admoestações
morais (com exceção do caso do apartheid, que levara o
Conselho de Segurança a impor sanções materiais contra a venda
de armas à África do Sul, e a Assembléia Geral recomendara
amplas sanções comerciais), quase todos os governos implicados
questionavam a legitimidade dos mecanismos estabelecidos – e
particularmente das acusações de que eram alvo – como se
representassem infrações ao princípio da não-ingerência em
assuntos internos.
Embora, com o
tempo, a invocação de tal princípio tivesse caído em desuso,
as propostas de novos mecanismos e outras formas de atuação das
Nações Unidas em proteção aos direitos humanos, apresentadas
na preparação da Conferência, tendiam a exumar as controvérsias
sobre a legitimidade da proteção internacional. Coube, assim, ao
Comitê de Redação equacioná-las. A solução encontrada –
nesse caso, sem qualquer ambigüidade – encontra-se no artigo 4º
da Declaração, que diz:
"4. A
promoção e a proteção de todos os direitos humanos e
liberdades fundamentais devem ser consideradas como um
objetivo prioritário das Nações Unidas, em conformidade com
seus propósitos e princípios, particularmente o propósito
da cooperação internacional. No contexto desses propósitos
e princípios, a promoção e a proteção de todos os
direitos humanos constituem uma preocupação legítima da
comunidade internacional. Os órgãos e agências
especializadas relacionados com os direitos humanos devem,
portanto, reforçar a coordenação de suas atividades com
base na aplicação coerente e objetiva dos instrumentos
internacionais de direitos humanos."
É natural que a idéia
da cooperação internacional deva prevalecer no sistema
institucionalizado sobre a de simples denúncias. É óbvio, também,
que o sistema multilateral, diferentemente daquele posto em prática
por alguns Estados nas relações bilaterais, precisa seguir critérios
coerentes e objetivos. Mas é igualmente claro que, sendo
reconhecida como "objetivo prioritário das Nações
Unidas" e "preocupação legítima da comunidade
internacional", a proteção internacional aos direitos
humanos não infringe o princípio da não-intervenção previsto
no artigo 2º, parágrafo 7º, da Carta. Deixam de ter, assim,
base jurídica aceitável os eventuais questionamentos à
legitimidade do sistema internacional de proteção aos direitos
humanos que se possam apresentar depois da Conferência de Viena.
c) O reconhecimento
consensual do direito ao desenvolvimento
Incluído na
categoria dos chamados direitos "de terceira geração",
de titularidade coletiva perante a comunidade internacional, o
direito ao desenvolvimento havia sido estabelecido formal e forçadamente,
sem consenso, pela Assembléia Geral das Nações Unidas, desde
1986, na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento.40
Esta o definia, no artigo 1º, como "um direito humano
inalienável em virtude do qual toda pessoa humana e todos os
povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico,
social, cultural e político, para com ele contribuir e dele
desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais possam ser plenamente realizados" (grifo do
autor). Embora se referindo de início a "toda pessoa
humana", a titularidade recaía sobretudo na coletividade, ou
mais definidamente no Estado independente ou autônomo constituído
por cada povo, uma vez que, pelo artigo 2º dessa Declaração, o
direito ao desenvolvimento implica também "a plena realização
do direito dos povos à autodeterminação, que inclui, sujeito às
disposições relevantes de ambos os Pactos Internacionais sobre
Direitos Humanos, o exercício de seu direito inalienável de
soberania plena sobre todas as suas riquezas e recursos
naturais."
A falta de consenso
sobre a matéria – que não se limitava, como era o caso da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, a simples
abstenções – vinha-se repetindo em todos os debates da Assembléia
Geral e da Comissão dos Direitos Humanos, aumentando o número de
países que votavam contra as resoluções respectivas. As divergências
sobre o assunto pareciam, pois, inconciliáveis. E, no entanto, a
conciliação ocorreu.
Segundo se
comentava nos corredores do Austria Centre, o consenso
somente foi possível em função de uma barganha: os opositores
desse direito, todos desenvolvidos, aceitariam reconhecê-lo, se
uma outra proposta, inteiramente distinta, concernente à criação
do cargo de Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos
Humanos (a ser examinada adiante), obtivesse aprovação dos países
em desenvolvimento, alguns dos quais eram categoricamente contrários.
É difícil saber ao certo se tal barganha aconteceu. Se esse foi
realmente o caso, terão ganho os dois lados. A redação complexa
dada ao assunto acomoda as preocupações mais graves do
liberalismo ocidental e os anseios do Terceiro Mundo. Diz o artigo
10 da Declaração de Viena:
"10. A
Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reafirma o direito
ao desenvolvimento, conforme estabelecido na Declaração
sobre o Direito ao Desenvolvimento, como um direito universal
e inalienável e parte integrante dos direitos humanos
fundamentais.
Como afirma a
Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, a pessoa
humana é o sujeito central do desenvolvimento.
Embora o
desenvolvimento facilite a realização de todos os direitos
humanos, a falta de desenvolvimento não poderá ser invocada
como justificativa para se limitarem direitos humanos
internacionalmente reconhecidos.
Os Estados
devem cooperar uns com os outros para garantir e eliminar obstáculos
ao desenvolvimento. A comunidade internacional deve promover
uma cooperação internacional eficaz visando à realização
do direito ao desenvolvimento e à eliminação de obstáculos
ao desenvolvimento.
O progresso
duradouro necessário à realização do direito ao
desenvolvimento exige políticas eficazes de desenvolvimento
em nível nacional, bem como relações econômicas eqüitativas
e um ambiente econômico favorável em nível
internacional."
Verifica-se, pois,
que a Declaração de 1986 é reiterada, mas "os povos"
são omitidos como sujeito central do desenvolvimento. A
titularidade desse "direito universal e inalienável"
fica com "a pessoa humana", conforme o entendimento clássico
de que os direitos humanos são direitos do indivíduo. A deturpação
da indivisibilidade dos direitos fundamentais por regimes
ditatoriais, propiciada pelo artigo 13 da Proclamação de Teerã,
é prevenida pela rejeição à falta de desenvolvimento como
excusa à limitação dos direitos civis e políticos. Todos os
Estados concordam, por outro lado, que, ademais de políticas
internas adequadas, a cooperação e condições econômicas
internacionais favoráveis são necessárias à realização desse
direito importante para a satisfação dos demais.
Como observa
Gilberto Sabóia, o consenso obtido para o direito ao
desenvolvimento, a exemplo do artigo 5º sobre o respeito às
particularidades no contexto maior da universalidade dos direitos
humanos, ofereceu grande impulso ao andamento das negociações,
arrefecendo a sensação de uma confrontação Norte-Sul em matéria
de direitos fundamentais. Conceitos e recomendações de relevância
particular para os países em desenvolvimento foram consagrados em
seguida, sem maiores dificuldades, como aqueles concernentes ao alívio
da dívida externa (art. 12), a medidas destinadas a eliminar a
pobreza extrema (art. 14) e ao apoio aos países menos
desenvolvidos, em particular na África, em sua transição para a
democracia (art. 9º).41
O artigo 11, que se
segue imediatamente às disposições sobre o direito ao
desenvolvimento, enquadra-o no contexto das preocupações da
Rio-92, afirmando que esse direito "deve ser realizado de
modo a satisfazer eqüitativamente as necessidades ambientais e de
desenvolvimento das gerações presentes e futuras". Ao fazê-lo,
exige também observância das convenções existentes sobre o
descarregamento de dejetos tóxicos, matéria de preocupação
especial entre os países do Sul, e alerta para os riscos que os
avanços científicos e tecnológicos podem representar para os
direitos humanos.
Graças ao consenso
alcançado em Viena sobre o direito ao desenvolvimento, as
deliberações subseqüentes das Nações Unidas sobre o assunto
lograram manter-se consensuais por algum tempo. Aos poucos, porém,
as divergências retornaram. Menos, talvez, pela vontade
deliberada de alguns governos do que pelas características do
processo de globalização em curso. Diante das tendências
atuais, quem parece usufruir do direito ao desenvolvimento não são
as pessoas, nem os povos, nem sequer os Estados afluentes, estes
também enfraquecidos como instância garantidora da segurança e
do bem-estar das respectivas sociedades. Detêm-no apenas as
empresas suficientemente fortes para fazer uso da mão-de-obra
mundializada no "mercado global", juntamente com o
capital especulativo em busca de rendimentos exponenciais, sem
compromisso com a realidade social.
d) O direito à
autodeterminação
Afirmação
valorativa do discurso anticolonialista e inspiração teórica
das lutas emancipatórias de populações sob dominação
estrangeira, o direito dos povos à autodeterminação se
estabelecera antes que o direito ao desenvolvimento como um
direito fundamental "de terceira geração". Seu
reconhecimento no direito internacional positivo advém dos dois
instrumentos jurídicos mais importantes sobre direitos humanos: o
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto
Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Elaborados e adotados pela ONU no apogeu do processo de
descolonização (anos 50 e 60), ambos os Pactos se abrem com a
igual asserção, no artigo 1º, de que:
"Todos os
povos têm direito à autodeterminação. Em virtude desse
direito, determinam livremente seu estatuto político e
asseguram livremente seu desenvolvimento econômico, social e
cultural."
Encarado como um
direito humano coletivo ou como um dos princípios basilares do
sistema internacional após a Segunda Guerra Mundial, a Conferência
de Viena não poderia deixar de abordá-lo. Até porque, fosse
pelos casos remanescentes de ocupação estrangeira, colonial ou não,
fosse pelo renascimento de micronacionalismos belicosos, fosse
ainda porque muitas são as situações de autoritarismo em que os
povos não "determinam livremente seu estatuto político",
o tema da autodeterminação permanecia – e permanece – atualíssimo,
nos Bálcãs e no resto do mundo. Visto pela ótica das populações
oprimidas, o direito à autodeterminação justificaria rebeliões
e secessões infinitas. Vista pela ótica dos Estados e governos
dominantes, legítimos ou ilegítimos, as lutas pela autodeterminação
sempre foram encaradas como movimentos terroristas.
As dificuldades
para se tratar da questão eram graves e se refletiam em diversos
textos alternativos, todos entre colchetes, objeto de divergências,
no anteprojeto submetido pelo Comitê Preparatório à Conferência.
Essa foi, inclusive, a última matéria sobre a qual o Comitê de
Redação conseguiu chegar ao consenso. E este envolvia a
necessidade de se buscar resolver simultaneamente tanto a passagem
sobre a autodeterminação como a condenação do terrorismo.42
Subdividido em três
parágrafos, o artigo 2º da Declaração de Viena reafirma o
direito à autodeterminação com a mesma linguagem dos Pactos,
explicitando, em seguida, situações específicas em que ele
precisa ser qualificado. A primeira explicitação diz respeito à
"situação particular dos povos submetidos à dominação
colonial ou outras formas de dominação estrangeira", que têm
o "direito de tomar medidas legítimas, em conformidade com a
Carta das Nações Unidas, para garantir seu direito inalienável
à autodeterminação", acrescentando-se que a denegação do
direito à autodeterminação "constitui uma violação dos
direitos humanos". A segunda, motivada por causas diversas,
mas que se ajusta às preocupações da época com a fragmentação
exagerada de Estados plurinacionais, recorre à Declaração sobre
os Princípios do Direito Internacional concernentes às Relações
Amigáveis e à Cooperação entre Estados, adotada por consenso
pela Assembléia Geral da ONU em 1970, para ressalvar que nem o
direito à autodeterminação, nem sua primeira explicitação
pode ser entendido como "autorização ou encorajamento a
qualquer ação destinada a desmembrar ou prejudicar, total ou
parcialmente, a integridade territorial ou a unidade política de
Estados soberanos e independentes" que se comportem
corretamente.43
Feita a explicitação
que legitimava as medidas tomadas em conformidade com a Carta
das Nações Unidas para que os povos possam alcançar seu
direito à autodeterminação, resolvia-se, em princípio, a questão
do rótulo de terrorismo prodigalizado aos movimentos de libertação
nacional ou grupos "subversivos" em luta contra regimes
não-democráticos. Isto porque tal conformidade legal obviamente
exclui a violência difusa, que vitima civis inocentes
simplesmente espalhando o terror, e a ela não pode recorrer, de
acordo com a Declaração de Viena, nenhum grupo armado ou
movimento emancipatório, qualquer que seja seu objetivo.
Tornou-se, assim, factível sem maiores controvérsias, a condenação
ao terrorismo, no artigo 17, feita de forma ampla e quase
surpreendentemente clara, com referência adicional aos vínculos
que ela possa manter com o narcotráfico em situações específicas:44
"17. Os
atos, métodos e práticas terroristas em todas as suas formas e
manifestações, bem como os vínculos existentes em alguns países
entre eles e o tráfico de drogas são atividades que visam à
destruição dos direitos humanos, das liberdades fundamentais e
da democracia e que ameaçam a integridade territorial e a
segurança dos países, desestabilizando Governos legitimamente
constituídos. A comunidade internacional deve tomar as medidas
necessárias para fortalecer a cooperação na prevenção e
combate ao terrorismo."
Não-explicada
nesse artigo, a definição do que seriam os "Governos
legitimamente constituídos" é feita alhures, de maneira
indireta, no nexo estabelecido pela Conferência de Viena entre a
democracia, o desenvolvimento e os direitos humanos.
e) A tríade
democracia, desenvolvimento e direitos humanos
Embora os países
do extinto bloco socialista se autodeclarassem – em alguns casos
se autodenominassem – "democracias populares", a
vinculação direta entre a democracia e os direitos humanos nunca
fora explicitada em documentos internacionais durante a Guerra
Fria. A idéia ganhou força sobretudo no final dos anos 80 e início
dos 90, quando se disseminava em várias partes, com ênfase
particular no Ocidente em sentido lato (que envolve
necessariamente a América Latina), a impressão de que o mundo
todo estava vivendo uma "revolução democrática", na
tradição liberal. Foi em grande parte graças a essa visão
prevalecente que as Nações Unidas convocaram, em 1990, a Conferência
Mundial sobre Direitos Humanos para o ano de 1993.
A vinculação
entre o sistema democrático e os direitos humanos nunca chegou a
ser contestada no processo preparatório da Conferência de Viena.
Os países em desenvolvimento insistiram, porém, desde o começo,
na justa interpretação de que o tema não se reduzia a esses
dois elementos, reivindicando a eles acrescentar-se o
desenvolvimento. A tríade democracia-desenvolvimento-direitos
humanos passou a constituir, assim, desde as primeiras sessões do
Comitê Preparatório, uma espécie de atualização do lema Liberté,
Égalité, Fraternité da Revolução Francesa, postulada por
todas as regiões, independentemente das prioridades diferentes
atribuídas por cada delegação a cada termo.
Sem chegar a
contestar a enunciação desse nexo, alguns países em
desenvolvimento, em particular aqueles de regime não-liberal, não
deixavam de temer, por outro lado, que a insistência na idéia
pudesse levar ao estabelecimento de novas condicionalidades à
assistência e à cooperação econômica dos países
desenvolvidos – temor que, como já visto, subjaz também freqüentemente
às discussões internacionais relativas ao meio ambiente e outros
temas globais. A necessidade de diluir esse temor provocou algumas
dificuldades no Comitê de Redação. Conforme esclarece Gilberto
Sabóia, o problema foi resolvido com a inclusão, no artigo que
consubstancia a inter-relação dos três elementos, da afirmação
de que a promoção e a proteção dos direitos humanos devem ser
"universais e conduzidas sem condições".45 E a
Declaração de Viena passou a ser o primeiro documento
internacional a consagrar o nexo indissolúvel entre a democracia,
o desenvolvimento e os direitos humanos, afirmando no
artigo 8º:
"8. A
democracia, o desenvolvimento e o respeito pelos direitos
humanos e liberdades fundamentais são conceitos
interdependentes, que se reforçam mutuamente. A democracia se
baseia na vontade livremente expressa pelo povo de determinar
seus próprios sistemas políticos, econômicos, sociais e
culturais e em sua participação em todos os aspectos de sua
vida. Nesse contexto, a promoção e proteção dos direitos
humanos e liberdades fundamentais, em níveis nacional e
internacional, devem ser universais e conduzidas sem condições.
A comunidade internacional deve apoiar o fortalecimento e a
promoção da democracia, do desenvolvimento e do respeito aos
direitos humanos no mundo inteiro."
Observe-se que, além
de consagrar a tríade, o texto apóia também expressamente a
participação da comunidade internacional na promoção e no
fortalecimento da democracia. Isso era o que a ONU vinha
procurando fazer empiricamente em Estados que se redemocratizavam
do Terceiro e do ex-Segundo Mundos (como a Guatemala, o Haiti e o
Cambodja), por meio do envio de observadores eleitorais e, em
certos casos, até pelo fornecimento de material como cédulas e
urnas – mas não pela força. Por outro lado, o texto definiu a
democracia em termos que a rigor não poderiam abarcar as chamadas
"democracias populares", com candidatos aos órgãos de
representação popular estabelecidos em listas de partidos únicos,
sem alternativas.
Os termos
utilizados são bastante próximos daqueles que definem o direito
à autodeterminação, conferindo a este direito essencialmente
coletivo, na interação natural dos parágrafos de um documento
uno, feições também individualistas, na medida em que o exercício
dos direitos políticos, normalmente manifestado pelo voto, é o
meio mais costumeiro – senão o único existente – de se
assegurar a livre escolha, pelos povos e pelos cidadãos, do
"estatuto político" de sua preferência.
Enquanto apenas o
artigo 8º consagra o nexo entre os três elementos da tríade, a
interação entre democracia, desenvolvimento e direitos humanos,
assim como a idéia da participação do povo em todos os aspectos
de sua vida, vão influir em muitos outros conceitos e recomendações
da Conferência de Viena, alguns dos quais serão referidos a
seguir.
7. Outros avanços
de Viena
Além das cinco áreas
acima examinadas, várias outras disposições da Declaração e
Programa de Ação representam avanços orientadores das normas
existentes, seja para sua aplicação em benefício dos titulares,
seja para se promover maior efetividade no sistema internacional
de proteção aos direitos humanos. Esses avanços se localizam
tanto na Parte I como na Parte II, encontrando-se com freqüência
na vinculação entre os conceitos de uma e as recomendações de
outra.46 A série de itens examinada a seguir não se propõe
exaustiva, mas aborda áreas relevantes.
a) A
indivisibilidade dos direitos
Já amplamente
reafirmada, desde o Preâmbulo, na referência constante a todos
os direitos humanos, a Declaração de Viena deu à noção da
indivisibilidade dos direitos e liberdades fundamentais outros
reforços inéditos. Um deles, bastante evidente, encontra-se no
artigo 32, que também se reporta ao universalismo e à
legitimidade das preocupações internacionais, ao ressaltar
"a importância de se garantir universalidade, objetividade e
não-seletividade na consideração de questões relativas a
direitos humanos". Outro, menos ostensivo, mas quiçá mais
veemente, localiza-se na relação das violações e obstáculos
aos direitos humanos disseminados no mundo atual, que inclui, no
artigo 30, ao lado da tortura, das execuções sumárias, dos
desaparecimentos e detenções arbitrárias, do racismo, da dominação
estrangeira e da xenofobia, "pobreza, fome e outras formas de
negação dos direitos econômicos, sociais e culturais
(...)". Resultado de negociações difíceis, dada a insistência
ocidental em relacionar tão-somente atentados maciços e notórios
aos direitos "de primeira geração", enquanto os países
do Sul insistiam nos problemas decorrentes dos desequilíbrios
internacionais, o artigo 30 não deixa de qualificar a denegação
dos direitos socio-econômicos como uma violação "flagrante
e sistemática" de direitos humanos, equiparada às outras
brutalidades geralmente mais reconhecidas. Critica, assim, como
era intenção dos países em desenvolvimento, tanto os obstáculos
estruturais planetários ao pleno exercício de todos os
direitos, como os ajustes impostos pelas instituições
financeiras da própria "família" da ONU. Condena, também,
indiretamente, o ideário neoliberal voltado exclusivamente para a
liberdade de mercado, que se vinha afirmando em todo o mundo como
um processo necessário e inelutável do período pós-Guerra
Fria.
Em seguimento mais
ou menos natural a essa importante assertiva, e utilizan-do-a no
contexto da defesa do direito de toda pessoa a um padrão de vida
apropriado ao sustento e ao bem-estar próprio e de sua família,
estabelecido no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, a Declaração de Viena, no artigo 31, apela aos Estados
para que não adotem medidas unilaterais que criem obstáculos às
relações comerciais e impeçam, assim, a plena realização dos
direitos humanos econômicos e sociais. De inspiração cubana,
contra o embargo norte-americano, o artigo 31 foi aprovado
consensualmente porque as medidas unilaterais condenadas são
aquelas "contrárias ao direito internacional e à Carta das
Nações Unidas". Como, no entender dos Estados Unidos, o
boicote por eles adotado contra Cuba não contraria o direito nem
a Carta da ONU, o apelo não lhes diria respeito.
De valor mais genérico
e, em princípio, contrário a muitas das sanções praticadas
coletivamente por determinação do próprio Conselho de Segurança
na década de 90 contra o Iraque, a Líbia, a Iugoslávia atual (Sérvia
e Montenegro) é a oração final do mesmo artigo 31, segundo a
qual:
"A Conferência
Mundial sobre Direitos Humanos afirma que a alimentação não
deve ser usada como instrumento de pressão política."
b) Os direitos
humanos em situações de conflito armado
A aproximação
intrínseca entre o Direito Internacional Humanitário – das
Convenções de Genebra de 1949 e 1951, com os respectivos
Protocolos, sobre o tratamento de civis em tempos de guerra e
sobre os refugiados – e o Direito Internacional dos Direitos
Humanos, sempre reconhecida pela doutrina jurídica, aprofundou-se
em Viena. Ela não poderia, em qualquer circunstância, ser
ignorada por uma conferência destinada a incrementar a proteção
aos direitos fundamentais de todos os seres humanos. Menos ainda o
poderia após a referência do Preâmbulo da Declaração ao
"espírito de nossa era" e à "realidade de nossos
tempos". Essa realidade já se caracterizava, em 1993, pela
proliferação aparentemente infinita de conflitos bélicos de
natureza não-internacional, alguns dos quais objeto de intervenção
autorizada pelo Conselho de Segurança.
A noção de
"diplomacia preventiva" exposta pelo Secretário Geral,
em 1992, em sua Agenda para a Paz,47 ou idéias que
pudessem representar transferência para o Conselho de Segurança
da competência genérica sobre o tema dos direitos e liberdades
fundamentais não chegaram a ser acolhidas de maneira explícita
na Declaração de Viena.48 Em seu lugar, o parágrafo 8º
da Parte II "considera positiva" a realização de sessões
de emergência da Comissão dos Direitos Humanos – subordinada
ao ECOSOC e, por intermédio dele, à Assembléia Geral – para
tratar de crises "humanitárias" como a da Bósnia, em
que a guerra civil se desenrola em contexto de agressões e
perseguições a populações desarmadas.49 De maneira
sutil, porém, o mesmo parágrafo endossa indiretamente a
diplomacia preventiva e tudo o mais que já vinha sendo feito
nessa área, na medida em que "solicita aos órgãos
pertinentes do sistema das Nações Unidas que examinem outros
meios de responder a violações flagrantes de direitos
humanos" – inclusive, supõe-se, a intervenção armada. O
parágrafo 97, por sua vez, reconhece "o importante papel
desempenhado por elementos de direitos humanos em arranjos específicos"
das operações de paz, recomendando ao Secretário Geral que, na
organização dessas operações, e sempre de conformidade com a
Carta das Nações Unidas, "leve em consideração os relatórios,
a experiência e as capacidades do Centro para os Direitos Humanos
e dos mecanismos de direitos humanos".
A expressão
"direito de ingerência", demasiado forte, não foi
contemplada pela Conferência de Viena. Mas o artigo 29 da Declaração
expressa "profunda preocupação com as violações de
direitos humanos registradas em todas as partes do mundo em
desrespeito às normas previstas nos instrumentos internacionais
de direitos humanos e no direito humanitário internacional e com
a falta de recursos jurídicos suficientes e eficazes para as vítimas".
A isso se segue apelo "aos Estados e a todas as partes de
conflitos armados" para a observância do direito humanitário
"estabelecido nas Convenções de Genebra de 1949 e previsto
em outras normas e princípios do direito internacional, bem como
dos padrões mínimos de direitos humanos estabelecidos em convenções
internacionais". A referência mais próxima àquilo que
Bernard Kouchner identifica como primeira consagração da ingerência
humanitária em resolução da Assembléia Geral – o direito de
acesso externo às vítimas, a que se refere a Resolução n.
45/131 de 198850 – encontra-se no último parágrafo do
mesmo artigo 29, que reza:
"A Conferência
Mundial sobre Direitos Humanos reafirma o direito das vítimas
à assistência oferecida por organizações humanitárias,
como prevêem as Convenções de Genebra de 1949 e outros
instrumentos pertinentes do direito humanitário internacional
e apela para que o acesso a essa assistência seja seguro e
oportuno."
A ingerência
humanitária não é, portanto, reconhecida pela Conferência de
Viena como um direito de países individualizados ou grupos de países
que se arroguem papel de polícia supranacional. Em seu lugar,
reafirma-se o direito das vítimas a receber assistência, mais
acorde com a lógica dos direitos humanos. Dentro dessa mesma
linha, o último parágrafo do artigo 23, concernente aos
refugiados, salienta
"a importância
e necessidade da assistência humanitária às vítimas de todos
os desastres, sejam eles naturais ou produzidos pelo homem".
O endosso indireto à ingerência humanitária como recurso da
ONU, quando autorizada pelo Conselho de Segurança, é dado, porém,
de maneira pouco explícita, nos demais dispositivos acima
mencionados.
Em vista das proporções
avassaladoras que a questão dos refugiados já assumia em 1993, o
artigo 23 é dos mais longos da Declaração. Ele sublinha a
importância da Convenção de 1951 sobre a Condição dos
Refugiados, seu Protocolo de 1967 (que elimina a concessão desse
estatuto apenas às pessoas originárias do Leste europeu) e dos
instrumentos regionais que regulam a matéria. Expressa, com justiça,
reconhecimento aos Estados "que continuam a aceitar e acolher
grandes números de refugiados em seus territórios", muitos
dos quais africanos e pobres, com dificuldades acrescidas pela
afluxo de populações vizinhas deslocadas por conflitos, assim
como ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
(ACNUR), muito provavelmente a agência da ONU cujo trabalho mais
aumentou desde o fim da Guerra Fria, e ao Organismo de Obras Públicas
e Socorro das Nações Unidas para Refugiados Palestinos no
Oriente Próximo. Em seu terceiro parágrafo, o artigo 23 menciona
a "complexidade da crise mundial dos refugiados", o
"espírito de solidariedade internacional" e "a
necessidade de compartilhar responsabilidades", para
recomendar que a comunidade internacional adote planejamento
abrangente, coordene atividades e promova maior cooperação
"com países e organizações pertinentes nessa área".
Tal planejamento deveria envolver "estratégias que abordem
as causas e efeitos dos movimentos de refugiados e outras pessoas
deslocadas", preparação adequada e "mecanismos de
resposta para emergências". A solução duradoura prioritária
para cada caso, conforme propugnado pelo ACNUR, deve ser a
repatriação voluntária, em condições de segurança e
dignidade.
Dentro do mesmo vínculo
entre os direitos humanos e o direito humanitário, o artigo 3º
da Declaração trata dos direitos humanos das pessoas em territórios
sob ocupação estrangeira, afirmando ser necessário
oferecer-lhes proteção jurídica especial, "de acordo com
as normas de direitos humanos e com o direito internacional,
particularmente a Convenção de Genebra sobre a Proteção de
Civis em Tempos de Guerra, de 14 de agosto de 1949, e outras
normas aplicáveis do direito humanitário". A aplicação da
Convenção de Genebra de 1949 é postulação tradicionalmente
apresentada com relação a regiões de estatuto político
contestado, como no caso dos territórios palestinos controlados
por Israel.
Antes de relacionar
no artigo 30, acima comentado, as violações flagrantes e maciças
de direitos humanos persistentes no mundo, o artigo 28 da Declaração
expressa consternação perante outros tipos de violações
contemporâneas atinentes a situações de conflito, citando o
genocídio, a "limpeza étnica" e o estupro sistemático
de mulheres em casos bélicos. Com exceção do genocídio, objeto
de convenção internacional desde 1948, os dois outros fenômenos,
por mais cruéis e antigos que tenham sempre sido na história da
humanidade, são de emergência recente nas preocupações
internacionais com os direitos humanos. A questão dos estupros
sistemáticos como crime de guerra, ainda que não tipificado como
tal em convenções vigentes, é assunto retomado adiante na parte
programática da Declaração de Viena, assim como o é a da
"limpeza étnica", que pela primeira vez figurou em
documento desse tipo. Registrada entre aspas para que a Conferência
não conferisse legitimidade à semântica dessa expressão
traduzida do servo-croata, a prática da "limpeza étnica",
mais do que um fenômeno balcânico, transformou-se, ao longo da década,
numa espécie de epítome de nossos tempos fundamentalistas. E o
estupro coletivo de mulheres, em que pese a crueldade do crime,
tipificado apenas individualmente na legislações nacionais, mantém-se
como tática constante na estratégia bélica maior da
"purificação" colimada.
c) Os direitos
humanos da mulher
Mais do que
qualquer outro documento congênere, a Declaração de Viena,
tanto na parte declaratória, como nas recomendações programáticas,
deu atenção à situação de categorias específicas de pessoas
cujos direitos têm sido tradicionalmente menos protegidos nas
legislações e mais violados nas práticas nacionais. Suas inovações
mais conseqüentes dizem respeito à mulher. Elas procuram
corrigir distorções observadas não apenas nos sistemas
nacionais, mas também no sistema internacional de proteção aos
direitos humanos, chegando a modificar a própria definição dos
direitos fundamentais tal como doutrinariamente estabelecida desde
o Século XVIII.
Abrigando posições
longamente propugnadas pelo movimento de mulheres, o artigo 18 da
Declaração fornece, na Parte I, a base conceitual sobre a qual
serão feitas as recomendações pertinentes. Ele se inicia com a
afirmação, aparentemente tautológica mas comprovadamente necessária,
de que:
"Os
direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis
e constituem parte integrante e indivisível dos direitos
humanos universais."
O reconhecido
descaso do "Século das Luzes" com os direitos da
mulher, historicamente prolongado até a época atual, já havia
levado, antes mesmo da asserção internacional do movimento
feminista na segunda metade do Século XX, à correção da
denominação dos direitos fundamentais, substituindo-se a expressão
"direitos do Homem" por "direitos humanos".
Ainda que idealmente concebidos como direitos de todos os indivíduos,
sendo "o Homem", no caso, sinônimo da espécie, a prática
e, até recentemente, a maioria das legislações não os
estendiam à mulher, fosse pela denegação ostensiva dos direitos
políticos, fosse pela desconsideração da situação de
inferioridade civil ou empírica em que se encontrava, e sob
muitos aspectos ainda se encontra, em todas as sociedades, a
metade feminina das respectivas populações.51
Viena foi mais além.
Com a afirmação inicial do artigo 18, que pode soar expletiva
para os desavisados, a Declaração torna claro que, tendo as
mulheres necessidades específicas, inerentes ao sexo e à situação
socio-econômica a que têm sido relegadas, o atendimento dessas
necessidades integra o rol dos direitos humanos inalienáveis,
cuja universalidade não pode ser questionada. O restante do parágrafo
se complementa com a elevação da participação igualitária e
plena das mulheres "na vida política, civil, econômica,
social e cultural" e da erradicação das discriminações de
gênero ao nível de "objetivos prioritários da comunidade
internacional".
Igualmente inovador
e com repercussões doutrinárias, o segundo parágrafo do artigo
18 dirige-se à violência contra a mulher em seus diversos graus
e manifestações, "inclusive as resultantes de preconceito
cultural e tráfico de pessoas". Sua eliminação pode ser
alcançada "por meio de medidas legislativas, ações
nacionais e cooperação internacional nas áreas do
desenvolvimento econômico e social, da educação, da maternidade
segura e assistência de saúde e apoio social".
Superficialmente corriqueiro, esse parágrafo traz embutido
profunda transformação na concepção tradicional dos direitos
humanos como direitos exclusivamente violados no espaço público,
pelo Estado e seus agentes, por ação ou omissão conivente,
enquanto a violência privada era questão de criminalidade comum.
Na medida em que a violência contra a mulher infringe os direitos
humanos de metade da humanidade e se realiza geralmente na esfera
privada, muitas vezes doméstica, não sendo obra do Estado, os
direitos humanos se tornam violáveis também por indivíduos e
pela sociedade. Cabe, portanto, ao Estado e às sociedades em
geral, lutar por sua eliminação, no espaço público, no local
de trabalho, nas práticas tradicionais e no âmbito da família.52
Complementado pelo
parágrafo 38 do Programa de Ação, essa visão abrangente fica
ainda mais clara. Envolvendo, ademais dos direitos humanos stricto
sensu, o direito humanitário das situações de conflito, com
referência explícita aos estupros sistemáticos como instrumento
de "limpeza étnica" (de que é uma modalidade a prática
da gravidez forçada, utilizada na guerra da Bósnia53) e a
escravidão sexual (empregada pelas forças de ocupação
japonesas em territórios asiáticos durante a Segunda Guerra
Mundial, na forma das comfort women), o parágrafo 38 da
Parte II declara e recomenda:
"38. A
Conferência Mundial sobre Direitos Humanos salienta
particularmente a importância de se trabalhar no sentido da
eliminação de todas as formas de violência contra as
mulheres na vida pública e privada, da eliminação de
todas as formas de assédio sexual, exploração e tráfico de
mulheres, da eliminação de preconceitos sexuais na
administração de justiça e da erradicação de quaisquer conflitos
que possam surgir entre os direitos da mulher e as conseqüências
nocivas de determinadas práticas tradicionais ou costumeiras,
do preconceito cultural e do extremismo religioso. A
Conferência Mundial sobre Direitos Humanos apela à Assembléia
Geral para que adote o projeto de declaração sobre a violência
contra a mulher e insta os Estados a combaterem a violência
contra a mulher em conformidade com as disposições da
declaração.54 As violações dos direitos humanos da
mulher em situação de conflito armado são violações dos
princípios fundamentais dos intrumentos internacionais de
direitos humanos e do direito humanitário. Todas as violações
desse tipo, incluindo particularmente assassinatos, estupros
sistemáticos, escravidão sexual e gravidez forçada,
exigem uma resposta particularmente eficaz" (grifos do
autor).
O terceiro parágrafo
do artigo 18 da Declaração estabelece que os direitos humanos da
mulher "devem ser parte integrante das atividades das Nações
Unidas na área dos direitos humanos, que devem incluir a promoção
de todos os instrumentos de direitos humanos relacionados à
mulher". Repetitiva na forma e também aparentemente tautológica,
essa orientação da Conferência de Viena modificou o tratamento
dos direitos da mulher no âmbito da ONU, antes abordados apenas
em item separado da agenda da III Comissão. Conforme essa
determinação, desenvolvida na recomendação do parágrafo 37 da
Parte II, os direitos humanos da mulher passaram a integrar o
"fulcro das atividades de todo o sistema das Nações
Unidas", firman-
do-se, desde então,
a coordenação entre, de um lado, os órgãos e agências do
sistema voltados especificamente para esse tema, como a Comissão
sobre a Situação da Mulher e o UNIFEM (Fundo das Nações Unidas
para a Mulher), e, de outro, os órgãos e agências não-específicas,
como a Comissão dos Direitos Humanos, o PNUD (Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento), do sistema e do Secretariado da
ONU. Os relatores especiais da Comissão dos Direitos Humanos, por
sua vez, passaram a ter a obrigação de atentar particularmente
para as violações de direitos humanos da mulher, o mesmo
ocorrendo, de acordo com o parágrafo 42 do Programa de Ação,
com os órgãos de monitoramento de todos os tratados de direitos
humanos, cabendo aos Estados-partes de cada instrumento
"fornecer informações sobre a situação de jure e de
facto das mulheres em seus relatórios".
Várias outras
recomendações são feitas nos parágrafos 36 a 44 com vistas ao
fortalecimento da proteção aos direitos da mulher. De especial
relevância para as conferências sociais que se seguiriam à
Conferência de Viena na década de 90 foi o parágrafo 41,
concernente à saúde da mulher. Nele ocorre a única menção à
Proclamação de Teerã, tanto em função do artigo 15 daquele
documento de 1968, que condenava o status inferior das
mulheres em várias partes do mundo como contrário à Carta das
Nações Unidas e à Declaração Universal dos Direitos Humanos,
como em virtude de seu artigo 16, que estabelecia o direito dos
pais de determinarem livre e responsavelmente o número e o espaçamento
dos filhos. Diz o parágrafo 41 do Programa de Ação de Viena:
"41. A
Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reconhece a importância
do usufruto de elevados padrões de saúde física e mental
por parte da mulher durante todo seu ciclo de vida. No
contexto da Conferência Mundial sobre a Mulher e da Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher, bem como da proclamação de Teerã de 1968,
a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reafirma, com
base no princípio da igualdade entre mulheres e homens, o
direito da mulher a uma assistência de saúde acessível e
adequada e ao leque mais amplo possível de serviços de
planejamento familiar, bem como ao acesso igual à educação
em todos os níveis."
Após a explicitação
dos direitos da mulher como direitos humanos e com o respaldo da
nova interpretação desses direitos, para cuja observância não
apenas os Estados, mas a totalidade de agentes societários tem um
papel a desempenhar, a última parte do artigo 18 da Declaração
de Viena contém apelo a "todos os Governos, instituições e
organizações governamentais e não-governamentais" para a
intensificação de esforços "em prol da proteção e promoção
dos direitos humanos da mulher e da menina".
d) Grupos e
categorias vulneráveis, racismo e xenofobia
Ademais dos
direitos da mulher, os direitos de grupos minoritários e
categorias vulneráveis, em particular os indígenas, os
trabalhadores migrantes e as crianças, são objeto de longas
passagens no documento final da Conferência Mundial sobre
Direitos Humanos. Sobre os indígenas e as minorias étnicas, os
dispositivos de Viena visam a assegurar-lhes o direito à própria
cultura e aos meios para exercê-la, sem incentivar secessões a
que o apego exagerado à idéia de autodeterminação poderia
levar. A propósito das crianças, Viena apóia os conceitos,
plano e metas da Cúpula Mundial de 1990, instando todos os países
à ratificação e à aplicação da Convenção sobre os Direitos
da Criança, recomendando que até 1995 esse instrumento
internacional de direitos humanos conseguisse adesão universal.55
A única categoria de indivíduos vulneráveis que não chegou a
ser tratada na Conferência de 1993 foi a dos idosos, por absoluta
falta de tempo. A omissão é particularmente sensível à luz das
atenções que os idosos vêm recebendo ultimamente, e com justiça,
em muitos países. Até porque as tendências demográficas ora
predominantes em quase todos os continentes indicam um incremento
populacional sensível de cidadãos idosos.
Para a defesa
desses grupos e categorias de pessoas, assim como para combater os
fenômenos do racismo e da xenofobia, as disposições de Viena
procuram essencialmente incentivar a ratificação e implementação
das convenções existentes, assim como a observância das declarações
internacionais respectivas. Elas impõem aos Estados a adoção de
medidas legislativas e administrativas pertinentes e a aplicação
de punições legais aos infratores. Essas obrigações normativas
são reiteradas no Programa de Ação, juntamente com a recomendação
de que sejam estabelecidas instituições nacionais voltadas para
esse fim.
O parágrafo 22, na
subseção sobre o racismo, xenofobia e outras formas de intolerância,
reflete a preocupação da Conferência com agressões recentes e
crescentemente disseminadas, instando os governos a enfrentarem
"a intolerância e formas análogas de violência baseadas em
posturas religiosas ou crenças, incluindo práticas de discriminação
contra as mulheres e a profanação de locais religiosos
(...)". Mais inovador (e com efeito referencial importante
para o Tribunal Penal Internacional que iria ser estabelecido em
1998 pela Conferência de Roma), o parágrafo 23, nessa mesma
subseção, estabelece a responsabilidade individual das pessoas
que cometem ou autorizam atos de limpeza étnica, determinando que
"a comunidade internacional deve empreender todos os esforços
necessários para entregar à justiça as pessoas legalmente
responsáveis por essas violações". Na sua seqüência, o
parágrafo 24 apela a todos os Estados para a adoção de
"medidas imediatas, individual ou coletivamente, para
combater a prática da limpeza étnica" (o que poderia ser
interpretado como endosso antecipado ao tipo de ingerência
humanitária que iria ocorrer, com enorme atraso, mas com aval da
ONU, em Ruanda, em 1994, e, de maneira muito questionada, pela
OTAN, sem aval da ONU, no Kossovo, em 1999), dispondo
simultaneamente que as vítimas da limpeza étnica têm direito a
reparações "adequadas e efetivas".
O progresso
verificado no desmantelamento do regime do apartheid
sul-africano é registrado no artigo 16 da Declaração. No
Programa de Ação, o assunto é retomado pelo parágrafo 19, que
reitera prioridade para a eliminação da discriminação racial,
"particularmente em suas formas institucionalizadas", a
que se agregam "as formas e manifestações contemporâneas
de racismo".
e) O reconhecimento
das ONGs
Com diversas referências
no texto às organizações não-governamentais de auxílio
humanitário e de direitos humanos em geral, inclusive na forma de
apelos para que elas atentem para problemas específicos como os
da mulher e os da criança (parágrafo 52 do Programa de Ação),
a Conferência de Viena reconhece indiretamente, em diversas
passagens, a validade da atuação dessas organizações. Mais
direta e pormenorizadamente, o artigo 38 da Declaração afirma:
"38. A
Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reconhece o
importante papel desempenhado por organizações não-governamentais
na promoção dos direitos humanos e em atividades humanitárias
em níveis nacional, regional e internacional. (...)
Reconhecendo que a responsabilidade primordial pela adoção
de normas cabe aos Estados, aprecia também a contribuição
oferecida por organizações não-governamentais nesse
processo. (...) As organizações não-governamentais devem
ter liberdade para desempenhar suas atividades na área dos
direitos humanos sem interferências, em conformidade com a
legislação nacional e em sintonia com a Declaração
Universal dos Direitos Humanos."
Nas partes aqui
omitidas desse longo artigo, o texto louva o papel das ONGs na
conscientização e na educação sobre os direitos humanos;
recomenda o diálogo e a cooperação entre os governos e elas;
declara que as ONGs e seus integrantes devem gozar de proteção
na legislação nacional.
À luz das reservas
de muitos países a essas entidades da sociedade civil, privadas
mas com objetivos públicos, naturalmente principistas e pouco
permeáveis a pressões políticas ou preocupações de outra
ordem, o reconhecimento consensual de Viena, além de inédito,
foi extremamente abrangente. A redação do artigo 38, ademais de
aceitar sua ação de monitoramento, reconhece às ONGs o papel de
inspiradoras da própria normatividade da matéria, procurando
garantir-lhes liberdade e proteção legal para o desempenho de
suas funções. Esse aspecto de sua proteção é reforçado pela
recomendação, no parágrafo 94 do Programa de Ação, de que
seja finalizado com urgência e adotado o "projeto de declaração
sobre o direito e a responsabilidade dos indivíduos, grupos e órgãos
da sociedade de promover e proteger os direitos humanos e
liberdades fundamentais universalmente reconhecidos". Tal
projeto de declaração dos "direitos dos protetores de
direitos" vinha sendo negociado desde 1985 no âmbito de
Grupo de Trabalho da Comissão dos Direitos Humanos, sem
perspectivas de chegar a termo em futuro previsível. A despeito
das dificuldades que ainda perduraram por algum tempo, foi ele
finalmente completado e adotado pela Comissão dos Direitos
Humanos em 1998, transformando-se, pela Resolução n. 53/144 da
Assembléia Geral na mais nova Declaração existente no sistema
das Nações Unidas.56
Com lógica
aparentada à do reconhecimento do papel das ONGs, o artigo 39 da
Declaração, que se segue àquele pertinente à atuação dessas
entidades, aborda "a importância de se dispor de informações
objetivas, responsáveis e imparciais sobre questões humanitárias
e de direitos humanos", incentivando os meios de comunicação
a participarem mais ativamente nesse esforço, devendo para isso
contar também com liberdade e proteção legal.
Enquanto o
reconhecimento formal da importância das ONGs de direitos humanos
no artigo 38 foi uma clara vitória dos países liberais e tem
sido amplamente referido como uma das inegáveis
"conquistas" da Conferência de Viena, outro dispositivo
congênere, igualmente relevante e de interesse para o conjunto da
humanidade tende a passar sintomaticamente despercebido. Trata-se
do parágrafo 73 do Programa de Ação, que se segue à recomendação
sobre o prosseguimento de consultas internacionais sobre os obstáculos
ao direito ao desenvolvimento. Precisamente porque menos
conhecido, sua repetição aqui é oportuna. Diz ele:
"73. A
Conferência Mundial sobre Direitos Humanos recomenda que as
organizações não-governamentais e outras organizações de
base ativas na área do desenvolvimento e/ou dos direitos
humanos sejam habilitadas a desempenhar um papel substancial,
em nível nacional e internacional, no debate e nas atividades
relacionadas ao desenvolvimento e, em regime de cooperação
com os Governos, em todos os aspectos pertinentes da cooperação
para o desenvolvimento."
Se na prática dos
Estados e das instituições financeiras internacionais esse tipo
de participação e diálogo ainda é limitado, pelo menos nas
conferências seguintes da década de 90 ele ocorreu de forma
bastante intensa.
f) O Alto Comissário
para os Direitos Humanos e o
Tribunal Penal
Internacional
Dentro do conjunto
de recomendações agrupadas sob o título "Aumento da
Coordenação do Sistema das Nações Unidas na Área dos Direitos
Humanos" do Programa de Ação, o último e longo subtítulo
não podia ser mais explícito: "Adaptação e fortalecimento
dos mecanismos das Nações Unidas na área dos direitos humanos,
incluindo a questão da criação de um Alto Comissário das Nações
Unidas para os Direitos Humanos". A explicitação, exigida
pelos defensores da idéia dessa criação para que ela não fosse
esquecida ou dada como derrotada, era evidência das divergências
sobre a matéria, a respeito da qual a Conferência de Viena não
pôde adotar posição definitiva.
Sugerida na fase
preparatória pela Anistia Internacional, que parecia ter em mente
o exemplo do Alto Comissário das Nações Unidas para os
Refugiados – ACNUR, a proposta de estabelecimento desse novo
cargo foi, muito provavelmente, a questão mais controvertida e
discutida de todo o encontro de Viena. Assumida e vigorosamente
propugnada pelo Grupo Ocidental, com apoio das ONGs, a proposta
era encarada por determinados países do Sul como uma iniciativa
intrusiva. Aos adversários da idéia, a figura de um Alto Comissário
parecia ser vista como um mecanismo a ser "teleguiado"
pelo Ocidente desenvolvido para o controle exclusivo de direitos
civis e políticos no Terceiro Mundo, ameaçador às soberanias
nacionais, aparentado às sugestões, por eles igualmente
rejeitadas, de diplomacia preventiva.
Radicalmente
objetada por algumas delegações e considerada por outras condição
sine qua non para a aceitação do todo o documento, após
longas deliberações a idéia foi, afinal, transferida à
consideração da Assembléia Geral, conforme sugerido pelos países
latino-americanos e caribenhos na reunião preparatória regional
de São José,57 logrando seus defensores em Viena apenas
atribuir ao assunto caráter de prioridade. Enquanto o parágrafo
17 do Programa de Ação forma um intróito generalista sobre a
necessidade de adaptação dos mecanismos das Nações Unidas
"às necessidades presentes e futuras de promoção e defesa
dos direitos humanos", o parágrafo 18, sobre a criação do
Alto Comissário, diz
"18. A
Conferência Mundial sobre Direitos Humanos recomenda à
Assembléia Geral que, ao examinar o relatório da Conferência
em sua quadragésima oitava sessão, comece, com prioridade, a
consideração da questão do estabelecimento de Alto Comissário
para os Direitos Humanos, para promover e proteger todos os
direitos humanos."
As divergências
ainda se prolongaram na Assembléia Geral, em fins de 1993, menos
sobre a idéia da criação dessa nova autoridade do que para a
definição de suas atribuições. Após nova rodada de negociações
intensas em Nova York, no âmbito da III Comissão, o posto de
Alto Comissário para os Direitos Humanos foi estabelecido pela
Resolução n. 48/141, de 20 de dezembro de 1993. Essa nova
autoridade, designada pelo Secretário Geral para mandato de
quatro anos, renovável apenas uma vez, coordena hoje todas as ações
das Nações Unidas na área dos direitos humanos. Sua semelhança
com o ACNUR fica, todavia, exclusivamente no nome: não dispõe de
orçamento próprio, nem de sede separada ou corpo de funcionários
numeroso e exclusivo.
Com trabalho
comprovadamente construtivo, a figura do Alto Comissário para os
Direitos Humanos deixou rapidamente de ser encarada como um
instrumento distorcido, mecanismo seletivo ou ameaça intrusiva.
Tem sido vista, ao contrário, desde seu estabelecimento,
primeiramente na pessoa do equatoriano Ayala Lasso, em seguida da
irlandesa Mary Robinson, de maneira positiva por praticamente
todos os países, inclusive por aqueles que em Viena mais se
opunham à idéia.
Menos discutida em
Viena porque ainda mais polêmica, com probabilidade de acolhida
praticamente nula, foi a proposta, também veiculada na fase
preparatória da Conferência, da constituição de um Tribunal
Internacional para os Direitos Humanos. A idéia era, na verdade,
antiga. Remontava ao fim da Segunda Guerra Mundial e se inspirava
aparentemente nos tribunais de Nurembergue e de Tóquio, pelos
quais os Aliados processaram e puniram os alemães e japoneses
responsáveis por "crimes contra a humanidade" – noção
que se firmou nessa época. Não tendo sido formulada de maneira
sequer minimamente consistente, a idéia foi apenas mencionada por
algumas delegações, embora muito referida pela imprensa e por
ONGs, não chegando a ficar claro se constituía iniciativa
voltada exclusivamente para os direitos humanos. De qualquer
forma, sem maiores deliberações sobre o assunto, a Conferência
enviou em seu lugar uma mensagem de apoio à Comissão de Direito
Internacional das Nações Unidas, que vinha longamente elaborando
um projeto de Código de Crimes contra a Paz e a Segurança
Internacional, a servir de base, em princípio, para a criação
de um possível Tribunal Penal Internacional. A mensagem aparece
no parágrafo 92 do Programa de Ação, pelo qual a Conferência
recomenda que a Comissão dos Direitos Humanos procure aprimorar a
aplicação dos instrumentos internacionais existentes "e
encoraja a Comissão de Direito Internacional a continuar seus
trabalhos visando ao estabelecimento de um tribunal penal
internacional".
Quase imperceptível
num documento tão longo, a mensagem de Viena sobre o assunto pode
ou não ter surtido efeito junto à Comissão de Direito
Internacional. De qualquer forma, o fato importante é que o código
de crimes por ela longamente negociado foi logo depois concluído
e o Tribunal Penal Internacional, instituição
extraordinariamente inovadora no sistema das relações
internacionais ainda baseado no conceito de soberanias, afinal,
aprovado, com poucos votos negativos, pela Conferência de Roma de
1998. Tendo por precursores mais próximos os tribunais
estabelecidos pelo Conselho de Segurança especificamente para os
crimes registrados nos conflitos da Bósnia e de Ruanda, o
Tribunal Penal Internacional criado pela Conferência de Roma, de
caráter permanente e abrangência genérica, é instituição
limitada, sobretudo pela recusa dos Estados Unidos em aceitar sua
jurisdição. Tem, contudo, no papel, atribuições significativas
na área dos direitos humanos quando as violações se confundem
com atos táticos de guerra, como na limpeza étnica ou outras
brutalidades assemelhadas.
g) Racionalização
do sistema
Grande parte dos
dispositivos recomendatórios dizem respeito à racionalização
do sistema internacional de proteção aos direitos humanos em seu
formato existente, conforme evidencia o título A da Parte II do
documento final de Viena: "Aumento da Coordenação do
Sistema das Nações Unidas na Área dos Direitos Humanos".
O subtítulo sobre
"Recursos", que agrupa quatro parágrafos, tinha por
finalidade precípua assegurar ao Centro das Nações Unidas para
os Direitos Humanos recursos orçamentários e de pessoal
condizentes com o acréscimo de suas funções. Isto porque as
dotações respectivas, em contraste com a crescente demanda de ações
incessantemente exigidas desse setor do Secretariado, recebia
alocações inferiores a 1% do orçamento regular de toda a
Organização. As discussões sobre a matéria foram complexas.
Todos se declaravam, em princípio, favoráveis ao acréscimo das
dotações, mas os países do Terceiro Mundo não desejavam que
ele pudesse resultar de cortes em áreas voltadas para a cooperação
econômica. Por outro lado, nas deliberações pertinentes da V
Comissão da Assembléia Geral, praticamente todas as delegações,
inclusive as do Ocidente, por descoordenação com as decisões
aceitas na área dos direitos humanos, tendiam a desconsiderar
propostas de aumento das dotações para o tema. As recomendações
de Viena praticamente não alteraram esse quadro. Mais êxito
parecem ter tido as sugestões da Conferência para que fossem
aumentadas as contribuições voluntárias aos fundos fiduciários
utilizados pelo Centro para os Direitos Humanos para programas
específicos, todos os quais orientados para direitos "de
primeira geração". Os parágrafos do subtítulo
"Centro para os Direitos Humanos" também mencionam os
fundos voluntários e a conveniência de sua expansão. Aí o
enfoque principal é, porém, o de fortalecer o Centro como
unidade coordenadora das atividades do sistema de proteção aos
direitos humanos por meio do monitoramento de violações. Esse
objetivo transparece no parágrafo 15, que recomenda o
fornecimento ao Centro de "meios adequados para o sistema de
relatores temáticos e por países, peritos, grupos de trabalho e
órgãos criados em virtude de tratados" (os denominados treaty
bodies, incumbidos do exame de relatórios de países e, em
certos casos, petições individuais).
Em matéria de
racionalização, um dos dispositivos mais importantes – talvez
o mais importante de todos – encontra-se no parágrafo 3º do
mesmo título A, pelo qual a Conferência insta as organizações
regionais e instituições financeiras e de apoio ao
desenvolvimento "a avaliarem o impacto de suas políticas e
programas sobre a fruição dos direitos humanos". É sabido
que os programas e projetos financiados pelo Banco Mundial, pelo
Banco Interamericano para o Desenvolvimento e pelo próprio
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD,
sempre tenderam a concentrar suas preocupações somente nos
aspectos "desenvolvimentistas" e no equilíbrio
financeiro dos Estados, ignorando os efeitos que os respectivos
programas pudessem ter para o respeito e a aplicação dos
direitos humanos. Desde a Conferência de Viena algum ingrediente
nessa esfera passou a ser considerado por essas instituições e
agências, muito especialmente pelo PNUD. De um modo geral, porém,
os direitos humanos levados em conta são apenas os "de
primeira geração", civis e políticos. O chamado
"consenso de Washington", prevalecente mais
sensivelmente no FMI, ao valorizar obsessivamente o equilíbrio
das finanças e a liberdade do mercado, não subscreve a noção
da indivisibilidade dos direitos.
Vinculados à idéia
de racionalização do sistema, mas partindo do pressuposto
essencial de que a primeira responsabilidade em matéria de
direitos humanos incumbe aos Estados nacionais, vários
dispositivos do Programa de Ação procuram aumentar a cooperação
das Nações Unidas com os governos, com vistas ao aprimoramento
interno das instituições destinadas a assegurar o funcionamento
do Estado de Direito. Agrupados sob o título C, "Cooperação,
desenvolvimento e fortalecimento dos Direitos Humanos", tais
dispositivos vão desde as recomendações mais vagas, de que se dê
"prioridade à adoção de medidas nacionais e internacionais
para promover a democracia, o desenvolvimento e os direitos
humanos" (parágrafo 66), "para promover uma sociedade
civil pluralista e proteger os grupos vulneráveis" e em
apoio a "solicitações de Governos para a realização de
eleições livres e justas" (parágrafo 67), a outras mais
concretas, destinadas a fortalecer os serviços de consultoria e
assistência técnica do Centro para os Direitos Humanos (parágrafo
68).
De iniciativa
brasileira foi a proposta de estabelecimento de um "programa
abrangente, no âmbito das Nações Unidas, para ajudar os Estados
na tarefa de criar ou fortalecer estruturas nacionais adequadas
que tenham um impacto direto sobre a observância dos direitos
humanos e a manutenção do Estado de Direito" (parágrafo
69). De acordo com esse dispositivo – e com a idéia brasileira
– o Centro para os Direitos Humanos deveria "oferecer,
mediante solicitação dos Governos, assistência técnica e
financeira a projetos nacionais de reforma de estabelecimentos
penais e correcionais, de educação e treinamento de advogados,
juízes e forças de segurança em direitos humanos e em qualquer
outra esfera de atividade relacionada ao bom funcionamento da
justiça" (idem). Com base nessa recomendação, o parágrafo
70 solicitava ao Secretário Geral a elaboração de alternativas,
a serem examinadas pela Assembléia Geral, "para o
estabelecimento, estrutura, modalidades operacionais e
financiamento do programa proposto".
Financiamento é,
como sempre, o aspecto problemático de qualquer iniciativa, por
mais reconhecidamente útil. O programa de apoio existe, como, a
rigor, já existia, sob a rubrica dos serviços de assessoramento
do Centro das Nações Unidas para os Direitos Humanos, mas não
com o escopo contemplado pelo Brasil e endossado pela Conferência
de Viena. Limita-se, na prática, a realizar, quando instado,
pequenos cursos para policiais e agentes de segurança, a
organizar seminários para advogados e juízes, a orientar, de
maneira muito genérica, a elaboração dos relatórios nacionais
devidos aos órgãos de monitoramento de Pactos e Convenções (os
treaty bodies). Nunca dispôs de verbas e pessoal
suficiente, nem os recebeu depois de 1993, a ponto de
transformar-se no "programa abrangente" que se tinha
imaginado em apoio às instituições dos países solicitantes. Na
medida em que dentro da ONU não se conseguem os meios necessários
a um programa de cooperação relevante com os países que dela
precisam, soa contraditório e inócuo junto aos países em
desenvolvimento, com suas conhecidas dificuldades orçamentárias,
o parágrafo 74, pelo qual a Conferência apela "aos
Governos, órgãos competentes e instituições" para que
aumentem os recursos aplicados no "desenvolvimento de
sistemas jurídicos eficazes para proteger os direitos humanos e
em instituições nacionais atuantes nessa esfera". Mais
conseqüente, pelo menos no Brasil, foi o parágrafo 91, proposto
pela Austrália, pelo qual a Conferência recomenda a cada Estado
a elaboração de um "plano nacional de ação" que
identificasse medidas que pudessem "melhor promover e
proteger os direitos humanos" dentro da respectiva jurisdição.
O Programa Nacional de Direitos Humanos, lançado no Brasil em
1996, é decorrência direta dessa recomendação e constitui até
hoje o projeto mais amplo e ambicioso adotado sobre a matéria em
nível nacional.
Na área da educação,
finalmente, objeto do título D do Programa de Ação, a Conferência
de Viena recomenda, pertinentemente, aos Estados, em primeiro
lugar, que "empreendam todos os esforços necessários para
erradicar o analfabetismo", para dizer em seguida que a educação
deve ser orientada "no sentido de desenvolver plenamente a
personalidade humana e fortalecer o respeito pelos direitos
humanos e liberdades fundamentais." Solicita, nesse sentido
que todos os Estados e instituições "incluam os direitos
humanos, o direito humanitário, a democracia e o estado de
direito" como matérias curriculares, "em procedimentos
formais e informais" (parágrafo 79). O parágrafo 80
estipula que a educação sobre direitos humanos "deve
incluir a paz, a democracia, o desenvolvimento e a justiça
social, tal como previsto nos instrumentos internacionais, para
que seja possível conscientizar e sensibilizar todas as pessoas
em relação à necessidade de fortalecer a aplicação universal
dos direitos humanos". É curioso e, no mínimo, sintomático
que a menção a esses elementos, em particular a expressão
"justiça social", tenha precisado da referência
adicional aos instrumentos internacionais que os prevêem.
Após a sugestão
programática da inclusão dos direitos humanos como disciplina de
ensino em todos os países, a maior novidade de Viena nessa área
foi a recomendação de que a ONU considerasse a proclamação de
uma década para a educação em direitos humanos. A Década foi
proclamada pela Assembléia Geral, em 23 de dezembro de 1994,
tendo-se iniciado, nos termos da Resolução n. 49/184, em 1º de
janeiro de 1995.
8. Conclusão
Pela mobilização
internacional que promoveu, pela variedade dos tópicos que cobriu
e pelo número de participantes que congregou, sabia-se já, em
1993, que a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos era um
evento importante. Examinada com atenção no final da década de
90, ela se afigura ainda mais significativa.
É inegável que
muitos governos louvaram de pronto a Conferência de Viena como um
acontecimento marcante de nossa época. Alguns, parafraseando o
"espírito do Rio" que, segundo o Secretário Geral
Boutros Ghali, teria inspirado a Conferência das Nações Unidas
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento em 1992, chegaram a falar,
de maneira um tanto forçada, num "espírito de Viena",
que deveria ser cultivado. Menos apreciativas porque naturalmente
desejavam afirmações precisas e recomendações definitivas, a
imprensa e as ONGs influentes admitiam a ocorrência de alguns
avanços no documento final, mas davam a entender, em 1993, que o
evento fora decepcionante. Não compreendiam – ou não queriam
aceitar – que, nas circunstâncias presentes, Viena alcançara o
máximo possível. O consenso obtido para matérias tão polêmicas
havia não somente evitado retrocessos no sistema internacional de
proteção aos direitos humanos, mas também aberto o caminho para
desenvolvimentos impensáveis pouco tempo antes. O próprio
reconhecimento formal do papel das ONGs constituía um marco sem
precedentes, que facilitaria sua participação mais direta nas
demais conferências da década.
Em 1993 não se
poderia notar que, depois da Conferência de Viena, de forma mais
nítida do que na seqüela da Rio-92, as organizações de direito
privado voltadas para os direitos humanos ou qualquer outra causa
social iriam fortalecer-se em quase todos os países como
parceiras importantes; que a idéia de parceria entre governos e
sociedade civil tornar-se-ia a tônica de todos os programas
aprovados nas conferências seguintes sobre temas globais; que as
organizações humanitárias atuantes em defesa das vítimas de
conflitos armados, antes consideradas "ingerentes" e
objeto de restrições generalizadas, terminariam a década como
ganhadoras do Prêmio Nobel da Paz, emblematicamente concedido à Médécins
Sans Frontières em 1999. Sentia-se, por experiências
recentes, que o Direito Internacional Humanitário e o Direito
Internacional dos Direitos Humanos, sempre intrinsecamente
imbricados, tendiam a confundir-se ainda mais na realidade
contemporânea. Intuía-se, sem muita certeza, que os direitos
humanos haviam alcançado um novo patamar nas preocupações políticas.
Mas não se podia saber, então, que eles seriam erigidos, como o
foram, em ponto nevrálgico da segurança internacional do mundo pós-Guerra
Fria.58
Se, para esses
aspectos de nossa contemporaneidade, a Conferência de Viena foi
quase profética, fornecendo, direta ou indiretamente, base
documental para ações necessárias – ainda que às vezes
desastrosas – numa situação estratégica que apenas se
insinuava, ela também o foi naquilo que não se logrou obter. A
Conferência de 1993 falou muito de democracia. Hoje, a "onda
democratizante" encontra-se em fase de refluxo. Mas Viena não
apresentou a democracia representativa como panacéia
autosuficiente para os males da humanidade. A rejeição à
condicionalidade dos direitos civis e políticos ao
"progresso duradouro" na área econômico-social,
expressada em Teerã, não implicou a aceitação de uma falsa
hierarquia dos direitos "de primeira geração" sobre os
direitos econômicos e sociais. Perante os efeitos colaterais da
globalização incontrolada, a afirmação do direito ao
desenvolvimento e as recomendações na área da indivisibilidade
de todos os direitos fundamentais permanecem, pelo menos, como uma
espécie de caveat da Conferência Mundial sobre Direitos
Humanos para o que vem ocorrendo no mundo em matéria de exclusão
social, marginalização, fluxos migratórios e aumento de
criminalidade. Desde 1993, tais problemas não pararam de
aumentar.
Para os defensores
da globalização como ideologia, a liberdade do mercado
conduziria à democracia. Hoje está comprovado que isso não é
verdade. A eficiência e a competitividade podem ser importantes,
mas não observam direitos. Convivem, ao contrário, perfeitamente
com sua violação, numa simbiose absurda. Não é Marx nem
Foucault, mas George Soros quem denuncia, no presente, a
"aliança prevalecente na política entre os fundamentalistas
do mercado e os fundamentalistas religiosos".59
Motivados por
preocupações libertárias, os pensadores chamados "pós-estruturalistas"
procuraram demostrar, com abundância de argumentos, as ciladas da
Razão moderna no discurso universalista. Aprofundando a corrente
autocrítica da Ilustração, que remonta a Rousseau e Marx,
denunciaram a dissimulação do Poder – difuso, não somente de
classe – sob o manto do Direito. Mas nunca se rebelaram contra a
idéia de direitos fundamentais, "burgueses" ou
"proletários". Foi, afinal, em sua defesa que
desenvolveram as análises, muitas vezes conducentes a becos sem
saída, hoje predominantes no pensamento social. Sabiam que os
direitos humanos são demasiado preciosos para serem manipulados
num sistema "humanista" largamente imperfeito.
A Conferência de Viena foi
inquestionavelmente importante para a afirmação dos direitos
humanos no discurso contemporâneo. Eles nunca tiveram no passado
o apelo planetário que têm tido atualmente. O problema é não
se permitir que os direitos, da maneira que vêm sendo
"aplicados", não sejam uma vez mais utilizados, na episteme
pós-moderna em vias de globalização – norte-americana nas
aspirações de consumo e no modelo de organização econômica,
anti-universalista na epistemologia e nas formas de identificação
cultural – como disfarce legitimante de um sistema universal
falsamente livre, de fachada ética e conteúdo desumano.
_________
* O
presente texto, de exclusiva responsabilidade do autor, não
reproduz posições oficiais do Itamaraty.
** Diplomata,
atualmente Cônsul Geral do Brasil em São Francisco, EUA,
ex-Diretor Geral do Departamento de Direitos Humanos e Temas
Sociais do Ministério das Relações Exteriores
(1995-1996) e autor
dos livros Os direitos humanos como tema global (Brasília/São
Paulo: FUNAG/Perspectiva, 1994) e A arquitetura internacional
dos direitos humanos (São Paulo: FTD, 1997).
1. A Convenção
contra a discriminação racial entrou em vigor internacionalmente
em 1969 e os dois Pactos de direitos humanos, em 1976.
2. Os
instrumentos jurídicos vigentes eram poucos e dirigidos a questões
específicas, como as convenções contra o genocídio, contra a
escravidão, sobre os direitos políticos da mulher ou as convenções
trabalhistas adotadas no âmbito da Organização Internacional do
Trabalho – OIT).
3. As violações
decorrentes do sistema do apartheid já haviam levado o
Conselho Econômico e Social (ECOSOC), pela Resolução n. 1.235
(XLII), de 6 de junho de 1967, a determinar à Comissão dos
Direitos Humanos que considerasse a "Questão das violações
dos direitos humanos e liberdades fundamentais, inclusive políticas
de discriminação racial e de apartheid, em todos os países,
com referência especial aos países e territórios coloniais e
dependentes", mas ainda não se havia decidido como deveriam
ser tratadas as queixas recebidas na ONU.
4. Criada em
1961, em Londres, para denunciar violações dos direitos dos
"prisioneiros de consciência", a Anistia Internacional
transformou-se aos poucos num movimento verdadeiramente mundial em
defesa das liberdades civis e políticas.
5. Nações
Unidas, The United Nations and human rights, 1945-1995,
Nova York, U.N. Department of Public Information, 1995, p. 69.
6. A Declaração
Universal dos Direitos Humanos foi proclamada pela Resolução n.
217 A (III) da Assembléia Geral, reunida em Paris, em 10 de
dezembro de 1948. A designação de 1968 como "Ano
Internacional dos Direitos Humanos" foi feita pela Resolução
n. 1.961 (XVIII), adotada pela Assembléia Geral, em Nova York, em
12 de dezembro de 1963.
7. Os
documentos podem ser lidos na publicação Final Act of the
International Conference on Human Rights, Teheran, 22 April to 13
May 1968, editada e distribuída pelas Nações Unidas, Nova
York, 1968.
8. A referência
explícita a essa Declaração de 1960, adotada pela Resolução
n. 1.514 (XV) da Assembléia Geral, evidencia a preeminência que
tinha, na época, a luta pela descolonização. Ela foi fator
relevante para a asserção do direito à autodeterminação como
um direito humano "de terceira geração", com o qual se
abrem os dois grandes Pactos Internacionais. Segundo reza o artigo
1º dessa Declaração de 1960: "A sujeição de povos à
subjugação, dominação e exploração estrangeiras constitui
uma negação dos direitos humanos fundamentais, contraria a Carta
das Nações Unidas e é um impedimento à promoção da paz e da
cooperação mundiais".
9. Os
relatores para situações específicas foram estabelecidos pelas
Nações Unidas para monitorar casos que realmente recomendavam
acompanhamento, como os do Chile, Guatemala, El Salvador etc., além
da África do Sul e dos territórios árabes ocupados por Israel,
mas nunca para os casos igualmente chocantes de violações maciças
de direitos civis e políticos no Leste europeu ou em alguns países
da OTAN, por mais que a imprensa internacional e os governos
ocidentais as denunciassem. Com raríssimas exceções, não eram
sequer circulados projetos de resoluções sobre esses países,
porque se sabia de antemão que não contariam com apoio
parlamentar suficiente para serem adotadas.
10. An
Agenda for Peace – Preventive diplomacy, peacemaking and
peace-keeping, documento
A/47/277 - S/24111,
de 17 de junho de 1992.
11. Essas idéias
foram incorporadas primeiramente pela Anistia Internacional, em
suas recomendações à Conferência de Viena (v. Antônio Augusto
Cançado Trindade, Tratado de direito internacional dos
direitos humanos, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997,
v. 1, p. 161-162) e logo veiculadas entre muitas delegações
governamentais nas reuniões preparatórias da Conferência.
12. O problema
foi, por sinal, exclusivo da Conferência Mundial sobre Direitos
Humanos. Todas as demais conferências da década de 90 tiveram
sede garantida desde cedo, no Cairo, em Copenhague, em Beijing e
em Istambul.
13. Francis
Fukuyama, "The end of history?", The National
Interest, verão de 1989, p. 3-18.
14. Resolução
n. 46/116, de 17 de dezembro de 1991 (parágrafo operativo 4, alínea
"a", inciso iii).
15. Um total
de 1.636 "crimes de direita" apenas entre janeiro e
outubro de 1992, em contraste com umas poucas centenas em 1990,
foi registrado e divulgado pelo Escritório Federal para a Proteção
da Constituição – enquanto os empregos industriais da Alemanha
Oriental sofriam redução de 46,6% de julho de 1991 a julho de
1992 (apud Benjamin Barber, Jihad versus McWorld,
Nova York, Ballantine Books, 1996, p. 182 e 346-347, notas 23 e
29).
16. Decisão
n. 46/473, de 6 de maio de 1992.
17. Samuel P.
Huntington, The clash of civilizations?, Foreign Affairs,
verão de 1993, p. 22-49.
18. Em
particular na Europa comunitária, na esfera da Organização dos
Estados Americanos – OEA – e, em nível menos desenvolvido,
nas instituições da Organização da Unidade Africana – OUA.
19. Para uma
abordagem político-diplomática da evolução do sistema
internacional de proteção aos direitos humanos em geral, v. J.
A. Lindgren Alves, Os direitos humanos como tema global, São
Paulo/Brasília: Perspectiva/FUNAG, 1994.
20. É fato
que a Declaração de Bangkok, dos governos asiáticos, tinha
fortes traços relativistas, e que as ONGs asiáticas decidiram
adotar declaração própria, mais extensa e mais elaborada do que
o documento governamental. Este, contudo, não deixava de
reconhecer serem os direitos humanos "universais por
natureza" (sobre as declarações das conferências regionais
e para uma descrição pormenorizada do processo preparatório não-governamental,
v. Antônio Augusto Cançado Trindade, op. cit.,
p.119-154).
21. O Grupo de
Trabalho "D", sobre "Direitos Humanos, Democracia e
Desenvolvimento", teve como relator o ilustre jurista e
professor brasileiro Antônio Augusto Cançado Trindade.
22. V. sobre o
assunto Antônio Augusto Cançado Trindade, op. cit., p. 168-172.
23. O
reconhecimento de status consultivo é dado, ou negado, por
comissão do ECOSOC de caráter governamental, que decide, quase
sempre por voto, a respeito dos pedidos que lhe são encaminhados.
Sendo composta por Estados, como praticamente todos os órgãos
das Nações Unidas, a força política dos que apóiam ou
rejeitam tais pedidos, sendo capazes ou não de influenciar a
maioria, faz-se obviamente sentir. Até hoje uma ONG do peso da
Human Rights Watch, por exemplo, ainda não conseguiu obter esse status
consultivo.
24. Report
of the Preparatory Committee for the World Conference on Human
Rights (Third Session), documento das Nações Unidas
A/CONF.157/PC/54, de 8 de outubro de 1992, artigo 66.
25. Gilberto
Sabóia, op. cit., p. 6-7.
26. Informe
de la Conferencia Mundial de Derechos Humanos, doc.
A/CONF.157/24 (Part I), de 13 de outubro de 1993, p. 9.
27. O Deputado
Hélio Bicudo, que integrava o grupo de observadores parlamentares
na delegação do Brasil, discursou no Comitê Principal, com base
na experiência brasileira do julgamento de PMs pela justiça
militar, sobre a inadequação das "justiças especiais"
para a punição de responsáveis por violações de direitos
humanos.
28. Id., ibid.,
p. 7
29. V. op.
cit., nota 29, p. 14-16 e 50-51. Por mais graves as situações
e justificadas as preocupações expressadas pela Conferência, não
deixa de ser interessante observar que essas iniciativas, tomadas
fora do Comitê de Redação, instando o Conselho de Segurança a
atuar mais eficazmente em defesa dos direitos humanos naqueles
dois países conflagrados por guerras civis, partiram de Estados
normalmente refratários a tudo o que possa representar a apropriação
do tema dos direitos humanos por aquele órgão, de composição não-democrática,
das Nações Unidas.
30. A Declaração
e Programa de Ação de Viena foi transmitido à Assembléia Geral
das Nações Unidas pelo documento A/CONF. n. 157/24, de 25 de
junho de 1993. Encontra-se traduzida para o português em várias
publicações, entre as quais meu livro já citado Os direitos
humanos como tema global,
p. 149-186. O Preâmbulo
e a Parte I (declaratória) acham-se reproduzidos no apêndice
deste volume.
31. Negociado
quase sempre em inglês, o documento intitulado The Vienna
Declaration and Programme of Action traz, por silepse, concordância
verbal sempre no singular. Daí o expediente de traduzi-lo para o
português como "A Declaração e Programa de Ação de
Viena", sem o artigo definido "o" antes de
"Programa", para não tornar aberrante a concordância
no feminino singular. Ou a opção que tenho feito freqüentemente
de referir-me apenas à Declaração de Viena em metonímia da
parte
pelo todo.
32. V.
supra a análise do artigo 13 da Proclamação de Teerã, de
1968.
33. Apud
Antônio Augusto Cançado Trindade, op. cit., p. 217.
34. Idem,
ibid. p. 219.
35. Idem,
ibid. p. 221-222.
36. Idem,
ibid. p. 223. A obra citada do Professor Trindade traz excelente
compilação dos principais pontos de vista expostos em Plenário
na Conferência de Viena, não somente sobre a questão do
universalismo dos direitos humanos, mas também sobre diversos dos
outros pontos de divergência na matéria.
37. A bem da
verdade, o artigo 1º não se refere textualmente à Declaração
Universal dos Direitos Humanos, em função das resistências de
alguns países não-ocidentais. Refere-se apenas à Carta das Nações
Unidas e a "outros instrumentos relacionados aos direitos
humanos e ao direito internacional". Na medida, porém, em
que a Declaração Universal é citada no Preâmbulo, além de
constituir a fonte positiva primária de todos os pactos, convenções
e declarações sobre a matéria, não há como evadir o
reconhecimento de que tais direitos são essencialmente aqueles
fixados na Declaração de 1948.
38. Quando o
ECOSOC adotou resolução sobre a "questão das violações
de direitos humanos e liberdades fundamentais" (V. supra
nota 3).
39. V. supra
notas 5 e 19.
40. Adotado
pela Resolução n. 41/128, de 4 de dezembro de 1986. Os Estados
Unidos votaram contra e oito países (ocidentais e Japão) se
abstiveram (V. sobre o assunto José Augusto Lindgren Alves, A
arquitetura internacional dos direitos humanos, p. 205-216).
41. Gilberto
Sabóia, op. cit., p. 8.
42. V. Idem,
ibid., p. 8-11, para uma descrição das negociações sobre a matéria
por quem delas tratou mais de perto do que qualquer outra pessoa.
43. A redação
desse trecho é particularmente confusa, em decorrência da
imprescindibilidade de acomodação das posturas inflexíveis de
Estados com reivindicações conflitantes sobre o mesmo território.
44. Conforme
preocupação freqüentemente manifestada sobretudo por países
latino-americanos, como a Colômbia e o Peru.
45. Op. cit.,
p. 11-12. No original inglês, em que foi negociado, o texto diz: "conducted
without conditions attached".
46. Para
estabelecer diferença entre os dispositivos localizados na Parte
I e na Parte II, cuja substância declaratória ou recomendatória
muitas vezes se confunde, chamo os primeiros de artigos e os
segundos de parágrafos, com os números respectivos da
"Declaração" ou do "Programa de Ação".
47. V. supra,
nota 10.
48. O que não
impediu, naturalmente, o Conselho de Segurança de continuar a
adotar iniciativas e montar operações motivadas sobretudo por
violações maciças de direitos humanos.
49. Essa
"consideração positiva" já era sinal dos tempos e da
rápida evolução das posturas internacionais na matéria. As
primeiras sessões de emergência da Comissão dos Direitos
Humanos, convocadas no início da década, haviam sido objeto de sérias
resistências.
50. Bernard
Kouchner, Le malheur des autres, Paris: Editions Odile
Jacob, 1991, p. 257-308.
51. Para uma
descrição um pouco mais pormenorizada da superação de obstáculos,
ainda incompleta, à proteção dos direitos da mulher no sistema
internacional de proteção aos direitos humanos, v. José Augusto
Lindgren Alves, A arquitetura internacional dos direitos
humanos, p. 108-122.
52. É verdade
que a concepção tradicional dos direitos humanos como aqueles
direitos violados pelo Estado já havia sofrido alterações históricas.
Afinal, todos os crimes violam direitos humanos individuais. As
agressões racistas individualizadas são crimes comuns, que caem
na esfera dos direitos humanos se o Estado com elas compactuar. A
diferença essencial da violência contra mulher se encontra na
naturalidade com que tendia a ser encarada, fosse porque realizada
na órbita doméstica, fosse porque decorrente de "usos e
costumes" aceitos pela sociedade.
53. Segundo
interpretação corrente durante a guerra da Bósnia-Herzegovina,
um dos objetivos calculados dos estupros coletivos praticados por
sérvios em mulheres muçulmanas (o de mulheres sérvias por bósnios
muçulmanos também ocorreu, com incidência menor ou menos
conhecida) seria o de nelas gerar filhos "cristãos" (a
herança religiosa muçulmana se dá necessariamente pelo lado
paterno). O efeito paralelo mais comum e menos reconhecido era o
repúdio das próprias vítimas pelas comunidades de origem,
quando a elas logravam voltar.
54. Já então
consensualmente aprovado no âmbito da Comissão dos Direitos
Humanos, o projeto foi adotado sem voto pela Assembléia Geral em
20 de dezembro de 1993, que, pela Resolução
n. 48/104,
proclamou a Declaração sobre a Violência contra a Mulher, um
dos mais novos documentos normativos internacionais de natureza
recomendatória.
55. Em 1995 a
maioria esmagadora dos Estados já havia aderido à Convenção
sobre os Direitos da Criança. Ao se escreverem estas linhas, em
1999, apenas dois países, os Estados Unidos e a Somália, ainda não
a ratificaram. Muitos dos Estados-partes fizeram-no, porém, com
reservas.
56. Sugerida
inicialmente em 1980 pelo Canadá, tendo em mente particularmente
as perseguições a dissidentes nos países socialistas do Leste
europeu, a "Declaration on the Right and Responsibility of
Individuals, Groups and Organs of Society to Promote and Protect
Universally Recognized Human Rights and Fundamental
Freedoms", adotada pela Assembléia Geral em 9 de dezembro de
1998, adquiriu nestes tempos pós-Guerra um novo sentido: ademais
de proteger dissidentes individuais em regimes opressivos, ela
estimula a organização de entidades associativas para a promoção
e proteção dos direitos humanos, cabendo aos Estados
assegurar-lhes liberdade, comunicação "with
non-governmental and intergovernmental organizations",
assim como proteção legal.
57. A maioria
dos países latino-americanos, entre os quais o Brasil, não se
opunha à idéia. Alguns, como a Costa Rica, defendiam-na de
maneira tão vigorosa que os poucos a ela veementemente contrários
tiveram que ceder terreno ao país anfitrião, recomendando a
transferência da matéria à consideração da Assembléia Geral,
de maneira tortuosa. Dizia o texto da Declaração de São José,
de 22 de janeiro de 1993, em seu artigo 25: "Propomos que a
Conferência Mundial considere a possibilidade de solicitar à
Assembléia Geral que estude a viabilidade de se estabelecer um
Comissário Permanente para os Direitos Humanos nas Nações
Unidas" (Relatório da Reunião Regional Latino-Americana e
Caribenha Preparatória da Conferência Mundial sobre Direitos
Humanos, documento das Nações Unidas A/CONF.157/LACRM/15, de 11
de fevereiro de 1993).
58. Como
observa Andrew Hurrell, com exceção da intervenção justificada
pelo caso "clássico" da invasão do Kuwait pelo Iraque,
a maioria das operações determinadas pelo Conselho de Segurança
no período pós-Guerra Fria (Somália, Norte do Iraque, Ruanda, a
ex-Iugoslávia e Haiti) "expandem a noção de ‘segurança
e paz internacionais’". E essa expansão se dá pela
"pela inclusão dos direitos humanos e de preocupações
humanitárias dentro do compasso das ameaças à paz e à segurança
internacionais", ao abrigo do Capítulo VII da Carta das Nações
Unidas (Sociedade internacional e governança global, Lua Nova,
São Paulo, CEDEC, n. 46, p. 62-63, 1999). Por mais controversa
que tenha sido a ação da OTAN contra a Iugoslávia a propósito
do Kossovo, é evidente que ela se enquadra na mesma tendência. O
mesmo se aplica à força de paz para o Timor Leste, na seqüência
dos massacres do período imediatamente posterior ao referendum
de 1999.
59. George
Soros, The crisis of global capitalism, Public Affairs, New
York, 1998, p. 231.
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