ABC
Antecedentes Históricos dos Direitos Humanos
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Marcos e Raízes Históricas
dos Direitos Humanos DHnet
As Lutas de Classes em França de
1848 a 1850
Karl
Marx, 1 de Novembro de 1850
I.
A derrota de junho de 1848
Exceptuados
alguns capítulos, todos os parágrafos
mais importantes dos anais da revolução
de 1848 a 1849 têm como título: Derrota
da revolução!
O que nestas derrotas sucumbiu não foi
a revolução. Foram os tradicionais
apêndices pré-revolucionários,
produtos de relações sociais que
não se tinham ainda agudizado em nítidos
antagonismos de classe: pessoas, ilusões,
representações, projectos, de que,
antes da revolução de Fevereiro,
o partido revolucionário não estava
livre e de que só poderia ser libertado
por meio de sucessivas derrotas e não
através da vitória de Fevereiro.
Numa palavra: o progresso revolucionário
abriu caminho não pelas suas conquistas
tragicómicas imediatas, mas, inversamente,
por ter criado uma poderosa e coesa contra-revolução,
por ter criado um adversário na luta contra
o qual é que o partido da subversão
[Umsturzpartei] amadureceu, só
então se tornando num partido verdadeiramente
revolucionário.
É
isto que as páginas seguintes se propõem
demonstrar.
I
— A derrota de Junho de 1848
De Fevereiro a Junho
de 1848
A seguir à revolução de Julho[N106],
o banqueiro liberal Laffitte,
ao conduzir em triunfo para o Hôtel
de Ville(1*)
o seu compère(2*),
o duque de Orléans[N107]
teve este comentário:
"Agora
o reino dos banqueiros vai começar."
Laffitte
traíra o segredo da revolução.
Porém, sob Louis-Philippe
não era a burguesia francesa quem dominava.
Quem dominava era apenas uma fracção
dela: banqueiros, reis da Bolsa, reis do caminho-de-ferro,
proprietários de minas de carvão
e de ferro e de florestas e uma parte da propriedade
fundiária aliada a estes — a chamada
aristocracia financeira. Era ela quem
ocupava o trono, quem ditava leis nas Câmaras,
quem distribuía os cargos públicos
desde o ministério até à
adminstração dos tabacos.
A burguesia industrial propriamente dita
constituía uma parte da oposição
oficial, isto é, estava representada nas
Câmaras apenas como minoria. A sua oposição
manifestava-se tanto mais decididamente quanto
mais se acentuava e desenvolvia a dominação
exclusiva da aristocracia financeira, quanto mais
a burguesia industrial julgava assegurada a sua
dominação sobre a classe operária
depois dos motins afogados em sangue de 1832,
1834 e 1839[N108].
Grandin, um fabricante de Rouen, o porta-voz
mais fanático da reacção
burguesa, na Assembleia Nacional Constituinte
como na Legislativa, era quem, na Câmara
dos Deputados, se opunha com mais violência
a Guizot.
Léon
Faucher, conhecido mais tarde pelos seus esforços
impotentes para se guindar a um Guizot
da contra-revolução francesa, travou
nos últimos anos de Louis-Philippe
uma polémica em favor da indústria
contra a especulação e o seu caudatário,
o governo. Bastiat
fazia agitação em nome de Bordéus
e de toda a França produtora de vinho contra
o sistema dominante.
Tanto a pequena burguesia, em todas as
suas gradações, como a classe
camponesa estavam totalmente excluídas
do poder político. Era, pois, na oposição
oficial ou inteiramente fora do pays legal(3*)
que se encontravam os representantes e os porta-vozes
ideológicos das classes mencionadas: intelectuais,
advogados, médicos, etc. Numa palavra:
as chamadas competências.
Pela penúria financeira, a monarquia de
Julho[N109]
estava de antemão dependente da alta burguesia
e a sua dependência da alta burguesia tornou-se
a fonte inesgotável de uma penúria
financeira sempre crescente. Impossível
subordinar a administração do Estado
ao interesse nacional sem equilibrar o orçamento,
isto é, sem que haja equilíbrio
entre as despesas e as receitas do Estado. E como
estabelecer este equilíbrio sem limitação
das despesas públicas, isto é, sem
ferir interesses que eram outros tantos pilares
do sistema dominante e sem nova regulamentação
da distribuição de impostos, isto
é, sem atirar para os ombros da alta burguesia
uma significativa parte da carga fiscal?
O
endividamento do Estado era, pelo contrário,
o interesse directo da fracção
da burguesia que dominava e legislava através
das Câmaras. O défice do Estado,
esse era o verdadeiro objecto da sua especulação
e a fonte principal do seu enriquecimento. Todos
os anos um novo défice. Quatro ou cinco
anos depois um novo empréstimo. E cada
novo empréstimo oferecia à aristocracia
financeira uma nova oportunidade de defraudar
o Estado, mantido artificialmente à beira
da bancarrota; ele via-se obrigado a pedir mais
dinheiro aos banqueiros, nas condições
mais desfavoráveis. Cada novo empréstimo
constituía uma nova oportunidade de pilhar
o público que investira capitais em títulos
do Estado, mediante operações de
Bolsa em cujo segredo estavam o governo e a maioria
representada na Câmara. Em geral, a situação
periclitante do crédito público
e a posse dos segredos do Estado davam aos banqueiros
e seus associados nas Câmaras e no trono
a possibilidade de provocar extraordinárias
e súbitas flutuações na cotação
dos valores do Estado, de que resultava sempre
a ruína de uma enorme quantidade de capitalistas
mais pequenos e o enriquecimento fabulosamente
rápido dos grandes especuladores. Que o
défice do Estado era o interesse directo
da fracção burguesa dominante, eis
o que explica que as despesas públicas
extraordinárias nos últimos
anos do reinado de Louis-Philippe
tenham ultrapassado de longe o dobro das despesas
extraordinárias no tempo de Napoleão.
De facto, atingiram a soma anual de quase 400
milhões de francos enquanto o montante
global anual da exportação da França
raramente se elevava em média a 750 milhões
de francos. Além disso, as enormes somas
que passavam pelas mãos do Estado permitiam
contratos de fornecimento fraudulentos, subornos,
malversações e vigarices de toda
a espécie. A defraudação
do Estado, em ponto grande, como consequência
dos empréstimos, repetia-se, em ponto menor,
nas obras públicas. A relação
entre a Câmara e o governo encontrava-se
multiplicada nas relações entre
as diversas administrações e os
diversos empresários.
A classe dominante explorava a construção
dos caminhos-de-ferro, tal como as despesas
públicas em geral e os empréstimos
do Estado. As Câmaras atiravam para o Estado
os principais encargos e asseguravam à
aristocracia financeira especuladora os frutos
dourados. Recorde-se os escândalos ocorridos
na Câmara dos Deputados quando, ocasionalmente,
veio a lume que a totalidade dos membros da maioria,
incluindo uma parte dos ministros, estavam interessados
como accionistas nessa mesma construção
dos caminhos-de-ferro que, como legisladores,
depois mandavam executar à custa do Estado.
Em contrapartida, a mais insignificante reforma
financeira fracassava face à influência
dos banqueiros. Um exemplo: a reforma postal.
Rothschild
protestou. Deveria o Estado reduzir fontes de
riqueza com que pagava os juros da sua crescente
dívida?
A monarquia de Julho era apenas uma sociedade
por acções para explorar a riqueza
nacional da França e cujos dividendos eram
distribuídos por ministros, Câmaras,
240 000 eleitores e o seu séquito. Louis-Philippe
era o director desta sociedade, um Robert Macaire
no trono. Num tal sistema, o comércio,
a indústria, a agricultura, a navegação,
os interesses da burguesia industrial não
podiam deixar de estar constantemente ameaçados
e de sofrer prejuízos. Gouvernement
à bon marche, governo barato, fora
o que ela durante as jornadas de Julho inscrevera
na sua bandeira.
Enquanto a aristocracia financeira legislava,
dirigia a administração do Estado,
dispunha de todos os poderes públicos organizados
e dominava a opinião pública pelos
factos e pela imprensa, repetia-se em todas as
esferas, desde a corte ao Café Borgne(4*),
a mesma prostituição, as mesmas
despudoradas fraudes, o mesmo desejo ávido
de enriquecer não através da produção
mas sim através da sonegação
de riqueza alheia já existente; nomeadamente
no topo da sociedade burguesa manifestava-se a
afirmação desenfreada — e
que a cada momento colidia com as próprias
leis burguesas — dos apetites doentios e
dissolutos em que a riqueza derivada do jogo naturalmente
procura a sua satisfação, em que
o prazer se torna crapuleux(5*),
em que o dinheiro, a imundície e o sangue
confluem. No seu modo de fazer fortuna como nos
seus prazeres a aristocracia financeira não
é mais do que o renascimento do lumpenproletariado
nos cumes da sociedade burguesa.
As fracções não dominantes
da burguesia francesa gritavam: Corrupçãol
O povo gritava: À bas les grands voleurs!
À bas les assassins!(6*)
quando no ano de 1847. nos palcos mais elevados
da sociedade burguesa, se representava em público
as mesmas cenas que conduzem regularmente o lumpenproletariado
aos bordéis, aos asilos, aos manicómios,
aos tribunais, às prisões e ao cadafalso.
A burguesia industrial via os seus interesses
em perigo; a pequena burguesia estava moralmente
indignada; a fantasia popular estava revoltada;
Paris estava inundada de folhetos — La
dynastie Rothschild, Les juifs róis de
l'époque(7*),
etc. — nos quais, com mais ou menos espírito,
se denunciava e estigmatizava o domínio
da aristocracia financeira.
Rien
pour la gloire!(8*)
A glória não dá nada! La
paix partout et toujours!(9*)
A guerra faz baixar as cotações
três a quatro por cento! — tinha a
França dos judeus da Bolsa inscrito na
sua bandeira. A política externa perdeu-se,
por isso, numa série de humilhações
do sentimento nacional francês, cuja reacção
se tornou mais viva quando, com a anexação
de Cracóvia pela Áustria[N64],
se completou a espoliação da Polónia
e quando, na guerra suíça do Sonderbund[N110],
Guizot
se pôs activamente ao lado da Santa Aliança[N80].
A vitória dos liberais suíços
neste simulacro de guerra elevou o sentimento
de dignidade da oposição burguesa
em França. O levantamento sangrento do
povo em Palermo actuou como um choque eléctrico
sobre a massa popular paralisada e despertou as
suas grandes recordações e paixões
revolucionárias(10*).
Finalmente, dois acontecimentos económicos
mundiais aceleraram o eclodir do mal-estar
geral e amadureceram o descontentamento até
o converter em revolta.
A praga da batata e as más
colheitas de 1845 e 1846 aumentaram a efervescência
geral do povo. A carestia de 1847 fez estalar
conflitos sangrentos não só em França
como no resto do Continente. Frente às
escandalosas orgias da aristocracia financeira
— a luta do povo pelos bens de primeira
necessidade! Em Buzançais, os amotinados
da fome executados[N111];
em Paris, escrocs(11*)
de barriga cheia arrancados aos tribunais pela
família real!
O segundo grande acontecimento económico
que acelerou o rebentar da revolução
foi uma crise geral do comércio e da
indústria na Inglaterra. Anunciada
já no Outono de 1845 pela derrota maciça
dos especuladores em acções dos
caminhos-de-ferro, retardada durante o ano de
1846 por uma série de casos pontuais, como
a iminente abolição das taxas aduaneiras
sobre os cereais, acabou por eclodir no Outono
de 1847 com a bancarrota dos grandes mercadores
coloniais londrinos, seguida de perto pela falência
dos bancos provinciais e pelo encerramento das
fábricas nos distritos industriais ingleses.
Ainda os efeitos desta crise não se tinham
esgotado no continente e já rebentava a
revolução de Fevereiro.
A devastação que a epidemia económica
causara no comércio e na indústria
tornou ainda mais insuportável a dominação
exclusiva da aristocracia financeira. Em toda
a França, a burguesia oposicionista promoveu
agitação de banquetes por
uma reforma eleitoral que lhe conquistasse
a maioria nas Câmaras e derrubasse o ministério
da Bolsa. Em Paris, a crise industrial teve ainda
como consequência especial lançar
para o comércio interno uma massa de fabricantes
e grandes comerciantes que, nas circunstâncias
presentes, já não podiam fazer negócios
no mercado externo. Estes abriram grandes estabelecimentos
cuja concorrência arruinou em massa épiciers(12*)
e boutiquiers(13*).
Daí um sem-número de falências
nesta parte da burguesia parisiense, daí
a sua entrada revolucionária em cena em
Fevereiro. É conhecido como Guizot
e as Câmaras responderam a estas propostas
de reforma com um inequívoco desafio; como
Louis-Philippe
se decidiu demasiado tarde por um ministério
Barrot;
como estalaram escaramuças entre o povo
e o exército; como o exército foi
desarmado pela atitude passiva da Guarda Nacional[N97],
como a monarquia de Julho teve de ceder o lugar
a um governo provisório.
O Governo provisório que se ergueu
nas barricadas de Fevereiro espelhava necessariamente
na sua composição os diferentes
partidos entre os quais se repartia a vitória.
Não podia, pois, ser outra coisa senão
um compromisso das diferentes classes
que, conjuntamente, tinham derrubado o trono de
Julho, mas cujos interesses se opunham hostilmente.
A sua grande maioria compunha-se de representantes
da burguesia. A pequena burguesia republicana
estava representada por Ledru-Rollin
e Flocon;
a burguesia republicana por gente do National[N112];
a oposição dinástica por
Crémieux,
Dupont
de l'Eure, etc. A classe operária tinha
apenas dois representantes: Louis
Blanc e Albert.
Por fim, a presença de Lamartine
no Governo provisório — isso não
era a princípio um interesse real, uma
classe determinada: era a própria revolução
de Fevereiro, o seu levantamento comum com as
suas ilusões, a sua poesia, o seu conteúdo
imaginário, as suas frases. De resto, o
porta-voz da revolução de Fevereiro,
pela sua posição como pelas suas
opiniões, pertencia à burguesia.
Se é Paris, em consequência da centralização
política, que domina a França, em
momentos de convulsões revolucionárias
são os operários que dominam Paris.
O primeiro acto da vida do Governo provisório
foi a tentativa de se subtrair a esta influência
predominante por um apelo da Paris embriagada
à França sóbria. Lamartine
contestou aos combatentes das barricadas o direito
de proclamar a República, só a maioria
dos franceses seria competente para tal; haveria
que esperar que ela se manifestasse pelo voto,
o proletariado parisiense não deveria manchar
a sua vitória com uma usurpação.
A burguesia permite ao proletariado uma
única usurpação: a da luta.
Ao meio-dia de 25 de Fevereiro a República
ainda não tinha sido proclamada; em contrapartida,
já todos os ministérios se encontravam
distribuídos entre os elementos burgueses
do Governo provisório e entre os generais,
banqueiros e advogados do National. Os
operários, porém, desta vez, estavam
decididos a não tolerar uma escamoteação
semelhante à de Julho de 1830. Estavam
prontos a retomar a luta e a impor a República
pela força das armas. Foi com esta mensagem
que Raspail
se dirigiu ao Hôtel de Ville. Em
nome do proletariado de Paris ordenou ao Governo
provisório que proclamasse a República.
Se dentro de duas horas esta ordem do povo não
tivesse sido cumprida, ele regressaria à
frente de 200 000 homens. Os cadáveres
dos combatentes caídos na luta mal tinham
começado a arrefecer, as barricadas ainda
não tinham sido removidas, os operários
não tinham sido desarmados e a única
força que se lhes podia opor era a Guarda
Nacional. Nestas circunstâncias, dissiparam-se
repentinamente as objecções de subtileza
política e os escrúpulos jurídicos
do Governo provisório. O prazo de duas
horas ainda não tinha expirado e já
todas as paredes de Paris ostentavam as palavras
históricas em letras enormes:
Republique
Française! Liberte, Egalité, Fraternité!(14*)
Com a proclamação da República
com base no sufrágio universal extinguira-se
até a recordação dos objectivos
e motivos limitados que haviam atirado a burguesia
para a revolução de Fevereiro. Todas
as classes da sociedade francesa — em vez
de algumas, poucas, fracções da
burguesia — foram de repente arremessadas
para o círculo do poder político,
obrigadas a abandonar os camarotes, a plateia
e a galeria e a vir representar, em pessoa, no
palco revolucionário! Com a monarquia constitucional
desapareceram também a aparência
de um poder de Estado contraposto soberanamente
à sociedade burguesa [bürgerlichen
Gesellschaft] e toda a série de lutas
secundárias que esse poder aparente provoca!
Ao ditar a República ao Governo provisório
e, por meio de o Governo provisório, a
toda a França, o proletariado passou imediatamente
ao primeiro plano como partido autónomo
mas, ao mesmo tempo, desafiou contra si toda a
França burguesa. O que ele conquistou foi
o terreno para a luta pela sua emancipação
revolucionária, de modo nenhum essa mesma
emancipação.
A República de Fevereiro teve isso sim
de começar por consumar a dominação
da burguesia fazendo entrar, ao lado da aristocracia
financeira, todas as classes possidentes
para o círculo do poder político.
A maioria dos grandes proprietários fundiários,
os legitimistas[N59],
foram emancipados da nulidade política
a que a monarquia de Julho os havia condenado.
Não fora em vão que a Gazette
de France[N113]
fizera agitação
juntamente com os jornais oposicionistas; não
fora em vão que La
Rochejaquelein tomara o partido da revolução
na sessão da Câmara dos Deputados
de 24 de Fevereiro. Através do sufrágio
universal, os proprietários nominais, que
constituem a grande maioria dos Franceses, os
camponeses, passaram a ser os árbitros
do destino da França. Ao destronar a coroa,
atrás da qual o capital se mantinha escondido,
a República de Fevereiro fez que, finalmente,
a dominação da burguesia se manifestasse
na sua pureza.
Tal como nas jornadas de Julho os operários
tinham conquistado a monarquia burguesa, nas jornadas
de Fevereiro conquistaram a república
burguesa. Tal como a monarquia de Julho fora
obrigada a anunciar-se como uma monarquia
rodeada por instituições republicanas,
assim a República de Fevereiro foi obrigada
a anunciar-se como uma república rodeada
por instituições sociais. O
proletariado parisiense forçou também
esta concessão.
Um operário, Marche,
ditou o decreto no qual o recém-formado
Governo provisório se comprometia a assegurar
a existência dos operários por meio
do trabalho e a proporcionar trabalho a todos
os cidadãos, etc. E quando, alguns dias
mais tarde, o Governo se esqueceu das suas promessas
e pareceu ter perdido de vista o proletariado,
uma massa de 20 000 operários dirigiu-se
ao Hôtel de Ville gritando: Organização
do trabalho! Criação de um ministério
especial do Trabalho! A contragosto e depois
de longos debates, o Governo provisório
nomeou uma comissão especial permanente
encarregada de encontrar os meios para
a melhoria das classes trabalhadoras! Essa comissão
era constituída por delegados das corporações
de artesãos de Paris e presidida por Louis
Blanc e Albert.
Para sala de sessões foi-lhes destinado
o Palácio do Luxemburgo. Assim, os representantes
da classe operária foram afastados da sede
do Governo provisório, tendo a parte burguesa
deste conservado exclusivamente nas suas mãos
o verdadeiro poder do Estado e as rédeas
da administração; e, ao lado
dos ministérios das Finanças, do
Comércio, das Obras Públicas, ao
lado da Banca e da Bolsa ergueu-se uma sinagoga
socialista, cujos sumo-sacerdotes, Louis
Blanc e Albert,
tinham como tarefa descobrir a terra prometida,
pregar o novo evangelho e dar trabalho ao proletariado
de Paris. Diferentemente de qualquer poder estatal
profano não dispunham nem de orçamento,
nem de poder executivo. Era com a cabeça
que tinham de derrubar os pilares da sociedade
burguesa. Enquanto o Luxemburgo procurava a pedra
filosofal, no Hôtel de Ville cunhava-se
a moeda em circulação.
E, contudo, as reivindicações do
proletariado de Paris, na medida em que ultrapassavam
a república burguesa, não podiam
alcançar outra existência senão
a nebulosa existência do Luxemburgo.
Os operários tinham feito a revolução
de Fevereiro juntamente com a burguesia; ao
lado da burguesia procuravam fazer valer
os seus interesses, tal como tinham instalado
um operário no próprio Governo provisório
ao lado da maioria burguesa. Organização
do trabalho! Mas o trabalho assalariado é
a organização burguesa existente
do trabalho. Sem ele não há capital,
nem burguesia, nem sociedade burguesa. Um ministério
especial do Trabalho! Mas os ministérios
das Finanças, do Comércio, das Obras
Públicas não são eles os
ministérios burgueses do trabalho?
Ao lado deles, um ministério proletário
do trabalho tinha de ser um ministério
da impotência, um ministério dos
desejos piedosos, uma Comissão do Luxemburgo.
Do mesmo modo que os operários acreditaram
poder emancipar-se ao lado da burguesia, também
julgaram poder realizar uma revolução
proletária dentro dos muros nacionais da
França, ao lado das restantes nações
burguesas. As relações de produção
da França, porém, estão condicionadas
pelo seu comércio externo, pelo seu lugar
no mercado mundial e pelas leis deste. Como é
que a França as romperia sem uma guerra
revolucionária europeia que tivesse repercussões
sobre o déspota do mercado mundial, a Inglaterra?
Uma classe em que se concentram os interesses
revolucionários da sociedade encontra imediatamente
na sua própria situação,
mal se ergue, o conteúdo e o material da
sua actividade revolucionária: bater inimigos,
lançar mão de medidas ditadas pela
necessidade da luta; as consequências dos
seus próprios actos empurram-na para diante.
Não procede a estudos teóricos sobre
a sua própria tarefa. A classe operária
francesa não se encontrava ainda neste
ponto. Era ainda incapaz de levar a cabo a sua
própria revolução.
O
desenvolvimento do proletariado industrial está,
em geral, condicionado pelo desenvolvimento da
burguesia industrial. Só sob a dominação
desta ganha a larga existência nacional
capaz de elevar a sua revolução
a uma revolução nacional; só
então cria, ele próprio, os meios
de produção modernos que se tornam
noutros tantos meios da sua libertação
revolucionária. A dominação
daquela arranca então as raízes
materiais da sociedade feudal e aplana o terreno
no qual, e só aí, é possível
uma revolução proletária.
A indústria francesa é mais evoluída
e a burguesia francesa é mais desenvolvida
revolucionariamente do que a do resto do continente.
Mas a revolução de Fevereiro, não
foi ela directamente dirigida contra a aristocracia
financeira? Este facto demonstrou que a burguesia
industrial não dominava a França.
A burguesia industrial só pode dominar
onde a indústria moderna dá às
relações de propriedade a forma
que lhe corresponde. A indústria só
pode alcançar este poder onde conquistou
o mercado mundial, pois as fronteiras nacionais
são insuficientes para o seu desenvolvimento.
A indústria francesa, porém, em
grande parte, só assegura o seu próprio
mercado nacional através de um proteccionismo
mais ou menos modificado. Por conseguinte, se
o proletariado francês no momento de uma
revolução em Paris possui efectivamente
força e influência que o estimulam
a abalançar-se para além dos seus
meios, no resto da França encontra-se concentrado
em centros industriais dispersos, quase desaparecendo
sob um número muito superior de camponeses
e pequenos burgueses. A luta contra o capital,
na sua forma moderna desenvolvida, no seu factor
decisivo, a luta do operário assalariado
industrial contra o burguês industrial,
é em França um facto parcial que,
depois das jornadas de Fevereiro, podia tanto
menos fornecer o conteúdo nacional à
revolução quanto a luta contra os
modos subordinados da exploração
do capital, a luta do camponês contra a
usura e a hipoteca, do pequeno burguês contra
os grandes comerciantes, banqueiros fabricantes,
numa palavra, contra a bancarrota, estava ainda
embrulhada na sublevação geral contra
a aristocracia financeira. Portanto, é
mais do que explicável que o proletariado
de Paris procurasse fazer valer o seu interesse
ao lado do da burguesia, em vez de o
fazer valer como o interesse revolucionário
da própria sociedade, que deixasse cair
a bandeira vermelha diante da tricolor[N114]
Os operários franceses
não podiam dar um único passo em
frente, tocar num só cabelo da ordem burguesa,
enquanto o curso da revolução não
tivesse revoltado a massa da nação
situada entre o proletariado e a burguesia, os
camponeses e os pequenos burgueses, contra esta
ordem, contra a dominação do capital,
e a não tivesse obrigado a juntar-se aos
proletários como seus combatentes de vanguarda.
Só à custa da tremenda derrota de
Junho[N43]
puderam os operários alcançar esta
vitória.
À
Comissão do Luxemburgo, essa criação
dos operários de Paris, cabe o mérito
de ter revelado, de uma tribuna europeia, o segredo
da revolução do século XIX:
a emancipação do proletariado.
O Moniteur(115*)
corou quando teve de propagar oficialmente os
"extravagantes devaneios" que até
então tinham estado enterrados nos escritos
apócrifos dos socialistas e que apenas
de quando em quando, como lendas remotas, meio
assustadoras, meio ridículas, feriam os
ouvidos da burguesia. A Europa acordou sobressaltada
da sua modorra burguesa. Na ideia dos proletários,
que confundiam a aristocracia financeira com a
burguesia em geral; na imaginação
pedante dos republicanos bem-pensantes, que negavam
a própria existência das classes
ou, quando muito, a admitiam como consequência
da monarquia constitucional; na fraseologia hipócrita
das fracções burguesas até
esse momento excluídas do poder —
fora abolida a dominação da
burguesia com a instauração
da República. Todos os realistas [Royalisten]
se converteram então em republicanos e
todos os milionários de Paris em operários.
A frase que correspondia a esta imaginária
abolição das relações
entre classes era fraternité,
a fraternidade universal, o amor entre irmãos.
Esta cómoda abstracção dos
antagonismos de classes, esta conciliação
sentimental dos interesses de classe contraditórios,
esta visionária elevação
acima da luta de classes, a fraternité
era na verdade a palavra-chave da revolução
de Fevereiro. As classes estavam divididas por
um simples mal-entendido. Em 24 de Fevereiro,
Lamartine
baptizou assim o Governo provisório: "un
gouvernement qui suspend ce matenlendu terrible
qui existe entre les différentes classes"(15*).O
proletariado de Paris regalou-se nesta generosa
embriaguez de fraternidade.
Por seu lado, o Governo provisório, uma
vez forçado a proclamar a república,
tudo fez para a tornar aceitável pela burguesia
e pelas províncias. Os terrores sangrentos
da primeira república francesa[N116]
foram obviados por meio da abolição
da pena de morte por crimes políticos;
a imprensa foi aberta a todas as opiniões;
o exército, os tribunais e a administração
permaneceram, com poucas excepções,
nas mãos dos seus antigos dignitários;
nenhum dos grandes culpados da monarquia de Julho
foi chamado a prestar contas. Os republicanos
burgueses do National divertiam-se a
trocar nomes e trajos monárquicos por velhos
nomes e trajos republicanos. Para eles a república
não passava de um novo trajo de baile para
a velha sociedade burguesa. A jovem república
procurava o seu principal mérito em não
assustar ninguém, antes assustando-se constantemente,
cedendo, não resistindo, a fim de, com
a sua falta de resistência assegurar existência
à sua existência e desarmar a resistência.
Foi dito bem alto, no interior, às classes
privilegiadas, e às potências despóticas,
no exterior, que a república era de natureza
pacífica. O seu lema era, diziam, viver
e deixar viver. A isto acrescentou-se que, pouco
tempo depois da revolução de Fevereiro,
os alemães, os polacos, os austríacos,
os húngaros e os italianos se revoltaram,
cada povo de acordo com a sua situação
imediata. A Rússia, ela própria
agitada, e a Inglaterra, esta última intimidada,
não estavam preparadas. Por conseguinte,
a república não encontrou perante
si nenhum inimigo nacional. Não havia,
pois, nenhumas complicações externas
de grande monta que pudessem inflamar energias,
acelerar o processo revolucionário, impelir
para a frente o Governo provisório ou atirá-lo
pela borda fora. O proletariado de Paris, que
via na república a sua própria obra,
aclamava, naturalmente, todos os actos do Governo
provisório que faziam com que este se afirmasse
com mais facilidade na sociedade burguesa. Deixou
de bom grado que Caussidière
o empregasse nos serviços da polícia
a fim de proteger a propriedade em Paris tal como
deixou Louis
Blanc apaziguar os conflitos salariais entre
operários e mestres. Fazia point d'honneur(16*)
em manter intocada aos olhos da Europa a honra
burguesa da república.
Nem do exterior nem do interior a república
encontrou resistência. Foi isto que a desarmou.
A sua tarefa já não consistia em
transformar revolucionariamente o mundo, consistia
apenas em se adaptar às condições
da sociedade burguesa. As medidas financeiras
do Governo provisório são o mais
eloquente exemplo do fanatismo com que este se
encarregou dessa tarefa.
Tanto o crédito público
como o crédito privado estavam,
naturalmente, abalados. O crédito público
assenta na confiança com que o Estado se
deixa explorar pelos judeus da finança.
Contudo, o velho Estado tinha desaparecido e a
revolução tinha sido sobretudo dirigida
contra a aristocracia financeira. As oscilações
da última crise comercial europeia ainda
não se tinham dissipado. As bancarrotas
ainda se seguiam umas às outras.
Por conseguinte, antes de rebentar a revolução
de Fevereiro o crédito privado
estava paralisado, a circulação
obstruída, a produção interrompida.
A crise revolucionária intensificou a comercial.
E se o crédito privado se apoia na confiança
de que a produção burguesa em toda
a extensão, de que a ordem burguesa permanecem
intocadas e intocáveis, como havia de actuar
uma revolução que punha em questão
os fundamentos da produção burguesa,
a escravidão económica do proletariado,
uma revolução que, perante a Bolsa,
erguia a esfinge do Luxemburgo? O levantamento
do proletariado é a abolição
do crédito burguês pois é
a abolição da produção
burguesa e da sua ordem. O crédito público
e o crédito privado são o termómetro
económico pelo qual se pode medir a intensidade
de uma revolução. No mesmo grau
em que estes descem, sobem o ardor e a força
criadora da revolução.
O Governo provisório queria despojar a
república da sua aparência antiburguesa.
Por isso, tinha, sobretudo, de procurar garantir
o valor de troca desta nova forma de
Estado, a sua cotação na
Bolsa. Com o preço corrente da república
na Bolsa o crédito privado voltou necessariamente
a subir.
Para afastar até a suspeita de
que não queria ou não podia honrar
as obrigações contraídas
pela monarquia, para dar crédito à
moral burguesa e à solvência da república,
o Governo provisório recorreu a uma fanfarronice
tão indigna quanto pueril: antes
do prazo de pagamento fixado por lei o Governo
provisório pagou aos credores do Estado
os juros de 5%, 41/2% e 4%. A proa
burguesa, a jactância dos capitalistas despertaram
subitamente ao verem a pressa escrupulosa com
que se procurava comprar-lhes a confiança.
Naturalmente os embaraços pecuniários
do Governo provisório não se reduziam
por meio de um golpe de teatro que o privava do
dinheiro à vista disponível. Já
não se podia ocultar por mais tempo os
apuros financeiros e foram pequenos burgueses,
criados e operários quem teve de pagar
a agradável surpresa que se havia proporcionado
aos credores do Estado.
As cadernetas de depósito de mais
de 100 francos foram declaradas não convertíveis
em dinheiro. Os montantes depositados nas Caixas
Económicas foram confiscados e transformados,
por decreto, em dívida do Estado não
amortizável. O pequeno burguês,
já de si em apuros, exasperou-se contra
a república. Ao receber títulos
de dívida pública em vez da caderneta,
via-se obrigado a vendê-los na Bolsa e,
assim, a entregar-se directamente nas mãos
dos judeus da Bolsa contra os quais fizera a revolução
de Fevereiro.
A aristocracia financeira, que dominara na monarquia
de Julho, tinha na Banca a sua Igreja
Episcopal. A Bolsa rege o crédito do Estado
como a Banca o crédito comercial.
Ameaçada directamente pela revolução
de Fevereiro, não só na sua dominação
como na sua existência, a Banca procurou
desde o princípio desacreditar a república
generalizando a falta de crédito. De um
momento para o outro recusou o crédito
aos banqueiros, aos fabricantes e aos comerciantes.
Esta manobra, ao não provocar imediatamente
uma contra-revolução, virou-se necessariamente
contra a própria Banca. Os capitalistas
levantaram o dinheiro que tinham depositado nos
cofres dos bancos. As pessoas que tinham papel-moeda
acorreram às caixas para o trocar por ouro
e prata.
O Governo provisório podia, legalmente,
sem ingerência violenta, forçar a
Banca à bancarrota; tinha apenas
de se comportar passivamente e abandonar a Banca
ao seu destino. A bancarrota da Banca
— isso teria sido o dilúvio que,
num abrir e fechar de olhos, varreria do solo
francês a aristocracia financeira, a mais
poderosa e perigosa inimiga da república,
o pedestal de ouro da monarquia de Julho. E, uma
vez a Banca levada à falência, a
própria burguesia tinha de considerar como
uma última e desesperada tentativa de salvação
que o governo criasse um banco nacional e submetesse
o crédito nacional ao controlo da nação.
O Governo provisório, pelo contrário,
deu às notas de Banco curso forçado.
E mais. Transformou todos os bancos provinciais
em filiais do Banque de France fazendo
assim com que este lançasse a sua rede
por toda a França. Mais tarde, como garantia
de um empréstimo que contraiu junto dele,
hipotecou-lhe as matas do Estado. Deste
modo, a revolução de Fevereiro reforçou
e alargou imediatamente a bancocracia que a havia
de derrubar.
Entretanto, o Governo provisório vergava-se
sob o pesadelo de um défice crescente.
Em vão mendigava sacrifícios patrióticos.
Apenas os operários lhe atiravam esmolas.
Era necessário um rasgo de heroísmo,
o lançamento de um novo imposto. Mas lançar
impostos sobre quem? Sobre os tubarões
da Bolsa, os reis da Banca, os credores do Estado,
os rentiers(17*).
os industriais? Não era este o meio da
república cativar as simpatias da burguesia.
Isto significava, por um lado, fazer perigar o
crédito do Estado e o crédito comercial
enquanto, por outro, se procurava obtê-los
com tão pesados sacrifícios e humilhações.
Mas alguém tinha de pagar a factura. E
quem foi sacrificado ao crédito burguês?
Jacques le bonhomme(18*),
o camponês.
O Governo provisório lançou um imposto
adicional de 45 cêntimos por franco sobre
os quatro impostos directos. A imprensa do governo
fez crer ao proletariado parisiense que este imposto
recaía preferencialmente sobre a grande
propriedade fundiária, sobre os detentores
dos mil milhões concedidos pela Restauração[N117].
Na verdade, porém, esse imposto atingia
sobretudo a classe camponesa, isto é,
a grande maioria do povo francês. Os
camponeses tiveram de pagar as custas da revolução
de Fevereiro, neles a contra-revolução
ganhou o seu material mais importante. O imposto
de 45 cêntimos era uma questão de
vida ou de morte para o camponês francês
e este fez dele uma questão de vida ou
de morte para a república. A partir desse
momento, para o camponês, a república
era o imposto dos 45 cêntimos,
e no proletariado de Paris ele via o perdulário
que vivia regalado à sua custa.
Enquanto a revolução de 1789 começou
por sacudir dos camponeses os fardos do feudalismo,
a revolução de 1848, para não
pôr o capital em perigo e manter em funcionamento
a sua máquina de Estado, anunciou-se com
um novo imposto sobre a população
camponesa.
O Governo provisório apenas por um meio
podia remover todos estes estorvos e arrancar
o Estado do seu antigo caminho: pela declaração
da bancarrota do Estado. Recorde-se como,
depois, Ledru-Rollin
na Assembleia Nacional, recitou a virtuosa indignação
com que rejeitou a pretensão do judeu da
Bolsa Fould,
actualmente ministro das Finanças em França.
Fould
tinha-lhe estendido a maçã da árvore
da ciência.
Ao reconhecer as letras de câmbio que a
velha sociedade burguesa sacara sobre o Estado,
o Governo provisório pusera-se a sua mercê.
Tinha-se tornado num acossado devedor da sociedade
burguesa em vez de se lhe impor como credor ameaçador
que tinha de cobrar dívidas revolucionárias
de muitos anos. Teve de reforçar as vacilantes
relações burguesas para cumprir
obrigações que só dentro
dessas relações têm de ser
satisfeitas. O crédito tornou-se a sua
condição de existência e as
concessões ao proletariado, as promessas
que lhe havia feito, outras tantas cadeias
que era preciso romper. A emancipação
dos operários — mesmo como mera frase
— tornou-se um perigo insuportável
para a nova república, pois constituía
um contínuo protesto contra o restabelecimento
do crédito que assenta no reconhecimento
imperturbado e inconturbado das relações
económicas de classe vigentes. Era preciso,
pois, acabar-se com os operários.
A revolução de Fevereiro tinha atirado
o exército para fora de Paris. A Guarda
Nacional, isto é, a burguesia nas suas
diferentes gradações, constituía
a única força. Contudo, não
se sentia suficientemente forte para enfrentar
o proletariado. Além disso, fora obrigada,
ainda que opondo a mais tenaz das resistências
e levantando inúmeros obstáculos,
a abrir, pouco a pouco, e em pequena escala, as
suas fileiras e a deixar que nelas entrassem proletários
armados. Restava, portanto, apenas uma saída:
opor uma parte do proletariado à outra.
Para
esse fim o Governo provisório formou 24
batalhões de Guardas Móveis,
cada um deles com mil homens, cujas idades iam
dos 15 aos 20 anos. Na sua maioria pertenciam
ao lumpenproletariado, que em todas as
grandes cidades constitui uma massa rigorosamente
distinta do proletariado industrial, um centro
de recrutamento de ladrões e criminosos
de toda a espécie que vivem da escória
da sociedade, gente sem ocupação
definida, vagabundos, gens sans feu et sans
aveu(19*),
variando segundo o grau de cultura da nação
a que pertencem, não negando nunca o seu
carácter de lazzaroni[N118];
capazes, na idade juvenil em que o Governo provisório
os recrutava, uma idade totalmente influenciável,
dos maiores heroísmos e dos sacrifícios
mais exaltados como do banditismo mais repugnante
e da corrupção mais abjecta. O Governo
provisório pagava-lhes 1 franco e 50 cêntimos
por dia, isto é, comprava-os. Dava-lhes
um uniforme próprio, isto é, distinguia-os
exteriormente dos homens de blusa de operário.
Para seus chefes eram-lhe impostos, em parte,
oficiais do exército permanente, em parte,
eram eles próprios que elegiam jovens filhos
da burguesia que os cativavam com as suas fanfarronadas
sobre a morte pela Pátria e a dedicação
à República.
Assim, contrapôs-se ao proletariado de Paris,
e recrutado no seu próprio seio, um exército
de 24 000 jovens robustos e audaciosos. O proletariado
saudou com vivas a Guarda Móvel nos seus
desfiles pelas ruas de Paris. Reconhecia nela
os seus campeões nas barricadas. Via nela
a guarda proletária em oposição
à Guarda Nacional burguesa. O seu erro
era perdoável.
A par da Guarda Móvel o governo decidiu
ainda rodear-se dum exército industrial
de operários. O ministro Marie
recrutou para as chamadas oficinas nacionais cem
mil operários que a crise e a revolução
haviam atirado para a rua. Debaixo daquela pomposa
designação não se escondia
senão a utilização dos operários
para aborrecidas, monótonas e improdutivas
obras de aterro a um salário diário
de 23 sous. Workhouses[N119]
inglesas ao ar livre
— estas oficinas nacionais não eram
mais do que isto. O Governo provisório
pensava que com elas tinha criado um segundo exército
proletário contra os próprios operários.
Desta vez, a burguesia enganou-se com as oficinas
nacionais como os operários se tinham enganado
com a Guarda Móvel. O governo tinha criado
um exército para o motim.
Um objectivo, porém, fora conseguido.
Oficinas
nacionais — este era o nome das oficinas
do povo que Louis
Blanc pregava no Luxemburgo. As oficinas de
Marie,
projectadas em oposição
directa ao Luxemburgo, ofereciam a oportunidade,
graças ao mesmo rótulo, para uma
intriga de enganos, digna da comédia espanhola
de criados. O próprio Governo provisório
fez espalhar à socapa o boato que estas
oficinas nacionais eram invenção
de Louis
Blanc, o que parecia tanto mais crível
quanto é certo que Louis
Blanc, o profeta das oficinas nacionais, era
membro do Governo provisório. E na confusão,
meio ingénua, meio intencional, da burguesia
de Paris, na opinião, artificialmente mantida,
da França, da Europa, estas workhouses
eram a primeira realização do socialismo,
que com elas era exposto no pelourinho.
Não pelo seu conteúdo, mas pelo
seu nome, as oficinas nacionais, eram
a encarnação do protesto do proletariado
contra a indústria burguesa, o crédito
burguês e a república burguesa. Sobre
elas recaía portanto todo o ódio
da burguesia. A burguesia encontrara ao mesmo
tempo nelas o ponto para onde poderia dirigir
o ataque logo que estivesse suficientemente robustecida
para romper abertamente com as ilusões
de Fevereiro. Ao mesmo tempo todo o mal-estar,
todo o descontentamento dos pequenos burgueses
dirigia-se contra estas oficinas nacionais, o
alvo comum. Com verdadeira raiva calculavam as
somas que os madraços dos proletários
devoravam, enquanto a sua própria situação
se tornava, dia a dia, mais insustentável.
Uma pensão do Estado para um trabalho fingido,
eis o socialismo! — resmungavam. As oficinas
nacionais, os discursos do Luxemburgo, os desfiles
dos operários através de Paris —
era nisso que eles procuravam as razões
da sua miséria. E ninguém era mais
fanático contra as pretensas maquinações
dos comunistas do que o pequeno-burguês
que, sem salvação, oscilava à
beira do abismo da bancarrota.
Assim, nas iminentes escaramuças entre
a burguesia e o proletariado, todas as vantagens,
todos os postos decisivos, todas as camadas intermédias
da sociedade estavam nas mãos da burguesia
ao mesmo tempo que sobre todo o continente as
ondas da revolução de Fevereiro
quebravam com fragor e cada novo correio trazia
novos boletins da revolução, ora
da Itália, ora da Alemanha, ora dos pontos
afastados do sudeste da Europa, mantendo o povo
num aturdimento generalizado, trazendo-lhe testemunhos
constantes de uma vitória que ele deixara
escapar entre os dedos.
O 17 de Março e o 16 de Abril
foram as primeiras escaramuças da
grande luta de classes que a república
burguesa ocultava sob as suas asas.
O 17 de Março revelou a situação
ambígua do proletariado, a qual não
permitia nenhuma acção decisiva.
A sua manifestação tinha originariamente
como objectivo obrigar o Governo provisório
a regressar à via da revolução
e, eventualmente, expulsar os seus membros burgueses
e adiar as eleições para a Assembleia
Nacional e para a Guarda Nacional. Mas a 16 de
Março, a burguesia representada na Guarda
Nacional realizou uma manifestação
hostil ao Governo provisório. Gritando:
À bas Ledru-Rollin!(20*)
dirigiu-se em massa ao Hôtel de Ville.
E o povo foi obrigado a gritar em 17 de Março:
viva Ledru-Rollin!
Viva o Governo provisório! Fora obrigado
a tomar contra a burguesia o partido da república
burguesa, que lhe parecia posta em causa. E reforçou
o Governo provisório em vez de o submeter
a si. O 17 de Março acabou, pois, por esvaziar-se
numa cena melodramática, e embora nesse
dia o proletariado de Paris tivesse mais uma vez
mostrado o seu gigantesco corpo, a burguesia,
tanto dentro como fora do Governo provisório,
ficou ainda mais decidida a dar cabo dele.
O
16 de Abril foi um mal-entendido
organizado pelo Governo provisório com
a colaboração da burguesia. Inúmeros
operários tinham-se reunido no Campo de
Marte e no Hipódromo a fim de preparar
as suas eleições para o Estado-Maior
da Guarda Nacional. De repente, com a rapidez
de um relâmpago, espalhou-se em Paris inteira,
de uma ponta a outra, o boato de que os operários
se tinham reunido, armados, no Campo de Marte,
sob a direcção de Louis
Blanc, Blanqui,
Cabet
e Raspail,
para daí se dirigirem ao Hôtel
de Ville, derrubarem o Governo provisório
e proclamarem um Governo comunista. Toca a reunir
— mais tarde, Ledru-Rollin,
Marrast
e Lamartine
discutiriam entre si a quem coube a honra da iniciativa
— e numa hora surgem 100 000 homens em armas;
o Hotel de Ville é ocupado em todos os
pontos pela Guarda Nacional; o grito: Abaixo os
comunistas! Abaixo Louis
Blanc, Blanqui,
Raspail,
Cabet!
ressoa em Paris inteira, e o Governo provisório
é alvo de homenagens por parte de incontáveis
delegações, todas elas prontas a
salvar a Pátria e a sociedade. Quando,
por fim, os operários aparecem em frente
do Hôtel de Ville para entregar
ao Governo provisório uma colecta patriótica
que tinham efectuado no Campo de Marte descobrem,
com grande espanto seu, que a Paris burguesa,
numa luta fictícia montada com extrema
prudência, tinha vencido a sua sombra. O
terrível atentado do 16 de Abril forneceu
o pretexto a que se voltasse a chamar o exército
a Paris — o verdadeiro objectivo de
toda aquela comédia tão grosseiramente
montada — e às manifestações
federalistas reaccionárias das províncias.
No dia 4 de Maio reuniu-se a Assembleia Nacional(21*)
saída das eleições gerais
directas. O sufrágio universal não
possuía o poder mágico que os republicanos
da velha guarda acreditavam que tinha. Em toda
a França, pelo menos na maioria dos franceses,
viam eles citoyens(22*)
com os mesmos interesses, o mesmo discernimento,
etc. Era este o seu culto do povo. Em
vez deste povo imaginado, as eleições
francesas trouxeram à luz do dia o povo
real, isto é, os representantes
das diferentes classes em que ele se divide. Vimos
por que razão os camponeses e os pequenos
burgueses, sob a orientação da belicosa
burguesia e dos grandes proprietários fundiários
ávidos da restauração, haviam
sido obrigados a votar. Contudo, embora o sufrágio
universal não fosse a varinha de condão
por que os probos republicanos o tinham tomado,
possuía o mérito incomparavelmente
maior de desencadear a luta de classes, de fazer
com que as diferentes camadas médias da
sociedade burguesa vivessem rapidamente as suas
ilusões e desenganos, de atirar de um só
golpe todas as fracções da classe
exploradora para o cume do Estado e, assim, arrancar-lhes
a enganosa máscara, enquanto a monarquia
com o seu censo fazia com que apenas determinadas
fracções da burguesia se comprometessem,
deixando outras escondidas atrás dos bastidores
e envolvendo-as com a auréola de uma oposição
comum.
Na Assembleia Nacional Constituinte, que se reuniu
no dia 4 de Maio, os republicanos burgueses,
os republicanos do National estavam na
mó de cima. Até os legitimistas
e os orleanistas[N92]
só sob a máscara do republicanismo
burguês se atreveram a princípio
a mostrar-se. Só em nome da República
se podia iniciar a luta contra o proletariado.
A
República, isto é, a república
reconhecida pelo povo francês, data
de 4 de Maio e não de 25 de Fevereiro.
Não é a república que o proletariado
de Paris impôs ao Governo provisório;
não é a república com instituições
sociais; não é o sonho que pairava
perante os olhos dos combatentes das barricadas.
A república proclamada pela Assembleia
Nacional, a única república legítima,
é a república que não é
uma arma revolucionária contra a ordem
burguesa, antes a reconstituição
política desta, a consolidação
política da sociedade burguesa, numa palavra:
a república burguesa. Esta afirmação
ressoou alto da tribuna da Assembleia Nacional
e encontrou eco em toda a imprensa burguesa republicana
e anti-republicana.
Vimos como, na verdade, a república de
Fevereiro não era senão, e não
podia deixar de o ser, uma república burguesa;
como, porém, o Governo provisório,
sob a pressão imediata do proletariado,
fora obrigado a anunciá-la como uma república
com instituições sociais; como
o proletariado parisiense era ainda incapaz de
ir além da república burguesa a
não ser na representação
e na fantasia; como ele agiu ao seu serviço
em toda a parte em que verdadeiramente passou
à acção; como as promessas
que lhe haviam sido feitas se tornaram num perigo
insuportável para a nova república;
como todo o processo de vida do Governo provisório
se resumiu a uma luta contínua contra as
reivindicações do proletariado.
Na Assembleia Nacional era a França inteira
que julgava o proletariado parisiense em tribunal.
Ela rompeu imediatamente com as ilusões
sociais da república de Fevereiro e proclamou
sem rodeios a república burguesa
como república burguesa, única e
exclusivamente. Expulsou imediatamente da Comissão
Executiva, por ela nomeada, os representantes
do proletariado, Louis
Blanc e Albert.
Repudiou a proposta de um ministério do
Trabalho especial e recebeu com tempestade de
aplausos a declaração do ministro
Trélat:
"Trata-se
agora apenas de reconduzir o trabalho às
suas antigas condições."
Tudo isto, porém, não chegava. A
república de Fevereiro fora conquistada
pela luta dos operários com a ajuda passiva
da burguesia. Os proletários consideravam-se,
pois, com razão, os vencedores de Fevereiro
e apresentaram as altivas exigências do
vencedor. Era preciso que os proletários
fossem derrotados na rua, era preciso mostrar-lhes
que sucumbiriam logo que combatessem não
com a burguesia mas contra a
burguesia. Assim como a república de Fevereiro
com as suas concessões socialistas tivera
necessidade de uma batalha do proletariado unido
à burguesia contra a realeza, assim agora
se tornava necessária uma nova batalha
para separar a república das concessões
socialistas, para se conseguir que a república
burguesa fosse oficialmente o regime dominante.
A burguesia tinha, pois, de, com as armas na mão,
se opor às reivindicações
do proletariado. E o verdadeiro berço da
república burguesa não é
a vitória de Fevereiro mas sim
a derrota de Junho.
O proletariado acelerou esta decisão quando
a 15 de Maio invadiu a Assembleia Nacional e procurou,
sem êxito, reconquistar a sua influência
revolucionária. Mas apenas obteve como
resultado que os seus enérgicos chefes
fossem entregues aos carcereiros da burguesia[N120].
Il faut en finir! Esta situação
tem de acabar! Com este grito, a Assembleia Nacional
exprimia a sua determinação de obrigar
o proletariado a uma batalha decisiva. A Comissão
Executiva promulgou uma série de decretos
provocatórios, como a proibição
de ajuntamentos, etc. Do alto da tribuna da Assembleia
Nacional Constituinte os operários foram
abertamente provocados, insultados, escarnecidos.
Mas o verdadeiro ponto de ataque era, como já
vimos, as oficinas nacionais. Foi para
estas que, numa atitude autoritária, a
Assembleia Nacional Constituinte alertou a Comissão
Executiva, que apenas estava à espera de
ouvir claramente enunciado o seu próprio
plano como ordem da Assembleia Nacional.
A Comissão Executiva começou pôr
dificultar o ingresso nas oficinas nacionais,
por mudar o salário ao dia para salário
à peça e a desterrar para Sologne,
sob pretexto de executarem obras de aterro, os
operários que não fossem naturais
de Paris. Essas obras de aterro eram apenas uma
fórmula retórica com que se dourava
o desterro, tal como os trabalhadores desiludidos
que regressavam informavam os seus camaradas.
Finalmente no dia 21 de Junho foi publicado um
decreto no Moniteur que ordenava a expulsão
violenta das oficinas nacionais de todos os operários
solteiros ou a sua incorporação
no exército.
Aos operários não restava escolha:
ou morriam à fome ou iniciavam a luta.
Responderam, em 22 de Junho, com a imensa insurreição
na qual se travou a primeira grande batalha entre
ambas as classes em que se divide a sociedade
moderna. Foi uma luta pela manutenção
ou destruição da ordem burguesa.
O véu que encobria a república rasgou-se.
É
conhecido como os operários, dando provas
de uma coragem e genialidade inauditas, sem chefes,
sem um plano comum, sem meios e sem armas na sua
maioria, mantiveram em respeito durante cinco
dias o exército, a Guarda Móvel,
a Guarda Nacional de Paris e a Guarda Nacional
que fora enviada em massa da província.
É conhecida a brutalidade inaudita com
que a burguesia se desforrou do medo mortal que
tinha passado e massacrou mais de 3 000 prisioneiros.
Os representantes oficiais da democracia francesa
estavam tão presos à ideologia republicana
que só algumas semanas mais tarde começaram
a pressentir o significado da luta de Junho. Estavam
como que atordoados pelo fumo da pólvora
em que a sua república fantástica
se desfizera.
Permita-nos o leitor que descrevamos com as palavras
da Neue
Rheinische Zeitung a impressão
imediata que a notícia da derrota de Junho
provocou em nós:
"O
último resto oficial da revolução
de Fevereiro, a Comissão Executiva, diluiu-se
como uma fantasmagoria perante a gravidade dos
acontecimentos. Os foguetes luminosos de Lamartine
transformaram-se nas granadas incendiárias
de Cavaignac.
A fraternité, a fraternidade das
classes opostas, em que uma explora a outra, essa
fraternité proclamada em Fevereiro,
escrita em letras enormes na fachada de Paris,
em cada prisão, em cada quartel —
a sua expressão, a sua expressão
verdadeira, autêntica, prosaica, é
a guerra civil, a guerra civil na sua
forma mais terrível, a guerra entre o trabalho
e o capital. Esta fraternidade flamejava ainda
diante de todas as janelas de Paris na noite de
25 de Junho, quando a Paris da burguesia se iluminava
e a Paris do proletariado ardia, gemia e se esvaía
em sangue. Esta fraternidade só durou enquanto
o interesse da burguesia esteve irmanado com o
interesse do proletariado. Pedantes da velha tradição
revolucionária de 1793; doutrinários
socialistas, que mendigavam à burguesia
para o povo e a quem se permitiu longas discursatas
e comprometerem-se enquanto foi necessário
embalar o leão proletário; republicanos,
que exigiam toda a velha ordem burguesa, descontada
a cabeça coroada; oposicionistas dinásticos
aos quais o destino surpreendeu com a queda de
uma dinastia em vez da substituição
de um ministério; legitimistas
que não queriam atirar fora a libré
mas somente alterar-lhe o corte — eram estes
os aliados com os quais o povo fizera o seu Fevereiro...
A revolução de Fevereiro foi a revolução
bela, a revolução da simpatia
universal, porque as oposições que
nela eclodiram contra a realeza se encontraram
uma ao lado da outra, tranquilamente adormecidas,
não desenvolvidas, porque a luta
social que constituía o seu pano de fundo
apenas tinha obtido uma existência de ar,
a existência da frase, da palavra. A revolução
de Junho é a revolução
feia, a revolução repugnante,
porque o acto substituiu a palavra, porque a república
pôs a descoberto a cabeça do próprio
monstro ao derrubar a coroa que o protegia e ocultava.
Ordem! era o grito de guerra de Guizot.
Ordem! grita Sébastiani,
o Guizotista, quando Varsóvia ficou nas
mãos dos russos. Ordem! grita Cavaignac,
o eco brutal da Assembleia Nacional Francesa e
da burguesia republicana. Ordem! troava
a sua metralha ao despedaçar o corpo dos
proletários. Nenhuma das numerosas revoluções
da burguesia francesa desde 1789 fora um atentado
contra a ordem, pois todas deixavam de
pé a dominação de classe,
a escravidão dos operários, a ordem
burguesa, muito embora a forma política
dessa dominação e dessa escravidão
mudasse. Junho tocou nessa ordem. Ai de ti Junho!"
(N. Rh. Z, 29 de Junho de 1848.)(23*)
Ai de ti Junho! responde o eco europeu.
O proletariado de Paris foi obrigado
pela burguesia à insurreição
de Junho. Já nisto havia a sentença
que o condenava. Nem a sua necessidade imediata
e confessada o levava a querer derrubar violentamente
a burguesia, nem estava à altura de tal
tarefa. O Moniteur teve de fazer-lhe
saber oficialmente que o tempo em que a república
se vira obrigada a prestar homenagem às
suas ilusões já tinha passado, e
só a sua derrota o convenceu desta verdade:
que, no seio da república burguesa,
a mais pequena melhoria da sua situação
é uma utopia, uma utopia que passa
a ser crime logo que queira realizar-se. Em vez
das reivindicações exaltadas na
forma, mas mesquinhas no conteúdo e mesmo
ainda burguesas, cuja satisfação
ele queria forçar a república de
Fevereiro a conceder, surgia agora a audaciosa
palavra de ordem revolucionária: Derrube
da burguesia! Ditadura da classe operária!
Ao transformar o seu lugar de morte em lugar de
nascimento da república burguesa,
o proletariado obrigou-a ao mesmo tempo a manifestar-se
na sua forma pura como Estado, cujo objectivo
confesso é eternizar a dominação
do capital e a escravidão do trabalho.
Não tirando os olhos do inimigo cheio de
cicatrizes, irreconciliável e invencível
— invencível porque a sua existência
é a condição da própria
vida dela — a dominação burguesa,
livre de todas as peias, tinha que imediatamente
descambar no terrorismo burguês.
Com o proletariado provisoriamente afastado do
palco, com a ditadura burguesa reconhecida oficialmente,
as camadas médias da sociedade burguesa,
a pequena burguesia e a classe dos camponeses
tiveram de se ligar cada vez mais ao proletariado
na medida em que a sua situação
se tornava mais insuportável e a sua oposição
em relação à burguesia se
tornava mais dura. Tinha agora de encontrar a
razão das suas misérias na derrota
daquele tal como outrora a haviam encontrado no
seu ascenso.
Quando por toda a parte no continente a insurreição
de Junho elevou a consciência de si própria
da burguesia e a fez estabelecer abertamente uma
aliança com a realeza feudal contra o povo,
quem foi a primeira vítima dessa aliança?
A própria burguesia continental. A derrota
de Junho impediu-a de consolidar a sua dominação
e de imobilizar o povo, meio satisfeito e meio
melindrado, no escalão subalterno da revolução
burguesa.
Finalmente, a derrota de Junho revelou às
potências despóticas da Europa o
segredo de que a França tinha de manter
a todo o custo a paz com o exterior a fim de no
interior levar a cabo a guerra civil. Assim, os
povos que tinham iniciado a luta pela sua independência
nacional foram abandonados à prepotência
da Rússia, da Áustria e da Prússia,
mas, ao mesmo tempo, o destino destas revoluções
nacionais ficava sujeito à sorte da revolução
proletária e despojado da sua aparente
autonomia, da sua independência face à
grande transformação social. O húngaro
não será livre, nem o polaco, nem
o italiano enquanto o operário for escravo!
Por fim, com as vitórias da Santa
Aliança, a Europa adquiriu uma forma
que faz imediatamente coincidir cada nova sublevação
proletária em França com uma guerra
mundial. A nova revolução francesa
é obrigada a deixar imediatamente o solo
nacional e a conquistar o terreno europeu,
o único em que a revolução
social do século XIX pode ser levada a
cabo.
Portanto, só através da derrota
de Junho foram criadas todas as condições
no seio das quais a França pode tomar a
iniciativa da revolução
europeia. Só empapada no sangue dos insurrectos
de Junho a tricolor se tornou bandeira da
revolução europeia — bandeira
vermelha!
E nós gritamos: A revolução
morreu! Viva a revolução!
Notas
de rodapé:
(1*)
Em francês no texto: edifício da
Câmara Municipal. (Nota da edição
Portuguesa.) (retornar ao texto)
(2*)
Em francês no texto: compadre, cúmplice..
(Nota da edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(3*)
Em francês no texto: país legal,
isto é: aqueles que tinham direito de voto.
(Nota da edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(4*)
Em francês no texto: designação
para cafés e tabernas de má nota
em Paris. (retornar ao texto)
(5*)
Em francês no texto: crapuloso. (Nota da
edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(6*)
Em francês no texto: Abaixo os grandes ladrões!
Abaixo os assassinos! (Nota da edição
portuguesa.) (retornar ao texto)
(7*)
* Em francês no texto: A dinastia Rothschild,
Os judeus reis da época. (Nota da edição
portuguesa.) (retornar ao texto)
(8*)
Em francês no texto: Nada em troco da glória!
(Nota da edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(9*)
Em francês no texto: A paz em toda a parte
e sempre! (Nota da edição portuguesa.)
(retornar ao texto)
(10*)
Anexação de Cracóvia pela
Áustria, de acordo com a Rússia
e a Prússia, 11 de Novembro de 1846. Guerra
suíça do Sonderbund, 4/28
de Novembro de 1847. Insurreição
de Palermo, 12 de Janeiro de 1848. Fim de Janeiro,
bombardeamento da cidade durante nove dias pelos
napolitanos. (Nota de Engels à edição
de 1895.) (retornar ao texto)
(11*)
Em francês no texto: escroques. (Nota da
edição portuguesa. (retornar
ao texto)
(12*)
Em francês no texto: merceeiros. (Nota da
edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(13*)
Em francês no texto: lojistas. (Nota da
edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(14*)
Em francês no texto: República Francesa!
Liberdade, Igualdade, Fraternidade! (Nota da edição
portuguesa.) (retornar ao texto)
(15*)
Em francês no texto: "um governo que
acaba com esse mal-entendido terrível que
existe entre as diferentes classes". (Nota
da edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(16*)
Em francês no texto: questão de honra.
(Nota da edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(17*)
Em francês no texto: os que possuem ou vivem
de rendimentos. (Nota da edição
portuguesa.) (retornar ao texto)
(18*)
Em francês no texto: Jacques o simples,
nome depreciativo com que os nobres designavam
os camponeses em França. (Nota da edição
portuguesa.) (retornar ao texto)
(19)
Em francês no texto: gente sem pátria
e sem lar. (Nota da edição portuguesa.)
(retornar ao texto)
(20*)
Em francês no texto: Abaixo Ledru-Rollin!
(Nota da edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(21*)
Aqui e até à p. 257 entende-se por
Assembleia Nacional a Assembleia Nacional Constituinte
que funcionou de 4 de Maio de 1848 até
Maio de 1849. (retornar ao texto)
(22*)
Em francês no texto: cidadãos. (Nota
da edição portuguesa.) (retornar
ao texto)
(23*)
Ver o artigo de Karl Marx «A Revolução
de Junho». (retornar ao texto)
Notas
de fim de tomo:
[N43]
Insurreição de Junho: heróica
insurreição dos operários
de Paris em 23-26 de Junho de 1848, esmagada com
excepcional crueldade pela burguesia francesa.
Esta insurreição foi a primeira
grande guerra civil da história entre o
proletariado e a burguesia. (retornar
ao texto)
[N59]
Legitímistas: partidários da dinastia
«legítima» dos Bourbons, derrubada
em 1830, que representava os interesses dos detentores
de grandes propriedades fundiárias hereditárias.
Na luta contra a dinastia reinante dos Orleães
(1830-1848), que se apoiava na aristocracia financeira
e na grande burguesia, uma parte dos legitimistas
recorria frequentemente à demagogia liberal,
apresentando-se como defensores dos trabalhadores
contra os exploradores burgueses. (retornar
ao texto)
[N64]
Em Fevereiro de 1846 foi preparada a insurreição
nas terras polacas com vista à libertação
nacional da Polónia. Os principais iniciadores
da insurreição foram os democratas
revolucionários polacos (Dembowski e outros).
No entanto, em resultado da traição
dos elementos da nobreza e da prisão dos
dirigentes da insurreição pela policia
prussiana, a insurreição geral não
se realizou e verificaram-se apenas explosões
revolucionárias isoladas. Só em
Cracóvia, submetida desde 1815 ao controlo
conjunto da Áustria, da Rússia e
da Prússia, os insurrectos conseguiram
alcançar a vitória em 22 de Fevereiro
e criar um Governo Nacional, que publicou um manifesto
sobre a abolição das cargas feudais.
A insurreição em Cracóvia
foi esmagada no começo de Março
de 1846. Em Novembro de 1846 a Áustria,
a Prússia e a Rússia subscreveram
um tratado sobre a integração de
Cracóvia no Império Austríaco.
(retornar ao texto)
[N80]
Santa Aliança: agrupamento reaccionário
dos monarcas europeus, fundada em 1815 pela Rússia
tsarista, pela Áustria e pela Prússía
para esmagar os movimentos revolucionários
de alguns países e manter neles regimes
monarco-feudais. (retornar ao texto)
[N92]
Trata-se dos dois partidos monárquicos
da burguesia francesa na primeira metade do século
XIX: os legitimistas
e os orleanistas.
Orleanisías: partidários
dos duques de Orleães, ramo secundário
da dinastia dos Bourbons, que se mantiveram no
poder desde a revolução de Julho
de 1830 até serem derrubados pela revolução
de 1848; representavam os interesses da aristocracia
financeira e da grande burguesia.
No
período da Segunda República (1848-1851)
ambos os agrupamentos monárquicos constituíram
o núcleo do "partido da ordem",
partido conservador unificado. (retornar
ao texto)
[N97]
Guarda Nacional: milícia voluntária
civil armada, com comandos eleitos, que existiu
em França e em alguns outros Estados da
Europa ocidental. Foi criada pela primeira vez
em França em 1789, no início da
revolução burguesa; existiu com
intervalos até 1871. Em 1870-1871, a Guarda
Nacional de Paris, para a qual entraram, nas condições
da guerra franco-prussiana, amplas massas democratas,
desempenhou um grande papel revolucionário.
Criado em Fevereiro de 1871, o Comité Central
da Guarda Nacional encabeçou a insurreição
proletária de 18 de Março de 1871
e no período inicial da Comuna
de Paris de 1871 exerceu (até 28 de
Março) as funções de primeiro
governo proletário da história.
Depois do esmagamento da Comuna
de Paris a Guarda Nacional foi dissolvida.
(retornar ao texto)
[N106]
Trata-se da revolução burguesa de
1830, em resultado da qual foi derrubada a dinastia
dos Bourbons. (retornar ao texto)
[N107]
O duque de Orleães ocupou o trono francês
com o nome de Luís
Filipe. (retornar ao texto)
[N108]
Em 5 e 6 de Junho de 1832 teve lugar em Paris
uma insurreição. Os operários
que nela participaram ergueram uma série
de barricadas e defenderam-se com grande coragem
e firmeza.
Em Abril de 1834 teve lugar uma insurreição
de operários em Lião, uma das primeiras
acções de massas do proletariado
francês. A insurreição, apoiada
pelos republicanos numa série de outras
cidades, particularmente em Paris, foi cruelmente
esmagada.
A insurreição de 12 de Maio de 1839
em Paris, na qual os operários revolucionários
desempenharam também um papel principal,
foi preparada pela Sociedade das Estações
do Ano, sociedade secreta republicano-socialista,
sob a direcção de A.
Blanqui e A.
Barbes; foi reprimida pelas tropas e pela
Guarda Nacional. (retornar ao
texto)
[N109]
Monarquia de Julho: reinado de Luís
Filipe (1830-1848), que recebeu a sua designação
da revolução de Julho. (retornar
ao texto)
[N110]
Sonderbund: aliança separada dos sete cantões
católicos da Suíça, atrasados
do ponto de vista económico; foi concluída
em 1843 com o objectivo de se opor às transformações
burguesas progressivas na Suíça
e para defender os privilégios da Igreja
e os jesuítas. A resolução
da dieta suíça de Juiho de 1847
sobre a dissolução do Sonderbund
serviu de pretexto para que este iniciasse, no
começo de Novembro, acções
armadas contra os restantes cantões. Em
23 de Novembro de 1847 o exército do Sonderbund
foi derrotado pelas tropas do governo federal.
Durante a guerra do Sonderbund, as potências
reaccionárias da Europa ocidental, que
dantes faziam parte da Santa
Aliança — a Áustria e
a
Prússia — tentaram imiscuir-se nos
assuntos suíços em benefício
do Sonderbund. Guizot
adoptou de facto uma posição
de apoio a estas potências, tomando
sob a sua defesa o Sonderbund. (retornar
ao texto)
[N111]
Em Buzançais (departamento de Indre), na
Primavera de 1847, por iniciativa dos operários
famintos e dos habitantes das aldeias vizinhas,
foram assaltados armazéns de víveres
pertencentes a especuladores; isto deu lugar a
um sangrento choque da população
com a tropa. Os acontecimentos de Buzançais
provocaram uma cruel repressão governamental:
quatro participantes directos nos acontecimentos
foram executados em 16 de Abril de 1847, e muitos
outros foram condenados a trabalhos forçados.
(retornar ao texto)
[N112]
Le National (O Nacional): jornal francês
que se publicou em Paris de 1830 a 1851; órgão
dos republicanos burgueses moderados. Os mais
destacados representantes desta corrente no Governo
Provisório eram Marrast,
Bastide
e Garnier-Pagès. (retornar
ao texto)
[N113]
La Gazette de France (A Gazeta de França):
jornal que se publicou em Paris desde 1631
até aos anos 40 do século XIX; órgão
dos legitimistas,
partidários da restauração
da dinastia dos Bourbons. (retornar
ao texto)
[N114]
Nos primeiros dias de existência da República
Francesa colocou-se a questão da escolha
da bandeira nacional. Os operários revolucionários
de Paris exigiram que se declarasse insígnia
nacional a bandeira vermelha, que foi arvorada
nos subúrbios operários de Paris
durante a insurreição de Junho de
1832.
Os representantes da burguesia insistiram na bandeira
tricolor (azul, branco e vermelho), que foi a
bandeira da França no período da
revolução burguesa de fins do século
XVIII e do Império de Napoleão
I. Já antes da revolução
de 1848 esta bandeira tinha sido o emblema dos
republicanos burgueses, agrupados em torno do
jornal Le National. Os representantes
dos operários viram-se obrigados a aceder
que a bandeira tricolor fosse declarada a bandeira
nacional da
República Francesa. No entanto, à
haste da bandeira foi acrescentada uma roseta
vermelha. (retornar ao texto)
[N115]
Le Moniteur universel (O Mensageiro Universal):
jornal francês, órgão
oficial do governo, publicou-se em Paris de 1789
a 1901. Nas páginas do Moniteur eram
obrigatoriamente publicadas as disposições
do governo, informações parlamentares
e outros materiais oficiais; em 1848 publicavam-se
também neste jornal informações
sobre as reuniões da Comissão do
Luxemburgo. (retornar ao texto)
[N116]
A primeira república existiu em França
de 1792 a 1804. (retornar ao texto)
[N117]
Trata-se da soma destinada pela coroa francesa,
em 1825, a compensar os aristocratas, cujos bens
foram confiscados durante a revolução
burguesa francesa de fins do século XVIII.
(retornar ao texto)
[N118]
Lazzaroni: alcunha dada em Itália
aos lumpenproletários, aos elementos desclassificados;
os lazzaroni eram frequentemente
utilizados pelos círculos monárquico-reaccionários
na luta contra o movimento democrático
e liberal. (retornar ao texto)
[N119]
Segundo a "lei sobre os pobres" inglesa,
só era admitida uma forma de ajuda aos
pobres: o seu alojamento em casas de trabalho
(workhouses), com um regime prisional;
os operários realizavam aí trabalhos
improdutivos, monótonos e extenuantes;
estas casas de trabalho foram designadas pelo
povo de "bastilhas para os pobres".
(retornar ao texto)
[N120]
Em 15 de Maio de 1848, durante uma manifestação
popular, os operários e artesãos
de Paris penetraram na sala de sessões
da Assembleia Constituinte, declararam-na dissolvida
e formaram um governo revolucionário. No
entanto, os manifestantes foram rapidamente dispersos
pela Guarda Nacional e pela tropa. Os dirigentes
dos operários (Blanqui,
Barbes,
Albert,
Raspail,
Sobrier e outros) foram presos. (retornar
ao texto) |