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Antecedentes Históricos dos Direitos Humanos
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dos Direitos Humanos DHnet
As Lutas de Classes em França de
1848 a 1850
Karl
Marx, 1 de Novembro de 1850
III
— Consequências do 13 de Junho de
1849
De 13 de Junho de 1849 até 10 de Março
de 1850
Em
20 de Dezembro, a cabeça de Jano da república
constitucional tinha mostrado apenas um
rosto, o rosto executivo com os traços
esbatidos e vulgares de L.
Bonaparte. Em 28 de Maio de 1849, mostrou
o seu segundo rosto, o legislativo, coberto
das cicatrizes que as orgias da Restauração
e da monarquia de Julho nele haviam deixado. Com
a Assembleia Nacional Legislativa estava completo
o fenómeno da república constitucional,
isto é, a forma republicana de Estado em
que está constituída a dominação
da classe burguesa, portanto a dominação
comum das duas grandes fracções
realistas que formam a burguesia francesa, os
legitimistas
e orleanístas
coligados, o partido da ordem. Enquanto
a república francesa se tornava assim propriedade
da coligação dos partidos realistas,
a coligação europeia das potências
contra-revolucionárias empreendia ao mesmo
tempo uma cruzada geral contra os últimos
redutos das revoluções de Março.
A Rússia invadiu a Hungria; a Prússia
marchou contra o exército que lutava pela
Constituição imperial e Oudinot
bombardeou Roma. A crise europeia aproximava-se
abertamente de um ponto de viragem decisivo; os
olhos da Europa inteira dirigiam-se para Paris
e os olhos de Paris inteira para a Assembleia
Legislativa.
Em
11 de Junho, Ledru-Rollin
subiu à tribuna. Não discursou;
formulou apenas um requisitório contra
os ministros, seco, sóbrio, factual, conciso,
violento.
O
ataque contra Roma é um ataque contra a
Constituição. O ataque contra a
República Romana é um ataque contra
a República Francesa. O artigo V da Constituição
diz: "A República Francesa nunca utilizará
as suas forças armadas contra a liberdade
de qualquer povo" — e o presidente
utiliza o exército francês contra
a liberdade de Roma. O artigo 54 da Constituição
proíbe ao poder executivo declarar qualquer
guerra sem a aprovação da Assembleia
Nacional(1*).
A decisão de 8 de Maio da Constituinte
ordena expressamente aos ministros que adequem
a expedição romana o mais rapidamente
possível à sua determinação
original. Proíbe-lhes, pois, do mesmo modo
expressamente a guerra contra Roma — e Oudinot
bombardeia Roma. Deste modo, Ledru-Rollin
apresentou a própria Constituição
como testemunha de acusação contra
Bonaparte
e os seus ministros. À maioria realista
da Assembleia Nacional lançou ele, o tribuno
da Constituição, a ameaçadora
declaração: "Os republicanos
saberão fazer respeitar a Constituição
por todos os meios, até mesmo pela força
das armas!" "Pela força das
armas!", repetiu o eco cêntuplo
da Montagne. A maioria respondeu com
um tumulto terrível; o presidente da Assembleia
Nacional chamou Ledru-Rollin
à ordem; Ledru-Rollin
repetiu a sua desafiadora declaração
e, por fim, colocou na mesa do presidente a proposta
de acusação a Bonaparte
e aos seus ministros. A Assembleia Nacional decidiu
por 361 votos contra 203 passar do bombardeamento
de Roma à simples ordem do dia.
Acreditaria
Ledru-Rollin
poder derrotar a Assembleia Nacional por meio
da Constituição e o presidente por
meio da Assembleia Nacional?
Na
verdade, a Constituição proibia
qualquer ataque à liberdade dos outros
povos, mas o que o exército francês
atacava em Roma não era, segundo o ministério,
a "liberdade" mas sim o "despotismo
da anarquia". Não tinha ainda a Montagne
compreendido, apesar de todas as experiências
na Assembleia Constituinte, que a interpretação
da Constituição não pertencia
àqueles que a tinham escrito mas apenas
aos que a tinham aceite? Que a sua letra devia
ser interpretada dentro da sua viabilidade e que
o significado que a burguesia lhe atribuía
era o único sentido viável? Que
Bonaparte
e a maioria realista da Assembleia Nacional eram
os intérpretes autênticos da Constituição,
tal como o padre é o intérprete
autêntico da Bíblia e o juiz o intérprete
autêntico da lei? Devia a Assembleia Nacional,
acabada de sair das eleições gerais,
sentir-se vinculada por disposição
testamentária da defunta Constituinte,
cuja vontade, enquanto vivera, fora quebrada por
um Odilon
Barrot? Ao remeter-se à decisão
da Constituinte de 8 de Maio, esquecera-se Ledru-Rollin
que essa mesma Constituinte rejeitara em 11 de
Maio a sua primeira proposta de acusação
contra Bonaparte
e os seus ministros, que absolvera o presidente
e os ministros, que sancionara assim como "constitucional"
o ataque a Roma, que apenas apelava de uma sentença
já proferida, que. finalmente, apelava
da Constituinte republicana para a Legislativa
realista? A própria Constituição
chama em seu auxílio a insurreição
ao exortar num artigo especial todos os cidadãos
a defendê-la. Ledru-Rollin
apoiava-se nesse artigo. Mas, ao mesmo tempo,
os poderes públicos não estão
organizados para a defesa da Constituição?
E a violação da Constituição
não começa apenas no momento em
que um dos poderes públicos constitucionais
se rebela contra o outro? Ora o presidente da
República, os ministros da República
e a Assembleia Nacional da República encontravam-se
no mais harmonioso dos entendimentos.
O
que em 11 de Junho a Montagne tentou
foi "uma insurreição no
interior das fronteiras da razão pura",
isto é, uma insurreição
puramente parlamentar. Intimidada pela
perspectiva de um levantamento armado das massas
populares, a maioria da Assembleia devia quebrar
em Bonaparte
e nos ministros o seu próprio poder e o
significado da sua própria eleição.
Não tinha já a Constituição
tentado, de modo semelhante, declarar nula a eleição
de Bonaparte
ao insistir tão obstinadamente na demissão
do ministério Barrot—Falloux?
Nem
lhe faltavam modelos de insurreições
parlamentares do tempo da Convenção,
que tinham modificado de repente e radicalmente
as relações entre a maioria e a
minoria — e não conseguiria a jovem
Montagne aquilo que a nova conseguira?
—, nem as condições do momento
pareciam desfavoráveis a tal empreendimento.
Em Paris a agitação popular tinha
alcançado um ponto alto considerável;
a julgar pelas suas votações, o
exército não parecia estar muito
inclinado para o governo, a própria maioria
legislativa era ainda muito recente para se ter
consolidado e, além disso, era composta
por velhos senhores. Se a Montagne tivesse
êxito na insurreição parlamentar,
o leme do Estado passar-lhe-ia imediatamente para
as mãos. Por seu lado, a pequena burguesia
democrática, o que, como sempre, mais ardentemente
desejava era ver a luta travar-se por cima da
sua cabeça, nas nuvens, entre os espíritos
do além-túmulo do Parlamento. Finalmente,
por meio de uma insurreição parlamentar,
a pequena burguesia democrática e os seus
representantes, a Montagne, alcançariam
o seu grande objectivo: quebrar o poder da burguesia
sem tirar as cadeias ao proletariado ou sem deixar
que este aparecesse mais do que em perspectiva;
o proletariado teria sido assim utilizado sem
se tornar perigoso.
Depois
do voto da Assembleia Nacional de 11 de Junho
realizou-se uma reunião entre alguns membros
da Montagne e delegados das sociedades
secretas de operários. Estes últimos
insistiram em atacar nessa mesma noite. A Montagne
recusou decididamente este plano. De modo nenhum
queria que a chefia lhe escapasse das mãos;
de facto, desconfiava tanto dos aliados como dos
seus adversários, e com razão. A
recordação do Junho de 1848 agitava
mais vivas do que nunca as fileiras do proletariado
parisiense. No entanto, ele estava amarrado à
aliança com a Montagne. Esta representava
a maioria dos departamentos, exagerava a sua influência
no exército, dispunha do sector democrático
da Guarda Nacional e tinha atrás de si
a força moral da boutique. Iniciar nesse
momento contra a vontade dela o movimento insurreccional
significava para o proletariado — além
disso dizimado pela cólera e expulso em
quantidade significativa de Paris pelo desemprego
- repetir inutilmente as jornadas de Junho de
1848, sem a situação que o arrastara
à luta desesperada. Os delegados proletários
fizeram a única coisa racional. Obrigaram
a Montagne a comprometer-se,
isto é, a sair dos limites da luta parlamentar
no caso da sua acusação ser rejeitada.
Durante todo o dia 13 de Junho o proletariado
manteve esta mesma céptica atitude de observação
e aguardou uma refrega a sério e definitiva
entre a Guarda Nacional democrática e o
exército para então se lançar
na luta e levar a revolução para
lá do objectivo pequeno-burguês que
lhe tinha sido imposto. No caso de vitória,
estava já formada a Comuna proletária
que iria aparecer ao lado do governo oficial.
Os operários de Paris tinha aprendido na
sangrenta escola de Junho de 1848.
Em
12 de Junho, o próprio ministro Lacrosse
apresentou na Assembleia Legislativa a proposta
de se passar imediatamente à discussão
da acusação. Durante a noite, o
governo tinha tomado todas as precauções
quer de defesa quer de ataque. A maioria da Assembleia
Nacional estava decidida a expulsar a minoria
rebelde, a qual, por seu turno, já não
podia recuar. Os dados estavam lançados.
Por 377 votos contra 8, a acusação
foi rejeitada. A Montanha, que se tinha abstido,
precipitou-se cheia de rancor para os centros
de propaganda da "democracia pacífica",
para a redacção do jornal Démocratie
pacifique[N133].
O
afastamento do edifício do parlamento quebrou-lhe
a força, tal como o afastamento da Terra
quebrou a força de Anteu,
o seu filho gigante. Os Sansões nas salas
da Assembleia Legislativa não passavam
de filisteus nas salas da "democracia pacífica".
Travou-se então um longo, ruidoso e inconsistente
debate. A Montagne estava decidida a
impor por todos os meios "excepto pela
força das armas" o respeito pela
Constituição. Foi apoiada nessa
resolução por um manifesto[N134]
e por uma deputação dos "Amigos
da Constituição". "Amigos
da Constituição" se denominavam
as ruínas da camarilha do National,
o partido burguês-republicano. Enquanto
do resto dos seus representantes parlamentares
seis tinham votado contra e os outros todos a
favor da rejeição da acusação;
enquanto Cavaignac
punha o seu sabre à disposição
do partido da ordem, a maior parte extraparlamentar
da camarilha agarrou avidamente a oportunidade
para sair da sua situação de pária
político e enfiou-se nas fileiras do partido
democrático. Não apareciam eles
como os escudeiros naturais deste partido que
se escondia por detrás do seu escudo, por
detrás do seu princípio, por detrás
da Constituição!
A
"Montanha" esteve em trabalho de parto
até ao romper do dia. Pariu "uma
proclamação ao povo" que
na manhã de 13 de Junho ocupou em dois
jornais socialistas[N135]
um espaço mais ou menos
envergonhado. Declarava o presidente, os ministros
e a maioria da Assembleia Legislativa fora
da Constituição" (hors
la constitution) e exortava a Guarda Nacional,
o exército e por fim também o povo
a "levantar-se". "Viva a Constituição!"
foi a palavra de ordem que ela lançou,
palavra de ordem que não significava senão:
"Abaixo a Revolução!"
À
proclamação constitucional da Montanha
correspondeu no dia 13 de Junho uma chamada manifestação
pacífica dos pequenos burgueses, isto
é, uma procissão de rua que partiu
do Château d'Eau e percorreu os
boulevards: 30 000 homens, a maior parte
guardas nacionais, desarmados, à mistura
com membros das secções secretas
operárias, deslocando-se ao grito de: "Viva
a Constituição!", grito
mecânico, gelado, lançado com má
consciência pelos próprios membros
do cortejo, devolvido ironicamente pelo eco do
povo que ondeava nos passeios, em vez de o engrossar
num trovão. Àquele coro de tantas
vozes faltava-lhe a voz que vem do peito. E quando
o cortejo passou em frente da sede dos "Amigos
da Constituição" e um vacilante
arauto da Constituição contratado,
agitando furiosamente o seu claque(2*),
lá no alto da frontaria do prédio,
soltou duns formidáveis pulmões,
por cima da cabeça dos peregrinos, como
uma saraivada, a palavra de ordem "Viva
a Constituição!", aqueles
próprios pareceram durante um momento dominados
pelo ridículo da situação.
É conhecido como o cortejo, chegado ao
ponto onde a Rue de la Paix desemboca nos boulevards,
foi recebido pelos Dragões e pelos Caçadores
de Changarnier
de um modo nada parlamentar, e se dispersou num
abrir e fechar de olhos em todas as direcções,
deixando ainda atrás de si um escasso grito
de "às armas" para que o apelo
às armas parlamentar de 11 de Junho se
cumprisse.
A
maior parte da Montagne reunida na Rue
du Hasard dispersou-se em todos os sentidos
quando esta violenta dissolução
da procissão pacífica, os boatos
surdos de assassínios de cidadãos
desarmados nos boulevards e os crescentes
tumultos nas ruas pareceram anunciar a aproximação
de um motim. Ledru-Rollin
à frente de um pequeno grupo de deputados
salvou a honra da Montanha. Sob a protecção
da artilharia de Paris, que se concentrara no
Palais National, dirigiram-se ao Conservatoire
des arts et métiers(3*)
onde haviam de chegar a 5.ª e a 6.ª
legiões da Guarda Nacional. Mas os montagnards(4*)
esperaram a 5.ª e a 6.ª
legiões em vão. Esses prudentes
Guardas Nacionais abandonaram os seus representantes,
a própria artilharia de Paris impediu o
povo de erguer barricadas, uma confusão
verdadeiramente caótica tornou impossível
qualquer decisão, as tropas de linha intervieram
de baioneta calada, uma parte dos representantes
foi presa, outra fugiu. Assim acabou o 13 de Junho.
Se
o 23 de Junho de 1848 foi a insurreição
do proletariado revolucionário, o 13 de
Junho de 1849 foi a insurreição
dos pequenos burgueses democráticos, sendo
cada uma destas insurreições a expressão
clássica pura da classe que tinha
sido o seu suporte.
Apenas
em Lyon chegou a haver um conflito sangrento e
encarniçado. Nesta cidade em que a burguesia
industrial e o proletariado industrial se defrontam
directamente, em que, ao contrário de Paris,
o movimento operário não é
enquadrado nem determinado pelo movimento geral,
o 13 de Junho perdeu, nas suas repercussões,
o seu carácter original. Nas outras partes
da província onde caiu não ateou
fogo — era um raio frio [kalter
Blitz].
O
13 de Junho encerra o primeiro período
da vida da república constitucional,
a qual em 28 de Maio de 1849 alcançara
a sua existência normal com a reunião
da Assembleia Legislativa. Toda a duração
deste prólogo é preenchida pela
ruidosa luta entre o partido da ordem e a Montagne,
entre a burguesia e a pequena burguesia, que se
opõe em vão ao estabelecimento da
república burguesa em favor da qual ela
própria havia incessantemente conspirado
no Governo provisório e na Comissão
Executiva e pela qual, durante as jornadas de
Junho, se havia fanaticamente batido contra o
proletariado. O 13 de Junho quebra a sua resistência
e torna a ditadura legislativa dos realistas
coligados um fait accompli(5*).
A partir deste momento a Assembleia Nacional é
apenas um Comité de Salvação
Pública do Partido da Ordem.
Paris
tinha colocado o presidente, os ministros e a
maioria da Assembleia Nacional em "estado
de acusação"; estes puseram
Paris em "estado de sítio".
A Montanha tinha declarado "fora da Constituição"
a maioria da Assembleia Legislativa; por violação
da Constituição a maioria entregou
a Montanha à haute-cour e proscreveu
tudo quanto nela ainda possuía vitalidade.
Foi mutilada até dela não restar
senão um tronco sem cabeça nem coração.
A minoria tinha ido até à tentativa
de uma insurreição parlamentar,
a maioria erigiu em lei o seu despotismo parlamentar.
Decretou um novo regimento que anula a liberdade
da tribuna e autoriza o presidente da Assembleia
Nacional a punir os representantes por violação
da ordem com a censura, com multas, com a privação
de subsídios, com a expulsão temporária,
com o cárcere. Sobre o tronco da Montanha
suspendeu a vergasta, em vez da espada. O resto
dos deputados da Montanha devia à sua honra
o retirar-se em massa. Uma tal atitude aceleraria
a dissolução do partido da ordem.
Este tinha necessariamente de se decompor nas
suas partes constitutivas originais a partir do
momento em que já nem a aparência
de uma oposição o mantinha coeso.
Com
a dissolução da artilharia de Paris
e, bem assim, da 8.ª, 9.ª e 12.ª
legiões da Guarda Nacional, a pequena burguesia
democrática viu-se ao mesmo tempo despojada
do seu poder parlamentar e armado. Pelo contrário,
a legião da alta finança que no
dia 13 de Junho tinha assaltado as tipografias
de Boulé e Roux, destruído os prelos,
saqueado as redacções dos jornais
republicanos, prendido arbitrariamente redactores,
tipógrafos, impressores, expedidores e
moços de recados, recebeu do alto da tribuna
da Assembleia Nacional palavras encorajadoras.
Em todo o território da França se
repetiu a dissolução das Guardas
Nacionais suspeitas de republicanismo.
Nova
lei de imprensa, nova lei de associação,
nova lei de estado de sítio, as
prisões de Paris a transbordar, os refugiados
políticos expulsos, todos os jornais que
ultrapassavam os limites do National
suspensos, Lyon e os cinco departamentos circunvizinhos
entregues às chicanas brutais do despotismo
militar, os tribunais presentes em toda a parte,
o exército dos funcionários públicos,
tanta vez saneado, mais uma vez saneado: foram
estes os lugares-comuns que inevitavelmente
se repetem sempre que a reacção
alcança uma vitória e mencionámo-los
aqui, depois dos massacres e das deportações
de Junho, unicamente porque desta vez não
se dirigiram só contra Paris, mas contra
os departamentos; não tiveram em mira apenas
o proletariado, mas sobretudo as classes médias.
As
leis de repressão, com as quais se deixava
ao bel-prazer do governo a declaração
do estado de sítio, se amordaçava
ainda mais a imprensa e se aniquilava o direito
de associação, absorveram toda a
actividade legislativa da Assembleia Nacional
durante os meses de Junho, Julho e Agosto.
Todavia
esta época é caracterizada não
pela exploração da vitória
no campo dos factos, mas no dos princípios;
não pelas decisões da Assembleia
Nacional, mas pela motivação dessas
decisões; não pelos factos, mas
pela frase; não pela frase, mas pelo acento
e pelos gestos que animam a frase. A expressão
descarada e brutal das convicções
realistas [royalistischen], o insulto
desdenhosamente distinto contra a república;
a indiscrição coquete e frívola
acerca dos objectivos de restauração,
numa palavra, a violação fanfarrona
do decoro republicano dão a este
período um tom e um colorido peculiares.
Viva a Constituição! era o grito
de guerra dos vencidos do 13 de Junho.
Os vencedores estavam, pois, dispensados
da hipocrisia da linguagem constitucional, isto
é, da linguagem republicana. A contra-revolução
subjugou a Hungria, a Itália e a Alemanha,
e eles acreditavam que a restauração
estava já às portas da França.
Desencadeou-se então uma verdadeira competição
entre os chefes de fila das fracções
da ordem, documentando cada um deles o seu monarquismo
através do Moniteur e confessando
os seus eventuais pecados liberais cometidos durante
a monarquia, mostrando o seu arrependimento e
pedindo perdão a Deus e aos homens. Não
se passou um único dia sem que na tribuna
da Assembleia Nacional não se declarasse
que a revolução de Fevereiro tinha
sido uma desgraça nacional, sem que qualquer
fidalgote legitimista da província não
proclamasse solenemente nunca ter reconhecido
a república, sem que qualquer dos cobardes
desertores e traidores da monarquia de Julho não
viesse contar agora feitos heróicos que
apenas não pudera realizar porque a filantropia
de Louis-Philippe
ou outra incompreensão qualquer o tinha
impedido. O que nas jornadas de Fevereiro era
de admirar não era a generosidade do povo
vitorioso, mas a abnegação e a moderação
dos realistas que lhe haviam permitido a vitória.
Um deputado sugeriu que se atribuísse aos
guardas municipais uma parte dos fundos
destinados aos feridos de Fevereiro, pois naqueles
dias só eles se haviam tornado merecedores
da gratidão da pátria. Um outro
queria que se decretasse a construção
de uma estátua equestre ao duque de Orléans
na praça do Carrossel. Thiers
chamou à Constituição um
bocado de papel sujo. Uns após outros,
vinham à tribuna orleanistas
mostrarem o seu arrependimento por terem conspirado
contra a monarquia legítima; legitimistas
que se censuravam por terem acelerado a queda
da monarquia em geral ao rebelarem-se contra a
monarquia ilegítima; Thiers,
arrependido por ter conspirado contra Mole;
Mole, arrependido por ter conspirado contra Guizot;
Barrot,
arrependido por ter intrigado contra todos os
três. O grito "Viva a república
social-democrata!" foi declarado inconstitucional;
o grito "Viva a república!" perseguido
como social-democrata. No aniversário da
batalha de Waterloo[N103]
um deputado declarou: "Receio menos a invasão
dos prussianos do que a entrada em França
dos refugiados revolucionários." Respondendo
às queixas segundo as quais o terrorismo
estava organizado em Lyon e nos departamentos
circunvizinhos, Baraguay
d'Hilliers afirmou: "Prefiro o terror
branco ao terror vermelho." (J'aime mieux
la terreur blanche que la terreur rouge.)
E a Assembleia aplaudia freneticamente todas as
vezes que qualquer orador lançava um epigrama
contra a república, contra a revolução,
contra a Constituição e a favor
da monarquia ou da Santa
Aliança. Toda e qualquer violação
das mais pequenas formalidades republicanas, por
exemplo, tratar os deputados por "citoyens",
entusiasmava os cavaleiros da ordem.
As
eleições complementares em Paris
a 8 de Julho — realizadas sob a influência
do estado de sítio e a abstenção
de uma grande parte do proletariado —, a
tomada de Roma pelo exército francês,
a entrada em Roma das eminências purpuradas[N136],
trazendo no seu séquito a Inquisição
e o terrorismo monacal, acrescentaram novas vitórias
à vitória de Junho e aumentaram
a embriaguez do partido da ordem.
Por
fim, em meados de Agosto, em parte para assistirem
aos conselhos departamentais que acabavam de reunir-se,
em parte fatigados pela orgia de tendências
de muitos meses, os realistas decretaram um adiamento
de dois meses da Assembleia Nacional. Com transparente
ironia deixaram ficar como representantes da Assembleia
Nacional e como guardiões da república
uma comissão de 25 representantes, a nata
dos legitimistas
e orleanistas,
um Mole,
um Changarnier.
A ironia era mais profunda do que suspeitavam.
Condenados pela história a contribuir para
o derrube da monarquia que amavam, estavam também
destinados por ela a conservar a república
que odiavam.
Com
o adiamento da Assembleia Legislativa
encerra-se o segundo período da vida
da república constitucional, o seu
desajeitado período realista.
Em
Paris o estado de sítio fora de novo levantado,
a acção da imprensa tinha começado
de novo. Durante a suspensão dos jornais
sociais-democratas, durante o período da
legislação repressiva e das algazarras
realistas, o Siècle[N137],
o velho representante literário dos pequenos
burgueses monarco-constitucionais, republicanizou-se;
a Presse[N138],
a velha expressão literária dos
reformadores burgueses, democratizou-se;
e o National, o velho órgão
clássico dos burgueses republicanos,
socializou-se.
As
sociedades secretas aumentavam em extensão
e actividade à medida que os clubes
públicos se tornavam impossíveis.
As associações operárias
industriais, toleradas como puras companhias comerciais,
economicamente nulas, tornaram-se politicamente
noutros tantos meios aglutinadores do proletariado.
O 13 de Junho tinha cortado as cabeças
oficiais aos diferentes partidos semi-revolucionários;
as massas, que ficaram, adquiriram a sua própria
cabeça. Os cavaleiros da ordem tinham intimidado
com profecias dos terrores da república
vermelha. Porém, os vis excessos,
os horrores hiperbóreos da contra-revolução
triunfante na Hungria, em Baden e em Roma caiaram
de branco a "república vermelha".
E as classes intermédias da sociedade francesa,
descontentes, começaram a preferir as promessas
da república vermelha, com os seus problemáticos
terrores aos terrores da monarquia vermelha com
a sua desesperança efectiva. Nenhum socialista
fez em França mais propaganda revolucionária
do que Haynau.
A chaque capacite selon ses oeuvres.(6*)
Entretanto,
Louis
Bonaparte explorou as férias da Assembleia
Nacional para fazer principescas viagens pelas
províncias; os legitimistas
mais fogosos iam em peregrinação
ao neto de São Luís[N139]
a Ems, e a massa'dos representantes ordeiros do
povo intrigava nos conselhos dos departamentos
que acabavam de reunir-se. Tratava-se de os fazer
pronunciar o que a maioria da Assembleia Nacional
ainda não ousava pronunciar: o pedido
de urgência para a imediata revisão
da Constituição. De acordo
com a Constituição, o texto constitucional
só em 1852 podia ser revisto por meio de
uma Assembleia Nacional expressamente convocada
para esse fim. Mas se a maioria dos conselhos
dos departamentos se pronunciava nesse sentido,
não devia a Assembleia Nacional sacrificar
a virgindade da Constituição à
voz da França? A Assembleia Nacional acalentava
as mesmas esperanças nestas assembleias
provinciais que as freiras da Henriade de Voltaire
nos Panduros. Contudo, os Putifares da Assembleia
Nacional, salvo algumas excepções,
tinham de se haver com outros tantos Josés
das províncias. A imensa maioria não
quis compreender a importuna insinuação.
A revisão da Constituição
foi frustrada pelos próprios instrumentos
que deveriam tê-la chamado à vida,
isto é, os votos dos conselhos dos departamentos.
A voz da França, e precisamente a da França
burguesa, tinha falado e tinha falado contra a
revisão.
No
princípio de Outubro a Assembleia Nacional
Legislativa reuniu-se de novo — tantum
mutatus ab illo!(7*)
A sua fisionomia estava totalmente mudada. A inesperada
rejeição da revisão por parte
dos conselhos dos departamentos tinha-a remetido
de novo para os limites da Constituição
e chamado a atenção para os limites
da sua duração. Os orleanistas
tinham ficado desconfiados com as peregrinações
a Ems dos legitimistas;
os legitimistas tinham criado suspeitas com as
negociações dos orleanistas
com Londres[N140];
os jornais de ambas as fracções
tinham atiçado o fogo e pesado as exigências
recíprocas dos seus pretendentes; orleanistas
e legitimistas
unidos viam com rancor as maquinações
dos bonapartistas, que se manifestavam nas viagens
principescas, nas tentativas mais ou menos transparentes
de emancipação do presidente e na
linguagem ambiciosa dos jornais bonapartistas;
Louis
Bonaparte encarava com rancor uma Assembleia
Nacional que apenas considerava legítima
a conspiração legitimista-orleanista,
um ministério que constantemente o atraiçoava
a favor dessa Assembleia Nacional. Finalmente,
o ministério estava dividido em si mesmo
quanto à política romana, e quanto
ao imposto sobre o rendimento proposto
pelo ministro Passy
e que os conservadores desacreditavam como socialista.
Um
dos primeiros projectos do ministério Barrot
enviado à Legislativa, de novo reunida,
foi um pedido de crédito de 300 000 francos
para pagamento da pensão de viuvez da duquesa
de Orléans. A Assembleia Nacional
concedeu-o e juntou ao registo de dívidas
da nação francesa uma soma de 7
milhões de francos. Enquanto, deste modo,
Louis-Philippe
continuava a desempenhar com êxito o papel
de "pauvre honteux", de pobre
envergonhado, nem o ministério ousava requerer
aumento de remuneração para Bonaparte
nem a Assembleia parecia disposta a dá-lo.
E Louis
Bonaparte, como sçmpre, debatia-se
ante o dilema: Aut Caesar aut Clichy!(8*)
O
segundo pedido de crédito, de 9 milhões,
do ministro para custear a expedição
romana aumentou a tensão entre Bonaparte,
por um lado, e os ministros e a Assembleia Nacional,
por outro. Louis
Bonaparte tinha publicado no Moniteur
uma carta ao seu oficial ajudante Edgar
Ney, na qual vinculava o governo papal a garantias
constitucionais. O papa, por seu lado, tinha feito
uma alocução "motu próprio"[N141]
em que rejeitava qualquer limitação
da sua dominação restaurada. A carta
de Bonaparte
levantava com propositada indiscrição
a cortina do seu gabinete para se expor aos olhares
da galeria como um génio benévolo,
mas incompreendido e cativo na sua própria
casa. Não era a primeira vez que coqueteava
com os "adejos furtivos de uma alma livre"(9*).
Thiers,
o relator da comissão, ignorou por completo
os adejos de Bonaparte
e contentou-se com traduzir para fracês
a alocução papal. Não foi
o ministério, mas sim Victor
Hugo quem procurou salvar o presidente
por meio de uma ordem do dia em que a Assembleia
Nacional devia declarar o seu acordo com a carta
de Napoleão. Allons donc! Allons donc!(10*)
Com esta desrespeitosa e frívola interjeição
a maioria enterrou a proposta de Hugo. A política
do presidente? A carta do presidente? O próprio
presidente? Allons donc! Allons donc!
Pois que diabo toma au sérieux(11*)
Monsieur Bonaparte?
Acredita, Monsieur Victor
Hugo, que nós acreditamos que o senhor
acredita no presidente? Allons donc! Allons
donc!
Finalmente,
a rotura entre Bonaparte
e a Assembleia Nacional acelerou-se com a discussão
sobre o regresso dos Orléans e dos
Bourbons. Substituindo-se ao ministério,
o primo do presidente, o filho do ex-rei da Vestefália(12*)
tinha apresentado esta proposta que apenas visava
rebaixar os pretendentes legitimistas
e orleanistas
ao mesmo nível, ou de preferência
abaixo do do pretendente bonapartista
o qual pelo menos se encontrava, de facto, no
topo do Estado.
Napoleão
Bonaparte era suficientemente irreverente
para fazer do regresso das famílias
reais expulsas e da amnistia dos insurrectos de
Junho elos de uma mesma proposta. A indignação
da maioria obrigou-o imediatamente a pedir desculpa
por esta sacrílega ligação
do sagrado com o ímpio, das estirpes reais
com a ninhada proletária, das estrelas
fixas da sociedade com os fogos-fátuos
desta, a dar a cada uma das duas propostas o lugar
que lhe cabia. A maioria rejeitou energicamente
o regresso das famílias reais, e Berryer,
o Demóstenes
dos legitimistas,
não deixou margem para dúvidas quanto
ao sentido desta votação. A degradação
burguesa dos pretendentes, é isso o que
se tem em vista! Pretende-se despojá-los
da sua auréola, da última majestade
que lhes resta, a majestade do exílio!
Que se pensaria entre os pretendentes, exclamou
Berryer,
daquele que, esquecendo-se do seu augusto nascimento,
regressasse para viver aqui como um simples particular!
Não se podia dizer com mais clareza a Louis
Bonaparte que não havia ganho nada
com a sua presença, que se os realistas
coligados precisavam dele aqui em França
como um homem neutral na cadeira presidencial,
os pretendentes sérios à coroa tinham
de ficar ocultos aos olhos profanos atrás
da névoa do exílio.
Em
1 de Novembro, Louis
Bonaparte respondeu à Assembleia Legislativa
com uma mensagem na qual em palavras bastante
duras anunciava a demissão do ministério
Barrot
e a formação de um novo ministério.
O ministério Barrot—Falloux
era o ministério da coligação
realista; o ministério d'Hautpoul
era o ministério de Bonaparte, o órgão
do presidente frente à Assembleia Legislativa,
o ministério dos amanuenses.
Bonaparte
já não era o simples homem neutral
do 10 de Dezembro de 1848. A posse do poder executivo
tinha agrupado à sua volta um certo número
de interesses; a luta contra a anarquia obrigou
o próprio partido da ordem a aumentar a
sua influência, e se o presidente já
não era popular, o partido da ordem
era impopular. Não poderia ele
alimentar a esperança de obrigar os orleanistas
e os legitimistas,
pela sua rivalidade como pela necessidade de uma
qualquer restauração monárquica,
ao reconhecimento do pretendente neutral?
O
terceiro período de vida da república
constitucional data de 1 de Novembro de 1849,
período esse que tem o seu termo com o
10 de Março de 1850. Não começa
só o jogo regular das instituições
constitucionais, tão admirado por Guizot,
as disputas entre o poder executivo e o legislativo.
Frente aos apetites de restauração
dos orleanistas
e legitimistas
coligados, Bonaparte
defende o título do seu poder efectivo,
a república; frente aos apetites de restauração
de Bonaparte,
o partido da ordem defende o título da
sua dominação comum, a república;
frente aos orleanistas,
os legitimistas
defendem, como frente aos legitimistas
os orleanistas,
o statu quo, a república. Todas
estas fracções do partido da ordem,
cada uma delas com o seu próprio rei e
a sua própria restauração
in petto(13*),
fazem valer alternadamente, frente aos apetites
de usurpação e sublevação
dos seus rivais, a dominação comum
da burguesia, a forma na qual ficam neutralizadas
e reservadas as pretensões particulares
— a república.
Assim
como Kant
faz da república, como única forma
racional do Estado, um postulado da razão
prática, cuja realização
nunca é alcançada, mas terá
sempre de ser perseguida e tida em mente como
objectivo, assim fazem estes realistas da monarquia
[Königtum].
Deste
modo, a república constitucional, que saiu
das mãos dos republicanos burgueses como
fórmula ideológica vazia, tornou-se
nas mãos dos realistas coligados uma forma
viva e cheia de conteúdo. E Thiers
falava mais verdade do que suspeitava quando dizia:
"Nós, os realistas, somos os verdadeiros
pilares da república constitucional."
A
queda do ministério da coligação
e o surgimento do ministério dos amanuenses
tem um segundo significado. O seu ministro das
Finanças chamava-se Fould.
Fould, ministro das Finanças, é
o abandono oficial da riqueza nacional francesa
à Bolsa, a administração
do património do Estado pela Bolsa no interesse
da Bolsa. Com a nomeação de Fould,
a aristocracia financeira anunciava a sua restauração
no Moniteur. Esta restauração
completava necessariamente as restantes restaurações,
que formavam outros tantos elos na cadeia da república
constitucional.
Louis-Philippe
nunca tinha ousado fazer de um verdadeiro loup-cervier
(lobo da Bolsa) ministro das Finanças.
Como a sua monarquia era o nome ideal para a dominação
da alta burguesia, os interesses privilegiados
tinham de ter nos seus ministérios nomes
ideologicamente desinteressados. Em toda a parte
a república burguesa trouxe para primeiro
plano aquilo que as diferentes monarquias, tanto
a legitimista como a orleanista, mantinham escondido
no fundo da cena. Tornou terreno o que aquelas
tinham feito celestial. No lugar dos nomes sagrados
colocou os nomes próprios burgueses dos
interesses de classe dominantes.
Toda
a nossa exposição tem mostrado como,
desde o primeiro dia da sua existência,
a república não derrubou mas consolidou
a aristocracia financeira. Mas as concessões
que lhe foram feitas eram uma fatalidade a que
houve que submeter-se sem a querer provocar. Com
Fould,
a iniciativa governamental caía de novo
nas mãos da aristocracia financeira.
Perguntar-se-á:
como podia a burguesia coligada aguentar e suportar
a dominação da finança que,
sob Louis-Philippe,
se apoiava na exclusão ou subordinação
das restantes fracções burguesas?
A
resposta é simples.
Em
primeiro lugar, a própria burguesia financeira
constitui uma parte de importância decisiva
da coligação realista, cujo poder
governamental conjunto se chama república.
Os porta-vozes e as competências dos orleanistas
não são os velhos aliados e cúmplices
da aristocracia financeira? Não é
ela própria a falange dourada do orleanismo?
No que se refere aos legitimistas,
já sob Louis-Philippe
tinham participado em praticamente todas as orgias
das especulações da Bolsa, das minas
e dos caminhos-de-ferro. A ligação
da grande propriedade fundiária com a alta
finança é, de um modo geral, um
facto normal. Prova: Inglaterra.
Prova: a própria Áustria.
Num
país como a França onde o volume
da produção nacional é desproporcionadamente
inferior ao volume da dívida nacional;
onde o rendimento do Estado constitui o objecto
mais importante da especulação e
a Bolsa o mercado principal para o investimento
do capital que se quer valorizar de um modo improdutivo;
num tal país, uma massa incontável
de pessoas de todas as classes burguesas ou semiburguesas
tem de tomar parte na dívida pública,
no jogo da Bolsa, na finança. Não
encontram todos estes participantes subalternos
os seus apoios e comandantes naturais na fracção
que representa este interesse nas suas mais colossais
proporções, que o representa por
inteiro?
O
que é que condiciona a entrega dos bens
do Estado à alta finança? O crescente
endividamento do Estado. E o endividamento do
Estado? O constante excesso das despesas em relação
às receitas, uma desproporção
que é ao mesmo tempo a causa e o efeito
do sistema dos empréstimos públicos.
Para
escapar a esse endividamento, o Estado tem ou
de restringir as despesas, isto é, simplificar
e diminuir o aparelho governamental, governar
o menos possível, utilizar o menor número
possível de pessoal, intervir o menos possível
nos assuntos da sociedade burguesa. Este caminho
era impossível para o partido da ordem,
cujos meios de repressão, cuja ingerência
oficial por parte do Estado e cuja omnipresença
através dos órgãos do Estado
tinham de aumentar na mesma medida em que a sua
dominação e as condições
de vida da sua classe eram ameaçadas de
toda a parte. Não se pode reduzir a gendarmerie(14*)
na proporção em que aumentam os
ataques contra as pessoas e a propriedade.
Ou
então o Estado tem de procurar evitar as
suas dívidas e estabelecer um equilíbrio
imediato, embora passageiro, no orçamento,
lançando impostos extraordinários
sobre as classes mais ricas. Para subtrair a riqueza
nacional à exploração da
Bolsa iria o partido da ordem sacrificar a sua
própria riqueza no altar da pátria?
Pas si bete!(15*)
Portanto,
sem transformação completa do Estado
francês não há transformação
do orçamento do Estado francês. Com
o orçamento do Estado há necessariamente
a dívida pública e com a dívida
pública necessariamente a dominação
do comércio com as dívidas do Estado,
dos credores do Estado, dos banqueiros, dos usurários,
dos tubarões da Bolsa. Apenas uma fracção
do partido da ordem, os fabricantes,
participara directamente na queda da aristocracia
financeira. Não nos referimos aos médios,
aos pequenos industriais; referimo-nos aos regentes
do interesse fabril que sob Louis-Philippe
haviam constituído a ampla base da oposição
dinástica. O seu interesse é indubitavelmente
a diminuição dos custos de produção,
portanto a diminuição dos impostos
que entram na produção, portanto
a diminuição da dívida pública
cujos juros entram nos impostos, portanto a queda
da aristocracia financeira.
Em
Inglaterra — e os maiores fabricantes franceses
são pequenos burgueses comparados com os
seus rivais ingleses — encontramos efectivamente
os industriais, um Cobden,
um Bright,
à frente da cruzada contra a Banca e a
aristocracia da Bolsa. Porque não em França?
Em Inglaterra predomina a indústria; em
França a agricultura. Em Inglaterra a indústria
necessita do free trade(16*);
em França, da protecção alfandegária
do monopólio nacional ao lado dos outros
monopólios. A indústria francesa
não domina a produção francesa;
por conseguinte, os industriais franceses não
dominam a burguesia francesa. Para fazer valer
os seus interesses sobre as restantes fracções
da burguesia, não podem, como os ingleses,
pôr-se à cabeça do movimento
e ao mesmo tempo colocar em primeiro lugar os
seus interesses de classe; têm pois de entrar
no séquito da revolução e
servir interesses que se opõem aos interesses
globais da sua classe. Em Fevereiro tinham compreendido
mal a sua posição, mas Fevereiro
fê-los avisados. E quem está mais
directamente ameaçado pelos operários
do que o empresário, o capitalista industrial?
Por conseguinte, em França o industrial
tornou-se necessariamente o membro mais fanático
do partido da ordem. A diminuição
do seu lucro pela finança o
que é isto em comparação
com a abolição do lucro pelo proletariado?
Em
França, o pequeno burguês faz aquilo
que normalmente o burguês industrial devia
fazer; o operário faz o que, normalmente,
seria tarefa do pequeno burguês; e a tarefa
do operário, quem a executa? Ninguém.
Em França, ela não é executada,
em França ela é proclamada. Em parte
nenhuma ela é executada dentro dos muros
nacionais[N14],
a guerra das classes no seio da sociedade francesa
converte-se numa guerra mundial em que as nações
se contrapõem. A sua execução
só desponta no momento em que, devido à
guerra mundial, o proletariado é posto
à cabeça do povo que domina o mercado
mundial: a Inglaterra. A revolução,
que aqui encontra não o seu fim mas o seu
começo organizativo, não é
uma revolução de curto fôlego.
A actual geração assemelha-se aos
judeus que Moisés conduz através
do deserto. Não tem apenas que conquistar
um mundo novo, tem de soçobrar para dar
lugar aos homens que estejam à altura de
um mundo novo.
Voltemos
a Fould.
A
14 de Novembro de 1848 Fould
subiu à tribuna da Assembleia Nacional
e expôs o seu sistema financeiro: apologia
do velho sistema fiscal! Manutenção
do imposto sobre o vinho! Abandono do imposto
sobre o rendimento de Passy!
Também
Passy
não era um revolucionário, era um
antigo ministro de Louis-Philippe.
Fazia parte dos puritanos da envergadura de um
Dufaure
e era um dos mais íntimos de Teste,
o bode expiatório da monarquia de Julho(17*).
Passy
tinha também elogiado o velho sistema fiscal,
recomendado a manutenção do imposto
sobre o vinho mas, ao mesmo tempo, rasgado o véu
do défice do Estado. Tinha declarado a
necessidade de um novo imposto, o imposto sobre
o rendimento, se se não quisesse a bancarrota
do Estado. Fould,
que recomendou a Ledru-Rollin
a bancarrota do Estado, aconselhou à Legislativa
o défice do Estado. Prometeu poupanças.
Mais tarde, porém, veio a descobrir-se
que, por exemplo, as despesas diminuíram
60 milhões e a dívida flutuante
aumentou 200 milhões — truques de
prestidigitador em juntar cifras e na apresentação
dos apuramentos de contas que, no fim, foram dar
a novos empréstimos.
Naturalmente
que sob Fould
a aristocracia financeira, no meio das restantes
fracções burguesas desconfiadas,
não aparecia tão despudoradamente
corrupta como sob Louis-Philippe.
O sistema, porém, era o mesmo: um contínuo
aumento das dívidas e uma dissimulação
do défice. E, com o tempo, as velhas fraudes
da Bolsa voltaram a manifestar-se mais abertamente.
Prova? A lei sobre o caminho-de-ferro de Avignon,
as oscilações misteriosas dos títulos
do Estado, por um momento a conversa diária
de Paris inteira, e, finalmente, as mal sucedidas
especulações de Fould
e Bonaparte
sobre as eleições de 10 de Março.
Com
a restauração oficial da aristocracia
financeira, o povo francês tinha de chegar
de novo em breve diante de um novo 24 de Fevereiro.
A
Constituinte, num ataque de misantropia contra
a sua herdeira, tinha abolido o imposto sobre
o vinho a partir do ano da graça de 1850.
Com a abolição de velhos impostos
não podiam ser pagas novas dívidas.
Creton,
um cretino do partido da ordem, já tinha
proposto a manutenção do imposto
sobre o vinho antes do adiamento da Assembleia
Legislativa. Fould
aceitou esta proposta em nome do ministério
bonapartista e, a 20 de Dezembro de 1849, no aniversário
da proclamação de Bonaparte
como presidente, a Assembleia Nacional decretou
a restauração do imposto sobre
o vinho.
O
advogado desta restauração não
foi um financeiro. Foi, sim, o chefe dos jesuítas
Montalembert.
A sua dedução era de uma simplicidade
impressionante: o imposto é o seio materno
que amamenta o governo. O governo — são
os instrumentos da repressão, são
os órgãos da autoridade, é
o exército, é a polícia,
são os funcionários, os juizes,
os ministros, são os padres. O
ataque ao imposto é o ataque dos anarquistas
às sentinelas da ordem, que protegem a
produção material e espiritual da
sociedade burguesa das incursões dos vândalos
proletários. O imposto é o quinto
deus ao lado da propriedade, da família,
da ordem e da religião. E o imposto sobre
o vinho é indiscutivelmente um imposto:
e mais, não é um imposto qualquer
mas um imposto de velha tradição,
um imposto respeitável, de espírito
monárquico. Vive l'impôt des
boissons!(18*)
Three cheers and one cheer more!(19*)
O
camponês francês, quando pensa no
diabo, pensa-o sempre sob a forma do executor
de impostos. A partir do momento em que Montalembert
elevou o imposto a um deus, o camponês perdeu
o deus, tornou-se ateu e lançou-se nos
braços do diabo, do socialismo.
A religião da ordem tinha feito pouco dele.
Os Jesuítas tinham feito pouco dele. Bonaparte
tinha feito pouco dele. O 20 de Dezembro de 1849
comprometera irremediavelmente o 20 de Dezembro
de 1848. O "sobrinho do seu tio" não
era o primeiro da sua família que o imposto
sobre o vinho abatia, esse imposto que, segundo
a expressão de Montalembert,
prenuncia a tormenta da revolução.
O verdadeiro, o grande Napoleão, declarou
em St. Helena que a reintrodução
do imposto sobre o vinho, tendo alienado de si
[entfremdet] os camponeses do Sul da
França, contribuíra mais para a
sua queda do que tudo o resto. Já sob Louis
XIV alvo favorito do ódio popular (ver
as obras de Boisguillebert
e Vauban),
abolido pela primeira revolução,
Napoleão tinha-o reintroduzido em 1808
numa forma modificada. Quando a Restauração
fez a sua entrada em França, foi precedida
não só pelo trote dos cossacos mas
também pelas promessas da abolição
do imposto sobre o vinho. A gentilhommerie(20*)
não precisava naturalmente de manter a
palavra dada à gent taillable à
merci et miséricorde(21*).
1830 prometeu a abolição do imposto
sobre o vinho. Não era seu hábito
fazer o que dizia nem dizer o que fazia. 1848
prometeu a abolição do imposto sobre
o vinho, como prometeu tudo. Finalmente, a Constituinte,
que nada prometeu, fez, como se disse, uma disposição
testamentária segundo a qual o imposto
sobre o vinho devia desaparecer no dia 1 de Janeiro
de 1850. E, precisamente dez dias antes de 1 de
Janeiro de 1850, a Legislativa voltou a introduzi-lo.
Assim, o povo francês perseguiu constantemente
este imposto e, quando o expulsava pela porta,
via-o, pouco depois, regressar pela janela.
O
ódio popular contra o imposto sobre o vinho
explica-se pelo facto de reunir em si todo o odioso
do sistema de impostos francês. O modo de
cobrança é odioso; o modo da sua
repartição é aristocrático,
pois as percentagens do imposto são as
mesmas para os vinhos mais vulgares e para os
mais preciosos. Aumenta, pois, em progressão
geométrica, na medida em que as posses
do consumidor diminuem, é um verdadeiro
imposto progressivo ao contrário. Provoca
por isso directamente o envenenamento das classes
trabalhadoras como prémio para vinhos falsificados
e imitados. Reduz o consumo ao erguer octrois(22*)
às portas de todas as
cidades com mais de 4 000 habitantes e ao transformar
cada cidade num território estrangeiro
com direitos proteccionistas contra os vinhos
franceses. Os grandes comerciantes de vinho e
ainda mais os pequenos, os marcharias de viris,
os taberneiros, cujos proventos dependem directamente
do consumo de vinho, são outros tantos
declarados adversários do imposto sobre
o vinho. E, finalmente, ao fazer diminuir o consumo,
o imposto sobre o vinho corta o mercado à
produção. Enquanto torna os operários
das cidades incapazes de pagar o vinho torna os
viticultores incapazes de o vender. E a França
tem uma população viticultora de
cerca de 12 milhões. Compreende-se por
isso o ódio do povo em geral, compreende-se
nomeadamente o fanatismo dos camponeses contra
o imposto sobre o vinho. Além disso, não
viam de modo nenhum na sua restauração
um acontecimento isolado, mais ou menos ocasional.
Os camponeses têm uma espécie de
tradição histórica, herdada
de pais para filhos, e nesta escola histórica
corre que todos os governos, quando querem enganar
os camponeses, prometem a abolição
do imposto do vinho mas, depois de os terem enganado,
mantêm ou reintroduzem o imposto sobre o
vinho. É no imposto sobre o vinho que o
camponês prova o bouquet do governo,
a sua tendência. A restauração
do imposto sobre o vinho em 20 de Dezembro queria
dizer: Louis
Bonaparte é como os outros; mas
não era como os outros, era uma invenção
dos camponeses, e nas petições
contra o imposto sobre o vinho, que contavam milhões
de assinaturas, eles retiravam os votos que um
ano antes tinham dado ao "sobrinho do seu
tio".
A
população rural, mais de dois terços
de toda a população francesa, é
constituída na sua maior parte pelo chamados
proprietários fundiários livres.
A primeira geração, libertada gratuitamente
das cargas feudais pela Revolução
de 1789, não tinha pago preço algum
pela terra. As gerações seguintes,
contudo, pagavam sob a forma de preço
da terra o que os seus antepassados semi-servos
tinham pago sob a forma de renda, dízima,
jeira, etc. Por um lado, quanto mais a população
aumentava, quanto maior era, por outro lado, a
divisão da terra — tanto mais caro
ficava o preço da parcela, pois com a sua
pequenez aumentava o volume da sua procura. Todavia,
a dívida do camponês, isto
é, a hipoteca, aumentava necessariamente
na mesma proporção em que subia
o preço que o camponês pagava pela
parcela, quer a comprasse directamente quer os
seus co-herdeiros lha debitassem em conta como
capital. O título de dívida ligado
à terra chama-se nomeadamente hipoteca;
é, pois, a cautela de penhor sobre a terra.
Tal como sobre as courelas medievais se acumulavam
os privilégios, assim sobre a
parcela moderna as hipotecas. Por outro
lado, no regime de parcelamento a terra é
para os seus proprietários um puro instrumento
de produção. A sua fertilidade
diminui na medida em que a terra é dividida.
A aplicação da maquinaria à
terra, a divisão do trabalho, os grandes
meios de benfeitoria da terra, tais como a instalação
de canais de drenagem e de irrigação
e obras-semelhantes, tornam-se cada vez mais impossíveis
enquanto os gastos improdutivos do cultivo
aumentam na mesma proporção que
a divisão do próprio instrumento
de produção. Tudo isto quer o proprietário
da parcela possua capital ou não. Porém,
quanto mais a divisão aumenta, tanto mais
a terra com o seu mísero inventário
constitui a totalidade do capital do camponês
das parcelas, tanto mais o investimento de capital
na terra diminui, tanto mais o pequeno camponês
[kotsass] carece de terra, de dinheiro
e conhecimentos para aplicar os progressos da
agronomia, e tanto mais retrocede o cultivo da
terra. Finalmente, o produto líquido
diminui na mesma proporção
em que aumenta o consumo bruto, em que
toda a família do camponês se vê
impossibilitada para outras ocupações
pela sua posse da terra e, contudo, não
fica em condições de viver dela.
Por
conseguinte, na mesma medida em que a população
e, com ela, a divisão da terra aumenta,
torna-se mais caro o instrumento de produção,
a terra, e a sua fertilidade diminui,
e na mesma medida a agricultura decai e o
camponês endivida-se. E o que era efeito
torna-se, por sua vez, causa. Cada geração
deixa atrás de si outra mais endividada;
cada nova geração arranca em condições
mais desfavoráveis e mais gravosas; a hipoteca
gera a hipoteca e quando se torna impossível
ao camponês encontrar na sua parcela um
penhor para novas dívidas, isto
é, sobrecarregada com novas hipotecas,
fica directamente à mercê da usura
e os juros usurários mais descomunais
se tornam.
E
deste modo, sob a forma de juros pelas
hipotecas sobre a terra, sob a forma
de juros pelos adiantamentos não hipotecados
do usurário, o camponês de França
cede aos capitalistas não só uma
renda da terra, não só o lucro industrial,
numa palavra, não só todo o ganho
líquido, mas também uma
parte do salário; isto é, desceu
ao nível do rendeiro irlandês
— e tudo isto com o pretexto de ser
proprietário privado.
Este
processo foi em França acelerado pela carga
fiscal sempre crescente e pelos custos
judiciais, em parte directamente provocados
pelos mesmos formalismos com que a legislação
francesa rodeia a propriedade fundiária,
em parte devido aos inúmeros conflitos
entre as parcelas que por toda a parte confinam
ou se entrecruzam, e em parte pela fúria
litigiosa dos camponeses cujo usufruto da propriedade
se limita ao fazer valer fanaticamente a propriedade
imaginária, o direito de propriedade.
De
acordo com um levantamento estatístico
datado de 1840 o produto bruto francês da
terra ascendia a 5 237 178 000 francos. Destes
há que deduzir 3 552 000 000 de francos
para gastos de cultivo, incluindo o consumo das
pessoas que trabalham. Resta um produto líquido
de 1 685 178 000 francos, dos quais se devem deduzir
550 milhões para juros hipotecários,
100 milhões para funcionários da
justiça, 350 milhões para impostos
e 107 milhões para despesas com registos,
selos, taxas de hipoteca, etc. Fica a terceira
parte do produto líquido, ou seja 538 milhões;
distribuídos pela população
não chega a 25 francos de produto líquido
por cabeça[N142].
Nestes cálculos não se menciona
naturalmente nem a usura extra-hipotecária,
nem as custas de advogados, etc.
Compreende-se
a situação dos camponeses franceses
quando a república aos seus velhos fardos
acrescentou ainda novos. Como se vê, a sua
exploração só na forma
se distingue da exploração do proletariado
industrial. O explorador é o mesmo: o
capital. Através da hipoteca
e da usura os capitalistas individuais
exploram os camponeses individuais; através
do imposto de Estado a classe capitalista
explora a classe camponesa. O título de
propriedade dos camponeses é o talismã
com que o capital até aqui o fascinava,
o pretexto com que o atiçava contra o proletariado
industrial. Só a queda do capital pode
fazer subir o camponês, só um governo
anticapitalista, proletário, pode quebrar
a sua miséria económica, a sua degradação
social. A república constitucional
é a ditadura dos seus exploradores unidos;
a república social-democrata,
vermelha, é a ditadura dos seus
aliados. E a balança sobe ou desce segundo
os votos que o camponês lança na
urna. É ele próprio que tem de decidir
sobre o seu destino. Era isto que diziam os socialistas
em folhetos, almanaques, calendários e
prospectos de toda a espécie. Esta linguagem
tornava-se-lhe mais compreensível através
das réplicas do partido da ordem que, por
seu lado, se dirigia a ele, e por meio do exagero
grosseiro, pela concepção e apresentação
brutal das intenções e ideias dos
socialistas, tocava o verdadeiro tom camponês
e sobrestimulava o seu apetite pelo fruto proibido.
Mas a linguagem mais compreensível era
a das experiências que a classe camponesa
tinha colhido com a utilização do
direito de voto e a das desilusões que,
no ímpeto revolucionário, golpe
após golpe se abateram sobre ele. As
revoluções são as locomotivas
da história.
A
transformação gradual dos camponeses
manifestou-se através de diversos sintomas.
Já se tinha revelado nas eleições
para a Assembleia Legislativa; revelou-se no estado
de sítio nos cinco departamentos limítrofes
de Lyon; revelou-se alguns meses depois de 13
de Junho na eleição de um montagnard
em vez do antigo presidente da Chambre introuvable(23*)
no departamento da Gironda; revelou-se no dia
20 de Dezembro de 1849 na eleição
de um vermelho para o lugar de um deputado legitimista
falecido, no departamento du Gard[N143],
essa terra prometida dos legitimistas,
cenário das infâmias mais horríveis
contra os republicanos em 1794 e 1795, a sede
central do terreur blanche(24*)
de 1815, onde liberais e protestantes foram assassinados
publicamente. Este revolucionamento da classe
mais estacionária manifestou-se da maneira
mais visível depois da reintrodução
do imposto sobre o vinho. As medidas do governo
e as leis de Janeiro e Fevereiro de 1850 dirigiram-se
quase exclusivamente contra os departamentos
e os camponeses. É a prova mais
concludente do progresso destes.
A
circular Hautpoul
que fez do gendarme inquisidor do prefeito, do
subprefeito e, sobretudo, do maire(25*),
e que organiza a espionagem até aos cantos
mais recônditos da aldeia mais remota; a
lei contra os mestres-escolas, que submete
ao arbítrio dos prefeitos as competências,
os porta-vozes, os educadores e os intérpretes
da classe camponesa, vendo-se assim os professores,
esses proletários da classe culta, perseguidos
de freguesia em freguesia como se fossem caça
acossada; a proposta de lei contra os maires,
que suspende sobre a cabeça destes a espada
de Dâmocles
da demissão e que a todo o momento os opõe,
eles, os presidentes das freguesias camponesas,
ao presidente da república e ao partido
da ordem; a ordenança que transformou
as 17 divisões militares da França
em quatro paxaliques[N144]
e que impôs aos franceses a caserna e o
bivaque como salão nacional; a lei
do ensino, com a qual o partido da ordem
proclamou a falta de consciência e a estupidificação
violenta da França como a sua condição
de existência sob o regime do sufrágio
universal — o que eram todas estas leis
e medidas? Tentativas desesperadas para conquistar
de novo para o partido da ordem os departamentos
e os camponeses dos departamentos.
Considerados
como repressão, estes meios eram
deploráveis, torciam o pescoço ao
seu próprio fim. As grandes medidas, como
a manutenção do imposto sobre o
vinho, o imposto dos 45 cêntimos, a desdenhosa
rejeição das petições
dos camponeses de reembolso dos milhares de milhões,
etc, todos esses raios legislativos, vindos da
sede central, atingiram em cheio de uma só
vez a classe camponesa; as leis e medidas mencionadas
tornaram geral o ataque e a resistência,
tornaram-nos na conversa diária em todas
as choupanas; inocularam a revolução
em todas as aldeias, localizaram e tornaram
camponesa a revolução.
Não
provam, por outro lado, estas propostas de Bonaparte
e a sua aceitação por parte da Assembleia
Nacional a unanimidade de ambos os poderes da
república constitucional no que toca à
repressão da anarquia, isto é, de
todas as classes que se insurgem contra a ditadura
burguesa? Não tinha Soulouque,
logo a seguir à sua brusca mensagem[N145],
assegurado à Legislativa o seu dévoue-ment(26*)
à ordem por meio da mensagem que imediatamente
seguiu de Carlier[N146],
essa caricatura ordinária e suja de Fouché,
tal como o próprio Louis
Bonaparte era a caricatura vulgar de Napoleão?
A
lei do ensino revela-nos a aliança
dos jovens católicos com os velhos voltairianos.
Podia a dominação dos burgueses
coligados ser outra coisa senão o despotismo
coligado da restauração amiga dos
jesuítas e da monarquia de Julho que se
fazia passar por livre-pensadora? As armas que
uma fracção burguesa repartira pelo
povo contra a outra, na luta entre si pelo predomínio,
não tinham agora de ser de novo retiradas
ao povo desde que este se contrapunha à
sua ditadura unificada? Nada, nem mesmo a rejeição
dos concordats à l'amiable,
tinha indignado mais a boutique parisiense
do que esta coquete étalage(27*)
às jesuitismo.
Entretanto,
prosseguiam as colisões tanto entre as
diferentes fracções do partido da
ordem como entre a Assembleia Nacional e Bonaparte.
Agradou pouco à Assembleia Nacional que
Bonaparte,
logo a seguir ao seu coup d'état,
depois da sua criação de um ministério
bonapartista próprio, mandasse vir à
sua presença os inválidos da monarquia
recentemente nomeados prefeitos e lhes impusesse
como condição do exercício
do seu cargo que fizessem agitação
anticonstitucional em favor da sua reeleição
para presidente; que Carlier
festejasse a sua tomada de posse com a supressão
de um clube legitimista; que Bonaparte
fundasse um jornal próprio, Le Napoléon[N147],
que revelava ao público os apetites secretos
do presidente enquanto os seus ministros tinham
de os desmentir no palco da Legislativa; agradou-lhe
pouco a obstinada manutenção do
ministério a despeito das sucessivas moções
de desconfiança; agradou-lhe pouco a tentativa
de ganhar as boas-graças dos sargentos
por meio da atribuição de um suplemento
diário de quatro sous e as boas-graças
do proletariado com um plágio tirado dos
Mystères de Eugène
Sue, por meio de um banco de empréstimos
de honra; agradou pouco, finalmente, o descaramento
com que se requereu através dos ministros
a deportação para Argélia
dos restantes insurrectos de Junho a fim de atirar
en gros(28*)
para a Legislativa a impopularidade de uma tal
medida enquanto o presidente reservava para si
en détail(29*)
a popularidade por meio de perdões individuais.
Thiers
falou ameaçadoramente de "coups
detat" e "coups de tête"(30*)
e a Legislativa vingou-se de Bonaparte
rejeitando todas as propostas de lei que ele apresentava
no seu próprio interesse, investigando
com alarido e desconfiança as que ele apresentava
no interesse comum, para saber se através
do aumento do poder executivo ele não aspirava
a tirar proveito do poder pessoal de Bonaparte.
Numa palavra, vingou-se com a conspiração
do desprezo.
O
partido legitimista, por seu lado, via com desagrado
os orleanistas
mais qualificados apoderarem-se de novo de quase
todos os lugares e aumentar a centralização
enquanto ele, em princípio, procurava a
sua salvação na descentralização.
E procurava-a realmente. A contra-revolução
centralizava violentamente, isto é,
preparava o mecanismo da revolução.
Centralizava até, por meio da
circulação forçada de papel-moeda,
o ouro e a prata da França no Banco de
Paris, criando deste modo o tesouro de guerra
da revolução já pronto.
Finalmente,
os orleanistas
viam com desagrado o emergente princípio
da legitimidade opor-se ao seu princípio
de bastardia e eles próprios serem a todo
o momento marginalizados e maltratados como a
mésalliance(31*)
burguesa de um esposo aristocrata.
Vimos
os camponeses, os pequenos burgueses e as classes
médias em geral porem-se, pouco a pouco,
ao lado do proletariado, empurrados para a oposição
aberta contra a república oficial, tratados
por ela como inimigos. Sublevação
contra a ditadura burguesa, necessidade de uma
transformação da sociedade, manutenção
das instituições democrático-republicanas
como órgãos do seu movimento, agrupamento
em torno do proletariado como poder revolucionário
decisivo — tudo isto são os
traços característicos comuns do
chamado partido da social-democracia, do partido
da república vermelha. Este partido
da anarquia, como os adversários o
baptizam, não é menos uma coligação
de diversos interesses do que o partido da
ordem. Da mais pequena reforma da velha desordem
social até à transformação
da velha ordem social, do liberalismo burguês
até ao terrorismo revolucionário,
tão distantes estão entre si os
extremos que formam o ponto de partida e o ponto
final do partido da "anarquia".
Abolição
das barreiras proteccionistas — socialismo!
pois ataca o monopólio da fracção
industrial do partido da ordem. Regulamentação
do orçamento do Estado — socialismo!
pois ataca o monopólio da fracção
financeira do partido da ordem. Livre
importação de carne e cereais estrangeiros
— socialismo! pois ataca o monopólio
da terceira fracção do partido da
ordem, a grande propriedade fundiária.
As exigências do partido dos free-traders[N148],
isto é, o partido burguês inglês
mais progressita, surgem na França como
outras tantas reivindicações socialistas.
Voltairianismo — socialismo! pois ele ataca
uma quarta fracção do partido da
ordem, a católica. Liberdade de imprensa,
direito de associação, ensino popular
universal — socialismo, socialismo! Atacam
todo o monopólio do partido da ordem.
O
curso da revolução amadurecera tão
depressa que os amigos de reformas de todos os
matizes, que as mais modestas reivindicações
das classes médias, eram obrigados a agrupar-se
em torno da bandeira do partido subversivo mais
extremo, em torno da bandeira vermelha.
Todavia,
por mais variado que fosse o socialismo
dos diversos grandes membros do partido da anarquia
— o que estava dependente das condições
económicas e das necessidades globais revolucionárias
da sua classe ou fracção de classe
delas decorrentes — num ponto ele estava
de acordo: proclamar-se como meio de emancipação
do proletariado e proclamar a emancipação
deste como seu fim. Engano intencional
de uns, auto-engano de outros, que apresentam
o mundo transformado segundo as suas necessidades
como o melhor dos mundos para todos, como a realização
de todas as reivindicações revolucionárias
e a superação de todas as colisões
revolucionárias.
Sob
as frases socialistas gerais do "partido
da anarquia" que soavam de modo razoavelmente
uniforme oculta-se o socialismo do National,
da Presse e do Siècle, que mais ou menos
consequentemente quer derrubar a dominação
da aristocracia financeira e libertar a indústria
e o comércio das peias a que até
então tinham estado sujeitos. Este é
o socialismo da indústria, do comércio
e da agricultura, cujos chefes no partido da ordem
negam estes interesses na medida em que já
não coincidem com os seus monopólios
privados. Deste socialismo burguês,
que, naturalmente, como todas as variantes do
socialismo, congrega uma parte dos operários
e dos pequenos burgueses, demarca-se o socialismo
pequeno-burguês propriamente dito,
o socialismo par excellence(32*).
O capital persegue esta classe principalmente
como credor; por isso ela exige instituições
de crédito. Esmaga-a pela concorrência;
por isso ela exige associações
apoiadas pelo Estado. Subjuga-a pela concentração;
por isso ela exige impostos progressivos,
limitações sobre as heranças,
que o Estado se encarregue das obras de vulto
e outras medidas que detenham pela força
o crescimento do capital. Uma vez que ela
sonha com a realização pacífica
do seu socialismo — à excepção
porventura de uma segunda revolução
de Fevereiro com a duração de alguns
dias — parece-lhe naturalmente que o processo
histórico vindouro é a aplicação
de sistemas que os pensadores da sociedade,
colectiva ou isoladamente, inventam ou inventaram.
Deste modo convertem-se em ecléticos ou
em adeptos dos sistemas socialistas existentes,
do socialismo doutrinário que
só foi expressão teórica
do proletariado até este se ter desenvolvido
num movimento histórico livre e autónomo.
Enquanto
a utopia, o socialismo doutrinário,
que submete a totalidade do seu movimento a um
dos aspectos daquela; que coloca no lugar da produção
comum, da produção social, a actividade
cerebral de um qualquer pedante e sobretudo elimina
fantasiosamente a luta revolucionária das
classes com as suas necessidades através
de pequenos passes de mágica ou de grandes
sentimentalismos; enquanto este socialismo doutrinário,
que no fundo apenas idealiza a sociedade actual,
dela recolhe uma imagem sem sombras e pretende
impor o seu ideal contra a realidade dela, enquanto
este socialismo é cedido pelo proletariado
à pequena-burguesia; enquanto a luta dos
diversos chefes socialistas entre si mesmos põe
em evidência que cada um dos chamados sistemas
se apega afincadamente a um dos pontos de trânsito
da revolução social contrapondo-o
aos outros, o proletariado agrupa-se
cada vez mais em torno do socialismo revolucionário,
em torno do comunismo, para o qual a
própria burguesia tinha inventado o nome
Blanqui.
Este socialismo é a declaração
da permanência da revolução,
a ditadura de classe do proletariado como
ponto de trânsito necessário para
a abolição das diferenças
de classes em geral, para a abolição
de todas as relações de produção
em que aquelas se apoiam, para a abolição
de todas as relações sociais que
correspondem a essas relações de
produção, para a revolução
de todas as ideias que decorrem destas relações
sociais.
O
espaço desta exposição não
me permite tratar este assunto mais pormenorizadamente.
Já
vimos como a aristocracia financeira
necessariamente se pôs à frente do
partido da ordem, o mesmo acontecendo
com o proletariado no partido da "anarquia".
Enquanto as diferentes classes unidas numa ligue(33*)
revolucionária se agrupavam em torno do
proletariado; enquanto os departamentos se tornavam
cada vez mais inseguros e a própria Assembleia
Legislativa se mostrava cada vez mais rabujenta
em relação às pretensões
do Soulouque
francês(34*),
aproximavam-se as eleições complementares
— há tanto tempo adiadas —
para preencher os lugares dos montagnards
proscritos em consequência do 13 de Junho.
O
governo, desprezado pelos seus inimigos, maltratado
e diariamente humilhado pelos seus pretensos amigos,
viu apenas um meio de sair da situação
desagradável e insustentável em
que se encontrava: o motim. Um motim
em Paris teria permitido impor o estado de sítio
a Paris e aos departamentos e, desse modo, pôr
e dispor nas eleições. Por outro
lado, perante um governo que tinha conseguido
uma vitória sobre a anarquia, os amigos
da ordem seriam obrigados a concessões
se não quisessem, eles próprios,
aparecer como anarquistas.
O
governo pôs mão à obra. Princípio
de Fevereiro de 1850: provocações
ao povo com a destruição das árvores
da liberdade[N149].
Em vão. Quando as árvores da liberdade
foram arrancadas, o próprio governo perdeu
a cabeça e recuou perante a sua própria
provocação. Contudo, a Assembleia
Nacional recebeu com uma desconfiança gelada
esta tentativa canhestra de emancipação
de Bonaparte. Não teve maior êxito
a remoção das coroas de sempre vivas
da coluna de Julho[N150].
Isto deu motivo a uma parte do exército
para manifestações revolucionárias
e à Assembleia Nacional para um voto de
desconfiança mais ou menos disfarçado
contra o ministério. Em vão a ameaça
da imprensa do governo da abolição
do sufrágio universal e da invasão
dos cossacos. Em vão o desafio directo
de d'Hautpoul
lançado à esquerda, em plena Assembleia
Legislativa, para vir para a rua, e a sua declaração
de que o governo estava preparado para recebê-la.
Hautpoul
não recebeu senão uma chamada à
ordem do presidente e o partido da ordem deixou
com tranquila malícia que um deputado da
esquerda troçasse dos apetites de usurpação
de Bonaparte.
Em vão finalmente a profecia de uma revolução
para o dia 24 de Fevereiro. O governo conseguiu
que o 24 de Fevereiro fosse ignorado pelo povo.
O
proletariado não se deixou provocar para
um motim porque estava prestes a fazer
uma revolução.
Sem
se deixar desviar pelas provocações
do governo que unicamente aumentavam a irritação
geral contra o estado de coisas existente, o comité
eleitoral totalmente influenciado por operários
apresentou três candidatos por Paris: de
Flotte, Vidal
e Carnot.
De Flotte era um deportado de Junho, amnistiado
por uma das decisões de Bonaparte
em busca de popularidade; era amigo de Blanqui
e tinha participado no atentado de 15 de Maio.
Vidal,
conhecido como escritor comunista devido ao seu
livro Sobre a Repartição da
Riqueza, antigo secretário de Louis
Blanc na Comissão do Palácio
do Luxemburgo; Carnot,
filho do homem da Convenção que
organizara a vitória, o membro menos comprometido
do partido nacional, ministro da Educação
no Governo provisório e na Comissão
Executiva, um protesto vivo contra as leis do
ensino dos jesuítas devido ao seu projecto
de lei democrático sobre a instrução
pública. Estes três candidatos representavam
as três classes aliadas: à frente
um insurrecto de Junho, o representante do proletariado
revolucionário; ao seu lado o socialista
doutrinário, o representante da pequena
burguesia socialista; por fim, o terceiro, o representante
do partido republicano burguês cujas fórmulas
democráticas tinham ganho um sentido socialista
em relação ao partido da ordem e
perdido há muito tempo o seu significado
próprio. Era, como em Fevereiro,
uma coligação geral contra a
burguesia e o governo. Mas desta vez o proletariado
era a cabeça da ligue revolucionária.
A
despeito de todos os esforços contra, os
candidatos socialistas venceram. O próprio
exército votou nos insurrectos de Junho
contra La
Hitte, o seu próprio ministro da Guerra.
O partido da ordem ficou como que fulminado por
um raio. As eleições departamentais
não o consolaram pois deram uma maioria
aos montagnards.
As
eleições de 10 de Março de
1850! Era a revogação do Junho de
1848: massacradores e deportadores dos insurrectos
de Junho regressaram à Assembleia Nacional
mas de cabeça baixa, atrás dos deportados
e com os princípios destes nos lábios.
Era a revogação do 13 de Junho
de 1849: a Montagne proscrita pela
Assembleia Nacional regressou à Assembleia
Nacional mas desta vez como clarim avançado
da revolução e já não
como seu comandante. Era a revogação
do 10 de Dezembro: Napoleão tinha
sido derrotado juntamente com o seu ministro La
Hitte. A história parlamentar da França
conhece apenas um caso análogo: o fracasso
d'Haussez,
ministro de Carlos
X em 1830. As eleições de 10
de Março de 1850 foram finalmente a declaração
da nulidade da eleição de 13 de
Maio que tinha dado a maioria ao partido da ordem.
As eleições de 10 de Março
protestaram contra a maioria do 13 de Maio. O
10 de Março foi uma revolução.
Por detrás dos boletins de voto estão
as pedras das calçadas.
"A
votação do 10 de Março é
a guerra", exclamou Ségur
d'Aguesseau, um dos membros mais progressistas
do partido da ordem.
Com
o 10 de Março de 1850 a república
constitucional entrou numa nova fase, a fase
da sua dissolução. As diferentes
fracções da maioria estão
de novo unidas entre si e com Bonaparte, são
de novo as salvadoras da ordem, ele novamente
o seu homem neutral. Quando elas se lembram
de que são realistas só o fazem
por desesperarem das possibilidades da república
burguesa; quando ele se lembra de que é
um pretendente é só porque desespera
de permanecer presidente.
À
eleição de de
Flotte, o insurrecto de Junho, responde
Bonaparte,
sob comando do partido da ordem, com a nomeação
de Baroche
para ministro do Interior. Baroche
o acusador de Blanqui
e de Barbes,
de Ledru-Rollin
e Guinard. À eleição de Carnot
responde a Legislativa com a aceitação
da lei sobre o ensino; à eleição
de Vidal
com a repressão da imprensa socialista.
Com o trombetear da sua imprensa o partido da
ordem procura dissipar o seu próprio medo.
"A espada é sagrada", exclama
um dos seus órgãos; "os defensores
da ordem têm de tomar a ofensiva contra
o partido vermelho", proclama um outro; "entre
o socialismo e a sociedade trava-se um duelo de
morte, uma guerra desapiedada e sem quartel; neste
duelo desesperado um deles tem de perecer; se
a sociedade não aniquilar o socialismo,
o socialismo aniquila a sociedade", canta
um terceiro galo da ordem. Erguei as barricadas
da ordem, as barricadas da religião, as
barricadas da família! Tem de se acabar
com os 127 000 eleitores de Paris![N151]
Uma noite de São Bartolomeu
para os socialistas! E, por momentos, o partido
da ordem está seguro de que a vitória
será sua.
Os
seus órgãos mostram-se mais fanáticos
contra os "boutiquiers de Paris".
O insurrecto de Junho eleito representante pelos
boutiquiers de Paris! Isto significa
que é impossível um segundo Junho
de 1848; isto significa que é impossível
um segundo 13 de Junho de 1849; isto significa
que a influência moral do capital está
quebrada; isto significa que a Assembleia burguesa
representa apenas a burguesia; isto significa
que a grande propriedade está perdida porque
o seu vassalo, a pequena propriedade, procura
a sua salvação no campo dos sem
propriedade.
O
partido da ordem regressa naturalmente ao seu
inevitável lugar-comum. "Mais
repressão!" exclama, "Dez
vezes mais repressão!", mas a
força da sua repressão diminuiu
dez vezes, enquanto a resistência centuplicou.
O próprio instrumento principal da repressão,
o exército, não deverá também
ele ser reprimido? E o partido da ordem diz a
sua última palavra: "Tem de se romper
o anel de ferro de uma legalidade asfixiante.
A república constitucional é
impossível. Temos de lutar com as
nossas verdadeiras armas; desde Fevereiro de 1848
que combatemos a revolução com as
suas armas e no seu terreno. Aceitámos
as suas instituições; a Constituição
é uma fortaleza que protege unicamente
os sitiantes, não os sitiados! Ao introduzirmo-nos
na sagrada Ílion dentro do bojo do cavalo
de Tróia, não só não
conquistámos a cidade inimiga — ao
contrário do que os nossos antepassados,
os grecs(35*),
tinham feito — como nos tornámos
prisioneiros."
A
base da Constituição porém
é o sufrágio universal.
O aniquilamento do sufrágio universal
é a última palavra do partido da
ordem, da ditadura burguesa.
O
sufrágio universal deu-lhes razão
no dia 4 de Maio de 1848, no dia 20 de Dezembro
de 1848, no dia 13 de Maio de 1849 e no dia 8
de Julho de 1849. Porém, no dia 10 de Março
de 1850 o sufrágio universal não
deu razão a si próprio. O sentido
da Constituição burguesa é
a dominação da burguesia como produto
e resultado do sufrágio universal, como
acto inequívoco da vontade soberana do
povo. Mas a partir do momento em que o conteúdo
deste sufrágio, desta vontade soberana
já não é a dominação
da burguesia, terá a Constituição
ainda sentido? Não será dever da
burguesia regulamentar o direito de voto de maneira
a que se queira o que é razoável,
isto é, a sua dominação?
Ao suprimir de novo continuamente o poder de Estado
existente e ao criá-lo de novo a partir
de si mesmo, não suprime o sufrágio
universal toda a estabilidade, não põe
em questão a todo o momento os poderes
existentes, não reduz a nada a autoridade.
não ameaça elevar a própria
anarquia a autoridade? Quem poderia duvidar de
tal depois do 10 de Março de 1850?
Ao
repudiar o sufrágio universal com o qual
até essa altura se havia coberto e do qual
havia retirado toda a sua omnipotência,
a burguesia confessa sem rebuço: "A
nossa ditadura tem até agora existido pela
vontade do povo; agora tem de ser consolidada
contra a vontade do povo." E consequentemente
já não procura os seus apoios na
França, mas sim no exterior, no estrangeiro,
na invasão.
Ela,
uma segunda Coblença[N152]
que abrira sua sede na própria França,
com a invasão despertara contra si todas
as paixões nacionais. Com o ataque ao sufrágio
universal dá à nova revolução
um pretexto geral, e a revolução
precisava de semelhante pretexto, cada pretexto
especial separaria as fracções
da ligue revolucionária e poria
em evidência as suas diferenças.
O pretexto geral atordoa as classes meio
revolucionárias e permite-lhes iludirem-se
sobre o carácter definido da revolução
futura, sobre as consequências da sua própria
acção. Cada revolução
precisa de uma questão de banquete. O sufrágio
universal é a questão de banquete
da nova revolução.
As
fracções burguesas coligadas, todavia,
estão já condenadas ao abandonarem
a única forma possível do seu poder
unificado, a forma mais violenta e completa
da sua dominação de classe,
a república constitucional, para
voltarem a refugiar-se na forma subalterna, incompleta
e mais fraca, a monarquia. Assemelhavam-se
a um ancião que, para voltar a ter a força
da sua juventude, vá buscar a roupa de
criança e procure à força
enfiar nela os seus murchos membros. A sua república
teve apenas um mérito: o ser a estufa
da revolução.
O
10 de Março de 1850 exibe a seguinte inscrição:
Après
moi le déluge(36*),
depois de mim o dilúvio!
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da página
Notas
de rodapé:
(1*)
Daqui em diante até ao final desta obra
entende-se por Assembleia Nacional a Assembleia
Nacional Legislativa, que funcionou de 28 de Maio
de 1849 a Dezembro de 1851. (retornar
ao texto)
(2*)
No original: Claqueurhut, chapéu
alto de molas. (Nota da edição portuguesa.)
(retornar ao texto)
(3*)
Em francês no texto: Conservatório
das Artes e Ofícios. (Nota da edição
portuguesa.) (retornar ao texto)
(4*)
Em francês no texto: montanheses, membros
ou deputados do partido da Montanha. (Nota da
edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(5*)
Em francês no texto: facto consumado. (Nota
da edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(6*)
Em francês no texto: A cada capacidade segundo
as suas obras. (Alusão irónica a
uma conhecida fórmula de Saint-Simon.)
(Nota da edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(7*)
Em latim no texto: Quanto as coisas tinham mudado!
(Nota da edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(8*)
Em latim no texto: Ou César ou Clichy!
(Clichy: prisão para devedores em Paris.)
(Nota da edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(9*)
Georg Herwegh, Aus den Bergen (Das Montanhas).
(retornar ao texto)
(10*)
Em francês no texto: Vamos pois! Vamos pois!
(Nota da edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(11*)
Em francês no texto: a sério. (Nota
da edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(12*)
Napoleão José Bonaparte, filho de
Jerónimo
Bonaparte. (retornar ao texto)
(13*)
Em italiano no texto: no peito, isto é,
no íntimo. (Nota da edição
portuguesa.) (retornar ao texto)
(14*)
Em francês no texto: gendarmaria. (Nota
da edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(15*)
Em francês no texto: Não era assim
tão estúpido! (Nota da edição
portuguesa.) (retornar ao texto)
(16*)
Em inglês no texto: livre câmbio.
(Nota da edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(17*)
A 8 de Julho de 1847 começou na Câmara
dos Pares de Paris o processo contra Parmentier
e o general Cubières
acusados de suborno de funcionários para
obtenção de uma concessão
de sal-gema, e contra o então ministro
das Obras Públicas, Teste,
pela aceitação de tais subornos.
Durante o processo, este último tentou
suicidar-se. Todos eles foram condenados a pesadas
multas. Teste,
além disso, ainda a três anos de
prisão. (Nota de Engels à edição
de 1895.) (retornar ao texto)
(18*)
Em francês no texto: Viva o imposto sobre
as bebidas [isto é, sobre o vinho]! (Nota
da edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(19*)
Em inglês no texto: Três vivas e mais
um! (Nota da edição portuguesa.)
(retornar ao texto)
(20*)
Em francês no texto: nobreza. (Nota da edição
portuguesa.) (retornar ao texto)
(21*)
Em francês no texto: gente sobre quem se
pode lançar impostos indiscriminadamente.
(retornar ao texto)
(22*)
Em francês no texto: repartições
alfandegárias locais. (Nota da edição
portuguesa.) (retornar ao texto)
(23*)
É este o nome que a história deu
à Câmara de Deputados fanaticamente
ultra-realista e reaccionária eleita em
1815, imediatamente a seguir à segunda
queda de Napoleão. (Nota de Engels à
edição de 1895.) (retornar
ao texto)
(24*)
Em francês no texto: terror branco. (Nota
da edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(25*)
Em francês no texto: presidente da Câmara
Municipal. (Nota da edição portuguesa.)
(retornar ao texto)
(26*)
Em francês no texto: dedicação.
(Nota da edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(27*)
Em francês no texto: ostentação.
(Nota da edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(28*)
Em francês no texto: por junto. (Nota da
edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(29*)
Em francês no texto: a retalho. (Nota da
edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(30*)
Jogo de palavras com as expressões francesas
coup detat (golpe de Estado) e coup
de tête (acto arriscado, arrogante).
(Nota da edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(31*)
Em francês no texto: casamento desigual.
(Nota da edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(32*)
* Em francês no texto: por excelência.
(Nota da edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(33*)
Em francês no texto: liga. (Nota da edição
portuguesa.) (retornar ao texto)
(34*)
Napoleão
III. (retornar ao texto)
(35*)
Jogo de palavras: gregos, mas também: trapaceiros
profissionais. (Nota de Engeh à edição
de 1895.) (retornar ao texto)
(36*)
Palavras atribuídas a Luís
XV. (retornar ao texto)
Notas
de fim de tomo:
[N14]
Esta conclusão da possibilidade da vitória
da revolução proletária apenas
em simultâneo nos países capitalistas
avançados e, consequentemente, a impossibilidade
da vitória da revolução num
só país, que recebeu a sua formulação
mais completa no trabalho de Engels
Princípios
Básicos do Comunismo (1847), era
justa para o período do capitalismo pré-monopolista.
Nas novas condições históricas,
no período do capitalismo monopolista,
V.
I. Lénine, partindo da lei por ele
descoberta do desenvolvimento político
e económico desigual do capitalismo na
época do imperialismo, chegou a uma nova
conclusão: a da possibilidade da vitória
da revolução socialista inicialmente
nalguns ou num só pais, individualmente
considerado, e da impossibilidade da vitória
simultânea da revolução em
todos os países ou na maioria deles. A
formulação desta nova conclusão
surge pela primeira vez no trabalho de Lénine
Sobre
a Palavra de Ordem dos Estados Unidos da Europa
(1915). (retornar ao texto)
[N103]
A batalha de Waterloo (Bélgica)
teve lugar em 18 de Junho de 1815. O
exército de Napoleão
foi derrotado. A batalha de Waterloo desempenhou
um papel decisivo na campanha de 1815, determinando
a vitória definitiva da coligação
antinapoleónica das potências europeias
e a queda do império de Napoleão
I. (retornar ao texto)
[N133]
La Démocratie pacifique (A Democracia
Pacífica), jornal dos fourieristas,
publicado em Paris entre 1843 e 1851 sob a direcção
de V. Consideram.
Na tarde de 12 de Junho de 1849 realizou-se nas
instalações da redacção
do jornal uma reunião dos deputados do
partido da Montanha. Os participantes na reunião
recusaram-se a recorrer à força
das armas e decidiram limitar-se a uma manifestação
pacífica. (retornar ao
texto)
[N134]
No manifesto publicado no jornal Le Peuple
(O Povo), n.° 206, de 13 de Junho de
1849, a Associação Democrática
dos Amigos da Constituição apelava
para os cidadãos de Paris para participarem
numa manifestação pacífica
de protesto contra as "atrevidas pretensões"
do poder executivo. (retornar
ao texto)
[N135]
A proclamação da Montanha foi publicada
em La Reformee em La Démocratie
pacifique, e também no jornal de Proudhon
Le Peuple, em 13 de Junho de 1849. (retornar
ao texto)
[N136]
Marx refere-se à comissão do Papa
Pio IX, composta por três cardeais,
a qual, com o apoio do exército francês,
depois do esmagamento da República Romana,
restaurou em Roma um regime reaccionário.
Os cardeais usavam paramentos de cor púrpura.
(retornar ao texto)
[N137]
Le Siècle (O Século): jornal
francês que se publicou em Paris entre 1836
e 1839; nos anos 40 do século XIX reflectia
as opiniões da parte da pequena burguesia
que se limitava a reivindicar reformas constitucionais
moderadas; nos anos 50 foi o jornal dos republicanos
moderados. (retornar ao texto)
[N138]
La Presse (A Imprensa): jornal que se
publicou em Paris a partir de 1836; durante a
monarquia de Julho tinha um carácter oposicionista;
em 1848-1849 foi órgão dos republicanos
burgueses; depois foi um órgão bonapartista.
(retornar ao texto)
[N139]
Trata-se do conde de Chambord
(que se denominava a si próprio Henrique
V), do ramo principal da dinastia dos Bourbons,
pretendente ao trono francês. Uma das residências
permanentes de Chambord na Alemanha ocidental
era, para além da cidade de Wiesbaden,
a cidade de Ems. (retornar ao
texto)
[N140]
Nos arredores de Londres, em Claremont, vivia
Luís
Filipe, que fugiu de França depois
da revolução de Fevereiro de 1848.
(retornar ao texto)
[N141]
Motu próprio (por sua própria
iniciativa): palavras iniciais de certas mensagens
papais adoptadas sem o acordo dos cardeais, geralmente
relacionadas com assuntos administrativos e de
política interna dos domínios do
Papa. Neste caso trata-se da mensagem do Papa
Pio IX de 12 de Setembro de 1849. (retornar
ao texto)
[N142]
O resultado não coincide: deve ser 578
178 000, e não 538 000 000; aparentemente,
nos números referidos há uma gralha.
Isto, no entanto, não tem influência
na conclusão geral: tanto num caso como
noutro os rendimentos líquidos por habitante
são inferiores a 25 francos. (retornar
ao texto)
[N143]
No departamento de Gard, em resultado da morte
do deputado legitimista De Beaune, realizaram-se
eleições parciais. Foi eleito Favaune,
candidato dos partidários da Montanha,
por uma maioria de 20 000 votos num total de 36
000. (retornar ao texto)
[N144]
Em 1850 o governo dividiu o território
da França em cinco grandes regiões
militares, em resultado do que Paris e os departamentos
vizinhos ficaram cercados pelas restantes quatro
regiões, à cabeça das quais
foram colocados os reaccionários mais declarados.
Ao sublinhar a semelhança entre o poder
ilimitado destes generais reaccionários
e o poder despótico dos paxás turcos,
a imprensa republicana chamou a estas regiões
paxaliques. (retornar ao texto)
[N145]
Trata-se da mensagem do presidente Luís
Bonaparte à Assembleia Legislativa,
enviada em 31 de Outubro de 1849, na qual informava
que aceitava a demissão do governo de Barrot
e formava um novo governo. (retornar
ao texto)
[N146]
Na mensagem de 10 de Novembro de 1849, Carlier,
recém-nomeado prefeito da polícia
de Paris, apelava para a criação
de uma "liga social contra o socialismo",
para a defesa "da religião, do trabalho,
da família, da propriedade, da lealdade".
(retornar ao texto)
[N147]
Le Napoléon (O Napoleão): jornal
que se publicou em Paris de 6 de Janeiro a 19
de Maio de 1850. (retornar ao
texto)
[N148]
Free-traders (livre-cambistas): partidários
da liberdade de comércio e da não
intervenção do Estado na vida económica.
Nos anos 40-50 do século XIX os livre-cambistas
constituíram um agrupamento político
à parte, que posteriormente entrou para
o Partido Liberal. (retornar ao
texto)
[N149]
As árvores da Liberdade foram
plantadas nas ruas de Paris depois da vitória
da revolução de Fevereiro de 1848.
A plantação das árvores da
liberdade — geralmente carvalhos e álamos
— tornou-se uma tradição em
França já no período da revolução
burguesa francesa de fins do século XVIII
e foi introduzida nessa altura por uma disposição
da Convenção. (retornar
ao texto)
[N150]
A coluna de Julho, erigida em Paris de
1840 na Praça da Bastilha em memória
dos mortos da revolução de Julho
de 1830, estava adornada com coroas de sempre-vivas
desde os tempos da revolução de
Fevereiro de 1848. (retornar ao
texto)
[N151]
De
Flotte, partidário de Blanqui
e representante do proletariado revolucionário
de Paris, obteve 126 643 votos nas eleições
de 15 de Março de 1850. (retornar
ao texto)
[N152]
Coblença: cidade da Alemanha Ocidental;
durante a revolução burguesa francesa
de fins do século XVIII foi o centro da
emigração contra-revolucionária.
(retornar ao texto)
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