Washington
Araújo*
O ADVOGADO DO CENTRO DE
DIREITOS HUMANOS E MEMÓRIA POPULAR (CDHMP) DO RIO GRANDE DO NORTE,
FRANCISCO GILSON NOGUEIRA DE CARVALHO, FOI BRUTALMENTE FUZILADO PRÓXIMO
A SUA RESIDÊNCIA, NO INTERIOR DE SEU AUTOMÓVEL, NO MUNICÍPIO DE
MACAÍBA, POR SEIS HOMENS COM ARMAS DE GROSSO CALIBRE.
Foi assim mesmo. Estas
palavras calaram fundo em seu coração, correram como adrenalina por
minnha mente e depois, transformou-se em uma reflexão sobre os direitos
humanos no Brasil de 1996. Gilson Nogueira, muito antes de ser advogado,
já era aquele personagem camarada que sabia ouvir os presidiários e
detentos, os pobres e anônimos que quase sempre terminam sendo
espancados pela violência policial. Ele era aquele advogado dos
bandidos. E dos infelizes e dos lazarentos, diria eu. E era alcunhado
como defensor de bandidos porque, lamentavelmente, vemos a mídia aliar
quase sempre o conceito de direitos humanos como sendo os direitos dos
delinquentes, salafrários, arrombadores, esttrupadores, sequestradores.
Nada mais injusta e míope uma visão que antes de considerar a
dimensão humana a todos nós inerente, prefere ver o ser humano
reduzido em seu coeficiente de humanidade e teima e desconsiderar os
fatores que levaram à deliquência, à estrada dos delitos e dos
crimes: a ausência de educação, a perpetuação das injustiças
sociais, a fome.
Conheci Gilson Nogueira no Centro de Direitos Humanos e Memória Popular
de Natal - por sinal um dos mais respeitados no Brasil em sua área de
atuação - e ele estava empolgado relatando uma audiência em que não
hesitou em apontar o Jorge Abafador com um dos culpados pela Chacina de
Mãe Luiza, que bem poderia ser reportada como a Vigário Geral de Natal
ou, guardando as proporções, com a Carandiru Potiguar. Ele estava
empolgado porque se sentia um paladino da justiça, aquela justiça que
lhe foi inoculado ainda no primeiro ano de Direito quando lia pela
primeira vez o livro De Rudolph von Hiering A Luta pela Justiça.
E se inflamava, sorria, as palavras encontrando no vácuo sua maior
significação. E foi assim que Gilson Nogeuira gravou, em alto relevo,
sua imagem em mminha consciência: um jovem amante da justiça e
disposto a tudo para preservá-la.
Não tardou muito e nos chega a notícia fatal: foi fuzilado. A força
bruta de seis homens ceifando a vida de um seu semelhante. Carne e osso,
tristezas e alegrias. O passado permeado de outras lutas pela mesma musa
inspiradora que segurando sua fatídica balança continua com os olhos
vendados. O presente rescendendo a corredores de penitenciárias, salas
de audiências, súplicas por escoltas policiais. E o futuro Ah, esse
lhe foi roubado violentamente. Não existe nada que nos abale mais que
uma vida interrompida na flor da idade. Penso nos familiares de Gilson
Nogueira: sua infância feliz, seus anos de estudante com muitas
dificuldades financeiras, aquele momento sempre sonhado em que recebeu
seu Diploma de Direito, e os sorrisos dos pais, irmãos, tios, primos,
vendo alguém vencer do nada, como se estivessem presenciando um milagre
ao vivo e a cores. Penso em seus planos para o futuro que logo lhe seria
arrancado e na sua retidão de caráter, o bem maior que ele sempre
cultivar.
É difícil falar de um amigo morto. Principalmente se este amigo não
viveu o suficiente para saber de nossa admiração. Foi o que aconteceu.
Muitas coisas que gostaria de ter dito ao Gilson ficou na poeira do
esquecimento, perdidas nesse imenso sótão que chamamos de “ ah,
faço isso da próxima vez”. Mas não houve próxima vez e agora tenho
que dizer o que não foi dito:
Gilson amigo,
Você batalhou até o último momento e nos ensinou que caráter e
coragem fazem a conspiração perfeita. E também demonstrou que a luta
é válida quando a causa é nada mais e nada menos que a defesa
intransigente dos Direitos da Pessoa Humana, esteja onde estiver, no
Hotel Vila do Mar ou na Penitenciária João Chaves. E nos deixou um
testamento de belas ações, que como folhas soltas ao vento, serão
recolhidas pelas novas gerações e... em cada folha estará escrito com
tinta indelével estas palavras de fogo: Vivi pouco sim. Mas não vivi
em vão e se não fiz tudo o que poderia ter feito, ao menos meus filhos
saberão que o Papai tentou".
* Washington Araújo, 37,
é escritor e autor, dentre outros livros,
de CUBA: Cantando em Lágrima Viva. |