Seminário
nacional sobre
a eficácia da lei da tortura
Painel:
Mecanismos de
Punição e Prevenção da Tortura
Expositora:
Simone Schreiber
1. O
Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos.
Após a segunda
guerra mundial, a aprovação da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, em 10.12.1948, foi um marco no processo de
reconstrução do movimento de proteção de direitos humanos,
introduzindo uma preocupação de conferir a estes direitos proteção
internacional. Os
direitos humanos passam a ser tema de legítimo interesse da
comunidade internacional.
Advêm de tal
concepção duas conseqüências:
“1. a revisão da noção tradicional de
soberania absoluta do Estado, que passa a sofrer um processo de
relativização, na medida em que são admitidas intervenções no
plano nacional em prol da proteção dos direitos humanos, isto é,
permitem-se formas de monitoramento e responsabilização
internacional, quando os direitos humanos são violados;
2. a cristalização da idéia de que o
indivíduo deve ter direitos protegidos na esfera internacional,
quando os direitos humanos forem violados”.
Começa a se
desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos,
integrado por diversos sistemas normativos que coexistem.
Assim temos um sistema normativo global (no âmbito das Nações
Unidas), sistemas regionais (como exemplo, o sistema americano) e
sistemas nacionais de proteção.
Tais sistemas de proteção são complementares.
O propósito da coexistência de distintos instrumentos jurídicos
de proteção é ampliar e fortalecer a proteção.
Assim, eventuais colidências entre normas contidas nos
diversos instrumentos de proteção devem ser resolvidas,
prevalecendo sempre a norma mais benéfica e protetiva, seja ela
de direito interno ou internacional.
Ficam afastados os métodos de interpretação
tradicionais, tais como o princípio de que norma posterior revoga
anterior, ou de que norma especial revoga a geral. Prevalece
sempre a norma que melhor e mais eficazmente proteja a dignidade
humana.
Antônio
Augusto Cançado Trindade observa que decorre do princípio da
complementariedade e da interação dos sistemas de proteção a
liberdade do indivíduo de escolher o procedimento internacional a
ser acionado (a nível global ou regional).
O autor, Juiz Presidente da Corte Interamericana dos
Direitos Humanos, consigna a relativização pela Comissão
Interamericana dos Direitos Humanos do requisito de prévio
esgotamento dos recursos de direito interno como pressuposto de
admissibilidade das petições e comunicações recebidas pela
Comissão. Ao
invés de rejeitá-las, a Comissão tem adotado técnicas
alternativas de solicitar informações adicionais ou de adiar a
decisão. Além
disso, admitiu-se que tal requisito não se aplicaria aos chamados
casos gerais (de violações generalizadas aos direitos humanos).
“A prática da Comissão Interamericana a respeito, mesmo antes da adoção
da entrada em vigor da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, tem demonstrado que aquele requisito de admissibilidade não
é sacrossanto, imutável ou absoluto, e tem sido aplicado – à
luz do critério da eficácia dos recursos internos – com muito
mais flexibilidade no contexto da proteção
internacional dos direitos humanos (...) As regras
geralmente reconhecidas no direito internacional – às quais se
refere a formulação do requisito de esgotamento nos tratados e
instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos - (...) sofrem necessariamente, quando inseridas em tratados e
instrumentos de direitos humanos, um certo grau de ajuste ou
adaptação, ditado pelo caráter especial do objeto e propósito
destes e pela especificidade amplamente reconhecida da proteção
internacional dos direitos humanos. A prática da Comissão
Interamericana neste particular constitui uma clara ilustração
deste entendimento”
A
Convenção Americana de Direitos Humanos
A Convenção
Americana de Direitos Humanos foi assinada em São José, na Costa
Rica, em 1969. Por
isso também é conhecida como Pacto de São José da Costa
Rica. Entrou em
vigor em 1978, quando o 11o instrumento de ratificação
foi depositado. Hoje,
25 Estados membros da Organização
dos Estados Americanos são partes da Convenção, tendo o Brasil
aderido apenas em 25.9.92.
A Convenção
reconhece e assegura um rol extenso de direitos civis e políticos
e um aparato de proteção e monitoramento dos direitos que
enuncia. Os Estados
signatários tem a obrigação negativa de respeitar os direitos
garantidos na Convenção, e a obrigação positiva de assegurar
tais direitos. Tal
obrigação positiva implica na “adoção
de medidas afirmativas necessárias e razoáveis em determinadas
circunstâncias para assegurar o pleno exercício dos direitos
garantidos pela Convenção Americana”
O aparato de
proteção dos direitos é integrado pela Comissão
Interamericana de Direitos Humanos e pela Corte
Interamericana.
A
Comissão Interamericana de Direitos Humanos foi instituída
anteriormente à aprovação da Convenção.
Tal Comissão originou-se de uma resolução e não de um
tratado. A Resolução
VIII da V Reunião de Consulta dos Ministros de Relações
Exteriores (Santiago, 1959).
Seus poderes, originariamente limitados à elaboração de
relatórios, foram ampliados na II Conferência Interamericana
Extraordinária (Rio de Janeiro, 1965) que pela Resolução XXII,
passou a ter poderes de receber petições ou comunicações sobre
violações de direitos humanos.
Passou assim a Comissão a deter as seguintes atribuições:
1. exame de comunicações; 2. fazer visitas in loco (com anuência
dos Estados visitados); 3. promover estudos e seminários.
Em
1970, com a entrada em vigor do Protocolo de Reformas da Carta da
Organização dos Estados Americanos (Buenos Aires, 1967), a
Comissão passou a ser dotada de base convencional, com atribuição
de controle e supervisão da proteção de direitos humanos.
Finalmente,
com a entrada em vigor, em meados de 1978, da Convenção
Americana de Direitos Humanos, a Comissão passou a ser dotada de
uma dualidade de funções: “efetivamente continuou aplicando as normas que vinham regendo sua atuação
inclusive em relação aos Estados não-partes na Convenção
Americana, e passou naturalmente a aplicar aos Estados Partes as
disposições relevantes da Convenção”.
A
Comissão é integrada de sete membros de alta autoridade moral e
de reconhecido saber em matéria de direitos humanos eleitos a título
pessoal pelos Estados membros da OEA em sua Assembléia Geral,
para um mandato de quatro anos, sendo possível uma reeleição.
Seus membros são eleitos a título pessoal, e não como
representantes dos Estados dos quais são nacionais, o que lhes
confere bastante autonomia no exame dos casos de violações de
direitos humanos.
A
Convenção instituiu ainda a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, com atribuição de
interpretar e aplicar seus preceitos e de “julgar
casos de supostas violações de direitos humanos consagrados na
Convenção.”
A Corte tem assim atribuição consultiva e
contenciosa. Mas sua
função contenciosa só atinge o julgamento de denúncias de
violações de direitos humanos de Estados que tenham reconhecido
sua competência, na forma do art. 62 da Convenção.
A
Corte, tanto em sua atividade consultiva, com a elaboração de 16
pareceres fixando a interpretação dos direitos assegurados na
Convenção, quando em sua atividade contenciosa (até o fins de
1999, 63 sentenças), tem se manifestado acerca da obrigação
geral dos Estados Partes de assegurar o respeito aos direitos
protegidos (art. 1o) e da obrigação geral de adotar
medidas legislativas e outras que se fizerem necessárias para
efetivar tais direitos (art. 2o).
Antônio
Augusto Cançado Trindade ressalta a importância do direito
reconhecido aos indivíduos de apresentar diretamente à Corte
seus próprios argumentos de forma autônoma em relação aos
argumentos e provas já apresentados pelos delegados da Comissão,
na etapa das reparações (locus standi dos indivíduos) (art. 23
do Regulamento vigente a partir de 1.1.1997).
O
sistema de proteção previsto na Convenção funciona da seguinte
maneira:
1.
os indivíduos ou entidades não governamentais legalmente
reconhecidas em um dos Estados partes apresentam
petição à Comissão (direito de petição individual é
mandatório – art. 44). Os
Estados também apresentam suas queixas dirigidas a outros Estados
à Comissão (mas tal comunicação feita por Estado depende de
que este Estado declare que reconhece a competência da Comissão
para apreciar comunicações em que um Estado-parte alegue que
outro Estado-parte incorreu em violações de direitos humanos, ou
seja, o direito de queixa interestatal é facultativo – art.
45).
2.
A Comissão Interamericana examina a admissibilidade da
petição ou da comunicação, podendo enviá-la à Corte.
3.
Os indivíduos detêm hoje direito de locus
standi in judicio (acesso direto à Corte) apenas na etapa do
julgamento referente à reparação.
Cançado Trindade
defende a ampliação do direito de locus
standi em todas as etapas do processo (em caso já submetidos
à Corte pela Comissão) com previsão de assistência judicial
gratuita, quando necessária.
E em uma segunda etapa,
defende que seja reconhecido aos indivíduos o direito de
demandar os Estados perante a Corte (jus
standi), superando-se o modelo em que a Comissão exerce a
intermediação entre a Corte e o indivíduo, funcionado a Comissão
como órgão auxiliar da Corte, com posições não raro distintas
das que são defendidas pelos advogados da vítima.
Instrumentos
de Direito Internacional de proteção no que tange à tortura
Cumpre
traçar resumidamente o conteúdo das normas internacionais que
cuidam do direito de não ser submetido à tortura.
Temos duas convenções setoriais, que tratam
especificamente de tortura: 1. A Convenção
contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos
e degradantes, adotada pela Resolução 39/46, da Assembléia
Geral das Nações Unidas, em 10.12.84, a qual entrou em vigor em
26.7.87. O Brasil a
firmou em 23.9.85 e a ratificou em 28.9.89.
2. Convenção
interamericana para prevenir e punir a tortura, adotada no
XV Período Ordinário de Sessões da Assembléia Geral da OEA, na
Colômbia, em 9.12.85, e ratificada pelo Brasil em 20.7.89.
Convenção
contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos
e degradantes
Tal
Convenção define assim o termo tortura, em seu art. 1o:
“qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou
mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de
obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões;
de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha
cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou
coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo
baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores
ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público
ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua
instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência.
Não se considerará como tortura as dores o sofrimentos
que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou
que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.”
A seguir, a Convenção
em análise: 1. impõe aos Estados partes o dever de tomarem
medidas eficazes de caráter legislativo, administrativo ou
judicial, a fim de impedir a prática de atos de tortura (art. 2o);
2. prevê o dever dos Estados de criminalizar a tortura (note-se
que o Brasil apenas o fez em 1997) (art. 4o); 3. normas
referentes à extraterritorialidade, tais como: vedação de
conceder extradição, expulsão ou devolução de pessoa a outro
Estado, quando houver razões para crer que ali será tal pessoa
submetida à tortura (art. 3o); dever de punir pessoa
que tenha cometido tortura, quando não conceder extradição
(art. 5o, 2); possibilidade de extradição com apoio
na Convenção, ainda que entre os Estados envolvidos não haja
tratado de extradição (art. 8o, 2); cooperação
internacional para o fornecimento de elementos de provas necessárias
à apuração de crimes de tortura (art. 9o);
4. fixação da jurisdição dos Estados partes para
processar crime de tortura (art. 5o); 5. dever de deter o suspeito de crime de tortura,
assegurando-lhe processo justo(art. 6o e 7o);
6. dever de ministrar ensino e informação sobre a proibição da
tortura às pessoas envolvidas com custódia e interrogatório de
presos (art. 10); 6. dever de manter permanente exame e fiscalização
das “normas, instruções, métodos e práticas de interrogatório,
bem como as disposições sobre custódia e o tratamento das
pessoas submetidas à prisão” com vistas de evitar a prática
de tortura (art. 11); 7. direito das pessoas vítimas de tortura
de apresentar queixa às autoridades competentes no Estado,
direito à proteção dos queixosos, direito à indenização das
vítimas de tortura (arts. 13 e 14); 8. invalidação da prova
colhida através da tortura; 9. previsão da criação de um Comitê
contra a tortura, cujos membros (10 membros de elevada reputação
moral e reconhecida competência na área de direitos humanos)
exercerão suas funções a título pessoal.
A competência de tal Comitê é a de receber relatórios
dos Estados partes sobre as medidas por ele adotadas para
cumprimento das obrigações assumidas (art. 19) e de receber e
examinar comunicações feitas por outros Estados partes (art. 21)
e por pessoas (art. 22) de violações dos direitos assegurados na
Convenção. O Comitê só é competente para apreciação de tais
comunicações quanto aos Estados partes que expressamente
reconhecerem tal competência.
Os princípios que norteiam tais investigações são:
notificação prévia do Estado parte interessado; aquiescência
do Estado para investigação in loco; obtenção de cooperação
do Estado parte interessado; tentativa de chegar-se a uma solução
amistosa, quando o conflito envolver dois Estados partes; exigência
de esgotamento dos recursos internos disponíveis, com a ressalva
de não aplicação dessa regra “quando a aplicação dos mencionados recursos se prolongar
injustificadamente ou quando não for provável que a aplicação
de tais recursos venha a melhorar realmente a situação da pessoa
que seja vítima de violação da presente Convenção” (art.
21, 1, c).
Convenção
interamericana para prevenir e punir a tortura
Tal Convenção define
o termo “tortura” em seu art. 2o:
“Para
os efeitos desta Convenção, entender-se-á por tortura todo ato
pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou
sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação
criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como
medida preventiva, como pena ou qualquer outro fim.
Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre
uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima,
ou a diminuir sua capacidade física e mental, embora não causem
dor física ou angústia psíquica.
Não estarão compreendidas no conceito de tortura as penas
ou sofrimentos físicos ou mentais que sejam unicamente conseqüência
de medidas legais ou inerentes a elas, contando que não incluam a
realização dos atos ou a aplicação dos métodos a que se
refere este artigo”.
No
art. 3o, a Convenção estipula que somente os funcionários
públicos ou pessoas que ajam por instigação de funcionários,
podem ser responsáveis pelo delito de tortura.
Estabelece ainda que “o fato de haver agido por ordens
superiores não eximirá a responsabilidade penal
correspondente” (art. 4o).
Impõe a seguir aos Estados partes o dever de tomar medidas
efetivas a fim de prevenir e punir a tortura no âmbito de sua
jurisdição e de
criminalizar a prática de tortura.
No mais, não traz novidades relevantes em relação à
Convenção aprovada pela ONU acima estudada, prevendo o dever dos
Estados de informar à Comissão Interamericana de Direitos
Humanos sobre medidas legislativas, judiciais, administrativas ou
de outra natureza que adotarem na aplicação da Convenção,
devendo a Comissão analisar tais informações em seus Relatórios
Anuais.
(art. 17). As reclamações
atinentes à violação de tal Convenção devem ser apresentadas,
seguindo-se o procedimento previsto na Convenção Americana de
Direitos Humanos (arts. 44 e 45).
2. Normas de proteção referentes à vedação da tortura de Direito
Interno.
Em complementação
às normas de direito internacional de proteção ao princípio da
dignidade da pessoa humana, e especificamente, de vedação à
tortura, é importante mencionar, resumidamente, o sistema de
proteção contido na Constituição Federal e ainda na lei
infraconstitucional que tipifica a tortura.
A Constituição Federal de 1988 assinala o princípio da dignidade
da pessoa humana como um dos fundamentos da República (art. 1o,
III); determina que a República Federativa do Brasil rege-se nas
suas relações internacionais pelo princípio da prevalência
dos direitos humanos (art. 4o, II); prevê que lei
considerará a prática de tortura crime inafiançável e insuscetível
de graça ou anistia (art. 5o, XLIII), proíbe penas
cruéis e assegura aos presos o respeito à integridade física e
moral (art. 5o, XLVII e XLVIII);
assegura o direito à proteção judicial efetiva e à
assistência jurídica integral e gratuita aos pobres (art. 5o,
XXXV e LXXIV); assegura a aplicação imediata às normas
definidoras dos direitos fundamentais e confere status
de norma constitucional aos tratados de direitos humanos firmados
pelo Brasil
(parágrafos primeiro e segundo do art. 5o).
Apenas nove
anos após a promulgação da Constituição e, como já
observado, oito anos após a ratificação das Convenções contra
a Tortura acima analisadas, o Brasil editou lei tipificando o
crime de tortura (lei 9455, de 7.4.97).
A principal crítica que a doutrina fez à lei 9455
refere-se ao fato de ter ampliado a definição do crime de
tortura, já que não o prevê apenas como crime próprio de
funcionário público, como o fazem a Convenção contra a tortura
e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos e degradantes e a
Convenção interamericana para prevenir e punir a tortura.
Não obstante isso, creio que não se pode invocar a
inconstitucionalidade da lei sob esse aspecto, já que ampliou a
proteção da vítima de tortura, prevendo tipos penais não
previstos nas Convenções internacionais.
3. Efetivação das normas de proteção às vítimas e de punição do
crime de tortura.
Apesar de
existência de um sistema integrado de proteção de direitos
humanos, com normas e mecanismos de proteção de direito interno
e de direito internacional, ao examinarmos os efeitos concretos de
atuação de tais aparatos de proteção, a realidade é
extremamente preocupante.
Há grande dificuldade de apuração efetiva e de instauração
de ação penal para a punição do crime de tortura e grande
desinteresse do Estado Brasileiro em viabilizar um sistema
eficiente de prevenção. No exame que fiz da jurisprudência dos principais tribunais
de 2o grau do país, e ainda dos Tribunais Superiores,
não encontrei nenhum julgado que tratasse da aplicação da lei
9455, no que tange à prática de crime de tortura.
Os julgados colhidos nos sites de jurisprudência
pertinentes à lei 9455 referem-se exclusivamente à possibilidade
de aplicação aos crimes hediondos e aos demais crimes objeto da
lei 8072/90 do regime de progressão de pena previsto na nova lei
de tortura, por ser mais benigno do que o regime daquela lei, que
não autoriza a progressão.
Além disso, está consolidado na jurisprudência dos
tribunais brasileiros que eventuais informações colhidas sob
tortura não podem ser aceitas como provas no processo (o que vai
de encontro com as Convenções estudadas), muito embora em vários
julgados esteja consignada a dificuldade de o réu provar que
efetivamente foi torturado durante seu interrogatório.
Ainda sobre tortura, há julgados que reconhecem a tortura
como indicativa do dolo eventual, se advém a morte da vítima,
respondendo o agente por homicídio doloso, e finalmente alguma
jurisprudência sobre a aplicação do crime de tortura previsto
no Estatuto da Criança de do Adolescente, em contraposição ao
crime de maus tratos, previsto no Código Penal.
Apesar dos
raros casos de apuração de tortura, para responsabilização
civil e criminal do agente, partiremos da premissa de que há
tortura no Brasil. E
há em grande escala, ou seja, tratando especificamente da tortura
do preso pelos agentes responsáveis pela investigação (polícia
judiciária) e pelo encarceramento (agentes administrativos dentro
das penitenciárias). Podemos
afirmar que há prática corriqueira de submeter o preso à
sofrimentos físicos e morais, à tratamento cruel e degradante,
pelos mais diversos motivos, desde a investigação, até a contenção
da massa carcerária, como mecanismo de imposição de disciplina,
considerando-se um sistema penitenciário que mantém os presos em
uma situação limite, insuportável, reduzindo-os a uma condição
abaixo do limite da dignidade inerente à condição humana,
onde a utilização da violência é mecanismo tolerado de
controle.
Em artigo
publicado em edição especial da Revista da OAB/RJ, n° 22,
dedicada ao tema: A Instituição Policial, Maria Vitória
Benevides faz interessante análise das justificativas
apresentadas por policiais para a adoção da
tortura como método de trabalho dentro das delegacias:
“O
primeiro motivo para justificar a tortura (considerada necessária,
e mesmo inevitável) é de ‘ordem técnica’: trata-se de
maximizar a eficácia dos interrogatórios.
As informações só seriam obtidas com emprego da violência
física e da exploração do medo.”
A tortura como
método de investigação é defendida em vista de sua incontestável
eficácia, traduzida na expressão “bandido só fala no pau”. “Qualquer outro método
significaria perda de tempo ou ingenuidade”. Há uma lógica invertida de investigação por trás deste método
que se consubstancia em fazer um interrogatório render o máximo,
extraindo-se do criminoso todas as informações que ele possua não
apenas do crime pelo qual foi preso, mas de outros possíveis
crimes e suas ramificações.
Na expressão de um delegado de polícia entrevistado pela
autora:
“Um
indivíduo é preso e levado pra delegacia, ele tem que ser
trabalhado. Nós
sabemos que ele cometeu um assalto, mas eu pergunto, ele está há
cinco anos na rua, será que praticou só um? E os outros que eu
tenho certeza que ele praticou, como é que eu faço pra ele me
contar? (...) Tem uma quadrilha presa comigo, que é uma das
maiores quadrilhas destes últimos tempos; estes indivíduos já
me confessaram cerca de 50 e poucos crimes; eu acho que já está
bom, não tenho bola de cristal, mas a gente vai espremendo, é
como fruta, você vai tirando o caldo, todo o caldo, mas você não
sabe o que ficou, você vê o bagaço mas sempre fica um caldinho
lá dentro, não fica? Esse
o ladrão leva pro túmulo”.
O
segundo motivo pelo qual se tortura, ainda segundo Maria Vitória
Benevides, é o de
punir, castigar, fazer com que o criminoso pague pelo que fez.
“a confissão,
nesse caso, é um momento de expiação, pois passa a ser
considerada necessária, embora dispensável do ponto de vista
legal (as confissões obtidas através de torturas, quando
denunciadas, são evidentemente, desconsideradas pelo juiz.
Segundo os policiais, ‘os malandros sempre alegam tortura
para invalidar as confissões’).”
Qual
é a razão desse divórcio entre o que prevêem as normas de
proteção e a realidade dos fatos?
Em artigo intitulado O judiciário brasileiro em face
dos direitos humanos,
Dyrceu Aguiar Dias Cintra Junior expõe algumas das causas do
problema ora detectado.
Vejamos.
1.
Os gravíssimos índices de violência, especialmente nos grandes
centros urbanos, geram respostas inadequadas por parte das
autoridades, uma vez que as verdadeiras causas da violência são
desconsideradas. Na verdade, atribui-se ao direito penal a solução do
problema da violência, quando “o
tratamento adequado da questão da violência não está senão
secundariamente no Direito Penal”.
Ao
invés da adoção de medidas de caráter social, que busquem
resgatar uma significativa parcela da população que hoje ostenta
a condição de excluída, considerados excluídos aqueles que não
têm acesso aos mais básicos direitos decorrente de sua condição
humana e de sua condição de cidadãos, é adotada uma política
criminal meramente simbólica, com a aprovação de novas leis
repressivas, ou a notícia de novas políticas de segurança com tônica
em espetaculares, mas absolutamente tópicas e esporádicas, ações
repressivas. Pondera
o autor, com acerto:
“As
leis de natureza penal, hoje em dia, parecem veicular uma perigosa
assertiva que tomou conta dos ensandecidos que, equivocadamente, vêem
no direito penal a solução de todas as mazelas, ou quase todas:
é preciso passar por cima das garantias constitucionais, ignorar
a ética e os ditames da consciência jurídica democrática no
combate sem trégua ao crime, que atormenta a sociedade.
Captando equivocada legitimidade através da dramatização
da violência – cujo conceito é reduzido ideologicamente a não
parecer mais que a criminalidade comum – os grupos
interessados em mais repressão se organizam em torno da idéia de
que a paz e a segurança do cidadão dependem de desprezar os
direitos fundamentais garantidos, como se eles não fossem de
todos os homens, mas, apenas dos ‘bandidos’”
Nesse
cenário, o juiz é cooptado para funcionar como auxiliar do
Estado na atividade repressiva, relativizando a tutela aos
direitos humanos quando se trata de combater o crime, já que os
direitos humanos são qualificados como “instrumentos de proteção dos criminosos”.
Não
se pode deixar de consignar, por trás desse discurso, um grave
preconceito de classe e de etnia, identificado no funcionamento de
um sistema repressivo que atinge quase que exclusivamente as
camadas mais pobres da população.
Dyrceu Cintra aponta “uma perigosa e sutil intolerância com base em preconceitos, disseminada
mas não anunciada em palanque, que preside a formação de uma
perversa ideologia de desrespeito aos direitos fundamentais”. Em decorrência, a violência policial é tolerada como
mal necessário no combate sem tréguas ao crime e, muitas vezes o
juiz cioso da proteção aos direitos fundamentais do acusado
sofre ataques da imprensa por ser condescendente com o
“bandido”, não se preocupando com os “direitos humanos da vítima”.
2.
Outro grave problema a ser enfrentado na adoção de uma política
de combate à prática de tortura refere-se à superpopulação
carcerária e à ausência de investimentos e de medidas que
visem, senão solucionar o problema, minimizá-lo.
Apesar de o legislador ter optado pela jurisdicionalização
da execução penal (lei 7810/84), o judiciário se demite da função
de controlar efetivamente a execução penal, tendo em vista
limitação de recursos materiais (falta de presídios, falta de
manutenção dos presídios existentes em condições de
habitabilidade, falta de recursos para assegurar-se alimentação
minimamente razoável, assistência médica, etc., etc., etc.) que
inviabilizariam o controle judicial do cumprimento efetivo da lei.
Investir
no sistema penitenciário exigiria uma opção política do
administrador, não controlável pelo Poder Judiciário.
“...
há entre nós - envolvendo o Judiciário – a tendência de se
alijar o sistema penitenciário da sociedade, ilhando a população
carcerária em um espaço físico.
De um lado ficam os problemas sociais, de outro as inquietações
do cárcere. Os
problemas do encarceramento são coisa que se resolve entre a própria
administração e o preso, sem a efetiva intervenção judicial.
Os procedimentos de verificação interna quanto a faltas e
quebra de disciplina ou aferição de méritos de detentos são
entregues prontos ao Judiciário, para o exercício de uma jurisdição
meramente formal e episódica.”
A
leitura do livro publicado pelo médico Drauzio Varella, relatando
sua experiência na Casa de Detenção de São Paulo, palco do
chamado “massacre do Carandiru”, onde 111 presos foram mortos
pela polícia militar, fornece
um retrato bastante impressionante da realidade do maior presídio
do país. Dentre
outras narrativas, cumpre destacar a existência de um setor do
presídio sintomaticamente batizado de “masmorra”, destinado
à punição de presos com problemas de disciplina, e ainda a
guarda de presos jurados de morte no presídio, até que se
consiga sua remoção para outro complexo penitenciário.
O Diretor do Presídio narra ao autor uma ocasião em que,
“aborrecido” com as reclamações do juiz corregedor acerca
das condições sub humanas em que são mantidos os presos na
masmorra, abriu todas as celas na presença do juiz e perguntou a
cada um dos presos se gostariam de ser transferidos para outro
pavilhão do presídio. Todos
recusaram, temendo por suas vidas.
Diante de tal realidade, o juiz teria se conformado com a
situação dos presos.
4.
Propostas
Algumas
medidas, a meu ver, poderiam contribuir na busca de soluções do
problema detectado, resgatando
o atual déficit de ações efetivas visando a prevenção e
repressão ao crime de tortura:
1.
A formação de
uma nova consciência de respeito aos direitos humanos.
Tal medida é parcialmente preconizada nas Convenções que
examinamos acima, quando impõem aos Estados partes
que assegurem “que
o ensino e a informação sobre a proibição da tortura sejam
plenamente incorporados no treinamento do pessoal civil ou militar
encarregado da aplicação da lei, do pessoal médico, dos funcionários
públicos e de quaisquer outras pessoas que possam participar da
custódia, interrogatório ou tratamento de qualquer pessoa
submetida a qualquer forma de prisão, detenção ou reclusão”
Entretanto, o que se propõe é uma política de
conscientização de toda a população, inclusive das camadas
mais pobres, com a adoção obrigatória da disciplina ‘direitos
humanos’ na escolas de rede pública, com engajamento de
universitários e operadores do Direito inclusive.
2.
Investimentos
maciços na formação e capacitação da polícia.
Tanto no que tange à formação dos policiais, buscando o
pleno comprometimento com uma política de repressão comprometida
com o respeito aos direitos humanos, mas também com o
investimento em recursos materiais, dotando a polícia de
equipamento de última geração, que viabilize a eficiente
investigação sem que o policial se veja na contingência de lançar
mão de métodos ilícitos para a apuração dos fatos.
O que se observa hoje é a cobrança de soluções rápidas,
resultados que possam ser apresentados à
opinião pública como indicativos de eficiência no
combate à violência, em contraposição à uma carência
absoluta de recursos materiais que inviabilizam a atuação
eficiente que se espera da polícia.
Adoção de política salarial digna, compatível com a
relevância de suas funções da polícia judiciária. Hoje muito
se tem discutido a respeito de o Ministério Público se
substituir a polícia na condução da investigação penal, como
forma de solucionar o problema das falhas na investigação.
Parece-me que tal
perspectiva é equivocada. O
Ministério Público tem um relevantíssimo papel no processo
penal, que é o de – após examinar a seriedade e idoneidade da
prova colhida no inquérito – ajuizar a ação penal. O sistema atribui a atividade persecutória a outro órgão,
mantendo assim o Ministério Público em posição de isenção no
exame da prova indiciária, para decidir se deve ou não ajuizar a
ação. É certo que
o Ministério Público deve exercer o controle externo da
atividade policial, mas isso não se traduz em substituir-se à
polícia no desempenho de sua atribuição constitucional de
realizar as investigações.
3.
A imediata
implantação da defensoria pública nos Estados em que ainda não
existe e ainda da defensoria pública da União.
A meu ver esse é o déficit mais grave do Governo Federal
e dos Governos Estaduais no compromisso firmado inclusive a nível
internacional com a política de defesa dos direitos humanos.
Basta identificarmos quem são hoje as vítimas da tortura
praticada pelos agentes do Estado envolvidos com a repressão
criminal. A clientela
efetivamente alcançada pelo Direito Penal é, em sua imensa
maioria, de pessoas pobres que não possuem assistência de
advogados quando são detidas e quando são interrogadas.
Os Governos Estaduais hoje não valorizam suas defensorias,
mantendo grande déficit de defensores que não conseguem atender
a demanda, mal
equipados e com salários defasados, quando comparados aos demais
advogados públicos e integrantes do Ministério Público.
Se houvesse um defensor público de plantão em cada
delegacia de polícia, certamente essa medida de fácil implementação,
teria um grande impacto sobre os atuais índices de violência
policial em
delegacias
4.
Os juízes devem
comprometer-se com a execução da penal, exigindo, inclusive
através de suas associações de classe e com apoio dos Tribunais
Superiores, ampla reforma do sistema penitenciário. Além
disso, devem dar às normas processuais penais interpretação
conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa
Ricas, cujas normas possuem indiscutivelmente status
constitucional. Nesse
sentido a prisão deve ser imposta ao acusado e ao condenado em
circunstâncias excepcionalíssimas, optando-se sempre por penas
alternativas, especialmente porque não pode o juiz simplesmente
abstrair a realidade do sistema penitenciário, fazendo um exame
meramente formal da pena que a lei estabelece
4.
Conclusão
Procurou-se,
nesse breve estudo, apresentar o sistema de proteção aos
direitos humanos vigente no Direito Brasileiro, o qual inclui
mecanismos de Direito Interno e de Direito Internacional, em uma
rede de integração de modo a garantir a maior eficácia do
sistema, e por outro lado, suscitar alguns problemas referentes à
efetiva aplicação, ao efetivo funcionamento de tal sistema de
proteção, especialmente no que tange à prevenção e repressão
da tortura no Brasil. Ressalto
apenas que o intuito do presente trabalho é apenas de suscitar
algumas questões e assim contribuir para o imprescindível debate
a ser travado visando extirpar definitivamente a prática da
tortura em nosso país.
Flávia Piovesan, Introdução ao Sistema Interamericano de
Proteção dos Direitos Humanos: A Convenção Interamericana
de Direitos Humanos, in
O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos
Humanos e o Direito Brasileiro coordenação - Luiz Flávio
Gomes e Flávia Piovesan, Ed. Revista dos Tribunais, pag. 19.
Dyrceu Aguiar Dias Cintra Júnior, pag. 26.
Antônio Augusto Cançado Trindade (obra citada, pag. 52)
consigna que o décimo-primeiro parecer da Corte
Interamericana dos Direitos Humanos (são ao todo 16
pareceres), datado de 1990,
relativiza a regra do prévio esgotamento dos recursos
de direito interno como requisito de admissibilidade de petições,
tendo decidido que tal requisito de admissibilidade não se
aplicaria quando “por
razões de indigência ou pelo temor generalizado dos
advogados para representar legalmente a suposta vítima, um
reclamante ante a Comissão se viu impedido de esgotar ou
utilizar os recursos internos necessários para proteger um
direito garantido pela Convenção.
Desse modo, a Corte deu maior precisão ao alcance das
exceções à referida regra do esgotamento, em um Parecer de
importância na América Latina, dadas as conhecidas
dificuldades de acesso à justiça das populações carentes e
da obtenção da assistência legal necessária à proteção
dos direitos consagrados na Convenção Americana, ainda mais
em situações de repressão ou intimidação”.
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