|   História 
                                        dos Direitos Humanos Mundo 
                                        Textos e Reflexões
                                       Atualidade 
                                        dos direitos humanos e seus antecedentes 
                                        históricos 
                                        Jacob Gorender
                                       Do 
                                        Iluminismo à Segunda Guerra Mundial 
                                      Universalidade 
                                        e variedade dos direitos humanos 
                                        
                                       
                                       
                                        
                                      Atualidade 
                                        dos direitos humanos e seus antecedentes 
                                        históricos
                                        
                                        Todos os dias, somos lembrados a respeito 
                                        dos direitos humanos. Televisão, 
                                        jornais, revistas os mencionam e defendem. 
                                        Mas quase sempre porque são violados 
                                        e, com grande freqüência, violados 
                                        pelos meios mais brutais e bárbaros. 
                                       
                                        Por que isso acontece, se existem convenções 
                                        e tratados internacionais protetores dos 
                                        direitos humanos, documentos dos quais 
                                        o governo brasileiro é signatário? 
                                        Por que isso acontece, se o governo federal 
                                        dispõe de um ministério 
                                        especificamente dedicado a cuidar dos 
                                        direitos humanos e se, nos estados, atuam 
                                        secretarias com a mesma finalidade? 
                                       
                                        A Organização das Nações 
                                        Unidas possui um Alto Comissariado para 
                                        os Direitos Humanos, cargo que o diplomata 
                                        brasileiro Sérgio Vieira de Mello 
                                        veio a ocupar em 2002 e no exercício 
                                        do qual, no ano seguinte, perdeu a vida, 
                                        vitima de um atentado no Iraque. O ataque 
                                        destruidor das torres gêmeas do 
                                        World Trade Center, em Nova York, por 
                                        militantes islâmicos, em 11 de setembro 
                                        2001, levou o governo dos Estados Unidos 
                                        a encetar uma campanha universal contra 
                                        o terrorismo, mas este, ao invés 
                                        de se atentar, parece recrudescer. Seria 
                                        então o caso de concluir que a 
                                        proteção dos direitos humanos 
                                        é uma causa perdida? 
                                       
                                        Procurarei, neste volume, facilitar ao 
                                        leitor o acesso à questão, 
                                        nos aspectos mais relevantes e palpitantes, 
                                        sem a pretensão de exaurir tema 
                                        tão vasto. Os direitos humanos 
                                        nos afetam a todos, como indivíduos 
                                        e cidadãos. Protege-los significa 
                                        proteger a nós mesmos – o 
                                        que independe do regime político 
                                        e econômico-social. Trata-se de 
                                        uma questão do aqui e agora. Com 
                                        esse fim, iniciarei por uma exposição 
                                        acerca dos antecedentes históricos 
                                        do conceito de direitos humanos. 
                                      ^ 
                                        Subir  
                                      Do 
                                        Iluminismo à Segunda Guerra Mundial 
                                       
                                        O florescimento cultural da Renascença 
                                        e as navegações transoceânicas, 
                                        que conduziam os europeus ao continente 
                                        americano e ao Extremo Oriente, deram 
                                        fim definitivo ao período histórico 
                                        conhecido como Idade Média, monoliticamente 
                                        dominado, na Europa, pela religião 
                                        católica. Difundiu-se questionamento 
                                        filosófico e político, no 
                                        quadro de uma concepção 
                                        geral que ficou conhecida como Iluminismo. 
                                        A produção intelectual dos 
                                        iluministas – Diretor, Voltaire, 
                                        Kant, Hegel, Goethe, Locke, Berkeley, 
                                        Hume e outros – criou a conjuntura 
                                        ideológica na qual foi possível 
                                        questionar ponto por ponto o pensamento 
                                        medieval e propor novas idéias, 
                                        entre as quais aquelas que se referiam 
                                        aos direitos humanos e que não 
                                        tinham lugar no contexto medieval. 
                                      Sob 
                                        esse aspecto, foi precursor seminal o 
                                        aristocrata italiano marquês Cesare 
                                        de Beccaria, com sua obra Dos delitos 
                                        e das penas, publicada em 1764. nela, 
                                        o autor desenvolve argumentação 
                                        racional contra a aplicação 
                                        da pena de morte, contra a prática 
                                        então disseminada da tortura e 
                                        das penalidades cruéis, e em favor 
                                        de uma legislação que substitua 
                                        os códigos draconianos pelo critério 
                                        da proporcionalidade das sentenças 
                                        penais com relação à 
                                        gravidade dos crimes em julgamento. A 
                                        obra de Beccaria (um volume sucinto, de 
                                        pequenas dimensões) lançou 
                                        os alicerces do moderno direito penal.1 
                                      Logo 
                                        em seguida, desenvolveram-se dois acontecimentos 
                                        que representaram verdadeira mutação 
                                        histórica e tiveram significação 
                                        substancial para a questão dos 
                                        direitos humanos. 
                                      O 
                                        primeiro desses acontecimentos foi a Independência 
                                        dos Estados Unidos, em 1776. o segundo, 
                                        a Revolução Francesa, em 
                                        19789. Ambas fizeram ouvir sua voz por 
                                        meio de declarações solenes, 
                                        inspiradas em concepções 
                                        gerais moldadas pelo liberalismo. A filosofia 
                                        liberal, a partir de Locke, fundamentou 
                                        a separação do Estado com 
                                        relação à vida privada 
                                        dos indivíduos. Os direitos dos 
                                        indivíduos foram enfatizados, e 
                                        se traçaram limites à esfera 
                                        de decisão do Estado, ao qual era 
                                        vedado intervir na esfera econômica. 
                                        A filosofia liberal manifestava dessa 
                                        maneira um direcionamento individualista 
                                        e antiestatista. 
                                      Para 
                                        estabelecer o significado da mutação 
                                        em matéria de direitos humanos, 
                                        é suficiente mencionar a abolição 
                                        da obrigatoriedade da confissão 
                                        no processo penal. No direito medieval, 
                                        o Santo Oficio da Inquisição, 
                                        atuando em nome da Igreja Católica, 
                                        precisava da confissão do réu 
                                        como justificativa indispensável 
                                        para a sentença, ao julgar acusações 
                                        de heresia, judaísmo, sodomia e 
                                        outros supostos crimes. Diante de réus 
                                        que se negavam a confessar, o Santo Oficio 
                                        passava à aplicação 
                                        de “tormentos” devidamente 
                                        regulamentados. Uma vez obtida a confissão, 
                                        o réu podia ser condenado e levado 
                                        à morte na fogueira. 
                                       
                                        A Declaração de Independência 
                                        dos Estados Unidos realizou uma reviravolta 
                                        ao estabelecer que o réu não 
                                        será obrigado a fornecer prova 
                                        contra si mesmo.2 
                                       
                                        O documento, firmado na convenção 
                                        de representantes do povo reunidos na 
                                        Virginia, delineou também os princípios 
                                        do moderno Estado burguês: a igualdade 
                                        dos direitos inatos dos cidadãos 
                                        (entre os quais a liberdade e a propriedade), 
                                        a soberania popular, a eleição 
                                        livre e periódica de representantes 
                                        autorizados a legislar, a separação 
                                        entre os poderes executivo, Legislativo 
                                        e Judiciário, a imprensa livre, 
                                        a instituição do júri 
                                        popular.3 
                                       
                                        A Declaração dos Direitos 
                                        Humanos e do Cidadão, de 1789, 
                                        proclamou os princípios inspiradores 
                                        da Revolução Francesa. Ao 
                                        anular os privilégios aristocráticos 
                                        e feudais, afirmou, no artigo 1º, 
                                        que os homens nascem e permanecem livres 
                                        e iguais em direitos. O princípio 
                                        da soberania reside essencialmente na 
                                        ação. Apoiada na doutrina 
                                        de Rousseau, afirmou que a lei é 
                                        a expressão da vontade geral e, 
                                        em qualquer caso, quer proteja ou puna, 
                                        é a mesma para todos. Ninguém 
                                        deve ser punido senão por uma lei 
                                        promulgada anteriormente ao delito, e 
                                        todo homem deve ser presumido inocente, 
                                        antes de declarado culpado. A declaração 
                                        reconheceu a liberdade de opinião, 
                                        inclusive em questões religiosas. 
                                        No penúltimo artigo, o 16º, 
                                        estabeleceu a separação 
                                        de poderes e, no artigo 17º, enfatizou 
                                        que a propriedade é um direito 
                                        inviolável e sagrado, cuja privação 
                                        somente se justifica por evidente necessidade 
                                        pública e sob a condição 
                                        de previa e justa indenização.4 
                                      Nenhum 
                                        direito recebeu tão enfática 
                                        exaltação, na Declaração 
                                        de 1789, quanto o direito de propriedade, 
                                        o que nada tem de causal. Ambos os documentos, 
                                        tanto o da Independência dos Estados 
                                        Unidos quando o da Revolução 
                                        Francesa, bem como documentos posteriores, 
                                        expressavam o interesse essencial da burguesia, 
                                        a nova classe que se tornava dominante 
                                        na sociedade ocidental. Para a burguesia, 
                                        a absoluta garantia jurídica da 
                                        propriedade privada era indispensável 
                                        a fim de assegurar a plena liberdade dos 
                                        empreendimentos capitalistas. 
                                      A 
                                        supremacia do direito de propriedade refletiu-seno 
                                        tipo de regime político que resultou 
                                        dos movimentos revolucionários 
                                        do século XVIII. A burguesia escolheu 
                                        a democracia com seu regime político 
                                        especifico, mesmo quando mantivesse a 
                                        instituição monárquica, 
                                        a exemplo da Inglaterra. Porém 
                                        conjugou a democracia ao inscritos no 
                                        voto censitário, ou seja, o direito 
                                        de voto só seria concedido àqueles 
                                        cidadãos inscritos no censo dos 
                                        proprietários, o que legalmente 
                                        excluía a maioria imensa da população, 
                                        destituída de propriedades e obrigada 
                                        a trabalhar como assalariada ou autônoma 
                                        para se sustentar. 
                                       
                                        Completando ordenamento sociopolítico 
                                        tão definitivamente burguês, 
                                        a Assembléia Constituinte da Revolução 
                                        Francesa aprovou, em 14 de junho de 1791, 
                                        a lei Le Chapelier, nome de seu autor 
                                        e relator, que proibia expressamente qualquer 
                                        tipo de associação de trabalhadores, 
                                        ou seja, vetava a organização 
                                        de sindicatos. Vigorou durante quase um 
                                        século, tendo sido revogada somente 
                                        em 1887, em conseqüências de 
                                        lutas renhidas e prolongadas dos trabalhadores 
                                        franceses.5 
                                      As 
                                        grandes revoluções do século 
                                        XVIII instituíram a igualdade de 
                                        direitos e a liberdade política, 
                                        porém para os trabalhadores isso 
                                        significou que estavam “livres” 
                                        para o trabalho assalariado, ou seja, 
                                        para a exploração pelo capital. 
                                        A doutrina liberal afastou o Estado da 
                                        intervenção na economia 
                                        e entregou-a ao domínio do capital. 
                                        Desobstruiu-se, desta maneira, o caminho 
                                        para o florescente progresso capitalista, 
                                        que mudou a face da terra. 
                                       
                                        Mas esse processo tinha sua contrapartida 
                                        na miséria dos trabalhadores assalariados. 
                                        As restrições substanciais 
                                        da democracia burguesa não puderam, 
                                        contudo, impedir que os trabalhadores 
                                        reagissem e também conquistassem 
                                        direitos que, na essência, constituíam 
                                        direitos humanos. 
                                       
                                        Já Hegel, contemporâneo da 
                                        Revolução Francesa e seu 
                                        grande admirador, denunciaria, na obra 
                                        Fundamentos da filosofia do direito: “(...) 
                                        quem sofre de fome desesperada, chegando 
                                        a correr o risco de morrer de inanição, 
                                        (...) está numa condição 
                                        de ‘total falta de direitos’, 
                                        ou seja, numa condição que, 
                                        em última análise, não 
                                        difere substancialmente da situação 
                                        de escravo”.6 
                                      Para 
                                        grande pensador, com o qual culmina a 
                                        filosofia clássica alemã, 
                                        a miseria é claramente incompatível 
                                        com o que hoje denominamos direitos humanos. 
                                        Nos termos dos nossos dias: o miserável 
                                        é incapaz de ter direitos humanos. 
                                       
                                        A exploração dos trabalhadores 
                                        assalariados suscitou a crítica 
                                        filosófica e econômica do 
                                        Estado liberal e do próprio sistema 
                                        capitalista. Expressão sistemática 
                                        dessa crítica, a obra de Marx e 
                                        Engels lançou os fundamentos teóricos 
                                        do moderno movimento operário.7 
                                       
                                        Marx e Engels fizeram a análise 
                                        mais profunda dos antagonismos inerentes 
                                        à sociedade capitalista, a partir 
                                        do desvendamento da exploração 
                                        do proletariado pela burguesia. Revelaram 
                                        os violentíssimos processos extorsivos 
                                        da acumulação primitiva 
                                        do capital; o papel da formação 
                                        do exercício industrial de reserva, 
                                        ou seja, o exercício dos desempregados; 
                                        o fenômeno das crises cíclicas 
                                        de superprodução e sua função 
                                        na dinâmica da economia capitalista; 
                                        o processo da formação da 
                                        taxa média de lucro e as tendências 
                                        e contratendências à sua 
                                        queda; a origem do Estado e sua essência 
                                        de órgão executivo da classe 
                                        dominante, mesmo nas formas mais democráticas. 
                                        Marx empenhou-se particularmente na denúncia 
                                        de que liberdade e igualdade, bandeiras 
                                        das revoluções burguesas, 
                                        em vez de direitos humanos universais, 
                                        só podiam designar, numa sociedade 
                                        em que impera a exploração 
                                        assalariada, privilégios da classe 
                                        dominante detentora da propriedade privada 
                                        concentrada no capital. A doutrina de 
                                        Marx 
                                        e Engels inspirou a formação 
                                        dos partidos de base operária, 
                                        seja, primeiro, na vertente social-democrata, 
                                        seja, em seguida, na vertente comunista. 
                                      Os 
                                        trabalhadores passaram à ação 
                                        prática por meio organização 
                                        e expansão dos sindicatos profissionais 
                                        e, na segunda metade do século 
                                        XIX, da fundação dos partidos 
                                        social-democratas. Dessa maneira, conseguiram 
                                        impor certos limites à exploração 
                                        patronal e intervir na luta política 
                                        e parlamentar. Diante das ameaças 
                                        evidentes de grande conflito interimperialista, 
                                        os partidos social-democratas desenvolveram 
                                        uma campanha internacional pela paz. Foram, 
                                        porém, incapazes de refrear as 
                                        tendências nacionalistas, inclusive 
                                        dentro de suas próprias fileiras, 
                                        e impedir a eclosão da Primeira 
                                        Guerra Mundial, em 1914, com os quatro 
                                        anos de combates que deixaram 19 milhões 
                                        de mortos. 
                                       
                                        Mas o conflito bélico não 
                                        sufocou o movimento operário. O 
                                        término da guerra assinalou a conquista 
                                        dos primórdios da moderna legislação 
                                        trabalhista. Tal conquista ficou registrada 
                                        especialmente nas Constituições 
                                        do México, da Alemanha e da União 
                                        Soviética. 
                                      A 
                                        Constituição mexicana de 
                                        1917 foi a mais avançada até 
                                        então alcançada no regime 
                                        capitalista. Sob efeito da Revolução 
                                        de 1910, a Casa Constitucional impôs 
                                        a divisão dos latifúndios 
                                        e o fomento da pequena propriedade agrícola. 
                                        Não só generalizou e fez 
                                        progredir os direitos civis e políticos, 
                                        como realizou minuciosa relação 
                                        dos direitos trabalhistas, especificamente 
                                        o da jornada de trabalho de oito horas, 
                                        direito de grave, repouso semanal remunerado, 
                                        salário mínimo, pagamento 
                                        adicional de horas extras, normas de proteção 
                                        ao menor e à mulher e várias 
                                        outras.8 Diversos desses direitos já 
                                        estavam registrados nas legislações 
                                        de outros países, mas a Constituição 
                                        mexicana, pela primeira vez, elevou-se 
                                        à condição de imperativos 
                                        de uma lei magna, apresentando-os sob 
                                        a forma das trinta alíneas do artigo 
                                        constitucional 123, reproduzidas no capitulo 
                                        IX da excelente obra de Fábio Konder 
                                        Comparato. 
                                      A 
                                        Revolução Soviética 
                                        de 1917 varreu o despotismo czarista no 
                                        império russo e fez avançar 
                                        a legislação protetora dos 
                                        trabalhadores. Em 4 de janeiro de 1918, 
                                        o órgão supremo da República 
                                        aprovou a Declaração dos 
                                        Direitos do Povo Trabalhador e explorado. 
                                        Nesse documento, incorporado à 
                                        primeira Constituição da 
                                        República Soviética, em 
                                        10 de julho do mesmo ano, estabeleceram-se 
                                        os princípios de organização 
                                        do estado soviético. Este adquiriu 
                                        a prerrogativa, até então 
                                        inédita na história econômica 
                                        mundial, de planejar o desenvolvimento 
                                        da economia nacional em conjunto. O planejamento 
                                        devia incluir a distribuição 
                                        do trabalho com vistas ao pleno emprego, 
                                        os níveis de salário, as 
                                        formas de previdência social, a 
                                        construção de habitações 
                                        e o nível dos aluguéis, 
                                        a instrução universal com 
                                        ampliação do ensino superior 
                                        acessível aos filhos de trabalhadores 
                                        assalariados e outras conquistas na linha 
                                        do que ficou conhecido como ditadura do 
                                        proletariado.9 A Constituição 
                                        soviética conferiu ao proletariado 
                                        direitos políticos de grande amplitude, 
                                        mas silenciou com relação 
                                        aos direitos individuais , o que facilitou 
                                        a expansão do arbítrio das 
                                        autoridades do Estado comunista e abrir 
                                        caminho ao despotismo do tirano Josef 
                                        Stálin. 
                                      A 
                                        derrocada da monarquia e o estabelecimento 
                                        do regime republicano, na Alemanha, após 
                                        a derrota na guerra iniciada em 1914, 
                                        permitiram que, em fevereiro de 1919, 
                                        uma assembléia de maioria social-democrata 
                                        se reunisse na cidade de Weimar e ali 
                                        promulgasse uma nova Constituição, 
                                        com aspectos progressistas para o regime 
                                        capitalista, embora menos avançados 
                                        do que os da Constituição 
                                        mexicana de 1917 e os da Constituição 
                                        soviética. Os legisladores de Weimar 
                                        separaram a Igreja do Estado e Estabeleceram 
                                        o sufrágio universal, direto e 
                                        secreto para homens e mulheres. Instituíram 
                                        a instrução pública 
                                        obrigatória e gratuita até 
                                        os 18 anos e garantiram a propriedade 
                                        privada condicionada a uma função 
                                        social. Instituíram igualmente 
                                        o direito ao trabalho e um sistema geral 
                                        de previdência social e de proteção 
                                        à saúde.10 
                                       
                                        A Constituição de Weimar 
                                        inspirou as de outros países, inclusive 
                                        a Constituição brasileira 
                                        de 1934. mas ela própria teria 
                                        vida curta, extinta em 1933 pela subida 
                                        de Hitler ao poder na Alemanha. 
                                        Os direitos trabalhistas seguiram uma 
                                        trajetória de avanços e 
                                        recuos, sempre sob pressão do poder 
                                        do capital. Ao mesmo tempo, representaram 
                                        poderosa fonte de motivação 
                                        para as lutas dos operários no 
                                        regime capitalista. 
                                      _____________________ 
                                      1 
                                        Cesare Beccaria, Dos delitos e das penas, 
                                        pref. Evaristo de Morais (Rio de Janeiro: 
                                        Edições de Ouro, s/d). 
                                      2 
                                        Cf. Fábio Konder Comparato, A afirmação 
                                        histórica dos direitos humanos 
                                        (São Paulo: Saraiva, 1999), p. 
                                        102 
                                       3 
                                        Ibidem. 
                                       4 
                                        Ibid, pp. 138-140. 
                                       5 
                                        Cf. José Damião de Lima 
                                        Trindade, História social dos direitos 
                                        humanos (São Paulo: Peirópolis, 
                                        2002), p. 59. 
                                       6 
                                        Apud Governo do Estado de São Paulo, 
                                        Direitos humanos: construção 
                                        da liberdade e da igualdade (São 
                                        Paulo: Centro de Estudos, 1998), p. 262. 
                                       7 
                                        Karl Marx, Economia, em Paul Singer (org.), 
                                        introd. Paul Singer (São Paulo: 
                                        Ática, 1982); Karl Marx, Sociologia, 
                                        em Octavio Ianni (org.), introd. Octavio 
                                        Ianni, coleção Grandes Cientistas 
                                        Sociais, vol. 10 (São Paulo: Ática, 
                                        1980); Friedrich Engels, Política, 
                                        em José Paulo Netto (org.), introd. 
                                        José Paulo Netto (São Paulo: 
                                        Ática, 1981); Karl Marx & Friedrich 
                                        Engels, História, em Florestan 
                                        Fernandes (org.), introd. Florestan Fernandes 
                                        (São Paulo: Ática, 1983); 
                                        Karl Marx, O Capital: critica da economia 
                                        política, apres. Jacob Gorender, 
                                        5 vols. (São Paulo: Abril Cultural, 
                                        1983); Karl Marx, Para a crítica 
                                        da economia política. Salário, 
                                        preço e lucro. O rendimento e suas 
                                        fontes: a economia vulgar, introd. Jacob 
                                        Gorender (São Paulo: Abril Cultural, 
                                        1982).  
                                       8 
                                        José Damião de Lima Trindade, 
                                        História social dos direitos humanos, 
                                        cit. pp. 153-154; Fábio Konder 
                                        Comparato, A afirmação histórica 
                                        dos direitos humanos, cit., cap. IX. 
                                       9 
                                        José Damião de Lima Trindade, 
                                        História social dos direitos humanos, 
                                        cit., pp. 155-159. 
                                      10 
                                        Ibid., pp. 159-163. 
                                      ^ 
                                        Subir 
                                      Universalidade 
                                        e variedade dos direitos humanos 
                                        Modelo 
                                        ocidental dos direitos humanos e aspectos 
                                        culturais da questão – Direitos 
                                        econômicos e sociais 
                                       
                                        Numa definição consagrada, 
                                        Hannah Arendt afirmou que a essência 
                                        dos direitos humanos é o direito 
                                        de ter direitos.1 
                                       
                                        Que são, contudo, tais direitos, 
                                        os direitos humanos? 
                                        Nancy Cardia, Sérgio Adorno e Frederico 
                                        Poleto nos oferecem o seguinte esclarecimento: 
                                       
                                        Entende-se por direitos humanos o conjunto 
                                        de princípios, de caráter 
                                        universal e universalizante, formalizados 
                                        no contexto do Estado liberal-democrático 
                                        tal como ele se desenvolveu no mundo europeu 
                                        ocidental no curso do século XIX, 
                                        que proclamam como direitos inalienáveis 
                                        do homem os direitos à vida e às 
                                        liberdades civis e públicas. Sua 
                                        efetivação requer ação 
                                        dos governos no sentido de protege-los 
                                        contra qualquer espécie de violação 
                                        ou abuso. Compreendem prioritariamente 
                                        direitos civis, “espaços 
                                        livres que todo governo deve garantir 
                                        ao indivíduo, não interferindo 
                                        em sua vida privada: o direito à 
                                        vida e à segurança, à 
                                        intimidade, à ‘vida familiar’, 
                                        à propriedade privada; a possibilidade 
                                        de manifestar livremente sua opinião, 
                                        de praticar uma religião, de reunir-se 
                                        pacificamente. Em segundo lugar, as liberdades 
                                        civis implicam um mínimo de respeito 
                                        à pessoa humana, a par de plena 
                                        justiça em casos de abuso: o direito 
                                        de não ser acesso submetido a medidas 
                                        arbitrárias por parte de autoridades 
                                        estatais, de ter acesso à justiça 
                                        e de ser processado com equidade” 
                                        (cf. Cassese, 1991, p. 8). No curso dos 
                                        últimos duzentos anos, a comunidade 
                                        internacional operou no sentido de alargamento 
                                        desse conceito para incluir os direitos 
                                        políticos e socioeconômicos.2 
                                       
                                        A concepção dos direitos 
                                        humanos que vinha evoluindo e ganhando 
                                        substância nos séculos XIX 
                                        e XX sofreu um colapso nos anos 30 do 
                                        século passado, com o advento do 
                                        nazismo, na Alemanha, cujo domínio 
                                        chegou a abarcar quase toda Europa. A 
                                        maldade humana atingiu o ápice 
                                        histórico no episódio do 
                                        Holocausto, que exterminou, com a utilização 
                                        de processo tecnológico industrializado, 
                                        6 milhões de judeus e 240 mil ciganos. 
                                        Centenas de milhares de adversários 
                                        políticos, sobretudo comunistas, 
                                        foram assassinados. No afã de evitar 
                                        a contaminação de pretensa 
                                        raça ariana pura, Hitler determinou 
                                        igualmente o sacrifício de homossexuais 
                                        e deficientes mentais. 
                                       
                                        Hitler e sua gangue de celerados tinham 
                                        em vista a instauração do 
                                        “Reich de mil anos”, projeto 
                                        que incluiria o aniquilamento de 3 milhões 
                                        de poloneses, a colonização 
                                        da Polônia ocidental por alemães 
                                        e a conversão de poloneses, russos 
                                        e outros povos eslavos em escravos a serviço 
                                        da raça superior ariana. Considerados 
                                        rivais na disputa do domínio mundial 
                                        e supostamente responsável pela 
                                        derrota da Alemanha na Primeira Guerra 
                                        Mundial, os judeus deveriam ser completamente 
                                        varridos da face da terra. 
                                       
                                        A Segunda Guerra Mundial se concluiu a 
                                        cifra de 60 milhões de mortos no 
                                        conflito, seis vezes mais do que na Primeira 
                                        Guerra Mundial. O maior banho de sangue 
                                        na trajetória da espécie 
                                        humana. 
                                      A 
                                        rendição incondicional da 
                                        Alemanha nazista, em maio de 1945, e a 
                                        subseqüente rendição 
                                        do Japão, em agosto do mesmo ano, 
                                        após a incineração 
                                        de 200 mil civis pelas bombas atômicas 
                                        lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, 
                                        abriram caminho à criação 
                                        da Organização das Norças 
                                        Unidas (ONU). A carta de fundação 
                                        da ONU foi assinada por 51 países 
                                        em 16 de junho de 1945, na Conferência 
                                        de São Francisco, nos Estados Unidos. 
                                        Hoje, a ONU é integrada por 191 
                                        estados, incluindo os países vencidos 
                                        na última guerra mundial, com os 
                                        quais se efetivaram tratados de paz. 
                                      Em 
                                        18 de junho de 1948, a Comissão 
                                        de Direitos Humanos da ONU concluiu o 
                                        projeto da Declaração Universal 
                                        dos Direitos Humanos, aprovada em 10 de 
                                        dezembro do mesmo ano pela Assembléia 
                                        Geral. A aprovação dói 
                                        unânime, com abstenção 
                                        dos países comunistas (União 
                                        Soviética, Ucrânia, Rússia 
                                        Branca, Checoslováquia, Polônia 
                                        e Iugoslávia) e mais Arábia 
                                        Saudita e África do Sul. Em 1975, 
                                        na Conferência Internacional de 
                                        Helsinque, os países comunistas 
                                        subscreveram a declaração.3 
                                       
                                        A Declaração de 1948 doi 
                                        completada, em 1966, por dois pactos aprovados 
                                        pela Assembléia Geral das Nações 
                                        Unidas: um pacto sobre direitos civis 
                                        e políticos, outro sobre direitos 
                                        econômicos, sociais e culturais. 
                                        De 1945 a 1990, foram aprovados dez documentos 
                                        (declarações, convenções, 
                                        pactos), que formam um sistema global 
                                        de proteção dos direitos 
                                        humanos, documentos, todos eles, ratificados 
                                        pelo Brasil. Entre 1992 e 1995, quatro 
                                        documentos (três convenções 
                                        e um protocolo adicional) aprovados numa 
                                        Conferência Interamericana em San 
                                        José, Costa Rica, e pela Assembléia 
                                        Geral da Organização dos 
                                        Estados Americanos (OEA), e ratificados 
                                        pelo Brasil, criaram um Sistema Regional 
                                        Interamericano de Proteção 
                                        dos Direitos Humanos.4 
                                       
                                        Tal diversidade de declarações, 
                                        pactos e convenções não 
                                        deve afetar a unidade essencial dos direitos 
                                        humanos, conforme afirmada pela Assembléia 
                                        Geral das Nações Unidas 
                                        em 1968 e confirmada pela Conferência 
                                        Mundial dos Direitos Humanos em 1993, 
                                        com a declaração seguinte: 
                                        Todos os direitos humanos são universais, 
                                        indivisíveis, interdependentes 
                                        e inter-relacionados. A comunidade internacional 
                                        deve tratar os direitos humanos globalmente, 
                                        de modo justo e eqüitativo, com o 
                                        mesmo fundamento e a mesma ênfase. 
                                        Levando em conta a importância das 
                                        particularidades nacionais e regionais, 
                                        bem como os diferentes elementos de base 
                                        históricos, culturais e religiosos, 
                                        é dever dos Estados, independentemente 
                                        de seus sistemas políticos, econômicos 
                                        e culturais, promover e proteger todos 
                                        os direitos humanos e as liberdades fundamentais.5 
                                       
                                        A pedra angular, no âmbito dos compromissos 
                                        internacionais concernentes aos direitos 
                                        humanos, é a Declaração 
                                        Universal dos Direitos Humanos, aprovada 
                                        em 1948 pela ONU. Sua significação 
                                        se alça ao nível das Declarações 
                                        da Independência dos Estados Unidos, 
                                        em 1776, e da Revolução 
                                        Francesa, em 1789. Na verdade, trata-se 
                                        de continuação e superação, 
                                        dentro de processo histórico determinado. 
                                        Norberto Bobbio ressalta precisamente 
                                        a historicidade do processo de afirmação 
                                        dos direitos humanos, cuja emergência 
                                        se verifica gradualmente, em concomitância 
                                        com as lutas dos homens pela emancipação 
                                        e pela transformação social. 
                                        Levando em conta a historicidade, que 
                                        corrige a idéia da perfeição 
                                        definida, podemos considerar a Declaração 
                                        de 1948 como um código político 
                                        e moral que, embora sem o caráter 
                                        compulsório dos tratados, serve 
                                        de guia à conduta prática 
                                        de Estados e indivíduos. Sua aprovação 
                                        unânime por mais de cinqüenta 
                                        Estados lhe confere a autenticidade de 
                                        um imperativo categórico kantiano. 
                                        Com base nela, afirma-se o Estado de Direito, 
                                        que fornece aos indivíduos os instrumentos 
                                        jurídicos de proteção 
                                        e apelação contra os arbítrios 
                                        sempre possíveis de autoridades 
                                        estatais e do próprio Estado como 
                                        entidade superior do sistema social. O 
                                        Estado de Direito, conforme ressalta Bobbio, 
                                        é aquele no qual o indivíduo 
                                        possui, em face do Estado, não 
                                        só direitos privados, mas também 
                                        direitos públicos. O Estado de 
                                        Direito é o Estado dos cidadãos. 
                                       
                                        Bobbio destaca ainda que, além 
                                        da conversão dos chamados direitos 
                                        naturais em direitos positivos, registrados 
                                        em dispositivos jurídicos, manifesta-se, 
                                        nos últimos tempos, a tendência 
                                        à especificação, 
                                        que consiste na passagem gradual para 
                                        ulterior determinação dos 
                                        sujeitos titulares de direitos. Tal especificação 
                                        se concretiza na tutela da imagem, na 
                                        tutela da privacidade e com relação 
                                        às peculiaridades de gênero 
                                        e de faces da vida. Assim, são 
                                        conhecidos, nos sistemas jurídicos, 
                                        as diferenças existentes entre 
                                        homem e mulher, as peculiaridades dos 
                                        direitos da infância, do homem adulto 
                                        e do idoso, os direitos especiais dos 
                                        doentes, deficientes físicos, deficientes 
                                        mentais, etc.6 
                                       
                                        O sistema internacional e os sistemas 
                                        regionais de proteção dos 
                                        direitos humanos conferiam aos indivíduos 
                                        como tais a condição jurídica 
                                        de sujeitos do direito internacional, 
                                        o que inclui não somente a proteção 
                                        diante da violação dos seus 
                                        direitos, como também, especialmente, 
                                        a prerrogativa legal de denúncias 
                                        e apelação aos foros internacionais.7 
                                       
                                        Sob o aspecto geral, a concepção 
                                        e a defesa dos direitos humanos seguem 
                                        o modelo dos países da Europa ocidental 
                                        e, mais restritamente, dos Estados Unidos. 
                                        Mas semelhante modelo não pode 
                                        nem deve ser absolutizado. A abordagem 
                                        da questão requer cautela no que 
                                        se refere ás diferenças 
                                        culturais e às soberanias nacionais, 
                                        o que não deve obstar, conteúdo, 
                                        o direito de denúncia internacional 
                                        de fatos repugnantes e inadmissíveis, 
                                        conforme veremos, em outro capítulo, 
                                        no caso da clitorectomia. 
                                       
                                        Já assinalamos que os direitos 
                                        humanos são impensáveis 
                                        em condições de miséria. 
                                        Ultrapassar a miséria é 
                                        o primeiro passo. Mas, a partir daí, 
                                        verificam-se gradações que 
                                        se relacionam com a cor e o sexo da pobreza. 
                                        Se os pobres em geral enfrentam dificuldades 
                                        de toda ordem para defender direitos elementares, 
                                        maiores são as dificuldades com 
                                        que se defrontam os negros e as mulheres. 
                                        A pobreza tem cor e sexo. Nossa população 
                                        apresenta em contingente de 34% de pessoas 
                                        consideradas pobres, o que país. 
                                        Nesse contingente de pobres, avultam as 
                                        parcelas correspondentes a negros e mulheres. 
                                        A cada mil nascimentos, morrem 37, 3 crianças 
                                        brancas e 62,1 crianças negras. 
                                        A mortalidade entre menores de 5 anos 
                                        é 45,7 crianças brancas 
                                        e de 76,1 negras (conforme dados do ano 
                                        2000).8 
                                       
                                        Com relação às mulheres, 
                                        a regra brasileira é remunerá-las, 
                                        em média, com a metade do que é 
                                        pago aos homens. Considerando o ano de 
                                        1997, na região metropolitana de 
                                        São Paulo, temos a seguinte hierarquização 
                                        de rendimento real médio por hora 
                                        trabalhada (no trabalho principal): 
                                        Homem branco – R$ 6,23; mulher branca 
                                        – R$ 4,40 
                                        Homem pardo – R$ 3,14; mulher parda 
                                        – R$ 2,24 
                                        Homem negro – R$ 3,27; mulher negra 
                                        – R$ 2,18 9 
                                      Pesquisa 
                                        empreendida pelo Centro de Estudos da 
                                        Metrópole do Centro Brasileiro 
                                        de Análise e Planejamento (CEM-Cebrap) 
                                        evidenciou a diferença enorme de 
                                        condições sociais de vida 
                                        entre os bairros de São Paulo nos 
                                        quais a população é 
                                        quase toda branca e os bairros onde são 
                                        elevadas as porcentagens de negros. Nos 
                                        primeiros, os residentes, caracterizados 
                                        por níveis de renda alta e média, 
                                        dispõem de segurança, urbanização 
                                        e saneamento de boa qualidade, escolas, 
                                        hospitais, supermercados e tudo o mais 
                                        para uma vida confortável. Nos 
                                        últimos, onde negros pobres convivem 
                                        com brancos pobres, o clima de violência 
                                        engendra taxas excepcionais de homicídios, 
                                        as ruas são lamacentas e os córregos, 
                                        poluídos e fedorentos; escolas, 
                                        hospitais e supermercados primam pela 
                                        escassez e oferecem serviços de 
                                        má qualidade. A realidade transparece 
                                        de maneira ofuscante se compararmos os 
                                        bairros paulistanos de Moema, de classe 
                                        média alta, e Jardim Ângela, 
                                        na periferia mais pobre da capital paulista.10 
                                       
                                        A relevância a que foram alçados 
                                        os direitos humanos em tantas declarações 
                                        e convenções subscritas 
                                        por organizações internacionais 
                                        e governos certamente contribuiu para 
                                        uma vida humana mais digna. Não 
                                        conseguiu, todavia, evitar, no último 
                                        meio século, eventos terrificantes 
                                        que reiteram alguns padrões de 
                                        extermínio da Segunda Guerra Mundial. 
                                       
                                        Até 1966, a Indonésia possuía 
                                        o segundo partido comunista mais numeroso 
                                        do mundo, superado somente pelo da Itália. 
                                        Naquele ano, o ditador Suharto chefiou 
                                        as Forças Armadas indonésias 
                                        no massacre de 500 mil comunistas, operação 
                                        de “limpeza política” 
                                        que trouxe de volta os assassinos de estilo 
                                        stalinista. 
                                       
                                        Mas Suharto não ficou só 
                                        nisso. A fim de dominar Timor Leste, após 
                                        receber o sinal verde do governo Nixon-Kissinger 
                                        sacrificou 200 mil nacionais do país. 
                                        Em 2001, já com a independência 
                                        reconhecida pela ONU, os timorenses ainda 
                                        tiveram de sofrer uma derradeira manifestação 
                                        da sanha homicida dos verdugos indonésios. 
                                       
                                        Na África, o governo da Nigéria 
                                        derramou rios de sangue para subjugar 
                                        a população rebelde de Biafra 
                                        e integrá-la ao território 
                                        de soberania nigeriana. 
                                      Em 
                                        Ruanda, uma guerra civil interétnica 
                                        se travou com ferocidade sem par e levou 
                                        à extremidade cruenta de transferência 
                                        maciça e compulsória de 
                                        moradores da cidade para o campo. 
                                      Irã 
                                        e Iraque disputaram territórios 
                                        numa guerra de oito anos, 1980 e 1988, 
                                        com o saldo macabro de 1 milhão 
                                        de mortos. 
                                      Na 
                                        civilizadíssima Europa, já 
                                        na década de 1990, a desintegração 
                                        da antiga Iugoslávia após 
                                        os 35 anos de ditadura do marechal Tito 
                                        suscitou as operações chamadas 
                                        de “limpeza étnica”. 
                                        Em busca do domínio territorial, 
                                        sérvios se colocam em confronto 
                                        com croatas e croatas em confronto com 
                                        bósnios mulçumanos. O quadro 
                                        de contradições se complicou 
                                        com as ambições expansionistas 
                                        da Albânia. Os conflitos custaram 
                                        meio milhão de mortos, sobretudo 
                                        civis, mulheres e crianças, particularmente 
                                        nas operações de “limpeza 
                                        étnica” em Sarajevo, Srebrenica 
                                        e Kosovo. 
                                      O 
                                        neonazismo continua ativo na Alemanha, 
                                        promovendo atentados anti-semitas e xenófobos. 
                                        Na tradicional Oktoberfest de Munique, 
                                        em 1980, um desses atentados deixou treze 
                                        mortos. Na última década, 
                                        cem pessoas foram vitimas fatais do neonazismo, 
                                        e descobriu-se a tempo um plano de atentado 
                                        a bamba, em setembro de 2003, que seria 
                                        consumado durante a cerimônia de 
                                        início da construção 
                                        de uma sinagoga em Munique. O que levou 
                                        uma década na Alemanha o anti-semitismo 
                                        consumou num só dia na Argentina. 
                                        Em 18 de julho de 1994, um carro-bomba 
                                        destruiu o edifício da Associação 
                                        Mutualista Israelita da Argentina (Amia), 
                                        em Buenos Aires, causando a morte de 86 
                                        pessoas e ferimentos em mais duzentas. 
                                        Cerca de dois anos antes, um carro-bomba 
                                        havia destruído a sede da Embaixada 
                                        de Israel, com o saldo de 29 mortos e 
                                        mais de cem feridos. Paralisada durante 
                                        os dez anos do governo Menem, a investigação 
                                        dos atentados foi retomada no governo 
                                        de Nestor Kirchner, e apontou para autoria 
                                        ou a cumplicidade do aparelho policial. 
                                        Mesmo no Brasil, surpreendeu a exibição 
                                        descarada de anti-semitarismo do editor 
                                        Ellwanger, condenado por crime de racismo, 
                                        em última instância, pelo 
                                        Supremo Tribunal Federal.11 
                                      Se 
                                        o STF, por maioria, condenou o editor 
                                        gaúcho, não o fez o ministro 
                                        Carlos Britto, indicado pelo governo Lula, 
                                        que proferiu voto não só 
                                        concedendo hábeas corpus, mas absolvendo 
                                        Ellwanger. 
                                      Ao 
                                        caso brasileiro se aplica com perfeição 
                                        o acórdão da Corte Européia 
                                        dos Direitos Humanos, que, em 24 de junho 
                                        de 2003, convalidou a condenação 
                                        pelo Judiciário francês do 
                                        escritor Roger Garaudy por delito idêntico 
                                        ao de Ellwanger. A propósito, vale 
                                        observar que Garaudy iniciou a carreira 
                                        intelectual como medíocre filósofo 
                                        marxista, quando era membro do Partido 
                                        Comunista Francês. Depois converteu-se 
                                        ao cristianismo e, numa segunda conversão, 
                                        tornou-se muçulmano. Hoje, dedica-se 
                                        à promoção de campanhas 
                                        anti-semitas. Reproduzo, a seguir, a conclusão 
                                        do acórdão da Corte Européia 
                                        dos Direitos Humanos: 
                                      Não 
                                        há dúvida que contestar 
                                        fatos históricos claramente estabelecidos 
                                        como o Holocausto, do modo como procede 
                                        o requerente em sua obra, de forma alguma 
                                        diz respeito a um trabalho de pesquisa 
                                        histórica relacionado com a busca 
                                        da verdade. O objetivo e a finalidade 
                                        de um empreendimento desta natureza são 
                                        totalmente diferentes, pois, na verdade, 
                                        se trata de reabilitar o regime nacional-socialista 
                                        e, por via de conseqüência, 
                                        de acusar de falsificação 
                                        da História as próprias 
                                        vítimas. Destarte, a contestação 
                                        de crime contra a humanidade aparece com 
                                        uma das formas mais agudas de difamação 
                                        racial contra judeus e de incitação 
                                        de ódio em relação 
                                        a eles. A negação ou revisão 
                                        de fatos históricos deste tipo 
                                        coloca em causa os valores que fundamentam 
                                        a luta contra o racismo e o anti-semitismo 
                                        e são de uma natureza que perturba 
                                        gravemente a ordem pública. Atentando 
                                        contra direitos de terceiros, estes tipos 
                                        de atos são incompatíveis 
                                        com a democracia e os direitos humanos.12 
                                       
                                        As violações de tratados 
                                        internacionais protetores de prisioneiros 
                                        e refugiados de guerra impressionaram 
                                        de tal maneira a opinião pública 
                                        mundial que a Assembléia Geral 
                                        da ONU tomou a iniciativa de criar tribunais 
                                        para julgar crimes de guerra e contra 
                                        a humanidade nos conflitos de Ruanda e 
                                        da Bósnia. 
                                       
                                        Em 17 de julho de 1998, a Convenção 
                                        da ONU deu um passo à frente e 
                                        criou o Tribunal Penal Internacional, 
                                        incumbido de julgar réus de crimes 
                                        de genocídio, crimes contra a humanidade 
                                        e crimes de guerra, diferenciados segundo 
                                        conceitos definidos.13 
                                        Os Estados Unidos se recusaram a dar apoio 
                                        ao tribunal, sob alegação 
                                        de que não poderiam consentir que 
                                        cidadãos americanos envolvidos 
                                        em operações bélicas 
                                        em tantas partes do mundo fossem submetidos 
                                        ao julgamento de um tribunal estrangeiro. 
                                       
                                        Também os direitos econômicos 
                                        e sociais passaram a sofrer contestações, 
                                        restrições e mutilações. 
                                       
                                        Nas três décadas seguintes 
                                        ao término da Segunda Guerra Mundial, 
                                        o mundo capitalista viveu o período 
                                        conhecido na literatura econômica 
                                        como os “trinta anos gloriosos” 
                                        do capitalismo. Impulsionado pela vitória 
                                        sobre o nazi-fascismo, o movimento operário 
                                        logrou conquistas significativas em matéria 
                                        de salário, previdência social, 
                                        condições de trabalho, habilitação, 
                                        lazer e outros setores. Semelhante ampliação 
                                        da demanda foi potencializada pelas políticas 
                                        governamentais inspiradas na doutrina 
                                        de Keynes, com sua prioridade precisamente 
                                        nas induções da demanda. 
                                        As taxas de crescimento econômico 
                                        elevaram-se e permitiram, em certa medida, 
                                        a satisfação coincidente 
                                        de interessas de capitalistas e operários. 
                                      O 
                                        crescimento econômico se deteve 
                                        na década de 970, quando o aumento 
                                        de inflação se conjugou 
                                        com a estagnação da produção 
                                        material, gerando o fenômeno batizado 
                                        de “estagflação”. 
                                        As inovações da informática, 
                                        sobretudo a invenção do 
                                        microprocessador, em 1971, deram aos capitalistas 
                                        a possibilidade de extraordinário 
                                        incremento da produtividade do trabalho 
                                        e de conseqüência geração 
                                        do chamado desemprego estrutural.14 
                                      A 
                                        ofensiva do capital propiciou, em escala 
                                        mundial, a substituição 
                                        da política do Estado do bem-estar 
                                        social (Welfare State) pela política 
                                        do neoliberalismo. Deu-se prioridade ao 
                                        mercado em detrimento dos direitos assegurados 
                                        aos trabalhadores. Com a restrição 
                                        dos direitos econômicos e sociais, 
                                        os direitos humanos perderam uma parcela 
                                        de substância historicamente incrementada. 
                                        Como se vê, o mar não está 
                                        pra peixe. 
                                       
                                        Os direitos permanecem no topo da agenda 
                                        pelo progresso da humanidade. É 
                                        indispensável defender o que já 
                                        se conquistou e avançar em direção 
                                        a objetivos mais altos. 
                                      _____________________ 
                                      1 
                                        Cf. Fábio Konder Camparato, A afirmação 
                                        histórica dos direitos humanos 
                                        (São Paulo: Saraiva, 1999), p. 
                                        215. 
                                       
                                        2 Nancy Cárdia 
                                        et al., “Homicídio e violacao 
                                        dos direitos humanos em São Paulo”, 
                                        em Estudos Avançados, nº 47, 
                                        São Paulo, IEA-USP, 2003, p. 64; 
                                        A. Cassese, Los derechos humanos em el 
                                        mundo comteporaneo (Barcelona: Ariel, 
                                        1993). Ver também Cláudio 
                                        Moser & Daniel Rech (orgs.), Direitos 
                                        humanos no Brasil: diagnósticos 
                                        e perspectivas (Rio de Janeiro: Ceris-Mauad, 
                                        2003).  
                                      3 
                                        Cf. Fábio Konder Comparato, A afirmação 
                                        histórica dos direitos humanos, 
                                        cit., pp. 208-209. 
                                       
                                        4 Cf. Flávia 
                                        Piovessan, Direitos humanose o direito 
                                        constitucional internacional, pref. Henry 
                                        Steiner e apres. Antônio Augusto 
                                        Cançado Trindade (4ª ed. rev., 
                                        ampl. E atualiz. São Paulo: Max 
                                        Limonad, 2000), pp.315-317. Outra relação 
                                        enumera 34 documentos internacionais, 
                                        sendo quatro facultativos, que visam à 
                                        proteção dos direitos humanos 
                                        universais ou específicos para 
                                        certas condições (como mulher 
                                        ou criança). Cf. Conectas, Guia 
                                        de direitos humanos: fontes para jornalistas 
                                        (São Paulo: Cortez, 2003), pp. 
                                        283-284. 
                                      5 
                                        Apud Fábio Konder Comparato, A 
                                        afirmação histórica 
                                        dos direitos humanos, cit., pp. 350-351. 
                                       
                                        6 Norberto Bobbio, A 
                                        era dos direitos (Rio de Janeiro: Campus, 
                                        1992), pp. 31-33, 61-62. 
                                      7 
                                        Cf. Flávia Piovesan, Temas de direitos 
                                        humanos, capítulos I e II (São 
                                        Paulo: Max Limonad, 1998). 
                                      8 
                                        Cf. Conectas, Guia de direitos humanos, 
                                        cit., p. 261. 
                                       
                                        9 Cf. Jacob Gorender, 
                                        Brasil em preto & branco: o passado 
                                        que não passou (São Paulo: 
                                        Editora Senac São Paulo, 2000), 
                                        pp. 86-87. 
                                      10 
                                        CEM-Cbrap, em Folha de S. Paulo, São 
                                        Paulo, 21-9-2003. 
                                      11 
                                        Cf. Portal Terra, 30-6-2003; Folha de 
                                        S. Paulo, São Paulo, 18-9-2003, 
                                        p. A-8; Folha de S. Paulo, São 
                                        Paulo, 19-9-2003, p. A-13; Tercio Sampaio 
                                        Ferraz Jr., “Holocausto judeu ou 
                                        alemão?”, em Folha de S. 
                                        Paulo, São Paulo, 19-9-2003, p. 
                                        A-3.  
                                       
                                        12 Cf. “Um 
                                        voto em favor do racismo”, em O 
                                        Estado de S. Paulo, São Paulo, 
                                        7-9-2003. 
                                       
                                        13 Cf. Fábio 
                                        Konder Comparato, A afirmação 
                                        histórica dos direitos humanos, 
                                        capítulo XV, cit. 
                                       
                                        14 Cf. Jacob Gorender, 
                                        “Estratégias dos estados 
                                        nacionais diante do processo de globalização”, 
                                        em Estudos Avançados, nº 25, 
                                        ao Paulo, IEA-USP, 1995. 
                                      ^ 
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