Relatório sobre a Tortura no
Brasil
Produzido pelo Relator Especial
sobre a Tortura da Comissão de Direitos Humanos da Organização
das Nações Unidas (ONU)
Genebra, 11 de abril de 2001
Introdução
1. Após uma solicitação do
Relator Especial, em novembro de 1998, o Governo do Brasil
convidou-o, em maio de 2000, a realizar uma missão de
levantamento de fatos ao País, como parte de seu mandato. O
objetivo da visita, que ocorreu de 20 de agosto a 12 de setembro
de 2000, consistia em permitir que o Relator Especial coletasse
informações em primeira mão a partir de uma ampla gama de
contatos, a fim de melhor avaliar a situação da tortura no
Brasil, permitindo, assim, que o Relator Especial recomendasse ao
Governo um conjunto de medidas a serem adotadas no intuito de
assegurar o cumprimento de seu compromisso de pôr fim a atos de
tortura e outras formas de maus tratos.
Durante sua missão, o Relator
Especial visitou os seguintes distrito e estados: Distrito
Federal, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco e
Pará. Em Brasília, o Relator Especial reuniu-se com as seguintes
autoridades: o Presidente da República Federativa do Brasil, Sua
Excelência Sr. Fernando Henrique Cardoso; o Ministro da Justiça,
Dr. José Gregori; o Secretário de Estado para Direitos Humanos,
Embaixador Gilberto Vergne Sabóia; a Secretária Nacional de
Justiça, Sra. Elizabeth Süssekind; o Secretário Geral do Ministério
das Relações Exteriores (Ministro em exercício), Embaixador
Luis Felipe de Seixas Correa; o Presidente do Supremo Tribunal
Federal, Ministro Carlos Mário da Silva Velloso; o Presidente do
Superior Tribunal de Justiça, Sr. Paulo Roberto S. da Costa
Leite; o Procurador Geral da República, Dr. Geraldo Brindeiro; o
Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos
Deputados, Sr. Carlos Rolim, bem como alguns membros da Comissão
e o Presidente da Subcomissão de Prevenção e Punição da
Tortura, Sr. Nilmario Miranda; a Procuradora Federal para Direitos
do Cidadão, Sra. Maria Eliane Menezes de Farias; e alguns
promotores públicos do Núcleo Contra a Tortura do Ministério Público
do Distrito Federal.
3. Na cidade de São Paulo
(Estado de São Paulo), o Relator Especial reuniu-se com as
seguintes autoridades: o Governador, Sr. Mário Covas; o Secretário
Estadual de Segurança Pública, Sr. Marco Vinício Petrelluzi; o
Secretário Estadual de Administração Penitenciária, Sr.
Nagashi Furukawa; o Secretário Estadual de Desenvolvimento
Social, Sr. Edson Ortega Marques, bem como alguns de seus colegas
que trabalham para a Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor
– FEBEM; o Secretário Estadual de Justiça, Sr. Edson Vismona;
o Assessor Especial da Procuradoria de Direitos Humanos, Sr.
Carlos Cardoso de Oliveira Júnior; o Chefe da Polícia Civil, Sr.
Ruy Estanislau Silveira Mello; o Ouvidor da Polícia, Sr. Benedito
Domingos Mariano; o Chefe da Polícia Militar, Coronel Luiz Carlos
de Oliveira Guimarães; o Presidente do Tribunal de Recursos, Sr.
Márcio Martins Bonilha. No Rio de Janeiro (Estado do Rio de
Janeiro), o Relator Especial reuniu-se com as seguintes
autoridades: o Governador, Sr. Anthony Garotinho; o Secretário
Estadual de Justiça, Sr. João Luís Duboc Pinaud; o Secretário
Estadual de Segurança Pública, Coronel Josias Quintal; o
Coordenador de Segurança Pública, Coronel Jorge da Silva; o
Chefe da Corregedoria da Polícia Civil, Dr. José Versillo Filho,
o Corregedor da Polícia Militar, Coronel José Carlos Rodrigues
Ferreira, a Ouvidora Externa das Polícias Militar e Civil, Dra.
Celma Duarte; o Procurador Geral, Dr. José Muños Pinheiro; o
Presidente do Tribunal de Justiça, Sr. Humberto de Mendoça
Manes. Em Belo Horizonte (Estado de Minas Gerais), o Relator
reuniu-se com: o Governador, Sr. Itamar Franco; a Secretária
Estadual de Justiça, Dra. Angela Maria Prate Pace; o Secretário
Estadual de Segurança Pública, Dr. Mauro Ribeiro Lopes; o
Corregedor da Polícia Militar, Sr. José Antonio de Moraes; o
Corregedor da Polícia Civil, Sr. José Antonio Borges; o
Comandante Geral da Polícia Militar, Coronel Mauro Lúcio Gontijo;
o Subsecretário de Direitos Humanos, Dr. José Francisco da
Silva. Em Recife (Estado de Pernambuco), o Relator reuniu-se com:
o Governador, Sr. Jarbas de Andrade Vasconcelos; o Secretário
Estadual de Justiça, Sr. Humberto Vieira de Melo; o Diretor do
Sistema Penitenciário, Sr. Geraldo Severiano da Silva; o Diretor
da Fundação para o Apoio a Crianças e Adolescentes (FUNDAC),
Sr. Ivan Porto; o Secretário Estadual de Defesa Social, Sr. Iran
Pereira dos Santos; o Chefe da Polícia Civil e Corregedor das Polícias
Militar e Civil, Sr. Francisco Edilson de Sé; o Ouvidor das Polícias
Militar e Civil, Sr. Sueldo Cavalcanti Melo; o Presidente do
Tribunal de Justiça, Sr. Nildo Nery dos Santos; o Promotor Geral,
Sr. Romero Andrade. Em Belém (Estado do Pará), o Relator
reuniu-se com: o Presidente do Tribunal de Justiça, Sr. José
Alberto Soares Maia; o Procurador Geral, Sr. Geraldo Rocha; a
Secretária Estadual de Justiça, Sra. Maria de Lourdes Silva da
Silveira; o Secretário Estadual de Segurança Pública, Sr. Paulo
Sette Cámara; o Superintendente do Sistema Penitenciário, Sr.
Albério Sabbá; o Chefe da Polícia Civil, Sr. Lauriston Luna Gáes;
o Chefe da Polícia Militar, Capitão Jorgilson Smith; a Ouvidora
da Polícia, Sra. Rosa Rothe. Em todos os estados, o Relator
reuniu-se, igualmente, com membros da Comissão de Direitos
Humanos da Assembléia Legislativa do respectivo estado.
4. O Relator Especial também se
reuniu com pessoas que teriam sido vítimas de tortura ou de
outras formas de maus tratos, ou pessoas cujos familiares
supostamente haviam sido vítimas de tortura ou de outras formas
de maus tratos, e recebeu informação verbal e/ou por escrito da
parte de Organizações Não-Governamentais (ONGs), inclusive as
seguintes: Núcleo de Estudos da Violência; Centro Justiça
Global; Gabinete de Assessoria Jurídica a Organizações
Populares - GAJOP; Movimento Nacional de Direitos Humanos; Ação
Cristã pela Abolição da Tortura (ACAT); Tortura Nunca Mais;
Pastoral Carcerária; Comissão Pastoral da Terra. Por fim, o
Relator também se reuniu com advogados e promotores públicos,
inclusive promotores públicos encarregados de menores infratores
em São Paulo.
5. Em todas as cidades, à exceção
de Brasília, o Relator Especial visitou carceragens policiais,
centros de detenção pré-julgamento e centros de detenção de
menores infratores, além de penitenciárias. Com relação às
instalações de detenção, embora não esteja diretamente no âmbito
do mandato do Relator Especial descrever e analisar exaustivamente
as condições de detenção, como em suas visitas a outros países,
o Relator Especial aproveitou a oportunidade de sua permanência
no Brasil para visitar várias delas, principalmente com o propósito
de se reunir com pessoas que podiam testemunhar quanto ao
tratamento que haviam recebido em estabelecimentos de detenção
antes de serem transferidas para um centro de detenção pré-julgamento
ou para uma penitenciária. No entanto, anteriormente à sua
visita, o Relator Especial havia recebido informações segundo as
quais as condições de detenção eram eqüivalentes à tortura,
e, portanto, não pôde ignorar essa questão. O leitor encontrará
uma descrição das condições encontradas nesses vários locais
de detenção na primeira parte do presente Relatório.
O Relator Especial deseja
expressar seus agradecimentos ao Governo da República Federativa
do Brasil por tê-lo convidado. O Relator Especial deseja
agradecer, igualmente, às autoridades federais e estaduais por
terem lhe dispensado plena cooperação durante a missão, o que
facilitou muito a consecução de sua tarefa. O Relator Especial
expressa aqui sua gratidão ao Representante Residente das Nações
Unidas e aos integrantes de seu quadro funcional do Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento pelo apoio tanto logístico
quanto de outra natureza.
I. A PRÁTICA DA TORTURA: ALCANCE E CONTEXTO
A. Questões Gerais
7. Ao longo dos últimos anos
(ver E/CN. 4/1999/61, parágrafos 86 e seguintes, E/CN.4/2000/9,
parágrafos 134 e seguintes), o Relator Especial havia informado o
Governo do Brasil de que vinha recebendo informações segundo as
quais a polícia rotineiramente espancava e torturava suspeitos de
crimes para extrair informações, confissões ou dinheiro. O
problema da brutalidade policial, quando da prisão ou durante o
interrogatório, segundo os relatos, seria endêmico. O fato de não
se investigar, processar e punir agentes policiais que cometem
atos de tortura havia - segundo os relatos recebidos - criado um
clima de impunidade que estimulava contínuas violações dos
direitos humanos. O Relator Especial também havia transmitido
informação acerca das condições de encarceramento que, de
acordo com os relatos recebidos, eram notoriamente duras. Foi
informado que a grave situação de superlotação prevalecia em
todo o sistema prisional. Em decorrência disso, os motins de
presos nas penitenciárias seriam uma ocorrência comum e os
agentes penitenciários recorriam ao uso excessivo de força.
Muito embora a legislação interna possa conter disposições
adequadas para salvaguardar os direitos humanos dos detentos, uma
combinação de corrupção, falta de capacitação profissional
para os agentes penitenciários e falta de diretrizes oficiais e
de um monitoramento efetivo de incidentes de maus tratos teria
levado a uma crise no sistema penitenciário. Acreditava-se, também,
que a tortura era usada como punição ou castigo por parte de
agentes penitenciários que supostamente aplicam
"castigo" coletivo ilegal.
8. Em seu Relatório Inicial
sobre a Implementação da Convenção Contra a Tortura e Outras
Formas de Tratamento ou Punição Cruel, Desumano ou Degradante, o
Governo reconheceu que "a existência de uma lei que tipifica
crimes de tortura, a disposição do Governo Federal e de alguns
estados de conter a perpetração desse crime e de impedir que se
imponha um tratamento desumano aos presos são iniciativas que,
lentamente, estão mudando a situação da tortura no Brasil. A
persistência dessa situação significa que os agentes penitenciários
ainda estão recorrendo à tortura para extrair informações e
forçar confissões como meio de extorsão ou punição. O número
de confissões feitas sob tortura e a elevada incidência de denúncias
ainda são significativos (...). As reivindicações das pessoas
presas em delegacias de polícia por assistência médica, social
ou jurídica, ou pela mudança de certos aspectos da rotina
prisional, nem sempre são recebidas pacificamente pelos policiais
ou agentes. Vale observar que é comum a retaliação contra os
presos na forma de tortura, espancamentos, privação e humilhação.
(...) Muitos desses crimes permanecem impunes, em decorrência de
um forte sentimento de corporativismo existente entre as forças
policiais no que se refere à investigação e punição dos
funcionários envolvidos na prática da tortura. (...) A falta de
capacitação dos policiais e agentes penitenciários para
desempenharem suas atribuições é outro aspecto importante no
que tange à continuidade das práticas de tortura."
9. Durante sua missão, o
Relator Especial recebeu informações de fontes não-governamentais
e um número muito grande de relatos de supostas vítimas ou
testemunhas de tortura – das quais uma seleção encontra-se
reproduzida no Anexo ao presente Relatório – que indicavam que
a tortura é prática generalizada e, na maioria das vezes,
envolve pessoas das camadas mais baixas da sociedade e/ou de
descendência africana ou que pertencem a grupos minoritários. É
preciso observar que um grande número de detentos expressou temor
de represálias por terem falado com o Relator Especial e um número
significativo deles, portanto, recusou-se a tornar públicos seus
testemunhos. Os espancamentos com barras de ferro ou bastões de
madeira ou palmatória (um pedaço de madeira plano, porém
espesso, com a aparência de uma esponja grande, que teria sido
usado para espancar a palma das mãos e a sola dos pés dos
escravos no Brasil), bem como técnicas descritas como
"telefone", que consiste em bater, repetidas vezes,
contra os ouvidos da vítima, alternada ou simultaneamente, e
"pau-de-arara", que consiste em espancar uma vítima
pendurada de cabeça para baixo e submetida a choques elétricos
em várias partes do corpo, inclusive os órgãos genitais, ou a
sufocamento com sacos plásticos, às vezes cheios de pimenta,
colocados por sobre a cabeça das vítimas, foram algumas das técnicas
de tortura mais comumente relatadas. Foi alegado que o propósito
de tais atos era fazer com que as pessoas presas assinassem uma
confissão ou extrair um suborno, ou punir ou intimidar pessoas
suspeitas de haverem cometido um crime. Foi relatado que o fato de
a pessoa ser de descendência africana ou pertencer a um grupo
minoritário ou marginalizado, e, em particular, uma combinação
dessas características, tornam tais pessoas mais facilmente
suspeitas de atos criminosos aos olhos dos funcionários
encarregados da execução da lei.
10. O Presidente do Brasil
expressou que seu Governo planejava implementar um plano de
segurança pública de amplo alcance. O Relator Especial observa,
entretanto, que a luta contra o elevado nível de criminalidade
muitas vezes foi apresentada por seus interlocutores oficiais como
uma explicação, senão mesmo uma justificativa, para o
comportamento um tanto duro por parte dos funcionários
encarregados da execução da lei, que, segundo relatos recebidos,
teriam de enfrentar criminosos violentos, contando com limitados
recursos à sua disposição. Acreditava-se que, em face dessa
situação, as políticas de segurança pública eram voltadas
para a repressão – aparentemente, às vezes sem limites bem
definidos –, e não para a prevenção. A necessidade de aliviar
o sentimento geral de insegurança pública que alimenta
constantes solicitações da população por medidas cada vez mais
fortes e mais repressivas contra suspeitos de crimes foi
enfatizada com freqüência. Os meios de comunicação também
foram apontados como parcialmente responsáveis por esse
sentimento de insegurança entre o público. Nesse particular, a
educação da população em geral para os direitos humanos foi
indicada, principalmente por ONGs, como uma grande necessidade de
aperfeiçoamento.
11. Para facilitar a referência,
a presente seção começa com uma descrição pormenorizada dos
lugares de detenção visitados pelo Relator Especial durante sua
permanência nos seguintes estados: São Paulo, Rio de Janeiro,
Minas Gerais, Pernambuco e Pará. A presente seção está
subdividida nas seguintes categorias de estabelecimentos de detenção:
delegacias de polícia/ carceragens policiais, centros de detenção
pré-julgamento, penitenciárias e centros de detenção para
menores infratores. O Relator Especial não visitou
estabelecimentos de detenção no Distrito Federal, uma vez que
haviam sido recebidas poucas denúncias relativas ao Distrito
Federal. De modo semelhante, o Relator havia recebido poucas
informações segundo as quais funcionários federais de execução
da lei estariam envolvidos em atos de tortura. Em todos os lugares
de detenção visitados pelo Relator Especial, à exceção de
Nelson Hungria, em Minas Gerais, o principal problema encontrado
foi a situação de superlotação, que, somada a uma arquitetura
inadequada, muitas vezes caindo aos pedaços, falta de higiene e
saneamento, falta de serviço de saúde e precária qualidade ou
até mesmo escassez de alimentos, tornam subumanas as condições
de detenção, conforme advertido ao Relator Especial por várias
autoridades. Segundo ONGs, essas condições não podem ser atribuídas
unicamente à falta de recursos financeiros ou materiais, mas são,
também, conseqüência de políticas deliberadas ou de uma grave
negligência por parte das autoridades competentes. O Relator
Especial, entretanto, observa que muitos de seus interlocutores
oficiais, em particular delegados de polícia, queixaram-se acerca
da situação material extrema que eram obrigados a enfrentar, em
razão, segundo eles, da falta de recursos. A maioria dos
delegados lamentou ter de manter as pessoas presas em condições
tão precárias. Além disso, conforme destacado pelo delegado da
Delegacia de Furtos e Roubos de Belo Horizonte, devido ao fato de
a maioria dos detentos ser mantida em delegacias, em vez de
centros de detenção pré-julgamento ou prisões, os policiais são
obrigados a atuar como agentes carcerários, em vez de
investigadores, enquanto sua principal função e capacitação é
para atuarem como investigadores.
12. Muitos delegados, bem como
chefes de centros de detenção pré-julgamento e de penitenciárias,
chamaram a atenção do Relator Especial para o fato de que a
situação de superlotação, somada à carência de recursos
humanos, muitas vezes resultava não só em uma grande tensão
entre o pessoal de segurança e a população carcerária, mas
também em tentativas de fuga e rebeliões, muitas vezes violentas
– situações que só podiam ser superadas mediante o uso da força.
Assim, o duro tratamento ao qual os detentos estariam submetidos
foi justificado, por algumas autoridades, pela necessidade de o
pessoal de segurança controlar a população carcerária e manter
a ordem nos estabelecimentos de detenção. É preciso observar
que, em várias ocasiões, o Relator Especial recomendou às
autoridades em questão que tomassem medidas imediatas no sentido
de assegurar que fosse providenciado tratamento médico adequado
aos detentos.
Também há relatos de os
espancamentos serem freqüentemente usados para punir os presos
que supostamente desobedeceram regras disciplinares internas.
Unidades policiais especiais muitas vezes são chamadas a intervir
para restaurar a ordem e a segurança e o uso excessivo da força
é comum nesses casos. Muitas denúncias referiam-se a membros das
unidades especiais que usavam capuzes, cabos de madeira, pedaços
de ferro e fios. Também há informações que dão conta que os
espancamentos ocorriam nas noites seguintes a uma rebelião ou a
uma tentativa de fuga, como forma de punição. As transferências
para novos lugares de detenção seriam, muitas vezes, seguidas de
espancamentos por parte de agentes penitenciários quando da
chegada dos presos, como forma de indicar aos recém-chegados quem
manda no lugar. Os detentos supostamente seriam forçados a passar
entre fileiras formadas pelos agentes penitenciários e pelo
pessoal de segurança, que lhes aplicavam socos e pontapés,
muitas vezes com cabos e correntes, ao mesmo tempo em que
recitavam regras disciplinares internas (técnica descrita como
"corredor polonês"). Segundo a informação recebida, a
violência entre presos é freqüente nas carceragens policiais e
nas penitenciárias. O fato de recidivistas condenados por crimes
violentos serem mantidos juntos com transgressores primários de
menor gravidade, as duras condições de detenção, a falta de
supervisão efetiva devido à escassez de pessoal de segurança, a
falta de atividades para os detentos e a abundância de armas
introduzidas nos estabelecimentos de detenção, supostamente com
a cumplicidade da polícia ou do pessoal penitenciário, são
considerados os principais fatores responsáveis por essa violência.
Em certos casos, foi alegado que tal violência era tolerada ou até
mesmo estimulada pelas autoridades públicas responsáveis por
esses estabelecimentos.
14. De acordo com ONGs, no que
se refere ao nível de responsabilidade, alguns dos incriminados
agem por ignorância e outros por puro hábito, uma vez que agiram
dessa forma por muito tempo, sem temer quaisquer conseqüências,
particularmente durante o regime militar (1964-1985). Entretanto,
as ONGs reconheceram a determinação de propósito do Governo
Federal e de alguns governos estaduais no sentido de pôr fim a
essas práticas, ainda que as medidas tomadas ainda sejam
recebidas com cautela. Com efeito, as ONGs chamaram a atenção do
Relator Especial para o fato de que pelo menos um certo grau de
violência contra suspeitos de transgressão à lei parece ser
socialmente aceito ou até mesmo estimulado, sendo o próprio
conceito de direitos humanos percebido como forma de proteção
aos transgressores da lei. De acordo com várias fontes não-governamentais
e algumas oficiais, a percepção comum, por parte da população
em geral, é que as pessoas presas ou detidas merecem ser
maltratadas, bem como mantidas em condições precárias.
Acreditava-se, portanto, que os tomadores de decisão nas instâncias
políticas encontravam-se sob pressão para combater a
criminalidade por todos os meios, em vez de combater a tortura.
15. O Presidente do Brasil
expressou sem compromisso e o empenho de de seu governo para com
os direitos humanos e a determinação de superar o problema da
tortura. Em particular, o Presidente afirmou que consideráveis
esforços estavam sendo envidados no sentido de se construírem
novos estabelecimentos de detenção com vistas à atenuação da
situação de superpopulação, muito embora tenha reconhecido que
muitas pessoas eram presas e detidas desnecessariamente. De modo
semelhante, o Presidente do Supremo Tribunal reconheceu a
necessidade de se dedicar mais atenção ao problema da tortura e
afirmou que todos os juízes eram instruídos acerca dos direitos
humanos.
B. Estado
de São Paulo
1. Delegacias
de Polícia
16. O Relator Especial visitou várias
delegacias de polícia. Em todas elas, a superlotação era o
principal problema. As celas da delegacia do 50° Distrito
Policial, por exemplo, mantinham cinco vezes mais pessoas do que
sua capacidade oficial. Em todas as delegacias visitadas, os
detentos eram mantidos em condições subumanas, em celas muito
sujas e com forte mau cheiro, sem iluminação e ventilação
apropriadas. O ar estava completamente saturado na maioria das
celas. Os detentos tinham de compartilhar colchões de espessura
fina ou dormir no piso de concreto descoberto e, muitas vezes,
dormir por turnos de revezamento, devido à falta de espaço. Os
detentos estavam todos misturados; alguns haviam acabado de ser
presos e outros estavam detidos aguardando julgamento, enquanto
muitos já haviam sido condenados, porém não podiam ser
transferidos para as penitenciárias por causa da falta de espaço
nestas.
17. Em todas as carceragens de
delegacias de polícia o Relator Especial recebeu os mesmos
testemunhos dos detentos, dando conta de espancamentos com pedaços
ou barras de ferro e de madeira ou "telefone",
particularmente durante sessões de interrogatório, com a
finalidade de se extraírem confissões, após tentativas de fuga
ou rebeliões e com o propósito de se manter a calma e a ordem.
Sacos plásticos, borrifados com pimenta, seriam aplicados sobre a
cabeça dos detentos para sufocá-los e muitas das denúncias
fizeram referência a choques elétricos.
18. Em 26 de agosto, o Relator
Especial visitou a delegacia do 5° Distrito Policial, onde 166
pessoas estavam detidas em seis celas, projetadas para comportar
até 30 pessoas. Foi informado que dez dias antes da visita do
Relator Especial, elas continham mais de 200 pessoas. Alguns
haviam passado mais de um ano nessas celas. Foi informado que os
policiais eram cinco por turno, para a função de segurança de
todos os detentos, o que representava sérios problemas de segurança
e ordem. De acordo com as autoridades, na semana anterior à
visita do Relator Especial, houve quatro tentativas de fuga.
19. Em uma cela que media
aproximadamente 15 metros quadrados, 32 pessoas encontravam-se
detidas. Elas informaram que estavam dormindo em revezamento por
turno nos seis colchões de espessura muito fina que possuíam. Um
buraco era usado como vaso sanitário e banheiro. De segunda a
sexta-feira, eles teriam permissão para sair de suas celas e
podiam usar o pequeno pátio. De acordo com a informação
recebida, os familiares e amigos dos detentos eram humilhados e
molestados pelos policiais durante as visitas. Também foi alegado
que os detentos eram insultados pelos agentes penitenciários
durante as visitas. Unicamente os parentes mais próximos teriam
autorização para entrar e somente eram permitidos alimentos básicos,
tais como bolachas de água e sal e macarrão.
20. O Relator Especial visitou
as celas onde estavam detidos os chamados "seguros",
isto é, aqueles que supostamente precisavam de proteção contra
outros detentos e, portanto, estavam sendo mantidos separados de
outros presos pelas razões de segurança alegadas. A cela media
aproximadamente 9 metros quadrados e continha cinco camas.
Dezesseis pessoas eram mantidas ali. Algumas confirmaram ter
brigado com outros presos, enquanto outras não sabiam porque
estavam detidas naquela cela. Um detento acreditava que tinha uma
doença contagiosa que justificava sua colocação nessa cela.
Também se acreditava que alguns eram mantidos na cela dos
"seguros" porque não dispunham de meios para comprar
espaço em uma cela normal. Eles relataram que nunca podiam sair
de sua cela, nem mesmo quando recebiam a visita de seus
familiares.
21. Em um escritório adjacente
àquele em que, segundo a informação recebida, realizavam-se as
sessões de interrogatório, e conforme indicado pelos detentos, o
Relator Especial encontrou várias barras de ferro semelhantes às
descritas por aqueles que haviam alegado ter sido vítimas de
espancamentos. Os agentes encarregados explicaram, primeiro, que
se tratava de peças probatórias inquéritos criminais policiais.
O Relator Especial não se convenceu por essa explicação, uma
vez que essas peças não estavam etiquetadas como tais. Eles, então,
explicaram que elas eram usadas para conferir as barras das celas.
Os detentos informaram ao Relator Especial que, ao conferir as
barras das celas, eles na verdade espancavam os detentos. Em uma
outra sala no primeiro pavimento, o Relator Especial encontrou
outras barras de ferro. A mesma explicação foi dada ao Relator
Especial pelo delegado, que havia chegado naquele ínterim e
acrescentou que algumas das barras haviam sido confiscadas de
detentos que estavam planejando usá-las durante rebeliões. O
Relator Especial observou que alguns desses instrumentos de fato
estavam etiquetados, ao passo que outros não. Por fim, o Relator
Especial encontrou alguns capuzes idênticos aos descritos pelos
detentos, isto é, com referência ao incidente de 9 de junho de
2000 (ver anexo) e um pequeno pacote de eletrodos. O delegado
explicou que os capuzes haviam sido descobertos nas celas, porém
não conseguiu explicar seu uso pelos detentos.
A maioria dos detentos temia
represálias, particularmente a possibilidade de serem enviados
para a delegacia de Itacoá, onde acreditavam que sua vida estaria
em perigo por causa da violência por parte dos outros presos,
que, segundo as alegações, recebiam facas, barras de ferro e
instrumentos semelhantes dos próprios agentes de segurança. Os
detentos também reconheceram que desde a chegada do novo
delegado, em julho de 2000, os espancamentos haviam parado. O
delegado reconheceu que alguns integrantes de seu quadro funcional
possivelmente ainda usavam a ameaça de mandar os detentos para a
delegacia de Itacoá a fim de conseguir a ordem.
23. Em 27 de agosto, o Relator
Especial visitou a delegacia do 11° Distrito Policial, em Santo
Amaro. A carceragem continha cinco celas, que mediam
aproximadamente 12 metros quadrados cada e continham 176 pessoas
naquela data, ou seja, mais de 35 pessoas em cada cela. As celas
eram dispostas ao redor de um pátio, que media aproximadamente 40
metros quadrados, no qual os detentos, segundo o informado, tinham
liberdade para se movimentar nos dias de semana de 8:00 às 18:00.
Cada cela continha um chuveiro básico, isto é, um cano, e um
buraco usado como vaso sanitário, separados por um plástico que
havia sido colocado pelos próprios detentos numa tentativa de
assegurar alguma intimidade. O fornecimento de água, segundo o
informado, era interrompido em várias ocasiões. Em uma cela, os
detentos indicaram que haviam estado sem água durante os últimos
três dias. Uma vez que todos os detentos se sentaram em suas
respectivas celas, o Relator Especial observou que não havia
sequer um único espaço. Os detentos informaram que, por essa razão,
estavam dormindo em revezamento por turno. Não havia colchões.
24. Muitos detentos apresentavam
graves problemas de saúde, supostamente decorrentes do tratamento
a que haviam sido submetidos durante o interrogatório. Em
particular, um detento havia improvisado uma sonda, colocada por
ele mesmo e por outros detentos, após uma lesão por um tiro, a
qual, devido à falta de tratamento médico, havia se infeccionado
seriamente. Um outro detento tinha o ombro direito deslocado. Um
terceiro relatou que sofria de tuberculose e se encontrava em
evidente estado de fraqueza. Foi alegado que as solicitações de
assistência médica não eram respondidas pelas autoridades
policiais e que muitas vezes levavam a mais espancamentos. Um
grande número de detentos também se queixou de doenças de pele,
devido às condições de detenção. O Relator Especial observa
que um grande número de detentos se recusou a falar com ele por
medo de represálias. Quando perguntados pelo Relator Especial se
seus nomes podiam ser encaminhados ao delegado no intuito de se
assegurar que lhe fosse dispensado um tratamento médico adequado,
alguns detentos recusaram-se a dar permissão, também por medo de
represálias.
25. No segundo pavimento, na
sala de arquivo, o Relator Especial encontrou várias barras de
ferro, algumas com alças de plástico, bem como um grande facão.
Uma vez mais, foi explicado ao Relator Especial que essas peças
haviam sido confiscadas dos detentos (apesar do fato de não
estarem etiquetadas) ou eram usadas para conferir a solidez das
barras das celas.
26. Em 27 de agosto, o Relator
Especial visitou a sede do DEPATRI (Departamento de Investigações
sobre Crimes Patrimoniais), composta de diversas unidades de
investigação, mas que possui uma única carceragem comum. Dois
mil policiais, segundo o informado, são vinculados ao DEPATRI.
Sua carceragem se divide em quatro seções, das quais uma ainda
era usada, sendo que as outras teriam sido destruídas durante
rebeliões. A seção que ainda permanece em uso é composta de
quatro celas que medem aproximadamente 20 metros quadrados e
continham, naquela data, 178 pessoas, ao passo que a capacidade
oficial seria de 15 pessoas por cela. Como não existe um pátio,
os detentos eram mantidos 24 horas por dia atrás das grades, em
suas celas. A única luz natural vinha de uma janela no fim do
corredor ao longo do qual se localizavam as celas. 12 camas tinham
de ser compartilhadas pelos detentos, que, portanto, eram
obrigados a dormir no piso de concreto descoberto ou em
revezamento por turno. Um chuveiro, do qual corria constantemente
uma água imunda, e um buraco usado como vaso sanitário, eram
separados da parte principal da cela por um plástico colocado
pelos próprios detentos. Várias marcas de tiros, consistentes
com a alegação de que os policiais haviam atirado por sobre a
cabeça dos detentos para ameaçá-los ou para manter a ordem,
principalmente após supostas rebeliões ou tentativas de fuga,
podiam ser vistas nas paredes das celas e do corredor. A qualidade
da comida pareceu precária ao Relator Especial. Foi informado que
somente eram autorizadas visitas de familiares do sexo feminino,
segundo as autoridades, por razões de segurança. De acordo com
informação recebida posteriormente pelo Relator Especial, as
autoridades decidiram desativar a carceragem do DEPATRI em meados
de janeiro de 2001.
27. Na noite de 27 de agosto, o
Relator Especial visitou a delegacia de polícia do 2º Distrito,
para onde os detentos eram levados antes de comparecerem em juízo.
A delegacia consiste de um longo corredor de 1,5 metros de largura
e 40 metros de comprimento, em torno a um pátio quadrado aberto.
Como estava chovendo, o corredor estava literalmente lotado de
detentos, muitos deles seminus, uma vez que, conforme o informado,
eles haviam sido obrigados a se despirem. A delegada de plantão
indicou que havia 188 pessoas detidas na delegacia, mas que, às
vezes, havia mais de 220. O ar no corredor era sufocante. Havia
lixo no chão do corredor e no pátio e os quatro sanitários, que
consistiam de um buraco entupido por excrementos, eram abertos
para o corredor. O Relator Especial não pôde evitar notar o
cheiro nauseante resultante desse fato. Segundo a informação
recebida antes dessa visita, esse local era limpo uma vez por
semana, o que teria acontecido no dia anterior ao dia da visita
efetiva do Relator Especial. As paredes estavam cobertas de marcas
de tiros. Segundo a informação recebida, os tiros eram
disparados de tempos em tempos pelos agentes carcerários para
amedrontar os detentos. A maioria dos detentos acreditava que
entrar no pátio para ter acesso, por exemplo, a água – uma vez
que a única torneira se situava no pátio – era perigoso demais
por causa dos tiros. A delegada de plantão nessa delegacia de polícia
confirmou que os detentos eram proibidos de entrar no pátio, uma
vez que ela acreditava que havia um risco muito alto de fuga pelo
teto semi-aberto, mediante a formação de uma pirâmide humana.
As autoridades informaram que os detentos eram transferidos a essa
delegacia de polícia para ficarem mais próximos do tribunal.
28. O Relator Especial acredita
que o fato de os detentos aguardarem para comparecerem perante o
tribunal nessas condições subumanas só poderia fazer com que
pareçam corrompidos e perigosos aos olhos dos juízes. Um grande
número de detentos expressou sua vergonha por serem vistos numa
condição de sujeira e mau cheiro quando levados perante o juiz.
Eles não entendiam porque haviam sido levados para essa delegacia
antes de serem levados ao tribunal, em vez de irem diretamente de
suas respectivas carceragens policiais. Eles compreensivelmente
acreditavam que essa humilhação se fazia de propósito, a fim de
desgastar qualquer simpatia por parte dos juízes. O Relator
Especial observa com preocupação o comentário feito por um
agente penitenciário, ao responder ao Relator Especial que lhe
havia transmitido os temores dos presos de que poderiam ser
submetidos a represálias por falarem com o Relator Especial e sua
equipe; segundo o comentário, como os detentos haviam se
comportado bem naquela noite, não seria necessário fazer nada
com eles.
2. Penitenciárias
29. Em 25 de agosto, o Relator
Especial visitou a Casa de Detenção da Penitenciária de
Carandiru, onde se encontravam presas 7.772 pessoas em nove pavilhões,
nos quais os detentos, segundo o informado, estariam divididos de
acordo com o crime pelo qual haviam sido condenados. A capacidade
oficial da Casa de Detenção, 3.500, segundo o diretor, teria
sido aumentada pelos próprios presos, que haviam construído
novas camas em suas celas. Nos pavilhões visitados, o Relator
Especial observou que transgressores primários e reincidentes
estavam misturados. Os detentos se queixaram da má qualidade da
comida, composta, principalmente, de uma mistura de macarrão e
arroz.
30. No Pavilhão Quatro, o
Relator Especial visitou as celas de castigo localizadas no porão,
comumente chamadas de masmorra. As celas medem aproximadamente
nove metros quadrados e contêm uma cama de cimento, uma pia e um
buraco que serve como vaso sanitário. Os detentos teriam recebido
um colchão de espessura muito fina e um lençol no dia anterior
à visita do Relator Especial. Quando da visita, as celas estavam
sem luz, muito sujas e com um forte mau cheiro, apesar do fato de
o corredor principal estar sendo lavado, segundo os detentos, pela
primeira vez desde sua chegada (para alguns, mais de 20 dias antes
da visita). Nas celas havia cinco detentos, enquanto deveriam
comportar uma única pessoa. A maioria deles havia passado mais de
20 dias nessas celas e desconhecia a duração de seu castigo.
31. Muitos dos presos presentes
nessas celas queixaram-se de que haviam sido castigados por terem
se recusado a ser transferidos de seu pavilhão original, o Pavilhão
Nove, para o pavilhão onde são mantidos os travestis e
estupradores, como punição por terem brigado entre si. Antes de
serem enviados para as celas de castigo, eles haviam sido
severamente espancados com pedaços de ferro e alguns haviam sido
obrigados a assinar um papel expressando que aceitavam tal
transferência. Três detentos ainda apresentavam marcas de
tortura visíveis e consistentes com suas alegações. O Relator
Especial foi informado que um deles havia ficado com a perna
quebrada por causa dos espancamentos e havia sido transferido
dali, juntamente com dois outros gravemente feridos, algumas horas
antes da visita do Relator Especial. Quando o Relator Especial
pediu para vê-los, foi informado que dois deles haviam sido
levados ao hospital e deveriam ser trazidos de volta em breve e
que um havia sido transferido para o hospital Mandaqui. Decorridas
algumas horas, finalmente foi informado que dois dos detentos
estariam na Penitenciária Estadual de Alta Segurança do
Carandiru, onde o Relator Especial pôde entrevistar Marcelo
Ferreira da Costa e Ronaldo Gaspar dos Santos, apesar de se
encontrarem em estado de choque e muitíssimo temerosos de serem
submetidos a represálias após a partida do Relator Especial (ver
anexo). Na manhã seguinte, o Relator Especial foi ao hospital de
Mandaqui para entrevistar o terceiro detento. Ao chegar ao
hospital, foi informado que o preso havia sido levado de volta à
Casa de Detenção na noite anterior, às 23:30. Por fim, em 26 de
agosto, o Relator Especial entrevistou Marcelo Miguel dos Santos,
que, devido a seu mau estado de saúde, só pôde ser apresentado
em uma cadeira de rodas (ver anexo).
32. O Relator Especial também
visitou a instalação médica localizada no segundo andar desse
pavilhão. O Relator Especial observou os recursos médicos muito
limitados e as condições de sujeira, em particular as precárias
instalações sanitárias nas quais os detentos enfermos eram
tratados por uma pequena equipe médica. De acordo com os
enfermeiros presentes, qualquer preso podia se dirigir até a ala
médica e ser medicado, se necessário, e os pacientes que
necessitassem de tratamento mais especializado seriam transferidos
para um hospital.
33. No Pavilhão Cinco, o
Relator Especial visitou o quinto andar, onde ficam detidos os
"seguros", muito comumente chamados de
"amarelos", devido à cor de sua pele, que, em razão da
falta de luz natural, torna-se pálida ao ponto de efetivamente
tornar-se amarela. Os detentos informaram que tinham permissão
para sair de suas celas aos domingos, porém somente se houvesse
visitas, o que disseram raramente ocorria no caso de muitos deles.
Do contrário, eles eram mantidos em suas celas o tempo todo,
segundo o informado. Dez a quinze detentos eram mantidos em celas
de 15 metros quadrados, com colchões sujos e de espessura fina no
chão, e um canto com um buraco, usado como sanitário e chuveiro.
As celas estavam infestadas de insetos que, segundo o relatado
pelos detentos, causava-lhes coceira e doenças de pele. Alguns
alegaram que haviam estado detidos nessas celas por mais de seis
meses sem ter visto a luz natural. Muitos deles pareceram ao
Relator Especial estar mentalmente doentes ou seriamente
perturbados, e muitos alegaram que haviam sido transferidos para
essa ala da penitenciária como forma de punição. Um deles
alegou que havia sido espancado com barras de ferro por ter pedido
tratamento médico. Marcas consistentes com essas alegações, em
particular na cabeça e nos ombros do detento, ainda eram visíveis
quando da visita do Relator Especial. Dois outros detentos que
apresentavam marcas de espancamentos graves e recentes
recusaram-se a falar com o Relator Especial por medo de represálias.
Um outro detento portava uma sonda muito rudimentar e improvisada.
O Relator Especial posteriormente foi informado que o Secretário
Estadual encarregado do sistema penitenciário havia decidido
desativar essa ala. Em meados de janeiro de 2001, foi informado
que 230 dos 300 presos mantidos ali já haviam sido transferidos
para outra penitenciária em Sorocaba.
34. No mesmo pavilhão, o
Relator Especial visitou as celas situadas no mesmo andar, porém
do outro lado do corredor, onde ficavam os detentos
predominantemente não-católicos, que teriam sido colocados
juntos por sua própria solicitação. Havia quatro presos em cada
cela, que eram limpas e bem guarnecidas de colchões e, na maioria
das vezes, um fogão. Dois andares abaixo, o Relator Especial
visitou celas que continham até oito presos em mais de 20 metros
quadrados. Essas celas eram limpas e dispunham de chuveiro, vaso
sanitário e pia separados. Cada detento tinha um colchão e
alguns artigos de uso pessoal. Os detentos informaram que estavam
detidos em condições tão boas em comparação a outros porque
estavam trabalhando. Nenhuma explicação foi dada quanto à razão
pela qual eles haviam sido selecionados para realizar certas
atividades manuais. Antes da visita, o Relator Especial havia
recebido informações segundo as quais os detentos tinham de
pagar ou alugar suas celas por intermédio de líderes de celas
que colaboravam com os agentes penitenciários. O chefe desse
pavilhão refutou categoricamente esta alegação. No entanto,
tanto nesse quanto em outros pavilhões, os detentos que viviam
nas piores condições puderam informar ao Relator Especial o preço
de celas melhores.
35. Durante sua visita aos vários
pavilhões, o Relator Especial pôde descobrir, na maioria das
vezes graças às indicações dadas pelos detentos, pedaços de
ferro e de madeira, alguns com alças. Em um bastões estava
escrito "até 19:30", que seria a hora em que o pessoal
do turno noturno começava seu plantão. Algumas desses
instrumentos foram encontrados no escritório do chefe do Pavilhão
Cinco, atrás de uma geladeira; outros, no escritório dos agentes
penitenciários do Pavilhão Quatro, atrás das cortinas. As
autoridades em questão deram várias explicações: tratava-se de
pedaços de móveis quebrados, tais como mesas e cadeiras deixados
abandonados, barras usadas para verificar a solidez das barras das
celas ou barras retiradas pelos próprios presos para usá-las
como armas durante rebeliões.
O Relator Especial foi
posteriormente informado da intenção do Secretário Estadual
encarregado do sistema penitenciário de dividir a Casa de Detenção
em quatro unidades distintas, chefiadas por quatro diretores, que
já teriam sido identificados, a fim de exercer melhor controle
sobre a população carcerária. Além disso, acredita-se que o
Pavilhão Quatro em breve se tornará um hospital penitenciário.
37. Em 26 de agosto, o Relator
Especial visitou uma das três penitenciárias femininas do estado
de São Paulo, a Prisão Feminina de Tatuapé, onde, segundo o
informado, estariam detidas 446 mulheres naquela data, enquanto a
capacidade oficial era de 600, embora a diretora de segurança
encarregada de plantão quando da visita do Relator Especial tenha
reconhecido que o limite real devia ser 450. Ela chamou a atenção
do Relator Especial para o problema da escassez de pessoal e as
implicações de segurança disso decorrentes. A diretora
queixou-se do fato de que contava com apenas 20 agentes penitenciárias
por turno, por causa do grande número de agentes penitenciárias
em licença-saúde, predominantemente devido às duras condições
de trabalho. Foi informado que as agentes penitenciárias, em sua
maioria, eram mulheres, mas também havia alguns homens,
inclusive, para grande surpresa, o filho da Diretora Geral. No dia
da visita, havia quinze mulheres e quatro homens. De modo
semelhante, havia apenas um veículo disponível para realizar
todas as transferências, tais como transferências para
tribunais, outras penitenciárias ou hospitais. Foi informado que
as detentas não eram separadas de acordo com a faixa etária ou o
crime pelo qual haviam sido condenadas e que trabalhavam das 7:00
às 12:00 e das 13:00 às 17:00, remuneradas a um salário de R$
115,00 por mês. De acordo com as detentas, elas efetivamente
recebiam apenas R$ 60,00. Elas eram mantidas em um número de
cinco por cela. As celas mediam de oito a dez metros quadrados.
Cada cela continha colchões e um vaso sanitário, sendo os
chuveiros separados das celas. As celas estavam limpas e as
detentas haviam feito algumas melhorias básicas, tais como a
colocação de cortinas em frente das camas para assegurar-lhes
alguma privacidade. O Relator Especial visitou a enfermaria onde
se encontrava uma detenta que havia dado à luz recentemente. Ela
acreditava que seu bebê seria levado dela e colocado em algum
lugar sem a possibilidade de ela rever seu filho.
38. O Relator Especial visitou
as celas de castigo do Pavilhão Dois, as quais eram semelhantes
às outras celas, exceto pela ausência de um sanitário. As
detentas informaram que tinham permissão para sair de suas celas
dependendo da boa vontade dos(das) agentes penitenciários(as).
Algumas detentas queixaram-se de estar "em trânsito",
ou seja, sendo transferidas, a cada 30 dias mais ou menos, para
outro presídio, sendo que seus familiares não eram informados de
tais transferências. Nas celas de castigo sujas do Pavilhão
Cinco, o Relator Especial entrevistou três mulheres que
compartilhavam dois colchões. Uma mulher de 20 anos de idade
informou ter sido espancada pelo filho da diretora, que, segundo o
relatado, era um agente penitenciário que tinha acesso a todas as
alas da prisão a qualquer tempo. O ombro e a mão direita dessa
detenta apresentavam marcas de espancamento (hematomas)
consistentes com suas alegações. Ela também acreditava estar
"em trânsito", uma vez que havia sido transferida de
uma prisão para outra a cada mês, o que impedia que sua família
a visitasse. Em outra cela, uma jovem detenta recusou-se a falar
com o Relator Especial por medo de represália. No entanto, ela
expressou a um integrante da equipe do Relator Especial que havia
sido vítima de abuso sexual por um agente penitenciário, o qual
ela identificou, porém estava temerosa demais para autorizar o
Relator Especial a citar seu nome.
3. Centros
de detenção de menores infratores
No Estado de São Paulo, os
menores são internos em instituições que se encontram sob a
jurisdição da Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor
(FEBEM), à qual cabem o planejamento e a execução de programas
de detenção para menores infratores, sob a supervisão da
Secretaria de Desenvolvimento e Assistência Social. Existem cerca
de 4.000 menores internados a título de "medida sócio-educativa",
nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.
40. O Relator Especial observa a
destruição, em outubro de 1999, da unidade Imigrantes da FEBEM,
onde eram mantidos todos os menores infratores e cujas condições
de detenção, particularmente no que se refere à situação de
superlotação, equivaliam a tratamento ou condição cruel,
desumana ou degradante, de acordo com relatos recebidos antes da
missão. Foram-lhe exibidos vários vídeos gravados na unidade
Imigrantes que pareciam confirmar os relatos recebidos. Além
disso, o Relator Especial tomou conhecimento das graves sessões
de espancamento, em particular com o uso de longos cabos de
madeira, às quais detentos seminus eram submetidos, em várias
ocasiões, à noite, no pátio dessa unidade. Após a destruição
de Imigrantes, alguns menores (cerca de 950, de acordo com um
estudo não-governamental realizado em julho de 2000) teriam sido
transferidos para unidades separadas de unidades prisionais já
existentes, inclusive o Centro de Observação Criminológica (COC)
das penitenciárias de Carandiru, Santo André e Pinheiros, em
violação do ECA, enquanto outros teriam sido transferidos para
estabelecimentos especificamente projetados para abrigar menores.
Segundo organizações não-governamentais, relatórios da Divisão
Técnica Judicial e da Secretaria de Saúde indicavam que à época
os menores eram mantidos sem as mínimas condições de higiene.
Também há relatos de que eles não eram separados por idade ou
pela natureza do crime cometido, conforme exige o ECA. Segundo
Promotores de Justiça da Infância e da Juventude da Cidade de São
Paulo, esses menores não recebiam o benefício de quaisquer
atividades educativas ou recreacionais. Várias ações judiciais
contra essas transferências haviam sido interpostas recentemente
pelo Departamento de Promotores Públicos responsável pela aplicação
do ECA no estado de São Paulo, porém em vão. O Supremo Tribunal
Estadual de São Paulo, com efeito, derrubou, por razão de
segurança pública, mandados judiciais expedidos por tribunal de
instância inferior ordenando o fechamento dessas unidades da
FEBEM. Foi explicado ao Relator Especial que diferentes promotores
públicos, ou seja, os encarregados de impetrar recursos, têm o
poder de recorrer dessa decisão ao Supremo Tribunal Federal, porém,
aparentemente, não estavam dispostos a agir nesse sentido.
Contudo, novas unidades da FEBEM haviam sido abertas recentemente
ou havia planos de se construírem mais unidades em breve, em um
esforço por resolver a situação herdada desde a destruição da
unidade Imigrantes.
41. O Secretário de Assistência
Social informou que, desde a destruição da unidade Imigrantes,
havia sido iniciado um programa de construção de unidades
descentralizadas (para que os adolescentes ficassem mais próximos
de suas famílias) e pequenas (para permitir a separação dos
adolescentes de acordo com sua idade ou a natureza do crime que
eram suspeitos de haver cometido ou pelo qual haviam sido
condenados), com a finalidade de suplementar as 15 unidades já
existentes. O Secretário reconheceu que se tratava de um período
de transição difícil, muitas vezes criticado, e que exigia um
grande esforço, principalmente em termos financeiros. Também foi
suscitada a questão da localização dessas unidades da FEBEM,
uma vez que os cidadãos não queriam ter um estabelecimento dessa
natureza em seu bairro. Ao final desse processo, os adolescentes
seriam mantidos em um número de oito por cela, em unidades de
cinco celas. Cada complexo da FEBEM teria duas ou três unidades.
Uma minoria dos adolescentes, os mais perigosos, ainda teria de
ser enviada para complexos do tipo prisional. O Secretário
planejava desativar, dentro de 30 dias, a unidade Pinheiros, um
centro de detenção para menores infratores desprovido de pátio.
Franco da Rocha e, em seguida, Tatuapé estariam na lista dos
centros de detenção de menores infratores a serem desativados em
um futuro próximo, uma vez que não haviam sido
arquitetonicamente projetados para abrigar menores. Foi informado
que mais monitores haviam sido contratados e capacitados; o
profissionalismo teria sido aprimorado e continuaria sendo um
objetivo precípuo da FEBEM. Foi informado que o tratamento de
jovens trangressores teria sido aceito pelas autoridades de São
Paulo como uma prioridade. Foi explicado ao Relator Especial que a
FEBEM estava tratando menores infratores como adolescentes, não
como delinqüentes. O Secretário também expressou sua esperança
por um maior número de sentenças não-privativas de liberdade ou
semi-privativas de liberdade.
42. O Relator Especial recebeu
informação sobre a Unidade de Atendimento Inicial de São Paulo,
comumente chamada de Bráz, um centro de triagem para onde todos
os menores infratores são levados inicialmente, antes de serem
transferidos para as várias unidades da FEBEM. Foi informado que
alguns menores aguardavam durante semanas e meses em condições
de detenção básicas (que foram levadas ao conhecimento do
Relator Especial por meio de fitas de vídeo) até que fosse
proferida sua sentença. Também foi informado que os menores eram
detidos seminus, sentados em absoluto silêncio no chão de
concreto descoberto e com as mãos atrás da cabeça durante todo
o dia. Foi igualmente informado que, quando a regra de silêncio
é quebrada, os menores são espancados pelos monitores. Os
espancamentos e as humilhações seriam prática comum.
43. De acordo com organizações
não-governamentais, três menores eram espancados ou torturados
por dia em instalações sob a jurisdição da FEBEM. As rebeliões
e as tentativas de fuga, que seriam freqüentes, levariam ao uso
excessivo de força, em particular, severos espancamentos com
cabos de madeira ou canos de ferro e fios, por monitores, muitas
vezes usando máscaras ou capuzes, e por unidades especiais
chamadas a intervir para restaurar a ordem e a segurança. Também
foi informado que os espancamentos continuavam como represálias
ou punição durante as noites subseqüentes a uma rebelião.
Acreditava-se que esses espancamentos geralmente ocorriam à
noite, uma vez que esse é o período em que os assistentes técnicos
ou visitantes externos não estão presentes na unidade. Após as
rebeliões, os detentos também eram trancados em celas de
castigo, construídas para abrigar uma pessoa, em grupos de mais
de 12 detentos, durante alguns dias. Além disso, conforme informações
recebidas, os familiares dos detentos também não teriam tido
permissão de acesso em diversas ocasiões, particularmente após
as supostas rebeliões. As rebeliões, segundo um grande número
de detentos entrevistados pelo Relator Especial, eram, na maioria
das vezes, provocadas pelos monitores. Foi relatado que os
monitores do turno noturno muitas vezes chegavam embriagados ou
drogados às celas e aleatoriamente espancavam os detentos. Os
menores relataram ser forçados a passar pelo chamado corredor
polonês quando da chegada a uma nova unidade de detenção da
FEBEM. O Relator Especial recebeu de ONGs uma cronologia
descritiva dos incidentes de maus tratos que teriam ocorrido desde
outubro de 1999 em unidades da FEBEM, alguns dos quais se
encontram reproduzidos no anexo.
Em 24 de agosto, o Relator
especial visitou Franco da Rocha, uma instituição da FEBEM
situada nos arredores de São Paulo, onde se encontravam detidos
420 menores. Essa unidade, construída no início do ano 2000 e
arquitetonicamente projetada como presídio, só havia estado em
funcionamento desde julho de 2000. A unidade se divide em oito
alas. As celas são dispostas ao redor de um pátio, onde os
detentos, segundo os monitores, passariam a maior parte do tempo
durante o dia. Quando o Relator Especial visitou algumas dessas
alas, ele observou que apenas um pequeno número de detentos de
fato estava jogando no pátio, mas que a maioria dos detentos
estava trancada em suas celas. O diretor de Franco da Rocha
explicou que, desde a rebelião ocorrida em 10 de agosto, alguns
detentos tiveram de ser mantidos trancados 24 horas por dia em
suas celas, a fim de se manter a ordem e restabelecer a relação
entre os monitores e os menores. No entanto, foi relatado que
todos eles eram levados para fora da cela para uma sala grande e
adjacente ao pátio para o café da manhã, almoço e jantar. Os
detentos expressaram ao Relator Especial que, quando se aplicava o
regime normal, eles tinham permissão para sair da cela por um período
que variava de apenas meia hora a duas horas por dia.
45. Ao lado da
enfermaria onde apenas um detento estava sendo tratado quando da
visita do Relator Especial (ver anexo), o Relator Especial viu
quatro internos em reuniões com os chamados assistentes técnicos,
que são responsáveis pelos programas de assistência
educacional, psicológica e legal. Eles informaram ao Relator
Especial que cada um deles era responsável por 70 internos e que
podiam conversar com cada um deles somente uma vez por semana. O
Relator Especial, no entanto, observa que, segundo os promotores públicos,
era a primeira vez que tais atividades se realizavam em Franco da
Rocha. O Relator Especial observa, igualmente, que, durante sua
visita, um membro de sua delegação testemunhou uma discussão
entre um assistente técnico e o chefe do programa de educação
com relação ao fato de que o primeiro havia sido ameaçado por
um monitor. Segundo organizações não-governamentais, os menores
são transferidos de um assistente social para outro o tempo todo
e passam tão pouco tempo com os assistentes que nenhuma atividade
de reabilitação real se desenvolve. Além disso, vale observar
que, após cada rebelião, muitos internos são transferidos para
outras unidades da FEBEM.
46. Cada cela
continha 12 camas de cimento. À noite, os detentos recebiam um
colchão e cobertores. As celas eram bem ventiladas e bastante
limpas. Cada uma continha uma seção separada, desprovida de
porta, porém com dois chuveiros, dois vasos sanitários e três
torneiras. Muitos detentos queixaram-se da qualidade da comida,
que pareceu ruim ao Relator Especial. Não houve menção de
qualquer problema de superlotação em Franco da Rocha.
47. Conforme
mencionado acima, os internos alegaram que as rebeliões
geralmente eram provocadas pelos espancamentos por parte dos
monitores, um relato que os promotores públicos e assistentes técnicos
também mencionaram ter ouvido com freqüência. Estes últimos
informaram ao Relator Especial que os monitores muitas vezes
explicavam que era uma questão de se saber quem de fato mandava
na instituição, eles ou os detentos. O diretor de Franco da
Rocha reconheceu que havia um clima muito pesado e que eram freqüentes
os conflitos entre monitores e detentos. Ele reconheceu que a
segurança era uma questão difícil, porém negou todas as alegações
de espancamentos e provocação por parte dos monitores. Com relação
à rebelião de meados de agosto, foi relatado que o sistema de
gravação em vídeo implementado em Franco da Rocha certamente
havia registrado o incidente e poderia muito bem explicar várias
das questões pendentes. O Secretário encarregado da FEBEM
informou ao Relator Especial que as fitas estavam sendo estudadas
por uma equipe de investigação interna.
O Relator Especial
visitou quatro alas distintas. Em cada uma delas, recebeu
testemunhos de espancamentos consistentes e pôde ver as marcas
deixadas por esses espancamentos (ver anexo). Um detento pediu a
intervenção do Relator Especial em favor de sua transferência
para outras unidades, nas quais, segundo ele, ao contrário de
Franco da Rocha, os internos com efeito são espancados
"somente se fizermos alguma coisa de errado". Os
internos informaram ao Relator Especial a localização dos canos
de ferro e pedaços de madeira usados pelos monitores para espancá-los.
Em particular, foi informado que estariam escondidos em pequenos cômodos
que dão para o pátio no primeiro andar do corredor principal,
que leva a todas as alas. O Relator Especial pôde descobrir,
escondidos atrás de alguns colchões e cobertores, um grande número
de pedaços de ferro e de madeira, consistentes com aqueles
descritos pelas supostas vítimas. Aparentemente surpreso pela
presença desses instrumentos, o diretor de Franco da Rocha
explicou que se tratava de restos da última rebelião, escondidos
pelos próprios detentos. O Relator Especial, no entanto, observou
que somente os monitores tinham acesso aos cômodos onde haviam
sido descobertos esses instrumentos. Isso foi confirmado pelo
diretor, que, então, disse acreditar que os canos e cabos haviam
sido deliberadamente escondidos ali por alguns integrantes de seu
quadro funcional para prejudicar a imagem da instituição e o
programa de reabilitação que estava empreendendo. Diante do número
de testemunhos consistentes de internos de diferentes alas que,
todos eles, indicaram os mesmos lugares onde poderiam ser
encontrados os canos e cabos com os quais teriam sido espancados,
e diante das marcas – consistentes com suas alegações –
ainda visíveis na maioria dos internos, o Relator Especial deixou
claro que considerava implausível essa explicação. O diretor,
por fim, reconheceu que não podia "justificar o injustificável".
49. Na última ala
visitada, Ala G, foi informado que estariam detidos os internos
mais perigosos, provenientes da penitenciária de Carandiru, e que
seriam transferidos para outras unidades da FEBEM. O Relator
Especial observou que havia colchões em todas as celas. Os
detentos informaram que os colchões haviam sido trazidos pela
primeira vez naquele mesmo dia. De acordo com os detentos, até
então eles haviam tido de dormir seminus, com cobertores sujos,
sobre as camas de cimento. Também atraiu a atenção do Relator
Especial o fato de que em pelo menos uma cela dessa ala, somente
água quente, literalmente fervente, saía do chuveiro, o que
impossibilitava qualquer higienização. Também é preciso
observar que, nessa ala, a grande maioria dos detentos, senão
todos, apresentava marcas visíveis e predominantemente recentes
em todo o corpo, inclusive na cabeça, marcas consistentes com as
alegações de espancamentos com pedaços de ferro e de madeira. Vários
deles, na presença do Relator Especial, perguntaram ao diretor
por que eram espancados por seus monitores se eles não os ameaçavam
nem os agrediam. As agressões – infligidas por cerca de 30 a 50
monitores, que, conforme as alegações, na maioria das vezes
cobrem o rosto e estão embriagados ou drogados – ocorreriam à
noite, sem qualquer razão. Uma vez mais, alguns detentos
forneceram informação ao Relator Especial referente ao lugar
onde eram guardados os cabos usados para espancá-los. O Relator
Especial pôde, assim, descobrir vários pedaços de madeira,
consistentes com a descrição dada pelos detentos, escondidos em
baixo de uma mesa e cobertos com um lençol, na sala dos
monitores, que, conforme confirmado pelo diretor, era acessível
somente aos próprios monitores.
50. Ao final de sua
visita, o Relator Especial entrevistou dois menores que ele havia
visto no dia anterior na Coordenadoria dos Promotores Públicos da
Infância e da Juventude da Cidade de São Paulo. Segundo a
informação recebida, quando eles foram levados de volta para
Franco da Rocha na companhia de seis outros internos que haviam
estado com eles no escritório dos promotores públicos, vários
monitores, bem como algumas pessoas que eles não puderam
identificar como monitores de Franco da Rocha, estavam esperando
por eles no corredor. Eles alegaram ter sido severamente
espancados com canos de ferro e cabos de madeira, socos e pontapés.
Em seguida, eles teriam sido forçados a tomar um banho frio,
supostamente para fazer as marcas desaparecer. Os menores alegaram
que, durante a noite, cerca de 30 monitores mascarados –
comumente chamados de "ninjas" pelos detentos –
entraram em suas celas e começaram a indiscriminadamente espancar
todos eles com barras de ferro. Alguns, então, teriam sido
tirados das celas e levados para um pequeno cômodo escuro por uma
hora e meia, onde, com as mãos atrás da cabeça, eles teriam
sido ameaçados de serem espancados novamente. Quando da
entrevista, marcas de espancamentos recentes – que não estavam
presentes no dia anterior quando o Relator Especial os entrevistou
no escritório dos promotores públicos – eram visíveis em seus
corpos, principalmente nas costas. Questionados pelo Relator
Especial sobre as marcas recentes, os monitores disseram que elas
certamente haviam sido auto-infligidas pelos detentos quando
tomaram conhecimento de que o Relator Especial estava visitando a
unidade. Diante da natureza das marcas, particularmente os
hematomas que puderam ser vistos nos corpos dos detentos e que
claramente não haviam sido auto-infligidos nas horas anteriores,
o Relator Especial não se convenceu por essa explicação.
51. Como faz ao
final de toda visita a um estabelecimento de detenção, o Relator
Especial solicitou que o diretor de Franco da Rocha adotasse
medidas específicas para assegurar que os menores que haviam
colaborado com ele e com sua equipe não fossem submetidos a
quaisquer represálias. Dado o fato de que se acreditava que os
menores com os quais ele havia falado na Promotoria Pública já
haviam sido submetidos a espancamentos como forma de represália
por haverem cooperado com o Relator Especial, este solicitou
especificamente que o diretor agisse com devida diligência nesse
caso. Também é preciso observar que, por medo de represálias,
um grande número de internos havia se recusado a ser chamado pelo
Relator Especial ao final de sua visita para serem entrevistados
individualmente e em caráter confidencial. A maioria deles
observou que, de qualquer modo, após a partida do Relator
Especial, eles seriam espancados por terem falado com ele. Em 28
de agosto de 2000, o Relator Especial foi informado pelos
Promotores Públicos da Infância e da Juventude da Cidade de São
Paulo que o haviam acompanhado durante sua visita a Franco da
Rocha, que pelo menos três menores que ele havia conhecido haviam
sido submetidos a intimidação e represálias, inclusive
espancamentos, por monitores, alguns dos quais teriam usado
capuzes, após sua partida de Franco da Rocha. Segundo a informação
recebida, eles disseram aos menores que aquilo era em retaliação
pela visita do Relator Especial à unidade e pelas entrevistas e
informações que eles lhe haviam dado. Além disso, o Relator
Especial foi informado que, desde sua visita, um grande número de
menores, principalmente os detidos nas alas G e H, duas das alas
visitadas, haviam sido trancados em suas celas 24 horas por dia.
Foi informado que o diretor, quando solicitado pelos Promotores Públicos
a tomar medidas no sentido de assegurar o direito à integridade
mental e física dos menores detidos em sua unidade, disse que,
devido ao grande número de menores detidos sob sua
responsabilidade, ele não podia controlar todos os seus
subordinados. No mesmo dia, o Relator Especial enviou um apelo
urgente às autoridades federais e estaduais competentes.
52. Quando de volta
a Brasília, o Relator Especial foi informado pelas autoridades
que, após seu apelo urgente, o Secretário de Estado para
Direitos Humanos havia se reunido imediatamente com as autoridades
competentes em São Paulo. Mediante carta datada de 5 de setembro
de 2000 da Missão Permanente do Brasil nas Nações Unidas em
Genebra, o Governo brasileiro informou que estava profundamente
preocupado com esses relatos e que estava plenamente comprometido
com seu imediato esclarecimento. O Secretário Estadual de
Desenvolvimento Social afirmou, em subsequente comunicação por
escrito enviada ao Relator Especial, que havia sido instaurada uma
sindicância administrativa. Dois menores foram levados ao
Instituto Médico Legal, que concluiu que eles não haviam sido
espancados. Além disso, o diretor da unidade de Franco da Rocha
teria negado completamente os fatos e dito que os adolescentes
entrevistados pelo Relator Especial e pelos Promotores Públicos
eram os que haviam organizado a rebelião de 10 de agosto. O
Relator Especial foi posteriormente informado que, após solicitação
dos Promotores Públicos, os menores em questão haviam sido
transferidos para outra unidade da FEBEM, da qual, na noite de sua
chegada, eles haviam fugido após terem tomado alguns monitores
como reféns. Outro inquérito foi, portanto, instaurado para
apurar esses fatos. Por fim, o Secretário informou que o diretor
havia sido interpretado equivocadamente quando teria dito que não
tinha controle sobre todos os seus subordinados. Esse incidente é
objeto de acompanhamento direto junto ao Governo.
53. Por fim, o
Relator Especial reuniu-se com o Presidente do Sindicato dos
Trabalhadores de Entidades de Assistência ao Menor e à Família
do Estado de São Paulo, que explicou que o Sindicato vinha
advertindo as autoridades da FEBEM sobre a situação explosiva em
Franco da Rocha ao longo dos últimos meses, devido ao fato de a
unidade não ter sido projetada como um local de reeducação, e
sim como uma prisão, e por haver um número excessivo de detentos
mantidos ali, principalmente em comparação com o número de
monitores e assistentes técnicos. Ele acreditava que
transgressores de menor gravidade e viciados em drogas não
deveriam ser mantidos na unidade. O Presidente chamou a atenção
do Relator Especial para o fato de que, devido às condições de
trabalho muito difíceis nas unidades da FEBEM, tais como plantões
que se estendem por mais de 24 horas e uma situação de muito
estresse, principalmente durante rebeliões ou tentativas de fuga,
muitos funcionários, mais de 300 trabalhadores, estavam de licença
para tratamento de saúde por depressão e outras causas psicológicas
e não eram substituídos por outros funcionários. Também foi
reconhecido o fato de que alguns estavam gozando de licença-saúde
injustificada por longos períodos. Além disso, foi mencionado
que o pessoal de licença para tratamento de saúde estaria sob
pressão para voltar ao serviço, se não quisessem perder 50% de
seu salário em breve. Contudo, o Presidente do Sindicato
expressou seu compromisso para com os programas de reabilitação
e sua esperança de que eles poderiam ser efetivamente
implementados em boas condições. Segundo o Presidente do
Sindicato, a maioria das rebeliões é prevista pelos monitores,
que, assim sendo, informam as autoridades da FEBEM, as quais
supostamente não levam suas advertências em consideração.
C. Rio
de Janeiro
1. Delegacias
de Polícia
54. Em 31 de
agosto, o Relator Especial visitou a 1ª delegacia legal
inaugurada no estado do Rio de Janeiro em março de 1999. As delegacias
legais fazem parte de um amplo projeto de construção de
delegacias de polícia cuja arquitetura é projetada para ser
transparente ao monitoramento externo. O Relator Especial
considerou essa iniciativa como das mais positivas. Ele, no
entanto, observou que a cela de 1,5 metro quadrado na qual as
pessoas permaneceriam por algumas horas apenas, era desprovida de
iluminação. A ausência de luz foi justificada por razões de
segurança. Ninguém teria sido detido nessa delegacia de polícia
por mais de 24 horas. Quatro dessas delegacias legais
deveriam estar em funcionamento e, até o fim da atual administração,
em 2002, todas as delegacias de polícia seriam desse modelo.
55. No mesmo dia, o
Relator Especial visitou a Delegacia do 54º Distrito Policial, de
onde todos os detentos haviam sido transferidos em 15 de agosto
para a Penitenciária de Bangu ou para a Delegacia do 64º
Distrito Policial, uma vez que as instalações da 54ª Delegacia
foram convertidas em uma delegacia legal. Na Delegacia do
64º Distrito Policial, 272 pessoas estavam detidas quando da
visita do Relator Especial, enquanto a capacidade oficial seria de
150. Os detentos, segundo o informado, teriam permissão para sair
de suas celas durante o dia e passavam a maior parte de seu tempo
diurno em um pequeno pátio com pouca luz natural. Cinqüenta e
sete pessoas estavam detidas em uma cela muito quente, suja e com
forte mau cheiro, medindo aproximadamente 30 metros quadrados.
Havia poucos colchões no chão. Um buraco era usado como vaso
sanitário e chuveiro. O Relator Especial observou que a distribuição
de detentos entre as diferentes celas não era uniforme. Os
detentos explicaram que tinham de pagar os agentes carcerários
para serem transferidos para uma cela menos lotada. A delegada
justificou a distribuição efetiva pelo fato de que os detentos
tinham de ser divididos segundo a gangue (criminosa) à qual
pertenciam, a fim de se evitar a violência entre os detentos. O
Relator Especial observou que, durante o dia, todos os detentos
supostamente estariam misturados no pátio e que não havia
relatos de qualquer briga deflagrada por essa situação. A
delegada, então, queixou-se da situação de superpopulação que
era obrigada a enfrentar por causa da falta de vagas nas penitenciárias.
No entanto, ela também reconheceu que nunca havia entrado na
carceragem.
56. A maioria dos
detentos queixou-se de espancamentos quando da prisão e durante o
interrogatório preliminar, quando eram instados a assinar uma
confissão. Um grande número dos detentos alegou que eles haviam
sido espancados por policiais tanto nessa delegacia de polícia
quanto na 64ª Delegacia de Polícia, da qual muitos provinham
(ver anexo). Muitas queixas também se referiam aos presos de
confiançaNT, que receberiam canos de ferro ou tacos de
madeira dos agentes carcerários e mantinham a ordem espancando
outros detentos. Os detentos informaram que esses instrumentos
eram mantidos pelos presos de confiança em suas celas,
localizadas na entrada da carceragem, em frente ao escritório dos
agentes carcerários. Essas duas celas eram muito limpas e bem
providas de colchões e fogões, bem como outros artigos de uso
pessoal. Escondido sob uma das camas, o Relator Especial descobriu
um cacetete de borracha e dois cacetetes de madeira com alças,
bem como algumas barras de ferro. Questionado, o chefe da
carceragem informou que os presos de confiança usavam as barras
de ferro para verificar a solidez das barras das celas. Não foi
dada qualquer explicação para a presença dos três instrumentos
encontrados. A delegada garantiu ao Relator Especial que tomaria
as medidas necessárias e investigaria o comportamento do chefe da
carceragem.
2. Um centro de detenção pré-julgamento
57. Em 30 de
agosto, o Relator Especial visitou a Casa de Custódia Muniz Sodré,
um dos centros de detenção provisória do Complexo Penitenciário
de Bangu. Naquela data, 1.577 detentos eram mantidos nas 24 celas
oficialmente construídas para comportar 62 pessoas cada, ou seja,
um total de 1.488 detentos. O centro de detenção é dividido em
dois grandes pavilhões, cada um com 12 celas. De acordo com o
diretor, embora Muniz Sodré seja um centro de detenção pré-julgamento,
cerca de 40% dos presos de fato estavam cumprindo ali suas penas
– as quais, na maioria dos casos, eram objeto de recurso – e
deviam, portanto, ter sido transferidos para outras instalações.
Diante da situação geral de superlotação no estado, o diretor
informou que não era possível saber quando tais transferências
ocorreriam. No entanto, ele assegurou ao Relator Especial que os
presos condenados eram separados dos detentos que aguardavam
julgamento.
58. O diretor
informou que os detentos tinham permissão para sair de suas celas
quatro horas por dia, em turnos, o que mais tarde foi negado pelos
detentos entrevistados pelo Relator Especial. Os detentos alegaram
que somente eram somente podiam sair de suas celas uma vez por
semana, durante duas horas, quando recebiam visitas. As celas
estavam limpas, bem iluminadas e arejadas, os sanitários e
chuveiros eram separados da parte principal da cela. Em uma das
celas visitadas, havia 68 presos, o que significa que seis presos
tinham de dormir no chão. Todos os presos, no entanto, tinham
seus próprios colchões e cobertores.
59. O Relator
Especial visitou as celas de castigo, onde, de acordo com o
registro, havia 8 detentos. Oito detentos, seminus, estavam
detidos em condições muito básicas naquela data. Os detentos,
em sua maioria, informaram que haviam sido castigados por terem
brigado com outros detentos e alguns se queixaram de terem sido
espancados por agentes penitenciários quando foram transferidos
para as celas de castigo. Todos disseram que 12 detentos – que
eles acreditavam estar em más condições por causa dos
espancamentos a que teriam sido submetidos após uma tentativa de
fuga – haviam sido tirados recentemente das celas de castigo.
60. O Relator
Especial, então, visitou a cela de onde esses detentos teriam saído.
Os presos ali presentes informaram que, em 28 de agosto, havia
ocorrido uma busca geral em sua cela, após uma tentativa de fuga
a partir de outra cela durante a noite de 26 para 27. Eles não
sabiam por que haviam sido alvo da busca, uma vez que a tentativa
de fuga se deu em outra cela. Após a busca, alguns detentos se
queixaram do desaparecimento de alguns artigos pessoais.
Acredita-se que, por causa dessas queixas, eles teriam sido
levados, passando primeiro pelo chamado corredor polonês, até o
pátio, onde foram severamente espancados por cerca de 50 agentes
penitenciários, acompanhados por integrantes de forças especiais
da polícia, que usaram cabos de madeira e canos de ferro, alguns
dos quais enrolados em fios, durante 5 ou 6 horas. O Diretor e o
Subdiretor de Segurança também teriam participado dos
espancamentos. De acordo com os detentos, um deles havia ficado
gravemente ferido. No mesmo dia, ele tinha de comparecer perante
um juiz, que teria ordenado sua transferência para um hospital.
Todos os 70 detentos mantidos nessa cela naquela data apresentavam
marcas visíveis e recentes (contusões, hematomas e arranhões em
várias partes do corpo), consistentes com suas alegações. Os
detentos informaram que 5 deles, que se encontravam em mau estado
e cujos nomes foram informados ao Relator Especial, haviam sido
tirados da cela pouco antes da chegada do Relator Especial. Os
agentes penitenciários disseram que os detentos haviam sido
levados ao Instituto Médico Legal (IML), mas que deveriam ser
levados de volta a Muniz Sodré na mesma noite, se houvesse veículos
disponíveis. Após ter esperado por algumas horas, o diretor
assegurou ao Relator Especial que os 5 detentos mencionados acima
seriam levados de volta à penitenciária.
61. Naquela noite,
entrevistados individualmente pelo Relator Especial, os 5 detentos
(Jailson Thaumaturgo da Rocha Júnior, Alexandre Arantes, Flávio
Ailton da Silva, Paulo Sérgio Souza de Oliveira e Roberto da
Costa Santiago) confirmaram as denúncias feitas por seus colegas
de prisão. Eles também confirmaram ter sido examinados por médicos
do IML na ausência de quaisquer agentes penitenciários. Todos
apresentavam lesões graves, algumas das quais precisavam ser
tratadas com pontos, e grandes contusões (ver anexo). Por fim,
eles confirmaram que o preso que acreditavam ter sido o mais
gravemente ferido havia sido levado para comparecer ao tribunal,
de onde ele teria sido levado diretamente para um hospital. O
Relator Especial solicitou que o diretor descobrisse onde esse
detento estava sendo mantido. Decorrida cerca de uma hora, o
diretor informou que ele havia sido transferido à Penitenciária
Vieira Ferreira Neto. Segundo o diretor, esse detento havia sido
levado para essa penitenciária porque, do contrário, ele seria
submetido a violência por parte dos outros presos. Diante dos
testemunhos recebidos dos colegas de prisão desse detento, os
quais se mostraram extremamente preocupados com o seu paradeiro e
bem-estar, o Relator Especial acredita que essa não foi uma
explicação plausível para sua transferência para outro centro
de detenção. Na Penitenciária Vieira Ferreira Neto, o Relator
Especial pôde entrevistar Alexandre Madado Pascoal (ver anexo),
que pareceu estar extremamente fraco e sofrer intensa dor. Ele
confirmou ter sido levado para aquela penitenciária naquela
noite, por volta da meia noite. Com a diligente ajuda do guarda de
plantão em Vieira Ferreira Neto, Alexandre Madado Pascoal foi
levado, em uma maca, até uma unidade médica vizinha, onde um médico,
chocado, determinou que ele fosse transferido para um hospital.
Informado da situação pelo Secretário Estadual de Justiça, o
Secretário Adjunto de Direitos Humanos e o Chefe de Segurança do
Sistema Penitenciário foram ao encontro do Relator Especial por
volta das 2:00 da madrugada e registraram o testemunho de
Alexandre Madado Pascoal. Eles asseguraram que ele receberia
tratamento médico adequado e seria protegido contra represálias.
O Relator Especial também foi informado, na ocasião, que o
Secretário de Justiça já havia decidido afastar de seus
respectivos cargos o Diretor de Muniz Sodré e seu Chefe de
Segurança, até que se concluíssem as investigações. O Relator
Especial solicitou especificamente que as autoridades tomassem as
medidas necessárias, inclusive a instauração de uma investigação
penal para apurar as alegações de tortura. Esse incidente é
objeto de acompanhamento direto junto ao Governo.
3. Um
centro de detenção pré-julgamento para menores infratores
62. Os menores
infratores no estado do Rio de Janeiro são mantidos em instituições
sob a jurisdição da Secretaria de Justiça e, mais
especificamente, do DEGASE. A convite das autoridades, o Relator
Especial visitou, em 29 de agosto, o Instituto Padre Severino,
onde 193 menores, na faixa etária de 14 a 18 anos, estavam
detidos naquela data, enquanto a capacidade oficial seria de 160.
O diretor informou que havia apenas 7 monitores por turno, o que
– frisou ele – dificultava a tarefa de se assegurar a ordem. A
maioria dos menores mantidos nessa instituição, segundo a
informação recebida, estaria aguardando julgamento ou sentença,
uma vez que Padre Severino deve servir como centro de detenção
pré-julgamento e local de pré-triagem, onde os menores ficam
detidos por até 45 dias (ver abaixo) antes de serem transferidos
para outras unidades do DEGASE, se assim necessário. O diretor,
no entanto, reconheceu que 40% dos detentos estavam efetivamente
cumprindo suas penas. Segundo o diretor, 90% dos menores mantidos
na unidade naquela data tinham acesso a educação, ao mesmo tempo
em que admitiu que somente os jovens sentenciados tinham acesso a
atividades educacionais e recreativas. Durante sua visita, o
Relator Especial viu alguns jovens tendo aulas em diferentes salas
de aula, enquanto três foram observados trabalhando em máquinas
de costura em uma oficina. De acordo com organizações não-governamentais
que visitam regularmente centros de detenção de menores
infratores, e conforme posteriormente confirmado pelos menores
entrevistados, aquela era a primeira vez que tais aulas ocorriam
em Padre Severino.
63. As celas são
divididas entre duas alas separadas por um grande pátio, no qual
os menores estavam jogando quando da visita do Relator Especial.
As celas eram muito diferentes umas das outras. Todas elas tinham
camas de cimento. Em algumas celas, todas as camas estavam
cobertas com colchões de espuma de espessura fina, ao passo que
em outras, a maioria das camas não tinha colchão. O diretor
afirmou ao Relator Especial que todos os detentos, mesmo os 36 que
tinham de dormir no chão devido à situação de superpopulação,
dispunham de um colchão à noite. Os detentos confirmaram que
somente um pequeno número deles não dispunha de colchões.
Alguns cobertores sujos também foram mostrados ao Relator
Especial. Os sanitários e banheiros eram, de um modo geral,
separados do dormitório por uma parede. Todas as celas haviam
sido limpas recentemente (de acordo com os internos, elas eram
limpas uma vez por semana), porém em algumas ainda havia um forte
cheiro proveniente dos sanitários. O sistema de abastecimento de
água, inclusive a descarga dos vasos sanitários, seria
controlado de fora das celas unicamente pelos monitores. As celas
eram desprovidas de iluminação, uma vez que, conforme explicado
pelo diretor, as lâmpadas eram usadas pelos internos para acender
cigarros, o que representava um perigo em potencial. Todas as
celas eram bem ventiladas, função das paredes vazadas. Os
internos se queixaram de que, à noite, as celas às vezes ficavam
muito frias e que era proibido tapar as muitas aberturas das
paredes com jornais, por exemplo. Um menor alegou que um monitor
lhe havia dado tapas no rosto e o havia agarrado pelo pescoço,
como punição por ter tentado tapar as aberturas nas paredes
algumas noites antes da visita do Relator Especial. Na data da
visita (29 de agosto), ainda eram visíveis marcas consistentes
com suas alegações, em particular, um hematoma do tamanho de uma
mão no lado esquerdo de seu rosto, bem como alguns arranhões no
pescoço.
64. Foi informado
que os menores passavam a maior parte do dia no pátio, de 5:00 às
18:00, e que somente eram permitidas visitas de seus pais, aos
domingos. Vários dos jovens de mais idade queixaram-se do fato de
que suas esposas e seus filhos não tinham permissão para visitá-los.
Muitos dos menores queixaram-se de monitores que lhes haviam
espancado e batido no rosto, por tentativa de fuga, brigas entre
os internos e desobediência às regras disciplinares internas,
particularmente a regra de silêncio à noite, que incluiria também
uma proibição de se usar o sanitário. Foi alegado que os
monitores muitas vezes lhes perguntavam em quais partes do corpo
eles preferiam ser espancados. Alguns ainda apresentavam marcas
consistentes com suas alegações, principalmente hematomas na
cabeça/ rosto, nos ombros e nas costas, bem como lesões mais
graves, tais como feridas abertas (ver anexo). Alguns informaram
ter sido ameaçados recentemente por alguns dos monitores do turno
noturno com uma arma. De acordo com a informação recebida,
alguns dos adolescentes haviam passado até dois meses nas celas
de castigo, onde teriam ficado trancados 24 horas por dia. Eles
tinham de dividir um colchão com um ou dois outros internos.
D. Estado
de Minas Gerais
1. Delegacias
de polícia
65. Em 3 de
setembro, o Relator Especial visitou a carceragem da delegacia de
polícia encarregada de casos de furtos e roubos em Belo
Horizonte, na qual 280 pessoas estavam detidas em 21 celas naquela
data. Foi informado que eles eram mantidos 24 horas por dia nas
celas, exceto uma vez por mês, quando – após serem obrigados a
se despir e forçados a manter suas bocas bem abertas até
chegarem ao pátio – eram levados para um banho de sol, enquanto
suas celas eram revistadas e lavadas com água, o que deixava
todos os artigos de uso pessoal, particularmente os cobertores,
completamente molhados. De acordo com a informação recebida, as
celas eram revistadas em outras ocasiões também, até duas vezes
por semana. O delegado explicou ao Relator Especial que isso era
considerado necessário diante do grande número de tentativas de
fuga e incidentes violentos que ocorriam nessa carceragem
policial. A cada quinzena, os detentos teriam permissão para
receber visitas durante uma hora. Porém, somente seus pais teriam
autorização para visitá-los. Não havia colchões nas celas e
os detentos, assim, estavam dormindo no piso de concreto, com
cobertores sujos que, segundo informado pelos detentos, eles não
eram autorizados a lavar. No fundo de cada cela, um buraco usado
tanto como sanitário quanto banheiro era separado da parte
principal da cela por lençóis colocados pelos próprios detentos
para assegurar alguma privacidade. Foi informado que somente água
fria corria da torneira muito básica usada para o banho. O
delegado foi o primeiro a se queixar das condições de detenção
um tanto precárias e lamentou que recursos materiais e humanos
tinham de ser usados para a carceragem, em vez de para a atividade
de investigação criminal, principal função da polícia civil.
66. Em uma cela que
media aproximadamente 20 metros quadrados, estavam detidas até 18
pessoas. Os detentos, em sua maioria, já haviam sido
sentenciados. Eles explicaram ao Relator Especial que, para serem
transferidos para uma penitenciária, onde as condições de detenção
eram consideradas melhores, era necessário pagar uma certa
quantia de dinheiro ao chefe da carceragem policial. O delegado
disse que o Superintendente da Organização Penitenciária era
responsável pelas transferências, que, entretanto, são
efetuadas com base em suas recomendações como chefe da
delegacia. Um grande número dos detentos pareceu ao Relator
Especial estar carente de atendimento médico urgente e seus casos
foram encaminhados à atenção do delegado, que disse que
imediatamente seriam tomadas as medidas necessárias. Por fim, é
preciso observar que os detentos, em sua maioria, informaram haver
sido espancados quando da prisão e/ou durante o interrogatório
(ver anexo).
67. Em 4 de
setembro, o Relator Especial visitou a Delegacia de Polícia de
furtos e roubos de veículos (DETRAN). Quarenta e dois detentos
encontravam-se detidos em 5 celas. O delegado reconheceu que eram
precárias as condições em que eles estavam detidos. Em
particular, ele informou que eles não podiam ter permissão para
sair de suas celas devido à falta de um pátio nessa delegacia de
polícia. Até 9 pessoas encontravam-se detidas em uma cela de
aproximadamente 12 metros quadrados e estavam dormindo no piso de
concreto descoberto. Um buraco era usado tanto como sanitário
quanto banheiro e era separado da parte principal da cela por plásticos
colocados pelos detentos. O delegado disse que 30% das pessoas
mantidas ali já haviam sido sentenciados. O Relator Especial
observa que muitos dos detentos se recusaram a falar por medo de
represálias, enquanto alguns fizeram alegações de espancamentos
durante o interrogatório com o propósito de extrair-lhes confissões.
68. No mesmo dia, o
Relator Especial visitou a carceragem feminina da principal
delegacia de polícia de Belo Horizonte, o Departamento de
Investigação. Acredita-se que essa seja a única carceragem
policial feminina da cidade. Na ocasião, 104 mulheres
encontravam-se detidas em 8 celas limpas. As detentas, em sua
maioria, já haviam sido sentenciadas e expressaram a esperança
de em breve serem transferidas para uma penitenciária. Algumas se
queixaram de tortura, inclusive violência sexual, à qual teriam
sido submetidas quando da prisão ou durante o interrogatório
inicial (ver anexo), e a maioria delas reconheceu ser bem tratada
pela equipe de policiais, inclusive policiais do sexo masculino às
vezes encarregados da carceragem. A maioria das queixas referia-se
à lentidão do processo judicial.
2. Uma
penitenciária
69. Em 3 de
setembro, o Relator Especial visitou a Penitenciária Nelson
Hungria, que lhe pareceu uma penitenciária relativamente moderna,
composta de 12 pavilhões nos quais os presos eram mantidos em
celas individuais de 6 metros quadrados. Cada cela continha um
chuveiro e um vaso sanitário. As celas estavam limpas e continham
um colchão e artigos pessoais, tais como televisores e aquecedor
de água. A capacidade oficial é para 721 presos, mas apenas 701
presos estariam mantidos na penitenciária naquela data. Foi
informado que todos os presos trabalhavam durante o dia, à exceção
de 5 detentos, que teriam se recusado. Esse foi o único
estabelecimento prisional no qual os detentos não se queixaram da
qualidade da comida. O encarregado da prisão naquela data, o
Diretor de Reeducação e Ressocialização, explicou ao Relator
Especial que uma ala hospitalar havia sido construída, porém
nunca havia sido aberta por falta de pessoal médico. Um médico e
uma enfermeira voluntária eram os únicos profissionais disponíveis
para realizar o exame inicial e recomendar transferências para
hospitais, quando necessário.
70. O Diretor de
Reeducação e Ressocialização explicou ao Relator Especial que
todas as queixas de maus tratos expressas pelos detentos são
objeto de uma sindicância interna determinada pelo Diretor Geral
de Nelson Hungria para um de seus subdiretores, ou seja, de
reeducação e ressocialização, de segurança ou de associação
e segurança. Ele explicou ainda que, quando se fazia necessário
um laudo médico, a suposta vítima tinha, primeiramente, de ser
levada a uma delegacia de polícia, onde era preciso preencher um
formulário antes de qualquer detento poder ser levado ao
Instituto Médico Legal. Ele informou que, ao longo dos últimos
cinco anos e seis meses, 47 agentes penitenciários haviam estado
sob investigação interna. Apenas dez deles haviam sido
considerados culpados e demitidos pelo Superintendente da Organização
Penitenciária. Não foi oferecida qualquer informação sobre a
instauração de processo penal contra esses agentes.
71. Um décimo
terceiro pavilhão era utilizado como Centro de Observação
Criminológica (COC), onde os presos recentes seriam levados
inicialmente para permanência por um período de observação de
30 dias, durante o qual eles passariam por vários exames psicológicos,
médicos e sociológicos. Também foi explicado ao Relator
Especial que, durante esse período, o Diretor Geral da penitenciária
se reúne com cada preso individualmente para explicar-lhes as
regras disciplinares internas. Os presos detidos naquela data no
COC informaram que eles ainda não haviam sido examinados por
qualquer pessoa, ao passo que alguns disseram já terem passado
mais do que uma quinzena naquele pavilhão. Eles esperavam ser
transferidos para um pavilhão normal assim que houvesse liberação
de celas. Alguns dos presos mantidos no COC queixaram-se de haver
sido gravemente espancados no corredor desse pavilhão na noite de
sua chegada. Eles teriam sido obrigados a se encostar contra a
parede e teriam sido chutados e espancados nas costelas e nas
costas com pedaços de madeira e enxadas por cerca de quinze
minutos. Foi informado que isso teria acontecido durante algumas
noites. Segundo a informação recebida, eles também foram ameaçados
de ser enterrados em um cemitério clandestino. Os detentos
acreditavam que apenas uma equipe de agentes penitenciários
noturnos era responsável por esses espancamentos.
72. Ao final da
visita, o Relator Especial se reuniu com alguns agentes penitenciários.
Embora eles tenham reconhecido que não havia compromisso por
parte de todos eles, eles se queixaram da falta de treinamento e
da carga de trabalho a que eram submetidos devido à escassez de
pessoal. Foi informado que dois terços do pessoal penitenciário
eram contratados em regime temporário (contratos administrativos)
e não recebiam qualquer treinamento em absoluto. No que se refere
aos turnos de plantão, foi informado que eles trabalhavam 12
horas e descansavam as 24 horas seguintes. Por fim, os agentes
penitenciários destacaram o alto nível de estresse a que eram
expostos, o que reconhecidamente levava a um certo nível de
agressividade para com a população de detentos e a problemas
psicológicos entre a maioria do pessoal penitenciário.
E. Estado
de Pernambuco
1. Delegacias
de Polícia
73. Em 6 de
setembro, o Relator Especial visitou a delegacia de polícia do 16º
Distrito Policial de Ibura (Recife), onde não havia sequer um
suspeito sendo interrogado ou detido, apesar de esse bairro ser
considerado uma área de alta criminalidade. O delegado explicou
que, mesmo em dias de semana, apenas duas ou três pessoas eram
levadas àquela delegacia por dia. O delegado, no entanto, não pôde
especificar o período de tempo médio durante o qual uma pessoa
fica detida naquela delegacia de polícia. O Relator Especial
observou as condições de trabalho deploráveis do pessoal
policial. O teto de um dos escritórios estava caindo aos pedaços;
os arquivos criminais estavam empilhados sobre mesas devido à
falta de arquivos/fichários; o banheiro dos policiais era imundo
e não dispunha de um mínimo de conforto. Em um dos escritórios,
onde supostamente ocorriam os interrogatórios, o Relator Especial
descobriu alguns cabos de madeira, bem como uma palmatória, um
pedaço de madeira de aspecto semelhante ao de uma colher plana e
grande, que teria sido usada no passado para espancar a palma das
mãos e a sola dos pés dos escravos. O delegado informou que
esses instrumentos não haviam sido usados por muito tempo. A
palmatória e os cabos estavam, com efeito, cobertos de poeira. A
carceragem era composta de duas celas, medindo aproximadamente três
metros quadrados, muito sujas e com um forte mau cheiro e, em um
canto, um buraco cheio de excrementos. Segundo a informação
recebida posteriormente, o delegado foi afastado do cargo para se
realizarem investigações referentes à palmatória e à falta de
registros apropriados.
O Relator Especial,
então, visitou a Delegacia do 15° Distrito Policial de Cavaleiro
(Recife), onde não havia sequer um suspeito detido naquela data.
Uma vez mais, as condições de trabalho pareceram precárias ao
Relator Especial. Um investigador chamou a atenção do Relator
Especial para a falta de recursos materiais elementares, tais como
papel, máquinas de escrever ou arquivos/fichários. Ele observou
ainda que, não obstante o fato de serem muito comuns tiroteios na
área sob a jurisdição dessa delegacia, os policiais não haviam
recebido coletes à prova de bala. Para sua segurança, o
investigador havia, portanto, decidido adquirir um colete à prova
de balas com seu próprio dinheiro. Ele também destacou que, em
uma área de criminalidade violenta, ele havia tido de adquirir
sua própria arma e informou que não existia qualquer regra que
exigisse que ele protocolasse um relatório quando a descarregava.
A carceragem consistia de duas celas completamente escuras,
medindo aproximadamente dois metros quadrados e, em um canto, um
buraco usado como sanitário, localizado ao fim de um pequeno
corredor sem luz. O delegado informou que ninguém havia ficado
detido nessas celas por mais de três horas. Na sala dos
investigadores, o Relator Especial descobriu algumas barras de
ferro que, segundo as autoridades, seriam peças probatórias. O
Relator Especial, no entanto, observou que essas peças não
estavam etiquetadas como tais e, portanto, não acreditou que essa
fosse uma explicação plausível. O Relator Especial confirmou a
informação que ele havia obtido na delegacia de polícia
anterior, isto é, que não existe qualquer livro de registro padrão
no qual todas as informações relativas a um determinado caso são
registradas, particularmente quando uma pessoa é levada à
delegacia e solta ou transferida para outro estabelecimento.
75. Por fim, o
Relator Especial visitou o 1° Distrito Policial, encarregado de
furtos e roubos, onde não havia sequer um suspeito sendo
interrogado ou mantido naquela data. A carceragem consistia de
duas celas grandes e completamente escuras. O delegado informou
que as pessoas geralmente eram detidas por apenas algumas horas.
Mais tarde, após o Relator Especial ter consultado o livro de
registro, o delegado, no entanto, reconheceu que um grupo de
pessoas recentemente havia ficado detido naquela delegacia de polícia
por oito dias, antes de ter sido possível transferi-los em caráter
de prisão provisória para uma penitenciária em outro estado.
Nos fundos dessa delegacia de polícia havia doze celas grandes e
completamente escuras, medindo aproximadamente 15 metros
quadrados. Foi informado que elas já não vinham sendo usadas há
muito tempo. A poeira e as teias de aranha pareciam confirmar essa
afirmação. Para explicar a ausência de qualquer pessoa sob prisão
policial, o delegado apresentou ao Relator Especial um livro de
registro que indicava que apenas de dez a vinte e cinco pessoas
eram presas por mês. Desde o começo de setembro, somente quatro
pessoas haviam sido presas e, portanto, levadas até aquela
delegacia de polícia. De acordo com o delegado, as pessoas
mantidas naquela delegacia, em sua maioria, eram presas em virtude
de um mandado judicial de prisão e acreditava-se que apenas 40%
eram detidas após terem sido presas em flagrante delito. As
organizações não-governamentais ficaram surpresas pelo fato de
o Relator Especial não ter visto ninguém preso ou sendo
interrogado durante sua visita a essas três delegacias de polícia,
localizadas em bairros considerados de alta criminalidade. Segundo
as ONGs, o fato de apenas um pequeno número de pessoas haver sido
registrado como presas ou detidas nessas delegacias de polícia,
conforme indicado nos livros de registro apresentados ao Relator
Especial, poderia ser resultado da falta de um registro adequado
das prisões e detenções efetuadas.
2. Uma
penitenciária
76. Em 7 de
setembro, o Relator Especial visitou a Penitenciária Aníbal
Bruno, onde havia 2.971 detentos, enquanto a capacidade oficial
dessa penitenciária, segundo as autoridades, era de 524. O
problema da superlotação foi reconhecido como o problema mais
difícil que a instituição tinha de enfrentar e enfatizou-se o
fato de que, em quaisquer circunstâncias, o diretor dispunha de
apenas quinze efetivos da polícia militar e oito agentes
penitenciários com os quais assegurar a ordem e a segurança
dessa penitenciária de grandes dimensões. Além disso, ele
destacou que os policiais militares destacados para atuar na
segurança das penitenciárias recebem apenas uma semana de
treinamento, do qual as ONGs também participam. A situação de
falta de pessoal também foi apresentada como explicação para o
fato de que os presos tinham permissão para sair de suas celas
por apenas algumas horas por dia. O diretor, no entanto, informou
ao Relator Especial que desde sua nomeação em abril de 2000, não
havia ocorrido qualquer rebelião. Várias medidas haviam sido
tomadas para diminuir a tensão e manter a calma e a ordem entre a
população carcerária, tais como permitir que as famílias
passassem uma noite com seus parentes presos a cada quinzena. Foi
informado que psicólogos, assistentes sociais, advogados, médicos
e enfermeiros se faziam presentes regularmente na prisão e
realizavam várias atividades com os presos, alguns dos quais também
estavam trabalhando em pequenas unidades que haviam sido montadas
em colaboração com o setor privado. No entanto, ao responder a
uma pergunta levantada pelo Relator Especial, o diretor reconheceu
que, durante a semana anterior, por exemplo, nenhum médico havia
visitado a penitenciária. A única razão que ele pôde dar foi
que havia uma falta de compromisso por parte de vários
profissionais que trabalham com questões relativas à população
carcerária. Ao final, o diretor informou que os presos estariam
divididos segundo os crimes pelos quais haviam sido condenados.
O Relator Especial
procurou informações suplementares sobre as denúncias
constantes de um recente relatório produzido pelo Conselho
Comunitário após uma visita feita em 11 de julho, durante a qual
dois detentos se queixaram de haver sido espancados e que, naquela
data, apresentavam marcas consistentes com suas denúncias. Com
relação às queixas de maus tratos aos detentos, o diretor
informou, primeiramente, que as supostas vítimas são
imediatamente encaminhadas a um Instituto Médico Legal para se
obter um laudo médico. Com relação a esse caso em particular, o
diretor explicou que havia sido enviada uma notificação ao
Comandante do Batalhão ao qual pertenciam os dois policiais
supostamente implicados no incidente. Foi informado que haviam
sido marcadas audiências para se decidir se o corregedor da
Secretaria de Justiça dirigiria a investigação interna,
conforme havia sido sugerido pelo próprio diretor. Devido ao
problema da falta de pessoal, os dois policiais suspeitos ainda
estavam trabalhando no mesmo pavilhão onde eram mantidas as duas
supostas vítimas. No entanto, o diretor informou que eles só
eram usados como pessoal de apoio e não tinham mais qualquer
contato direto com os presos.
78. O Relator
Especial visitou, primeiramente, as celas de castigo. Quinze
detentos estavam presos em uma grande cela que continha apenas um
colchão e poucos cobertores. Todos, exceto um, haviam recebido um
castigo que durava de 20 a 30 dias. O Relator Especial observou
que o livro de punição indicava que havia apenas 13 presos
naquela cela. Embora um tenha sido levado à cela pouco minutos
antes da visita do Relator Especial, um outro teria havia sido
mantido naquela cela de castigo por dois dias. O diretor explicou
que a decisão de castigar aquele detento que havia sido levado
pelo Chefe de Segurança do pavilhão ainda não havia sido
confirmada por ele. Nove outros presos, segundo o informado,
estavam detidos em duas celas de castigo de isolamento especial,
que continham camas, cobertores, colchões e outros produtos
pessoais, tais como ventiladores. Eles informaram que suas esposas
tinham permissão para visitá-los nessas celas e se queixaram da
falta de intimidade nessas ocasiões. Eles estavam segregados dos
demais supostamente porque eram considerados presos de alta
periculosidade. De acordo com o diretor, qualquer decisão de
punir um preso deve ser precedida por uma investigação, durante
a qual o preso, no entanto, tem a oportunidade de se defender.
Para a defesa, unicamente o preso encarregado da vigilância do
pavilhão é ouvido. A maioria, senão todos os detentos
entrevistados pelo Relator Especial nessas três celas de castigo
nunca haviam sido interrogados e não sabiam em que estágio se
encontrava o processo pelo qual haviam sido punidos. Eles também
não sabiam a quantos dias haviam sido castigados. Foi informado
que um deles teria passado mais de três meses em uma cela de
castigo. Em sua maioria, os detentos se queixaram de haverem sido
espancados antes de serem levados para a cela de castigo, em
particular por policiais militares (ver anexo). Alguns informaram
que haviam assinado um documento, expressando que eles haviam
violado regras internas da penitenciária, por medo de serem
espancados ou de serem mandados para a cela onde eram mantidos os
membros da gangue (criminosa) inimiga. As ameaças dos agentes
penitenciários de sujeitar um preso a violência por parte de
outros presos, colocando-o em uma cela onde estão detidos os seus
assim chamados inimigos, seria prática comum nessa penitenciária,
segundo os relatos recebidos. Alguns dos presos acreditavam que
essa violência havia resultado em mortes anteriormente. Segundo a
informação recebida posteriormente pelo Relator Especial de ONGs
fidedignas, alguns desses presos foram submetidos a represálias,
inclusive espancamentos, quando o Relator Especial estava
visitando outros pavilhões do estabelecimento (ver anexo). Esse
incidente é objeto de acompanhamento direto junto ao Governo.
79. O Relator
Especial, em seguida, visitou a grande cela de triagem, que media
aproximadamente 35 metros quadrados, na qual os detentos recém-transferidos
para a penitenciária eram mantidos antes de serem divididos
segundo os crimes pelos quais haviam sido condenados e antes de
ser traçado seu retrato psicológico. Trinta e um detentos
estavam presos naquela data na cela de triagem, que não tinha
colchões nem cobertores. A maioria deles já havia passado três
ou quatro dias ali. Eles acreditavam que permaneceriam naquela
cela até que se chegasse a um total de 100 presos. O diretor
informou que os detentos eram mantidos nesse pavilhão por oito
dias, período durante o qual passavam por exames médicos, psicológicos
e outros exames ditos técnicos. A maioria dos detentos, senão
todos, mostraram-se temerosos de falar com o Relator Especial por
causa das possíveis represálias. Foi alegado que, antes da
visita do Relator àquela cela, os presos haviam sido ameaçados
por alguns agentes penitenciários para que não falassem com o
Relator Especial. Alguns, no entanto, disseram que eles haviam
sido espancados quando de sua chegada em Aníbal Bruno e durante
exames técnicos (ver anexo). Foi informado que esses exames eram
humilhantes.
F. Estado
do Pará
1. Uma
delegacia de polícia
80. Em 9 de
setembro, o Relator Especial visitou a Delegacia de Polícia de
Guama (Marabá). Os delegados de plantão chamaram sua atenção
para as condições de trabalho. A título de exemplo, vale
mencionar que eles trabalhavam em turnos de mais de 14 horas nos
dias de semana e de 24 horas nos finais de semana. Foi informado
que os recursos materiais e humanos eram escassos. Na sala de depósito
e no sanitário, bem como no escritório do delegado, o Relator
Especial descobriu vários cabos de madeira, inclusive tacos de
sinuca, os quais, segundo informado, seriam peças probatórias de
processos criminais. O Relator Especial, no entanto, observou que
essas peças não estavam mantidas nas respectivas salas e não
apresentavam qualquer etiqueta que o levasse a não considerar
essa explicação implausível. Na carceragem, três pessoas
estavam detidas naquela data, a saber, Fábio Tavares da Silva,
Rilton de Silva Soares e Amadeu Almeida Pemental. Eles alegaram
ter sido severamente espancados na noite de sua prisão e quando
da chegada na delegacia de polícia; um deles ainda estava de
cueca, sem suas roupas, uma vez que havia sido preso em sua casa
no meio da noite e não havia sido autorizado a levar consigo suas
roupas (ver anexo).
2. Centros
de detenção pré-julgamento
81. No mesmo dia, o
Relator Especial visitou o centro de detenção pré-Julgamento
(Seccional Urbana) de São Braz, onde naquela data cerca de 80
pessoas estavam detidas em cinco celas em condições precárias.
Embora localizadas em uma delegacia de polícia, as celas seriam
vigiadas por agentes do sistema penitenciário, uma vez que se
destinavam a detentos que aguardavam julgamento e, portanto,
encontravam-se sob jurisdição da Secretaria Estadual de Justiça.
Em cada cela, de aproximadamente 14 metros quadrados, havia 16
pessoas. Os detentos estavam dormindo no piso de concreto
descoberto, uma vez que não havia sequer um colchão e apenas
pouquíssimos cobertores a sua disposição. Foi informado que
pertences pessoais – trazidos, por exemplo, por seus familiares
– eram guardados pelos agentes penitenciários. Alguns detentos
disseram que haviam tido de pagar os agentes penitenciários para
finalmente poder receber artigos de uso pessoal, tais como creme
dental ou sabonete, levados por suas famílias.
82. De acordo com
os testemunhos recebidos, eles nunca tinham permissão para sair
de suas celas, exceto quando recebiam visitas de seu advogado ou
de parentes. O Relator Especial observou que a pele da maioria dos
detentos, com efeito, era muito pálida. O agente de plantão na
carceragem confirmou que a infra-estrutura do lugar não permitia
aos detentos a exposição direta à luz natural, apesar de haver
um pátio pequeno e sujo com abertura para o céu. A comida
fornecida uma vez por dia pelo sistema penitenciário pareceu não
só precária mas até podre ao Relator Especial. Os detentos
disseram que seus familiares normalmente tinham permissão para
dar-lhes alimentos, porém sem poder vê-los.
A maioria dos
detentos nesse centro de detenção pré-julgamento não sabia em
que estágio se encontrava o processo judicial contra suas
pessoas. A maioria deles não havia tido uma audiência com um
juiz desde sua prisão. Alguns estavam presos nesse centro de
detenção por até 15 meses. De acordo com a informação
recebida de detentos mantidos em diferentes celas, toda pessoa
levada para essa cadeia fica, primeiramente, detida na cela de
castigo, chamada "o forte", localizada na entrada da
cadeia, e que media aproximadamente três metros quadrados. Quando
o Relator Especial visitou "o forte", viu, em um canto,
um buraco, usado como vaso sanitário, que estava cheio de
excrementos. Foi alegado que até vinte pessoas podiam ficar
detidas naquela cela por até dez dias. Alguns disseram ter sido
mantidos naquela cela superlotada por até trinta dias. Foi
relatado que os detentos usavam a água que saía do vaso sanitário
como água de beber.
84. Entre as
pessoas entrevistadas pelo Relator Especial (ver anexo), três
detentos disseram haver sido presos recentemente por policiais
militares e espancados com uma palmatória e um posto policialNT.
Naquela data, ainda eram visíveis marcas consistentes com a alegação
dos detentos, tais como um hematoma de forma redonda na parte
superior da perna esquerda de José Ricardo Vianna Gomez,
hematomas na parte superior do braço esquerdo de Márcio Furtado
Correia Paiva, uma cicatriz inflamada e inchada de um a dois centímetros
de comprimento em sua cabeça, bem como marcas observadas na parte
direita das costas, ombros e braço de Valdi Aleixo Barata. No
mesmo dia, o Relator Especial encontrou uma palmatória com um
buraco no meio, no postoNT da polícia militar de Terra Firme, na
qual estava inscrito "Tiazinha, chega-te a mim" e
"Agora me dão medo", o que era consistente com a descrição
dada pelas pessoas supracitadas.
85. Em 10 de
setembro, o Relator Especial visitou o centro de detenção pré-julgamento
(superintendência) de Marabá, localizado no mesmo prédio da
Sede da Polícia. Naquela data, 74 pessoas estavam detidas em 14
celas divididas em torno a um grande pátio com abertura para o céu.
Havia apenas alguns colchões em cada cela, sendo que a maioria
dos detentos tinha de dormir em cobertores ou no piso de concreto
descoberto. Os detentos se queixaram da qualidade da comida, que,
como nos demais lugares visitados pelo Relator Especial,
compunha-se de arroz e macarrão e pareceu ao Relator Especial ser
de precária qualidade e muitas vezes podre. Eles relataram
receber essa refeição uma vez por dia, para o almoço, e
informaram receber café e pão para o café-da-manhã e o jantar.
86. Foi informado
que os detentos saíam de suas celas durante duas horas por dia.
Porém, de acordo com os detentos, eles só saíam das celas dia
sim, dia não, por duas horas. Muitos deles se queixaram de
tortura e outras formas de maus tratos quando da prisão, tanto
por policiais militares quanto civis, e durante o interrogatório
(ver anexo), mas todos reconheceram que, desde a nomeação do
novo diretor daquele centro de detenção pré-julgamento, a situação
havia melhorado muito no que se refere a maus tratos. Foi relatado
que os espancamentos por agentes penitenciários não ocorriam
mais. Além disso, o diretor informou que uma pessoa detida sob
sua responsabilidade somente podia ser levada de volta por um
investigador policial mediante ordem judicial.
O Relator Especial,
em seguida, visitou a carceragem da Sede da Polícia. Quatro
pessoas estavam sendo mantidas no pátio, enquanto um menor se
encontrava detido em cada uma das duas celas. Embora o pátio
estivesse limpo e fosse bem ventilado, o ar das duas celas tinha
um mau cheiro muito forte e estava saturado. As duas celas eram
absolutamente escuras e não tinham colchão. Os dois menores
detidos ali haviam brigado na noite anterior. Um deles havia
ferido o outro gravemente ao enfiar uma escova de dentes no pescoço
e no estômago do outro, que havia recebido tratamento médico
subseqüentemente. No entanto, as ataduras estavam com secreção
e acreditava-se que os analgésicos que lhe haviam sido dados pelo
médico haviam sido guardados pelo policial civil que o havia
acompanhado. Os dois menores haviam passado mais de três meses
nessas celas escuras, onde, devido a problemas de saneamento, eles
haviam tido de fazer suas necessidades fisiológicas em garrafas
ou sacos plásticos durante os últimos 15 dias antes da visita do
Relator Especial.
De acordo com ONGs
e alguns promotores públicos com que o Relator Especial se reuniu
em Marabá, a violência policial é um grande problema na região
e em outras áreas rurais remotas do país. Geograficamente
distante do sistema judiciário, a polícia civil, segundo os
relatos, assumiria funções tanto policiais quanto judiciais a um
só tempo, sendo que os promotores públicos e juízes confiavam
inteiramente nos inquéritos policiais, sem questionar as formas
como são realizados. Com relação ao movimento agrário, foi
relatado que tem sido muito violento o conflito entre proprietários
de terra – que seriam, muitas vezes, funcionários da segurança
pública e do Judiciário – e trabalhadores, inclusive
envolvendo muitos casos de execuções extrajudiciais e tortura.
Foi alegado que as forças policiais civis e militares atuavam
como milícias privadas dos proprietários de terra. A resposta da
capital, segundo informado, teria sido inadequada e as autoridades
judiciais não teriam assumido suas responsabilidades normais.
II. PROTEÇÃO DE
DETENTOS CONTRA A TORTURA
89. As normas de
processo e execução penal no Brasil são definidas,
principalmente, na legislação federal, a saber, o Código Penal
(Decreto-Lei No. 2.848, de 7 de dezembro de 1940), o Código de
Processo Penal (Decreto-Lei No. 3.689, de 30 de outubro de 1941) e
a Lei de Execução Penal – LEP (Decreto-Lei No. 7.210, de 11 de
julho de 1984), aplicáveis em todo o território brasileiro. Os
Estados exercem total responsabilidade pelas atividades
operacionais relativas à polícia e aos estabelecimentos de detenção,
bem como pela execução de sentenças judiciais. Especialistas em
direito e ativistas pró-direitos humanos enfatizam que, apesar de
a proteção conferida pela lei nacional a suspeitos de crimes e
detentos ser avançada e abrangente, em muitos casos, as normas
legais cabíveis não são aplicadas na prática.
90. O Relator
Especial observa que recebeu versões contraditórias ou
inconsistentes no que se tange a várias disposições legais,
principalmente com relação às referentes a prisão e detenção
provisória (pré-julgamento), da parte de seus interlocutores
oficiais, inclusive do Judiciário. Isso parece corroborar as
alegações, tanto de detentos quanto de representantes da
sociedade civil, que dão conta de que as garantias estabelecidas
pela lei não são respeitadas na prática, pelo menos face ao
fato de que elas não são conhecidas por todos aqueles a quem
cabe implementá-las. Nesse particular, as ONGs e alguns funcionários,
principalmente da Secretaria Estadual de Justiça do Rio de
Janeiro, enfatizaram a necessidade de capacitação para policiais
e agentes penitenciários, não só com relação a direitos
humanos mas também com relação a técnicas de investigação e
segurança.
91. A polícia estadual se divide
em duas forças policiais autônomas, a saber, a polícia civil e
a militar, ambas sob o controle do Governador do Estado. A
responsabilidade pela grande maioria das atividades criminais foi
atribuída à polícia civil, a quem cabe "exercer as funções
de polícia judicial e apurar crimes, exceto os militares". A
polícia militar, uma força policial fardada definida como
"força auxiliar do exército", é encarregada de
realizar as funções de policiamento público, inclusive a
segurança externa das penitenciárias e a preservação a ordem pública.
A. Prisão
92. A Constituição
Federativa da República do Brasil de 5 de outubro de 1988
estabelece que "ninguém será preso senão em flagrante
delito ou por ordem por escrito e fundamentada de autoridade
judiciária competente (...)" e que "a prisão de
qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados
imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à
pessoa por ele indicada." No caso de prisão em flagrante, a
jurisprudência, de acordo com o informado, estabeleceu que um período
de detenção de até 24 horas antes que seja expedido um mandado
de prisão provisória por um juiz é um período razoável. É
preciso observar que o Artigo 310 do Código de Processo Penal
estabelece que o juiz ouvirá o promotor público sobre a prisão.
De acordo com a informação recebida, na prática, os juízes e
os promotores públicos são informados pela polícia sobre
qualquer prisão mediante uma comunicação por escrito. Não
existe qualquer disposição legal que assegure que uma pessoa
presa seja vista ou por um juiz ou por um promotor público dentro
das primeiras horas de sua prisão. O Relator Especial, no
entanto, observa que muitos, inclusive promotores públicos,
acreditavam que uma pessoa presa em flagrante deve ser levada para
comparecer perante um juiz dentro de 24 horas de sua prisão. Também
foi relatado que nos termos da atual lei, a menos que a prisão se
faça em flagrante delito, um promotor público será informado de
uma prisão somente 30 dias depois. A Constituição dispõe sobre
o direito a habeas corpus quando uma pessoa "sofre ou
corre o risco de sofrer violência ou coerção contra sua
liberdade de movimento, devido a ações ilegais ou a abuso de
poder." Qualquer pessoa tem locus standi para dar
entrada em uma petição de habeas corpus em sua própria
defesa ou em defesa de outrem.
93. Uma vez que a
polícia militar tem a competência constitucional de exercer o
policiamento público, as prisões em flagrante geralmente são
realizadas pela polícia militar, embora tenha sido relatado que a
polícia civil, às vezes, também atua em tais ocasiões. Os
policiais que efetuam a prisão são obrigados a levar o suspeito
diretamente a um estabelecimento policial (delegacia), onde o caso
é registrado. As delegacias são administradas pela polícia
civil e chefiadas por um delegado, que, por lei, deve ser bacharel
em Direito. A essa altura, a polícia militar não tem mais
qualquer participação na investigação criminal correspondente.
A Constituição estabelece que "o preso será informado de
seus direitos (...), sendo-lhe assegurada a assistência da família
e de advogado". No entanto, parece não haver qualquer
disposição legal específica referente ao período de tempo após
o qual uma pessoa detida tem acesso a um advogado.
94. Com relação
à assistência jurídica, o Artigo 5 (LXXIV) da Constituição
estabelece que "o Estado prestará assistência jurídica
integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de
recursos." As ONGs e os advogados com que o Relator Especial
se reuniu acreditam que 95% dos detentos se qualificam para tal
assistência. À Defensoria Pública cabe proporcionar assistência
jurídica a pessoas de recursos limitados, que seriam a grande
maioria das pessoas presas. No entanto, em muitos estados, essas
defensorias ainda não foram estabelecidas e foi informado que,
praticamente em todos os lugares onde elas existem, há insuficiência
de pessoal. Em decorrência disso, outros órgãos, tais como o
Ministério Público do Estado de São Paulo, prestam serviços
jurídicos a réus penais. Em outros casos, são nomeados
advogados em caráter rotativo pro bono publico (advogados
dativos). O Relator Especial também foi informado pelos
Defensores Públicos do Rio de Janeiro que antigamente havia uma
Defensoria Pública Especial (Núcleo de Defesa da Cidadania), que
prestava assistência em delegacias de polícia a pessoas presas
em flagrante. O serviço funcionava 24 horas por dia.
Infelizmente, esse serviço teve de ser desativado porque não
havia defensores públicos dispostos a trabalhar no serviço,
dados os baixos salários e o fato de que, como promotores, eles
receberiam um salário mais alto. Profissionais e ONGs também
informaram que os defensores públicos raramente dedicam tempo
adequado à representação de réus não-pagantes. Foi relatado
que eles muitas vezes se reúnem com seus clientes na primeira, ou
até mesmo segunda audiência e não necessariamente falam em
defesa de seus clientes durante os julgamentos.
95. Durante suas
visitas a carceragens policiais, o Relator Especial constatou que
a maioria dos suspeitos acreditava que suas famílias não haviam
sido informadas de sua prisão e seu paradeiro e que, na prática,
as pessoas presas muito raramente eram assistidas por um advogado.
Ao contrário, foi relatado que, nos poucos casos em que um
detento contava com um advogado particular, este havia sido
impedido de ver seus clientes até que se concluísse o processo
preliminar. Os advogados informaram que eles muitas vezes vêm
seus clientes pela primeira vez quando da primeira audiência
judicial. Segundo os defensores públicos com os quais o Relator
Especial se reuniu no Rio de Janeiro, nos termos de um decreto
aprovado em 1995, os delegados devem enviar uma carta à
Defensoria Pública informando-a da prisão dentro de três a
quatro dias a contar da data da prisão. De acordo com promotores
do Núcleo Contra a Tortura do Distrito Federal (Brasília), 97%
dos suspeitos não são assistidos por um advogado durante a fase
de investigação, enquanto na fase judicial, a maioria só é
assistida por estudantes de direito. Foi informado que os
estudantes não comparecem às delegacias de polícia e geralmente
se reúnem com seus clientes pela primeira vez durante as
primeiras audiências de instrução e que, portanto, não estão
em condições de arrolar testemunhas.
96. O Relator
Especial, durante visitas a delegacias de polícia, observou que,
na maioria dos casos, não se mantinha qualquer registro oficial
da hora e do local da prisão, nem da identidade dos policiais que
efetuam a prisão e da subseqüente transferência de suspeitos
para uma delegacia de polícia. A transferência para
estabelecimentos médicos ou o traslado até o tribunal muitas
vezes não eram registrados. Durante sua visita à delegacia do 16º
Distrito Policial do Recife, o delegado informou ao Relator
Especial, primeiramente, que não havia um livro de registro no
qual fosse documentado esse tipo de informação. O Ccorregedor de
Polícia que acompanhava o Relator Especial confirmou que essas
informações devem ser documentadas em um livro de registro, porém
informou que não havia um livro de registro padronizado. Além
disso, ele informou ao Relator Especial que a Corregedoria havia
proposto padronizar todos os livros de registro. Por fim, um livro
de ocorrências foi apresentado ao Relator Especial. Dele constava
o registro da data e da hora de prisão, porém não havia
qualquer menção da data e da hora de soltura ou transferência
para outro estabelecimento de detenção. Essa informação seria
encontrada, segundo o relatado, no arquivo pessoal do suspeito. O
Relator Especial observa que, no entanto, não foi encontrado
registro da informação no arquivo pessoal da pessoa escolhida
aleatoriamente no livro de ocorrências pelo Relator Especial.
Essa ausência de registro dificulta a possibilidade de as
autoridades refutarem as denúncias ouvidas com freqüência,
segundo as quais, durante essas transferências, os suspeitos são
submetidos a tortura e a outras formas de maus tratos, inclusive
ameaças com a propósito de se extraírem confissões ou como
forma de intimidação a fim de impedir que eles se queixem de
maus tratos sofridos anteriormente, seja a juízes, seja a médicos
e peritos forenses. Essas transferências muitas vezes durariam
mais tempo do que o efetivamente necessário, uma vez que os
suspeitos muitas vezes são levados para áreas afastadas, onde são
submetidos a maus tratos ou ameaças. Muitos dos detentos
entrevistados pelo Relator Especial também relataram que, após a
prisão, eles haviam sido levados de carro e conduzidos durante
horas, supostamente no intuito de se permitir que a imprensa
chegasse à delegacia de polícia e, assim, estivesse em condições
de registrar e divulgar a prisão dos suspeitos de crimes. Os
detentos se queixaram de que, nessas circunstâncias, eles haviam
sido caracterizados como criminosos, em vez de suspeitos, tanto
pela polícia quanto pela mídia. Alguns alegaram que haviam sido
torturados ou de outro modo sujeitos a maus tratos e ameaçados
pelos policiais que haviam efetuado a prisão, no intuito de fazê-los
confessar, diante da mídia, os crimes pelos quais haviam sido
presos.
97. Não obstante
as salvaguardas legais contra a prisão arbitrária, há informações
que dão conta de que tanto a polícia civil quanto a militar
rotineiramente efetuam prisões fora dessas limitações legais.
As prisões em flagrante parecem ser amplamente utilizadas. Ao que
parece, a julgar pelos testemunhos recebidos pelo Relator
Especial, há uma tendência de se realizarem prisões
posteriormente classificadas como "em flagrante", mesmo
quando a pessoa não é efetivamente presa no ato propriamente
dito, mas sim, com base em uma forte suspeita de sua participação
em atividades criminais. Pessoas de descendência africana ou de
grupos marginalizados parecem ser particularmente afetadas por
esse fenômeno. Além disso, o Relator Especial recebeu várias
denúncias segundo as quais provas incriminatórias, tais como
armas ou entorpecentes, haviam sido posteriormente colocadas pela
polícia em pessoas que teriam sido presas em flagrante.
B. Investigações
Penais
O Brasil é um dos
poucos países da América Latina a manter a instituição de uma
investigação penal preliminar realizada unicamente pela polícia.
A polícia civil realiza o inquérito policial, que pode ser
instaurado mediante ordem por escrito expedida pela autoridade
policial a pedido da vítima, ou mediante ordem expedida por um
juiz ou pelo Ministério Público. Nos termos do Artigo 5 do Código
de Processo Penal, devem ser instaurados inquéritos quando a polícia
tiver sido informada de uma possível violação do Código Penal.
O procurador pode requerer que a polícia realize investigações
adicionais a qualquer momento. A decisão do procurador de
processar ou não processar o caso fundamenta-se nos resultados da
investigação policial. Devido ao sistema de trabalho rotativo
(turno de 24 horas seguido por 48 horas de folga) e à conseqüente
falta de continuidade, não há um único policial ou delegado
responsável por toda a investigação policial, o que, segundo
foi informado por ONGs e alguns promotores públicos, gera sérios
problemas no que tange à qualidade da investigação.
99. Esse sistema
tem sido culpado não só pela má qualidade da investigação,
mas também porque fomenta abusos por parte da polícia na realização
das investigações. Em janeiro de 2000, a Secretaria de Segurança
Pública do Estado de São Paulo teria apresentado uma proposta ao
Congresso com vistas a uma reforma constitucional que permitiria a
eliminação da investigação policial preliminar e sua substituição
por uma etapa de investigação encabeçada por um promotor e
controlada por um tipo de juiz de investigação. Somente as
confissões feitas perante o juiz de investigação seriam admissíveis
e qualquer pessoa sujeita a prisão provisória teria de ser
levada para comparecer perante tal juiz após o período de 24
horas. De acordo com informações recebidas pelo Relator Especial
durante reuniões com representantes da sociedade civil, essa
proposta, ainda que respaldada pelo Governo, tem encontrado forte
resistência por parte da polícia.
100. Durante sua
visita a delegacias, o Relator Especial observou que parece haver
uma prática policial de se usarem investigações de crimes
hediondos, em vez de investigações de crimes ordinários
igualmente aplicáveis, a fim de se impedir a concessão de fiança,
muito embora a acusação formal subseqüentemente emitida pelo
juiz possa ser referente a um crime não tão grave. Muitas
pessoas detidas disseram, por exemplo, haver sido investigadas por
tráfico de entorpecentes (Artigo 12 do Código Penal), enquanto
teriam sido presas com uma pequena quantidade ou na posse de uma
substância relativamente não prejudicial, tais como poucas
gramas de maconha, o que deveria ter resultado em uma investigação
por posse de entorpecente (Artigo 16). De igual modo, parece haver
uma tendência de se usarem acusações de roubo (Artigo 157), em
vez de acusações de furto (Artigo 155). A primeira acarreta uma
sentença mínima de mais de quatro anos, o que, consequentemente,
significa que não pode ser concedida fiança até que se conclua
o julgamento, ao passo que a segunda acarreta uma sentença de um
a quatro anos e admite a concessão de fiança até que se conclua
o julgamento. Muitos testemunhos dos detentos referiam-se a crimes
de menor gravidade, que envolviam pequenas quantias e sem ameaça
grave a pessoas ou propriedades. Ainda assim, a polícia, os
promotores ou até os juízes teriam livremente qualificado um
crime de furto como roubo, a fim de colocar criminosos de menor
gravidade – que, em muitos países, não receberiam sequer uma
sentença de prisão – em uma penitenciária por longos períodos
de tempo. Além disso, foi alegado que a polícia freqüentemente
exerce coerção para obtenção de confissões de crimes mais
graves, mesmo quando um suspeito se mostra disposto a confessar um
crime de gravidade menor. A lei parece atuar como incentivo para
que a polícia extraia confissões de um crime que possa ser mais
grave do que o(s) crime(s) efetivamente cometido(s). Essa tendência
também parece ser reforçada pelas constantes reivindicações da
opinião pública e de políticos pela adoção de medidas mais rígidas
contra suspeitos de crimes. Essa política não só resulta em um
nível substancial de privação desnecessária da liberdade, mas
também contribui para o problema da superlotação carcerária.
Essa política parece ser respaldada por estatísticas
apresentadas pela Secretaria de Administração Penitenciária do
Estado de São Paulo: em 31 de outubro de 2000, 50% dos presos
haviam sido condenados por roubo, ao passo que apenas 8,75 por
furto. De igual modo, de acordo com o Governador do Estado de
Minas Gerais, mais de 40% dos detentos daquele estado haviam sido
sentenciados por tráfico de entorpecentes, enquanto ONGs e
profissionais do direito destacaram que a maioria deles havia sido
encontrada com uma pequena quantidade de entorpecentes
(predominantemente maconha), que se acreditava ser para seu próprio
consumo.
101. Com relação
a confissões, o Artigo 5 (LVI) da Constituição estabelece que
"provas obtidas por meio ilícitos são inadmissíveis no
processo". Quanto ao ônus da prova, o Artigo 156 do Código
de Processo Penal afirma que "o ônus de provar uma denúncia
cabe à pessoa que a fizer, porém o juiz poderá, durante a fase
probatória ou antes de proferir a sentença, expedir uma ordem ex
officio para o cumprimento de quaisquer ações que ele julgue
apropriadas para se esclarecerem quaisquer dúvidas sobre uma
questão relevante."
102. De acordo com
o Presidente do Supremo Tribunal Federal, no caso de denúncias de
tortura feitas por um réu durante um julgamento, ocorre uma
inversão do ônus da prova. O promotor público teria de provar
que a confissão foi obtida por meios lícitos e o ônus da prova
não caberia ao réu que tiver feito a denúncia. De acordo com os
promotores públicos do Núcleo Contra a Tortura do Distrito
Federal (Brasília), se um juiz ou promotor público for informado
que uma confissão pode ter sido obtida por meios ilegais, ele
deverá iniciar investigações, a serem realizadas por um
promotor que não aquele inicialmente encarregado do caso. De
acordo com sua interpretação, enquanto estiverem em andamento
investigações para apurar a matéria, as confissões a ela
referentes devem ser retiradas do processo. O Presidente do
Superior Tribunal de Justiça confirmou essa interpretação da
lei. Ele afirmou que quando existe prova prima facie de que
um réu fêz uma confissão sob tortura e se suas alegações
forem consistentes com outras provas, tais como laudos médico-forenses,
o julgamento deve ser suspenso pelo juiz e o promotor público
deve requerer a abertura de uma investigação para apurar as denúncias
de tortura. Se o juiz pretender proceder à instauração de
processo contra o suspeito, a confissão em questão, bem como
outras provas obtidas por meio dessa confissão, não devem
integrar o conjunto de provas do julgamento original. De acordo
com o Presidente do STJ, se uma confissão for a única prova
contra um réu, o juiz deve decidir que não há qualquer
fundamento para condenar o suspeito. O Procurador Geral da República
afirmou que o promotor encarregado da investigação criminal
inicial poderá, às vezes, estar também encarregado da investigação
relativa às alegações de que as confissões teriam sido obtidas
ilicitamente. Ele admitiu que, muito embora possa haver um
conflito de interesses, essa situação ocorre com freqüência em
lugares pequenos.
C. Prisão Provisória
(pré-julgamento)
103. Há dois tipos
de prisão provisória.
1. Prisão
preventiva
104. Uma ordem de
prisão preventiva pode ser expedida por um juiz a pedido oficial
de uma autoridade policial ou de um promotor público quando
satisfeitas as duas seguintes condições: (a) materialidade de um
crime (indicação de que o crime de fato ocorreu) e (b) provas
suficientes da autoria, bem como as seguintes condições
alternativas: (a) proteção da ordem pública, (b) proteção da
ordem econômica, (c) necessidade de obtenção de prova(s) ou (d)
risco de evasão do suspeito. O Artigo 10 do Código de Processo
Penal estabelece que o inquérito policial deve, então, ser
concluído dentro de 10 dias a contar da prisão quando o suspeito
estiver sob prisão preventiva ou detido após uma prisão em
flagrante.
2. Prisão
temporária (também denominada prisão para investigação)
105. A prisão
temporária precisa ser decretada por um juiz a pedido oficial de
uma autoridade policial ou de um promotor público dentro de um
período de 24 horas a contar do recebimento do requerimento
oficial. O juiz poderá, a seu próprio critério ou por solicitação
do promotor público ou do advogado, determinar que um detento lhe
seja apresentado, solicitar informações e esclarecimentos por
parte da polícia e submetê-lo a um exame de corpo de delito. Após
ter sido decretada uma prisão temporária, um mandado de prisão
deve ser expedido e uma cópia entregue ao preso a título de
notificação das acusações feitas contra ele (nota de culpa).
O Relator Especial entende o termo "nota de culpa",
conforme empregado tanto pelos detentos quanto pela sociedade
civil, se referia, na maioria dos casos, a uma confissão, e não
à notificação de acusações, como prevê a lei. O Relator
Especial, portanto, reteve esse termo empregado por seus
interlocutores, particularmente no que se refere às entrevistas
dos detentos (ver anexo).
"A prisão
temporária aplicar-se-á quando: (a) for indispensável às
investigações policiais; (b) o réu não tiver uma residência
fixa ou não oferecer os elementos necessários ao esclarecimento
de sua identidade e (c) houver razões fundadas, em conformidade
com qualquer prova admitida na legislação penal, de que o réu
cometeu ou participou dos seguintes crimes: homicídios dolosos
(Artigo 121 do Código Penal), seqüestro ou encarceramento
privado (Art. 148), roubo (Art. 157), extorsão (Art. 158), extorsão
mediante seqüestro (Art. 159), estupro (Art. 213), atentado ao
pudor (Art. 214), seqüestro violento (Art. 219), epidemia
resultante em morte (Art. 267), envenenamento de água potável ou
produtos alimentícios ou substâncias médicas que resulte em
morte (Art. 270), participação de quadrilhas ou de grupos
criminosos (Art. 288), genocídio (Arts. 1 a 3 da Lei No.
2.899, de 21 de outubro de 1967), tráfico de entorpecentes (art.
12 da Lei No. 6.368, de 21 de outubro de 1976) e crimes
contra o sistema financeiro (Lei N.º. 7.492, de 26 de
junho de 1986)". Há informação de que a jurisprudência e opinio
juris estabeleceram que a prisão temporária pode ser
decretada no caso dos crimes relacionados acima quando for
cumprida uma das duas outras condições (a e b). O período máximo
de prisão de um suspeito detido sob prisão temporária é de
cinco dias, "prorrogável por igual período quando extrema e
absolutamente necessário".
107. Além disso, são
estipulados diferentes prazos para prisão temporária com relação
aos chamados crimes hediondos. O Artigo 5 (XLIII) da Constituição
estabelece que os seguintes crimes são crimes hediondos: tortura,
tráfico ilícito de entorpecentes, terrorismo e outros a serem
definidos em lei. A Lei de Crimes Hediondos amplia a relação
constitucional de modo a incluir os seguintes crimes: latrocínio,
extorsão qualificada por subseqüente morte da vítima, estupro e
atentado violento ao pudor, propagação de doença epidêmica
qualificada por morte subseqüente e genocídio. A mesma disposição
constitucional estabelece, adicionalmente, que a tais crimes não
se aplicará anistia, indulto ou soltura provisória sob fiança.
No caso de uma pessoa presa sob suspeita de haver perpetrado um
crime hediondo, será decretada a prisão temporária por 30 dias,
renovável por igual período se absolutamente necessário.
3. A
regra de 81 dias
108. De acordo com
a jurisprudência, no caso de prisão preventiva, os dez primeiros
dias de prisão anteriores a uma acusação formal devem estar
incluídos no período provisório (pré-julgamento) de 81 dias.
Esse período é um construto jurisprudencial constituído,
inter alia, pelos seguintes períodos: 10 dias para a polícia
concluir o inquérito criminal; 5 dias para o promotor dar entrada
em uma ação penal; três dias para o réu apresentar sua réplica;
20 dias para serem ouvidas as testemunhas de acusação e 20 dias
para as testemunhas de defesa. No caso de prisão temporária,
inclusive nos casos de crimes hediondos, o período de 81 dias
começa a contar após o período inicial de prisão temporária
(isto é, 5 mais 5 dias, ou, no caso de crimes hediondos, 30 mais
30 dias).
Entretanto, em
ambos os casos, isto é, se o suspeito tiver sido mantido
inicialmente sob prisão preventiva ou temporária, parece não
haver qualquer disposição legal que estabeleça que os suspeitos
devem ser soltos ao final do período legal de prisão provisória
se não houver sido emitida qualquer decisão judicial quanto ao mérito
do caso. Ao contrário, foi informado que o Superior Tribunal de
Justiça decidiu que o período de 81 dias não deve ser
considerado estritamente e que o juiz pode aplicar o "princípio
da razoabilidade" a fim de manter alguém preso caso ocorram
certos atrasos justificados pelas dificuldades naturais de
processos penais. O STJ declarou que "o construto
jurisprudencial que definiu o limite de 81 dias para comprovação
de culpa no caso em que o réu é preso deve aplicar-se com
flexibilidade, de modo a levar em conta o princípio da
razoabilidade. É admissível ultrapassar esse limite em circunstâncias
adequadamente justificadas." Os promotores públicos chamaram
a atenção do Relator Especial para o fato de que essa jurisprudência
era, em potencial, extremamente perigosa, uma vez que ela não
estabelece um limiar para a aplicação do "princípio da
razoabilidade". As pessoas sob prisão preventiva
qualificam-se para soltura provisória sob fiança.
4. Estabelecimentos
de prisão provisória (pré-julgamento)
110. O Artigo 84 da
LEP estabelece que os presos condenados sempre devem ser mantidos
separados dos presos em caráter provisório. O Artigo 102 da LEP
estabelece que os detentos sob prisão provisória devem ser
mantidos em unidades prisionais pré-julgamento ou cadeias públicas.
Cada comarca ou vara deve dispor de pelo menos uma instalação de
prisão provisória a fim de preservar o interesse da administração
da justiça penal e assegurar que os detentos sejam mantidos próximos
de sua família ou comunidade. Entretanto, não fica claro se
existe um limite de tempo para o período em que uma pessoa que
tenha sido formalmente acusada pode ser mantida em uma delegacia
de polícia antes de ser transferida para um estabelecimento de
prisão provisória. Embora a lei pareça clara e estabeleça que
uma pessoa pode ser mantida em uma carceragem policial por até 24
horas (isto é, o período dentro do qual um juiz deve emitir uma
ordem de prisão provisória), a jurisprudência é relativamente
contraditória. O Supremo Tribunal Federal, assim, teria decidido
que "a prisão de uma pessoa acusada em uma delegacia de polícia
não pode ultrapassar o período de tempo dos processos
regulares", sem, no entanto, fazer referência ao período de
24 horas sobre que dispõe a lei. De acordo com alguns dos
interlocutores oficiais do Relator Especial, para os fins da lei,
as delegacias de polícia são, com efeito, consideradas
"cadeias públicas" e, portanto, os presos provisórios,
ou seja, pessoas detidas seja com base em um mandado de prisão
temporária ou preventiva, podem permanecer em celas policiais por
mais de 24 horas. Eles destacaram, todavia, que era ilegal manter
presos condenados em delegacias de polícia ou unidades prisionais
pré-julgamento e manter presos provisórios em penitenciárias
destinadas a presos condenados. De acordo com ONGs e promotores públicos,
a prisão provisória em carceragens policiais deve ser
considerada ilegal, uma vez que o Artigo 102 estabelece que os
presos em caráter provisório devem ser detidos em instalações
de prisão provisória específicas. Devido à falta de espaço em
centros de prisão provisória, acredita-se que as autoridades
policiais e judiciais foram "obrigadas" a ignorar a lei.
Assim, vários tribunais estaduais decidiram que, nos casos em que
não havia lugar adequado em uma instituição penitenciária,
mesmo presos condenados – o que supostamente significa presos
provisórios a fortiori – podem permanecer em celas
policiais. Porém, o Superior Tribunal de Justiça teria decidido
que um preso condenado não pode ser mantido em uma delegacia de
polícia. Como a polícia civil é responsável pela investigação
preliminar e as carceragens policiais estão sob a guarda de
agentes da polícia civil, acredita-se que essa situação, por si
só, facilita os abusos cometidos pelos investigadores policiais
contra suspeitos, na tentativa de extraírem confissões ou
informações relacionadas ao inquérito penal. Além disso,
devido à situação de superlotação nas penitenciárias na
maioria dos estados, os presos condenados muitas vezes são
mantidos em delegacias e, portanto, são freqüentemente
misturados com os que aguardam julgamento, em violação do
disposto na LEP.
111. O Governador
do Estado do Rio de Janeiro informou ao Relator Especial sobre sua
intenção de criar "casas de custódia", sob a jurisdição
da Secretaria de Justiça, para onde as pessoas encontradas em
flagrante delito – que, quando da visita do Relator Especial,
eram detidas em delegacias de polícia – seriam imediatamente
levadas após a prisão. De acordo com esse novo procedimento, uma
vez preso, um suspeito seria a uma delegacia legal, onde
seria estabelecida sua identidade e se faria um interrogatório
preliminar. O suspeito, no entanto, seria prontamente levado para
uma "casa de custódia", onde investigadores peais
teriam de questioná-lo suplementarmente. O Relator Especial
acolheu com bons olhos essa intenção, ao mesmo tempo em que
frisou a necessidade de se definir um limite de tempo para a polícia
entregar o suspeito a uma instituição sob a jurisdição da
Secretaria de Justiça. De acordo com o Secretário Estadual de
Segurança Pública do Rio de Janeiro, seria difícil estabelecer
tal limite de tempo, uma vez que isso dependerá do número de
depoimentos de vítimas e testemunhas a serem registrados.
D. Sentenças
112. De acordo com
o Artigo 33 do Código Penal, o regime fechado é obrigatório
para sentenças de reclusão superiores a oito anos, que devem ser
cumpridas em instalações de segurança máxima ou média. O
regime semi-aberto pode ser concedido nos casos de sentenças de
prisão entre quatro a oito anos, se a pessoa sentenciada não for
reincidente, ao passo que o regime aberto pode ser concedido àqueles
cuja sentença for inferior ou igual a quatro anos, se a pessoa
sentenciada não for reincidente. No caso de a pessoa ser
reincidente, a sentença deve ser cumprida em regime fechado.
113. Os Artigos 43
e 44 do Código Penal dispõem sobre a aplicação de sentenças
alternativas que têm caráter obrigatório. Isso significa que,
se cumpridas as condições para a determinação de sentenças
alternativas, o juiz é obrigado a determinar tal penalidade. As
condições para a determinação de sentenças alternativas são
as seguintes: a pena de reclusão não deve superior a quatro
anos, o crime não foi intencional, ou foi cometido sem uso de
violência ou grave ameaça de violência, e a pessoa a ser
sentenciada não é reincidente em um crime intencional. A aplicação
de sentenças alternativas também deve levar em consideração o
histórico dos antecedentes comportamentais, conduta social,
intensidade da culpa e as circunstâncias em que o crime foi
cometido. As sentenças alternativas variam desde o pagamento de
indenização a título de reparação ou multas, até prestação
de serviço comunitário ou serviço a título beneficente ou a
suspensão temporária de direitos.
114. O fato de as
sentenças alternativas serem aplicadas unicamente nos casos de
sentenças não superiores a quatro anos, somado à tendência de
a polícia procurar obter confissões que admitam a comissão de
crimes mais graves do que aqueles de fato cometidos, contribui
para o favorecimento de medidas privativas de liberdade. Foi
informado que os juízes parecem ter a tendência de evitar a
imposição de sentenças alternativas, mesmo no caso de réus
primários. De acordo com ONGs, bem como alguns funcionários e
promotores públicos com que o Relator Especial se reuniu, isso se
deve, uma vez mais, à crescente pressão por parte da opinião pública,
que exige sejam tomadas fortes medidas de combate à criminalidade
e que tem pressionado para que os criminosos sejam mantidos na
prisão. O Secretário de Segurança Pública do Estado de São
Paulo enfatizou que, em se tratando de combate à criminalidade, a
cultura que prevalece no Judiciário não é uma cultura de
direitos humanos, e fez referência ao dito popular brasileiro
segundo o qual "bandido bom é bandido morto".
115. Também existe
um sistema de progressão de pena pelo qual os presos podem passar
de um regime estrito para um menos estrito, contanto que estejam
se comportando em conformidade com as regras disciplinares
internas. Nesse particular, desempenha seu papel o juiz de execução
penal, que é responsável pela progressão das penas, bem como
pela remissão, unificação de sentenças e soltura sob liberdade
condicional. Vale destacar que um terço de uma sentença de mais
de oito anos precisa ser cumprido em um regime fechado antes de o
preso poder se beneficiar do sistema de progressão. Uma queixa
que o Relator Especial ouviu de vários presos foi que os prazos
para a conversão de um sistema de detenção para outro
geralmente passam sem que se tomem quaisquer medidas cabíveis. Além
disso, de acordo com a Pastoral Carcerária de São Paulo, até
90% dos pedidos de progressão de pena são recusados,
supostamente com base em uma curta entrevista com um psicólogo e
em relatórios pré-estabelecidos. O Secretário Estadual de Justiça
de Pernambuco esperava que a lei em breve seria emendada de modo a
assegurar que os presos pudessem progredir do regime fechado para
o semi-aberto com base no tempo de pena cumprido, com a
possibilidade de os promotores públicos requererem que os juízes
emitam um parecer nos casos em que houver razões para atrasar a
progressão, por exemplo, por razões de segurança. Acredita-se
que um projeto de lei nesse sentido tenha sido apresentado pelo
Ministro da Justiça.
116. Além disso, o
Artigo 31 da LEP estabelece que todas as pessoas privadas de
liberdade devem trabalhar de acordo com sua capacidade ou
habilidade. Os presos, assim, devem obter uma redução de um dia
de sua pena para cada três dias trabalhados. Na prática, nos
estabelecimentos prisionais visitados pelo Relator Especial, as
instalações não permitiam que todos os presos trabalhassem,
quer por problemas relacionados a infra-estruturas insuficientes,
quer por supostas razões de segurança, principalmente devido à
situação de superlotação. Segundo estatísticas fornecidas
pela Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São
Paulo, em 31 de outubro de 2000, de uma população total de
57.048 presos, somente 61,33% estavam trabalhando.
117. No caso de
crimes hediondos, a sentença deve ser cumprida inteiramente em
regime fechado. Entretanto, foram introduzidas mudanças pela Lei
de Crimes Organizados e pela Lei da Tortura, estabelecendo que,
para crimes cometidos por quadrilhas e organizações criminosas e
no caso do crime de tortura, o regime fechado deve ser imposto
somente como regime inicial, permitindo-se progressão posterior.
Foi informado que atualmente há um debate sobre se essa disposição
deve ser estendida a outros crimes hediondos. Algumas decisões do
Supremo Tribunal teriam determinado a manutenção da imposição
do regime fechado ao longo de toda a sentença para outros crimes
hediondos, ao passo que outras decisões do mesmo tribunal teriam
admitido que as mudanças ocasionadas pela Lei da Tortura se
apliquem a todos os crimes hediondos.
E. Reclusão dos
presos condenados
1. Estabelecimentos
prisionais
118. A LEP enumera
as instituições penais nas quais as penas podem ser cumpridas.
Os presos cujas penas têm de ser cumpridas em regime fechado serão
mantidos em unidades prisionais ou penitenciárias. As penas em
regime fechado devem ser cumpridas em celas individuais de pelo
menos 6 metros quadrados. Entretanto, à exceção de uma unidade
prisional visitada no Estado de Minas Gerais (Nelson Hungria), o
Relator Especial constatou que, na prática, essa disposição era
completamente desconsiderada. Os presos condenados cujas penas têm
de ser cumpridas em "regime aberto" devem ser mantidos
em uma "casa do albergado". Foi informado que, como um
grande número de estados não estabeleceu as "casas do
albergado", os tribunais determinaram que, nesses
casos, deve ser decretada a soltura provisória condicional (o que
também pode ser obtido mediante habeas corpus). As penas a
serem cumpridas em "regime semi-aberto" devem ser
cumpridas em colônias industriais ou agrícolas. Essas diferentes
instituições penais podem ser acomodadas em um único complexo
prisional. Entretanto, em conformidade com o Artigo 5 (XLVIII) da
Constituição da República Federativa do Brasil, "a pena
será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a
natureza do delito, a idade e o sexo do apenado".
119. Durante sua
visita, o Relator Especial observou que as carceragens policiais
eram usadas tanto como lugares de prisão provisória de curto
prazo, quanto como lugares de prisão para presos sentenciados,
devido à situação de superlotação do sistema penitenciário.
Representantes da sociedade civil nos estados de São Paulo e
Minas Gerais enfatizaram que "a polícia tornou-se uma
autoridade prisional de facto, suplementando ou
praticamente substituindo o sistema prisional convencional".
Conforme afirmado acima, essa situação também foi lamentada
pelos agentes de polícia, que reconheceram não possuir o
treinamento nem o pessoal necessários para assumirem funções
tanto de polícia judicial quanto de agentes penitenciários.
Na prática, as
disposições relativas à separação dos presos de acordo com
seu status legal (presos que aguardam julgamento/ presos
condenados) ou a natureza do regime ao qual foram sentenciados
(regime aberto/ semi-aberto/ fechado) freqüentemente são
desconsideradas. De acordo com ONGs, isso pode se dar, em grande
medida, devido à divisão de atribuições entre as diferentes
secretarias estaduais. Na maioria dos Estados, a Secretaria de
Segurança Pública é responsável pelas carceragens policiais,
ao passo que a Secretaria de Justiça ou de Administração
Penitenciária (como no Estado de São Paulo), pelo sistema
penitenciário. Os presos inicialmente são levados às
carceragens policiais e geralmente só são transferidos para
estabelecimentos penitenciários mediante autorização das
autoridades penitenciárias. Acredita-se que estas sejam
relutantes em autorizar tais transferências em um sistema
penitenciário já superlotado e que, portanto, estaria exposto a
um risco de rebeliões mais alto. É por isso que se acredita que
as penitenciárias nunca são tão gravemente superlotados quanto
as carceragens policiais, ainda que que estas últimas operem em nível
de lotação cinco vezes mais alto do que sua capacidade. Ao mesmo
tempo, a superlotação das carceragens policiais e os atrasos na
transferência de presos para penitenciárias resulta na mistura
rotineira daqueles que aguardam julgamento com aqueles que já
foram condenados.
121. As mulheres
devem cumprir suas sentenças em estabelecimentos prisionais
distintos e as pessoas com idade superior a 60 anos precisam ser
acomodadas em uma instituição penal própria e adequada a sua
situação pessoal. As instituições penais destinadas a mulheres
deverão dispor de um berçário, onde as presas condenadas possam
cuidar de seus filhos. As presas devem ser supervisionadas por
agentes penitenciárias do sexo feminino, o que não se dava na
unidade prisional feminina visitada pelo Relator Especial em São
Paulo (Tatuapé). O Relator Especial, contudo, observa que não
foram encontradas mulheres presas misturadas com presos do sexo
masculino em nenhum dos estabelecimentos prisionais por ele
visitados.
2. Direitos
dos presos
122. Com relação
a visitas, o Artigo 41(X) da LEP dispõe sobre o direito dos
presos a visitas de seu "cônjuge, namorada, parentes e
amigos em dias pré-estabelecidos". De acordo com a informação
recebida, os visitantes às vezes não têm permissão de acesso a
seus familiares, e são rotineiramente molestados e humilhados,
inclusive com revistas de corpo despido, antes de entrarem em um
centro de detenção. Foi alegado que as revistas raramente são
efetuadas em conformidade com padrões de higiene apropriados e
que incluem acocoramento e, às vezes, revistas íntimas. Mulheres
idosas e menores de idade, segundo o relatado, seriam
semelhantemente submetidas a tais revistas. Em um exemplo
particularmente notável, acredita-se que as autoridades de Nelson
Hungria (Minas Gerais) teriam tentado efetivamente barrar o acesso
por parte da Pastoral Carcerária, ao decidirem que seus
integrantes deviam passar por uma revista de corpo despido. Além
disso, de acordo com presos sentenciados, mantidos em penitenciárias
ou em carceragens policiais, somente os pais e às vezes as cônjuges
e crianças até uma certa idade tinham permissão para visitá-los.
Essa política foi justificada pelas autoridades encarregadas de
tais estabelecimentos prisionais por razões de segurança e falta
de infra-estrutura adequada.
123. Com relação
a alimentação e vestuário, o Artigo 41(I) da LEP dispõe sobre
os direitos dos presos a alimentação e vestuário adequados.
Entretanto, na maioria, senão em todos os estabelecimentos
prisionais visitados pelo Relator Especial, os detentos
queixaram-se da qualidade da comida, alegando que muitas vezes era
podre. A comida, bem como o café servido na maioria dos
estabelecimentos prisionais, com efeito pareceram ao Relator
Especial ser de qualidade muito ruim. Os detentos queixaram-se do
fato de os visitantes serem proibidos de lhes fornecer alimentos,
exceto produtos tais como bolachas de água e sal. O Relator
Especial observa, também, que os presos, em sua maioria, eram
mantidos ou seminus ou sem roupas apropriadas e adequadas.
124. Com relação
a acesso a assistência médica, os presos têm o direito a
tratamento médico, farmacêutico e dentário. Nos casos em que a
penitenciária não dispuser de instalações adequadas para
prestar a assistência médica necessária, a assistência será
prestada em um outro local mediante autorização do diretor. A
LEP estabelece, além disso, que os presos têm o direito de
contratar os serviços de um médico conhecido do interno ou do
paciente ambulatorial, por meio de seus familiares ou dependentes,
a fim de lhe proporcionar orientação e acompanhar o tratamento.
125. A grande
maioria dos estabelecimentos de prisão provisória e penitenciárias
visitados pelo Relator Especial caracterizavam-se por uma falta de
recursos médicos, tanto no que se refere a quadro de pessoal
qualificado quanto a medicamentos. Foi informado que teria sido
negada assistência médica aos presos. Na Casa de Detenção de
Carandiru (São Paulo), o Relator Especial observou com preocupação
uma placa no quinto andar que afirmava que na enfermaria da
penitenciária "não há medicamentos", que o médico ia
uma vez por semana e que somente dez nomes de presos eram
entregues ao médico para fins de tratamento. Foi relatado que o
tratamento médico fora das unidades prisionais era providenciado
de má vontade e raramente. A alegada indisponibilidade de veículos
ou de efetivo da polícia militar para acompanhar o transporte até
o hospital, a falta de planejamento ou de consultas e, em alguns
casos, a indisposição dos médicos em tratar os presos, freqüentemente
levam à negação de um tratamento médico pronto e adequado. Com
relação à situação encontrada em muitas das delegacias de polícia
visitadas, que, na maioria das vezes, mantinham um número
significativo de presos condenados, o Relator Especial recebeu denúncias
de que os presos que necessitavam de tratamento médico urgente não
eram transferidos para hospitais ou somente eram transferidos
tardiamente para hospitais, apesar de que nenhuma dessas
delegacias de polícia dispunha de qualquer instalação médica.
Além disso, os presos alegaram ser ameaçados de espancamento
quanto pedem atendimento médico. Em decorrência disso, doenças
comuns que afetam um grande número de presos, tais como erupções
cutâneas, resfriados, tonsilite e gripe, raramente eram tratadas,
quando eram tratadas. Assim sendo, o Relator Especial encaminhou vários
presos que evidentemente necessitavam com urgência de tratamento
médico adequado aos consultórios dos encarregados.
3. Disciplina
interna
126. Com relação
às regras disciplinares internas, a LEP regulamenta a imposição
de sanções disciplinares, que podem variar de advertência
verbal e suspensão de visitas, até o isolamento dos presos em
sua própria cela ou em outro lugar adequado nas penitenciárias
que possuem celas coletivas. O isolamento deve ser imposto por um
conselho disciplinar, não unicamente pelo diretor do
estabelecimento, e deve ser comunicado ao juiz responsável pela
execução penal. O isolamento e a suspensão ou restrição de
direitos somente podem ser aplicados no caso de infrações
graves, tais como incitação ou participação em um movimento
com vistas à subversão da ordem ou da disciplina, tentativa de
fuga, posse de arma ou provocação de um acidente de trabalho, e
não devem ser superiores a 30 dias. Vale observar que o
isolamento preventivo pode ser determinado por um período máximo
de 10 dias, a bem da disciplina e com vistas à apuração dos
fatos, sendo esses dias incluídos na contagem do período de punição
disciplinar. Nenhuma medida disciplinar pode ser imposta sem uma
disposição legal clara e prévia e sem um processo em que tenha
sido assegurada a defesa do suspeito. Na aplicação de uma sanção
disciplinar, é preciso levar em consideração o autor da
transgressão, bem como a natureza, as circunstâncias e conseqüências
da transgressão. As medidas disciplinares não podem colocar em
risco a integridade física e moral do apenado. É proibido o uso
de celas escuras e de punição coletiva.
127. O Relator
Especial constatou que, em muitos casos, os presos haviam sido
transferidos para punição em celas de isolamento por infrações
de menor gravidade, tais como terem sido encontrados em posse de
um telefone celular ou por desrespeito aos agentes penitenciários,
ou porque eram ameaçados por outros presos. Em alguns casos, eles
haviam sido privados de seus pertences e de suas roupas. O limite
de 30 dias nem sempre era respeitado, uma vez que alguns presos
alegaram ter sido mantidos em celas de isolamento ou celas de punição
por mais de dois meses. Na maioria dos casos, senão em todos, os
presos encontrados em celas de punição declararam que haviam
sido colocados ali por decisão do diretor do penitenciária ou do
chefe de segurança. Eles não haviam sido ouvidos por nenhum
outro órgão, tal como o conselho disciplinar mencionado acima.
Portanto, eles não haviam podido dar sua interpretação dos
fatos ou assegurar sua defesa. Muitos deles não sabiam por quanto
tempo seriam mantidos em celas de isolamento ou punição. Essa
situação foi particularmente flagrante no caso do complexo
prisional de Aníbal Bruno (Estado de Pernambuco), onde o Relator
Especial, que havia recebido a relação dos presos sob punição
das autoridades prisionais, viu-se informando aos presos as razões
de sua punição, bem como sua duração. Muitos detentos
referiram-se a punição coletiva (ver acima e anexo). Em
particular, foi alegado que as visitas teriam sido suspensas
indiscriminadamente para todos os presos por ocorrências que
envolviam apenas alguns deles.
4. Monitoramento
externo
128. Com relação
ao monitoramento externo das penitenciárias, a LEP identifica
sete mecanismos responsáveis pela execução penal, seis dos
quais têm funções de monitoramento prisional, a saber, o
Conselho Nacional de Política Penal e Penitenciária, juízes de
execução penal, promotores públicos, o Conselho Penitenciário
(isto é, conselhos prisionais locais), o Departamento Penitenciário
e o Conselho Comunitário. Em particular, é preciso observar que
os juízes de execução penal, bem como os promotores públicos,
devem inspecionar as penitenciárias com periodicidade mensal, a
fim de verificar que as disposições da LEP estão sendo
respeitadas. O Conselho Penitenciário, que deve ser integrado por
profissionais e acadêmicos de direito penal nomeados pelos
Governadores de Estado, têm uma obrigação semelhante e devem
apresentar ao Conselho Nacional de Política Penal e Penitenciária
um relatório sobre suas constatações durante o primeiro
trimestre de cada ano. Por fim, em conformidade com a LEP, cada
comarca ou vara deve estabelecer um Conselho Comunitário composto
de pessoas de diferentes profissões e cuja atribuição consiste
em "visitar, pelo menos uma vez por mês, estabelecimentos
penais da área, entrevistar presos, apresentar relatórios
mensais ao juiz de execução penal e ao Conselho Penitenciário,
trabalhar pela aquisição de recursos materiais e humanos a fim
de proporcionar maior assistência aos presos e a pessoas detidas,
em cooperação com o diretor do estabelecimento." Vale
observar que no estado de São Paulo, também existe uma
Corregedoria Administrativa do Sistema Penitenciário, que
pertence à Secretaria Estadual de Administração Penitenciária
e é responsável pela inspeção dos estabelecimentos prisionais.
Por fim, o Relator Especial observa o papel crucial desempenhado
no monitoramento do respeito pelos direitos humanos pela Pastoral
Carcerária, que tem um status semi-oficial e tem acesso a todos
os lugares de detenção em todo o país. No entanto, foi
lamentado o fato de que, em alguns lugares, a Pastoral Carcerária
não dispunha de pessoal suficiente para realizar suas funções
adequadamente, apesar da dedicação de seus membros.
129. Não obstante
todas essas disposições, foi relatado que, em muitos casos, as
inspeções a estabelecimentos prisionais haviam sido impedidas
pelas autoridades prisionais. De acordo com um promotor com que o
Relator Especial se reuniu em Brasília, os promotores públicos não
têm permissão para visitar delegacias de polícia ou penitenciárias.
Membros dos Conselhos Comunitários teriam sido impedidos de
entrar em penitenciárias e teriam sido molestados por autoridades
prisionais indispostas a cooperar. No Estado de São Paulo, de
acordo com o Decreto No. 17, de 29 de junho de 2000, as
organizações não-governamentais que trabalham com direitos da
infância precisam solicitar autorização do Presidente da FEBEM
para entrar em suas unidades com antecedência de pelo menos cinco
dias.
130. Por fim, o
Relator Especial registra a seguinte recomendação, feita pela
Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, que
reivindica que o Governo Federal condicione a liberação de
recursos do Fundo Penitenciário e do Fundo Nacional de Segurança
à observação de determinadas condições, inclusive o fim das
revistas corporais dos visitantes, a garantia do direito a visitas
conjugais, o respeito a certos padrões mínimos de detenção, a
elaboração de um cronograma para a transferência de todos os
presos sentenciados que se encontram detidos em estabelecimentos
policiais, bem como a apresentação de um cronograma para
garantir assistência legal a todos os presos.
F. Menores
infratores
Nos casos de
"atos infracionais" cometidos por adolescentes ou crianças,
o Estatuto da Criança e do Adolescentes (ECA - Lei N.º 8.069, de
13 julho de 1990) dispõe sobre medidas que variam desde admoestação,
obrigação de reparar o dano causado, prestação de serviços
comunitários, liberdade assistida, semiliberdade, até a internação
em uma instituição educacional, ou medidas de assistência à
família, ou outras definidas no Artigo 101 do ECA. O Artigo 122
do ECA estabelece que a internação só se aplica nos casos em
que o ato infracional: tiver sido cometido "mediante grave
ameaça ou violência a pessoa"; ou envolver "reiteração
no cometimento de outras infrações graves"; envolver
"descumprimento reiterado e injustificável da medida
anteriormente imposta", em cujo caso a internação não
poderá ser imposta por um período superior a três meses. O período
máximo de internação não deve exceder a três anos, quando o
adolescente deve ser liberado, em regime de semiliberdade ou de
liberdade assistida. A manutenção da medida de internação deve
ser reavaliada a cada seis meses. Aos vinte e um anos de idade, a
liberação é compulsória.
132. Nos termos do
Artigo 106, "nenhum adolescente será privado de sua
liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem
escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente."
A autoridade judiciária competente, os pais e qualquer outra
pessoa indicada pelo menor suspeito deverão ser imediatamente
comunicados da prisão e do lugar onde o menor se encontra
recolhido. Em conformidade com o Artigo 108 do ECA, as crianças e
os adolescentes, antes da sentença, podem ser internos
provisoriamente por um período máximo de quarenta e cinco dias.
Conforme o Artigo 141 (1) do ECA, os menores suspeitos devem ter
acesso à Defensoria Pública, ao Ministério Público e ao Poder
Judiciário, e deve ser prestada assistência legal gratuita a
todos aqueles que dela necessitarem por meio do defensor público
ou do advogado designado.
133. De acordo com
promotores públicos para crianças e adolescência de São Paulo,
um menor preso é levado a uma delegacia de polícia para que
sejam preenchidos os registros preliminares. Os menores não devem
ser mantidos em uma delegacia de polícia por mais de 24 horas,
período durante o qual devem ter acesso a um advogado. Porém,
uma vez que apenas poucos dispõem dos meios para pagar um
advogado particular, os menores suspeitos, em geral, são
assistidos por promotores estaduais, que, após ouvido o caso,
podem solicitar investigações suplementares ou podem decidir
arquivar as acusações por falta de provas. Somente no caso de
transgressões graves é que um promotor pode encaminhar o
processo a um juiz e solicitar custódia temporária. No estado de
São Paulo, os menores detidos provisoriamente são levados à
Unidade de Atendimento Inicial. De acordo com a informação
recebida, a primeira audiência geralmente ocorre dentro de uma
semana. Somente os menores sentenciados podem ser transferidos
para uma unidade da FEBEM. Promotores públicos de São Paulo
acreditam que a família só é informada da prisão em dois de
cada três casos.
134. De acordo com
o Artigo 123 do ECA, os menores infratores devem ser acomodados em
"entidade exclusiva" para adolescentes, obedecida
"rigorosa separação" por critérios de idade, compleição
física, temperamento e gravidade da infração. Além disso,
entre os direitos garantidos pelo ECA, deve-se observar que eles
devem ser internados em uma localidade próxima ao domicílio de
seus pais, receber visitas, ao menos semanalmente, habitar em
condições de higiene, realizar atividades de lazer e manter a
posse de seus objetos pessoais. A detenção em regime de
incomunicabilidade é absolutamente proibida. O Artigo 94 do ECA
descreve as obrigações de entidades que realizam "programas
de internação", tais como a de oferecer atendimento
personalizado em pequenas pequenas, trabalhar em prol do
restabelecimento e da preservação dos vínculos familiares,
oferecer instalações físicas em condições adequadas de
habitabilidade, higiene, salubridade e segurança, bem como os
objetos necessários à higiene pessoal, assegurar vestuário e
alimentação suficientes, oferecer atendimento médico, psicológico
e dentário, propiciar escolarização e profissionalização,
atividades culturais, esportivas e de lazer, bem como assistência
religiosa, quando desejado. O Artigo 201 (VIII) do ECA estabelece
que compete ao Ministério Público "zelar pelo efetivo
direito aos direitos e garantias legais assegurados a crianças e
adolescentes, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis".
135. Durante sua
visita a estabelecimentos de internação de menores infratores em
São Paulo e no Rio de Janeiro (ver acima), o Relator Especial
observou que os menores não estavam separados por idade, compleição
física ou gravidade do crime pelo qual estavam provisoriamente
recolhidos ou haviam sido sentenciados. Ao contrário, todos eram
mantidos juntos, de modo indiscriminado, inclusive internos com
distúrbios mentais. As ONGs, bem como promotores públicos para
crianças e adolescentes de São Paulo, também enfatizaram a
falta de assistência psicológica adequada e o fato de a
estrutura arquitetônica dos estabelecimentos nos quais os menores
se encontravam recolhidos não permitir atividades recreacionais
ou educacionais.
G. Procedimentos
de Queixa
136. De acordo com
a informação recebida, queixas relativas a tortura e outras
formas de maus tratos às vezes são feitas pelos réus,
particularmente durante as primeiras audiências. Entretanto, o
Relator Especial observa que muitos dos detentos que ele
entrevistou indicaram que, devido à constante presença de
funcionários encarregados da execução da lei nessas ocasiões,
eles não ousavam se queixar do tratamento a que eram submetidos
por medo de represálias, uma vez que eles geralmente eram levados
de volta à mesma carceragem policial onde a tortura teria
acontecido. Além disso, foi alegado que, na maioria dos casos,
suas queixas permaneceriam sem resposta por parte dos juízes. O
Relator Especial também observa que a crença de que queixas de
tortura dirigidas ao sistema judiciário seriam em vão era
generalizada entre a população de detentos. Os defensores públicos
devem relatar tais alegações a uma delegacia de polícia e
solicitar que se realize um exame forense. Uma sindicância
administrativa, então, deve ser aberta pela corregedoria (ver
abaixo), que passaria a ser responsável por informar o Ministério
Público. ONGs e advogados de direitos humanos alegam que
geralmente leva muito tempo até que a informação chegue ao
Ministério Público e seja aberto um inquérito penal. Nesse
particular, foi sugerido que uma maior interação entre
defensores públicos e promotores públicos certamente ajudaria a
tornar o processo mais célere. Na esfera estadual, há vários órgãos
oficiais encarregados de supervisionar o comportamento policial.
1. O Ministério
Público
137. O Ministério
Público é responsável por supervisionar a instauração de
processos de todos os réus. O Artigo 129 da Constituição
estabelece que, inter alia, cabe ao Ministério Público
instituir, com exclusividade, ações penais públicas "II.
zelar pelo efetivo respeito dos poderes Públicos e dos serviços
de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição,
promovendo as medidas necessárias a sua garantia; (...) VII.
exercer o controle externo da atividade policial [e] VIII.
requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito
policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações
processuais". Deve-se observar que essas disposições têm
sido interpretadas no sentido de que o Ministério Público tem o
poder de proceder a investigações penais independentes, mesmo em
casos nos quais não tenha sido instaurado um inquérito policial
ou nos quais um inquérito policial ainda não tenha sido concluído
ou tenha sido arquivado, e que ele pode indiciar funcionários
encarregados da execução da lei envolvidos em atividades
criminais, tais como tortura. O inquérito policial, portanto, não
é um procedimento obrigatório em um caso em que um promotor
possua indícios prima facie suficientes. Além disso,
nenhuma disposição legal obsta a competência do Ministério Público
de coletar indícios por outros meios que não um inquérito
policial, tais como, por exemplo, um inquérito civil ou
administrativo. De acordo com promotores com quem o Relator
Especial se reuniu, essa interpretação está sujeita a uma das
mais sérias batalhas institucionais atuais, uma vez que a polícia
tem forte resistência a essa abordagem. Um projeto de lei sobre a
polícia civil que visa dar mais poder aos promotores públicos em
inquéritos policiais atualmente está em tramitação no
Congresso. Nesse particular, o Presidente do STJ informou ao
Relator Especial haver denunciado em público o fato de que políticos
influenciados pela força policial estavam tentando comprometer os
poderes dos promotores públicos de supervisionar o comportamento
policial.
138. As denúncias
de tortura praticada por funcionários encarregados da execução
da lei seriam, segundo o relatado, enviadas diretamente à
corregedoria, à qual cabe abrir o inquérito correspondente. A
essa altura, o Ministério Público geralmente é o único órgão
em condições de iniciar qualquer outra investigação quando do
recebimento do processo da parte da polícia. Alega-se que tais
inquéritos realizados pela polícia são extremamente demorados,
uma vez que os policiais são muito relutantes em investigar o
comportamento de seus colegas. Também há informação de que é
difícil para os promotores públicos investigar crimes cometidos
em delegacias de polícia. Em 1995, por exemplo, vários
promotores que pretendiam entrar em uma delegacia de polícia em
Gama (Brasília) tiveram sua entrada barrada por policiais
armados. De acordo com o Procurador Geral da República, o Ministério
Público poderia instaurar um inquérito penal quando um inquérito
administrativo paralelo é realizado pela corregedoria.
Entretanto, ele reconheceu que seria difícil aos promotores
apresentar provas adicionais, devido à escassez de meios disponíveis.
Ele também lamentou o fato de que, devido à longa duração do
inquérito administrativo, geralmente leva muito tempo até que um
caso chegue à atenção do Ministério Público. Essa longa etapa
inicial do processo também favoreceria a impunidade, uma vez que,
em alguns casos, o crime já teria sido invalidado por prescrição
quando o processo chegasse ao promotor público.
139. Em Belo
Horizonte, Estado de Minas Gerais, uma divisão especial de
direitos humanos foi criada no âmbito do Ministério Público
para processar casos de violação de direitos humanos. Quando da
visita do Relator Especial, essa divisão estava dotada de apenas
um promotor de direitos humanos e havia recebido mais de 600 denúncias
de maus tratos, lesão corporal e tortura, tendo processado cerca
de 2.000 policiais por violações de direitos humanos. Os
promotores também visitaram vários estabelecimentos de detenção,
inclusive carceragens policiais, sem aviso prévio. As autoridades
foram culpadas pela sociedade civil por não fornecerem recursos
suficientes para que os promotores públicos processassem casos de
tortura.
140. Os
interlocutores da sociedade civil muitas vezes expressaram temor
de que, pelo fato de ser nomeado pelos Governadores, o Chefe do
Ministério Público pode nem sempre ser genuinamente independente
do poder político. Além disso, em vários casos, foi chamada a
atenção do Relator Especial para o fato de que o combate ao
crime era, muitas vezes, a prioridade do Ministério Público.
Apenas poucos recursos, tanto pessoais quanto financeiros, eram
alocados às divisões de promotores públicos que se ocupam de
direitos humanos.
141. Por fim, a
Procuradora Federal para Direitos dos Cidadãos informou ao
Relator Especial que, muito embora sua Procuradoria tivesse o
direito de investigar quaisquer denúncias de violação de
direitos humanos por parte de agentes federais, estaduais ou
municipais, inclusive mediante o recebimento de informações de
quaisquer fontes, na prática, era muito difícil coletar informações
e testemunhos sobre incidentes de tortura, devido, inter alia,
à morosidade da justiça, ao medo de represálias, principalmente
devido à falta de proteção imediata, duradoura e efetiva às vítimas,
testemunhas e seus familiares, à insuficiência de pessoal
qualificado, à existência de um sistema de justiça à parte
para os militares e à dificuldade de obtenção de provas de
peritos forenses, em particular por causa de sua vinculação de
subordinação às autoridades de segurança pública.
2. Corregedorias
142. Os
departamentos estaduais de polícia estabeleceram uma
corregedoria, responsável pelas investigações administrativas
iniciais e por casos de desvio de conduta policial. Normalmente, há
duas corregedorias, uma para a polícia civil e uma para a polícia
militar. Entretanto, no Estado de Pernambuco, havia uma
corregedoria unificada para ambos serviços policiais (unificados
sob a Secretaria Estadual de Defesa Social), chefiada por um
ex-procurador, com a finalidade, de acordo com o Secretário
Estadual de Defesa Social, de assegurar sua independência da polícia.
Segundo a informação recebida dos corregedores, embora eles
tenham o poder de propor a demissão de agentes policiais, somente
o Governador pode decidir demiti-los. Entre outras formas de sanções
disciplinares incluem-se, em particular, repreensões ou a proibição
de os policiais trabalharem por um determinado número de dias. De
acordo com a informação recebida pelo Relator Especial, uma das
sanções administrativas comuns consiste em transferir o policial
considerado culpado para uma outra delegacia, especialmente para
uma delegacia localizada em uma área mais distante. Acredita-se
que essa prática acentua a brutalidade policial nas áreas rurais
e reforça a impunidade em regiões já distantes de um estreito
monitoramento pelas ouvidorias e pela sociedade civil urbana mais
atuante. Em janeiro de 2000, a Secretaria Estadual de Segurança Pública
de São Paulo teria apresentado ao Congresso uma proposta,
respaldada pelo Fórum Nacional de Ouvidores Policiais, com vistas
a uma reforma constitucional que criaria uma corregedoria
unificada e autônoma, no intuito de assegurar um controle externo
da polícia.
3. Ouvidorias
143. As ouvidorias
policiais atualmente estão estabelecidas em alguns departamentos
policiais estaduais como órgão de supervisão adicional
destinado ao controle do comportamento policial. A primeira
ouvidoria foi criada no estado de São Paulo, em 1995. Desde então,
foram criadas ouvidorias nos estados do Pará, Minas Gerais, Rio
de Janeiro e Rio Grande do Sul, sob a jurisdição da Secretaria
Estadual de Segurança Pública.
144. O ouvidor do
estado de São Paulo, que atua como ouvidor tanto para a polícia
militar quanto para a civil, informou que, durante os quatro anos
anteriores, sua ouvidoria havia recebido 764 denúncias de
tortura, envolvendo cerca de 3.000 pessoas e principalmente
relativas a conduta policial imprópria em delegacias de polícia
e em centros de detenção provisória. Ele lamentou que apenas
cinco investigações penais haviam sido instauradas nos termos da
Lei da Tortura. Todas as denúncias de má conduta policial
recebidas pela ouvidoria precisam, inicialmente, ser transmitidas
à corregedoria, que decide se existem provas suficientes para se
instaurar um inquérito administrativo. De acordo com o ouvidor,
os casos que envolvem membros da polícia militar, principalmente
os de postos elevados, são tratados com relutância pela
corregedoria da polícia militar, uma vez que o próprio
corregedor é subordinado à cadeia de comando militar. Ele também
informou que os casos encaminhados à corregedoria da polícia
civil muitas vezes não eram objeto de qualquer investigação.
145. Por fim, o
ouvidor informou que os maus tratos praticados pela polícia no
interior gozam de praticamente absoluta impunidade. Para corrigir
essa situação, ele havia proposto a descentralização das
atividades de sua ouvidoria. Ele informou que dois decretos haviam
sido aprovados nesse sentido, porém que ainda não haviam sido
publicados quando da visita do Relator Especial e, portanto, não
podiam ser implementados. Deve-se observar que, quando existem
provas suficientes, as ouvidorias podem encaminhar um caso
diretamente ao Ministério Público, mesmo se o caso tiver sido
arquivado anteriormente pela polícia ou pela corregedoria. O
ouvidor enfatizou que, se os promotores públicos pudessem
acompanhar os casos desde o início do inquérito, em vez de
dependerem de provas coletadas pela polícia, isso contribuiria,
em grande medida, para o combate à impunidade. O ouvidor, bem
como ONGs, alegaram que, muito embora os promotores públicos
tenham o poder de realizar suas próprias investigações, eles
raramente exercem esse poder e simplesmente dependem
predominantemente de investigações policiais que nunca
questionavam.
146. Em Minas
Gerais, foi informado que a criação, em 1998, da ouvidoria
prisional e da ouvidoria da polícia civil levou a uma redução
do número de queixas de tortura. Esse órgão consiste apenas do
ouvidor de polícia, um assessor, uma secretária executiva e um
estagiário. Uma vez que não há um assessor jurídico na equipe,
acredita-se ser difícil para a ouvidoria adotar uma abordagem jurídica
aos casos recebidos. Foi informado que o promotor de direitos
humanos está cooperando com a ouvidoria. Também foi informado
que os casos de queixas contra a polícia militar são enviados
diretamente ao comando do pessoal militar.
4. O
Instituto Médico Legal (IML)
147. As vítimas de
tortura devem solicitar um formulário médico de um delegado a
fim de serem examinadas em um Instituto Médico Legal. Esses
institutos ficam sob a jurisdição da mesma Secretaria que a polícia,
isto é, a Secretaria Estadual de Segurança Pública. De acordo
com o Promotor Público do Estado de São Paulo, é obrigatório o
exame forense das pessoas presas quando de prisão por mandado
judicial, bem como quando houver vencido o prazo de prisão provisória.
De acordo com ONGs e promotores, os delegados ou os policiais que
acompanham uma vítima de tortura a um IML muitas vezes ditam ao médico
legista o conteúdo de seu laudo. Além disso, muitos dos detentos
com quem o Relator Especial se entrevistou informaram que, por
medo de represálias, quando examinados em um IML eles não se
queixavam dos maus tratos a que haviam sido submetidos. Eles
muitas vezes se queixaram de terem sido levados ao IML por seus próprios
torturadores e de terem sido intimidados e ameaçados durante o
traslado. Muitos deles teriam inventado histórias para responder
às perguntas dos médicos, de modo a não implicar quaisquer
funcionários encarregados da execução da lei. Isso também
aconteceria quando o incidente de tortura tivesse ocorrido em uma
penitenciária, uma vez que, nesse caso, as vítimas são
acompanhadas por policiais militares, que, em muitos estados, também
participam da vigilância das penitenciárias. A Secretaria
Estadual de Defesa Social de Pernambuco negou as alegações
muitas vezes ouvidas pelo Relator Especial de que os funcionários
encarregados da execução da lei geralmente estavam presentes na
sala do IML em que ocorria o exame. Também foi alegado que os
peritos forenses do IML apenas registram lesões externas e visíveis.
Além disso, foi dito que laudos médicos elaborados por
profissionais médicos independentes não teriam valor tanto
probatório nos tribunais quanto um testemunho do IML.
148. Embora não
seja possível avaliar até que ponto as alegações acima revelam
um problema generalizado, é evidente que o problema é
suficientemente real com relação a um número significativo de
funcionários do IML. Além disso, enquanto esses funcionários
permanecerem sob a mesma autoridade governamental que a polícia,
só poderão persistir dúvidas quanto à confiabilidade de suas
constatações.
H. Criminalização
da Tortura
149. Em 28 de
setembro de 1989, o Brasil ratificou a Convenção Contra a
Tortura e Outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanos ou
Degradantes, de 1984, e, em 26 de maio de 2000, o País apresentou
seu relatório de estado inicial, nos termos do Artigo 19 (ver
Convenção Contra a Tortura/C/9/Ad. 16), cuja data de entrega
havia sido em outubro de 1990. De acordo com esse relatório, o
Artigo 5 da Constituição da República Federativa do Brasil,
datada de 5 de outubro de 1988, relaciona os direitos garantidos
em tratados internacionais dos quais o Brasil é parte e que,
portanto, receberam o status de direitos constitucionais
diretamente aplicáveis.
150. Com relação
à proibição da tortura, esse artigo estabelece que "todas
as pessoas são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos
termos seguintes: ... III - ninguém será submetido a tortura nem
a tratamento desumano ou degradante." O Artigo 5 (XLIII) da
Constituição estipula que, a exemplo de outros crimes hediondos,
a prática da tortura é inafiançável e insuscetível de graça
ou anistia e que os superiores, cúmplices e pessoas capazes de
impedir tal crime, porém que não o fizerem, ainda que por omissão,
devem ser responsabilizadas pelo crime. O Artigo 5 (XLVI alínea
e) proíbe penas "cruéis" e o Artigo 5 (XLIX)
estabelece que "é assegurado aos presos o respeito à
integridade física e moral." De igual modo, o Artigo 40 da
LEP estabelece que "todas as autoridades são obrigadas a
respeitar a integridade física e mental dos apenados e de presos
provisórios" e o Artigo 45 proíbe pena que coloque em risco
"a integridade física e moral do condenado" (parágrafo
1), nem como punição coletiva (parágrafo 3) e o uso de celas
escuras (parágrafo 2). Por fim, o Artigo 5 do ECA estipula que
"nenhuma criança ou adolescente será submetido a qualquer
forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade ou pressão, e qualquer violação de seus direitos
fundamentais, seja por ato ou por omissão, será punida em
conformidade com o disposto na lei."
151. O crime de
tortura foi definido há nove anos no Artigo 1 da Lei N.º 9.455,
de 7 de abril de 1997 (doravante a Lei da Tortura) conforme
especificado a seguir:
"Artigo 1. Um
crime de tortura define-se como:
I – constranger
uma pessoa mediante o uso de violência ou grave ameaça que
resulte em sofrimento físico ou mental; com o propósito de obter
informação, uma declaração ou confissão da vítima ou de
terceiro; provocar ação ou omissão criminosa; devido a
discriminação racial ou religiosa;
II – submeter uma
pessoa sob a responsabilidade, poder ou autoridade de outrem a
intenso sofrimento físico ou mental, mediante uso de violência
ou ameaça grave, como modo de forçar uma punição pessoal ou
como medida preventiva."
Embora a tortura
seja definida em termos semelhantes aos constantes do Artigo 1 da
Convenção de 1984, a definição constante da lei brasileira não
reflete inteiramente a definição de tortura internacionalmente
acordada. A definição brasileira restringe os atos de tortura a
"violência ou grave ameaça", ao passo que a definição
da Convenção refere-se a "qualquer ato". Assim sendo,
a definição brasileira não abrange atos que não são violentos
per se, mas que, no entanto, podem impor "dor ou
sofrimento intenso, seja físico ou mental". Também importa
observar que, de acordo com a definição brasileira, o crime de
tortura não se limita a atos cometidos por funcionários públicos.
Entretanto, é estipulado que a pena é mais severa "se o
crime for perpetrado: a) por um agente público (...)."
152. Embora a lei
estabeleça que uma pessoa deve ser sentenciada a um período de
dois a oito anos de prisão se condenada de tortura, a sentença
deve ser aumentada em até um terço no caso de agentes públicos.
A mesma penalidade, isto é, de dois a oito anos de reclusão,
aplica-se àqueles "que submetem uma pessoa presa ou sujeita
a medidas de segurança a sofrimento físico ou mental, mediante a
prática de uma ação não contemplada na lei ou não resultante
de uma medida legal" (parágrafo 1). Nos termos do Artigo
1(2), a cumplicidade por omissão de uma pessoa que tenha "a
responsabilidade de evitar ou investigar" tal conduta deve
ser condenada a uma pena de um a quatro anos de prisão. O parágrafo
3 estipula que "se o crime resultar em lesões físicas
graves ou extremamente graves, a penalidade consistirá de reclusão
de quatro a dez anos; se resultar em morte, (...) de oito a
dezesseis anos". Por fim, o Artigo 2 torna a lei aplicável
também ao crime de tortura não cometido em território
brasileiro, contanto que a vítima seja cidadão brasileiro ou o
agressor se encontre em uma área sob jurisdição brasileira
(jurisdição universal).
153. Antes da
promulgação da Lei da Tortura, os casos de tortura haviam sido
classificados exclusivamente como abuso de autoridade, ou, inter
alia, como lesões corporais, nos termos do Artigo 129 do Código
Penal; homicídio (nos casos em que resultasse em morte), nos
termos do Artigo 121 do Código Penal; ameaça, nos termos do
Artigo 147 do Código Penal, ou constrangimento ilegal, nos termos
do Artigo 146 do Código Penal. De acordo com a informação
recebida, particularmente de promotores públicos, as sentenças
decretadas antes de a Lei da Tortura entrar em vigor variavam de
dez dias a três meses. O número de casos nos quais os agentes públicos
eram absolvidos ou demitidos sempre era consideravelmente mais
alto do que os casos de condenação, e, dos casos de condenação,
cerca de cinqüenta por cento eram por abuso de autoridade ou lesão
corporal. Quando os casos resultavam em uma condenação, os
funcionários da execução da lei recorriam e raramente eram
efetivamente punidos devido à expiração dos períodos de limitação
de responsabilidade legal. De acordo com advogados e ONGs de
direitos humanos, antes da Lei da Tortura, a prescrição também
comprometia os esforços pela responsabilização penal de
incidentes de tortura. A prescritibilidade do crime passa a contar
a partir da comissão do crime até a data de condenação e
sentenciamento. Se uma pessoa é condenada após expirado o prazo
de prescrição, o juiz não pode impor uma sentença de prisão.
Também é informado que essa possibilidade estimulava juízes
corruptos a deliberadamente retardarem certos casos, de modo que
pudessem ser arquivados. A fim de evitar o desperdício de
recursos judiciais, os promotores muitas vezes arquivavam casos de
lesão corporal, certos de que, mesmo se tivessem êxito em
processar a parte responsável, a prescrição provavelmente
interviria antes da condenação, eliminando, assim, a
possibilidade de um período de reclusão.
154. Segundo vários
funcionários, inclusive integrantes da Comissão de Direitos
Humanos da Câmara dos Deputados, promotores públicos e o
Corregedor de Polícia do Estado de Minas Gerais e ONGs, os casos
de tortura ainda são muitas vezes classificados erroneamente por
juízes como "lesão corporal" ou "abuso de
autoridade". "Abuso de autoridade" e "lesão
corporal" também seriam crimes mais comumente usados por juízes
devido à sua definição mais precisa do que a de tortura. De
acordo com promotores públicos que haviam trabalhado com casos de
tortura, após ouvir depoimentos tanto da suposta vítima quanto
dos oficiais encarregados da execução da lei, os juízes muitas
vezes agem in dubio pro reo e aceitam as afirmações deste
último no sentido de que eles "não haviam espancado um
detento, mas apenas dado um tapa nele". Os réus, então,
confessariam culpa por uma acusação menos grave. De acordo com
ONGs, muitos juízes consideram excessiva a pena aplicável pelo
crime de tortura. Em decorrência disso, os promotores de direitos
humanos de Minas Gerais relataram que, por exemplo, haviam sido
registrados apenas dois casos de instauração de processo nos
termos da Lei da Tortura naquele estado. Importa enfatizar que
nenhuma pessoa jamais foi condenada por tortura nos termos da Lei
da Tortura no Brasil. O fato de essa lei ser praticamente ignorada
foi objeto de uma importante conferência realizada em setembro de
2000 no Supremo Tribunal de Justiça em Brasília, com o apoio da
Secretaria de Estado de Direitos Humanos e do Fórum Nacional de
Ouvidores de Polícia. Estes teriam recomendado, inter alia,
que o Governo Federal condicione a liberação de recursos aos
departamentos de polícia nacionais a determinadas condições,
tais como a criação de mecanismos destinados a assegurar que
agentes policiais sujeitos a processos administrativos sejam
suspensos de suas atribuições e a criação de corregedorias autônomas
e independentes.
O sistema judicial
como um todo tem sido culpado por sua ineficiência, em particular
por sua morosidade, falta de independência, corrupção e por
problemas relacionados à falta de recursos e de pessoal
qualificado, além da prática generalizada de impunidade para os
poderosos. Há relatos de que juízes e advogados têm estado
sujeitos a ameaças e intimidações. Apesar de seu poder previsto
em lei, os juízes muitas vezes estariam sob pressão para não
agirem ex-officio com relação, por exemplo, às condições
de detenção. Um juiz penal de Brasília que havia começado a
fechar delegacias de polícia teria sido substituído. Em março
de 1999, foi nomeada uma Comissão Parlamentar de Inquérito para
examinar as deficiências do Judiciário.
156. Por fim, o
Relator Especial observa que, com relação a crimes cometidos por
policiais militares, o Código de Processo Penal Militar
(Decreto-Lei No. 1002/69, de 21 outubro de 1969) estabelece que
eles devem ser julgados pelo sistema de justiça militar. Pela Lei
9299/96, foi transferida para tribunais da Justiça Comum a
jurisdição sobre casos de homicídio doloso contra um civil.
Entretanto, o inquérito policial inicial continua nas mãos de
investigadores policiais, bem como a classificação pela qual um
crime é considerado "homicídio doloso" ou "homicídio
culposo". Os crimes de lesão corporal, tortura e homicídio
culposo, quando cometidos por policiais militares, continuam sendo
da jurisdição exclusiva dos tribunais militares, compostos de
quatro oficiais militares e um juiz civil. O crime de abuso de
autoridade não existe no Código Penal Militar e, portanto, acusações
dessa prática contra policiais militares podem ser formalizadas
em tribunais da Justiça Comum. Os processos penais em tribunais
militares, segundo relatos, levam muitos anos, uma vez que o
sistema de justiça militar estaria sobrecarregado e ineficiente.
Além disso, as ONGs observam um falta de disposição, por parte
de policiais militares, em investigar seus colegas policiais. De
acordo com a informação recebida, numa tentativa de se alcançar
um solução amigável perante a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos nos casos de Roselândio Borges Serrano e Edson
Damião Calixto, o Governo Federal encaminhou um projeto de lei ao
Congresso para ampliar a transferência dos crimes cometidos por
policiais militares para que sejam julgados por tribunais civis,
de modo a incluir homicídio culposo, lesão corporal e outros
crimes não incluídos no Código Penal, mas sobre que dispõe
legislação específica, tais como tortura.
Conclusões
157. O Brasil é um
vasto e complexo país sul-americano, que abrange 8.531.500 quilômetros
quadrados, com uma população de 160 milhões de habitantes. A
maioria dos assentamentos populacionais situam-se na parte leste
do país, adjacentes ou próximos ao Oceano Atlântico. O interior
é mais esparsamente povoado. A população é uma mistura de
imigrantes portugueses e de outros países europeus, negros
(predominantemente descendentes da população escrava do período
colonial), mulatos e indígenas.
158. O Brasil é a
décima maior economia do mundo, sendo que 17,4% de sua população
vive abaixo da linha da pobreza. Trata-se de um país federativo,
no qual fortes poderes são conferidos aos estados individuais.
Embora a lei penal seja de âmbito federal, a administração da
justiça no que concerne a crimes cometidos no nível estadual
fica inteiramente no âmbito da autoridade dos estados, que são
responsáveis pela organização e pela alocação de recursos do
Poder Judiciário, do Ministério Público, da polícia e assim
por diante. Além disso, os fortes centros de poder político-partidário
no nível estadual podem limitar seriamente a influência do
Governo Federal, principalmente em termos da composição do
Congresso, que também é vulnerável à pressão por parte do
aparelho de execução da lei, do qual ex-membros são
proeminentes Senadores e Deputados. A influência de um período
de governo militar, de 1964 a 1985, caracterizado por tortura,
desaparecimentos forçosos e execuções extralegais, ainda paira
sobre a atual administração democrática. Existe liberdade de
associação política e de expressão, inclusive uma imprensa
vigorosa e uma sociedade civil cada vez mais atuante. Porém,
apesar da existência da Lei 9.140, de 1995, que concedeu indenizações
a título de reparação a famílias de algumas vítimas do regime
militar, não houve uma plena responsabilização oficial pelos
crimes cometidos por aquele regime.
159. Conforme
constatado pelo Relator Especial em vários países, existe uma
inquietação pública generalizada acerca do nível de
criminalidade comum, o que gera um senso de insegurança pública
amplamente difundido que, por sua vez, resulta em demandas por uma
reação oficial draconiana, às vezes sem restrição legal. Tem
havido uma prática, por parte de alguns políticos e partidos políticos,
de explorar esse medo para fins eleitorais.
160. Entretanto, o
Relator Especial tem a impressão de que as pessoas que atualmente
ocupam o poder na esfera federal, bem como na esfera dos estados
por ele visitados, estavam dispostos a adotar um discurso que
afirmasse princípios do Estado de Direito e dos Direitos Humanos.
Alguns, muitas vezes exibindo uma corajosa liderança política,
claramente se mostraram comprometidos com o aperfeiçoamento dos
aparelhos corruptos e violentos de aplicação da lei que haviam
herdado de governos anteriores (ver parágrafo 61). Outros, no
entanto, pareceram menos dispostos a traduzir a retórica em ação
(ver parágrafo 52).
161. Há muitos
aspectos positivos da legislação brasileira. A Lei sobre Tortura
de 1997 caracterizou a tortura como um crime grave, embora o tenha
feito em termos que limitam a noção de tortura mental, em
comparação à definição constante do Artigo 1 da Convenção
das Nações Unidas Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Punições
Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984. Após 24 horas de
detenção em uma delegacia de polícia, isto é, uma vez expedido
um mandado judicial de prisão temporária ou provisória, a
pessoa deve ser transferida para um estabelecimento de prisão
provisória (pré-julgamento) ou de custódia preventiva. A assistência
jurídica gratuita deve estar disponível àqueles que não dispõem
de assistência jurídica própria. Um testemunho obtido mediante
tortura deve ser inadmissível contra as vítimas. Um serviço médico
forense deverá poder detectar muitos casos de tortura. Várias
categorias de pessoas devem ser separadas umas das outras
(detentos que aguardam julgamento de presos condenados, por
exemplo). As condições de detenção e de tratamento dos
detentos devem ser humanas e, para menores infratores, devem, no mínimo,
propiciar uma experiência educativa. O problema é que essas
condições são amplamente ignoradas, somadas a um Judiciário
muitas vezes complacente, que sustenta os desvios dos estados em
relação a esses requisitos por várias razões, seja por
indisponibilidade de recursos para se implementarem as obrigações,
seja mediante a imposição, aos reclamantes, de um ônus
insustentável para a comprovação de suas queixas. A Lei sobre
Tortura é praticamente ignorada, sendo que os promotores e juízes
preferem usar as noções tradicionais e inadequadas de abuso de
autoridade e lesão corporal. O serviço médico forense, sob a
autoridade da polícia, não possui independência para inspirar
confiança em suas constatações.
162. A assistência
jurídica gratuita, principalmente no estágio inicial de privação
de liberdade, é uma ilusão para a maioria dos 85% das pessoas
que se encontram nessa condição e que necessitam de tal assistência.
Isso se deve ao limitado número de defensores públicos. Além
disso, em muitos estados, os defensores públicos (São Paulo é
uma notável exceção) são tão mal remunerados em comparação
com os promotores que seu nível de motivação, comprometimento e
influência é muitíssimo deficiente, bem como sua capacitação
e experiência. Vulneráveis, os suspeitos ficam à mercê da polícia,
dos promotores e dos juízes, muitos dos quais com facilidade
permitem que sejam feitas e sustentadas acusações com base em
legislação que permite pouca margem para a soltura de
transgressores, muitas vezes de menor gravidade, muitos dos quais
foram coagidos a confessar haverem cometido crimes mais graves do
que os que possivelmente tenham cometido, se é que cometeram
algum crime.
163. De modo
semelhante, existe uma ampla gama de iniciativas e instituições
positivas, destinadas a assegurar a execução da lei de modo lícito
e a proteger aqueles que se encontram sob o poder das autoridades.
Entre essas iniciativas e instituições incluem-se o acesso, pela
Pastoral Prisional Católica, por conselhos comunitários,
conselhos estaduais de direitos humanos, ouvidores policiais e
prisionais e departamentos de corregedoria. Uma vez mais, o
problema é a dependência de um trabalho predominantemente voluntário
no que se refere aos três primeiros (em muitos lugares, os
conselhos comunitários e os conselhos estaduais de direitos
humanos não existem ou não funcionam) ou o fato de que carecem
seriamente dos recursos (como no caso de algumas ouvidorias) e, às
vezes, da independência genuína necessários para se realizar um
trabalho efetivo (como no caso de algumas corregedorias).
164. Os poderes
exorbitantes dos delegados de polícia no que diz respeito à
realização de investigações tornam a maioria das investigações
externas excessivamente dependentes de sua boa vontade e cooperação.
Além disso, o atual sistema policial dividido torna muito difícil
o monitoramento externo da polícia militar, o órgão mais freqüentemente
responsável pelas prisões em flagrante delito.
165. A capacitação
e o profissionalismo da polícia e de outros quadros de pessoal
responsáveis pela custódia de pessoas são, muitas vezes,
inadequados. Alguns, a ponto de não existirem. Uma cultura de
brutalidade, e muitas vezes corrupção, é generalizada. Os
poucos suspeitos ricos, se privados de liberdade em absoluto ou até
condenados, podem comprar tratamento e condições de detenção
toleráveis ou, no mínimo, menos intoleráveis do que muitos que
são pobres e geralmente negros ou mulatos ou, nas áreas rurais,
indígenas.
166. Surgiram
relativamente poucas denúncias com relação ao nível federal ou
o Distrito Federal. A tortura e maus tratos semelhantes são
difundidos de modo generalizado e sistemático na maioria das
localidades visitadas pelo Relator Especial no país e, conforme
sugerem testemunhos indiretos apresentados por fontes fidedignas
ao Relator Especial, na maioria das demais partes do País também.
A prática da tortura pode ser encontrada em todas as fases de
detenção: prisão, detenção preliminar, outras formas de prisão
provisória, bem como em penitenciárias e instituições
destinadas a menores infratores. Ela não acontece com todos ou em
todos os lugares; acontece, principalmente, com os criminosos
comuns, pobres e negros que se envolvem em crimes de menor
gravidade ou na distribuição de drogas em pequena escala. E
acontece nas delegacias de polícia e nas instituições
prisionais pelas quais passam esses tipos de transgressores. Os
propósitos variam desde a obtenção de informação e confissões
até a lubrificação de sistemas de extorsão financeira. A
consistência dos relatos recebidos, o fato de que a maioria dos
detentos ainda apresentava marcas visíveis e consistentes com
seus testemunhos, somados ao fato de o Relator Especial ter podido
descobrir, em praticamente todas as delegacias de polícia
visitadas, instrumentos de tortura conforme os descritos pelas
supostas vítimas, tais como barras de ferro e cabos de madeira,
tornam difícil uma refutação das muitas denúncias de tortura
trazidas à sua atenção. Em duas ocasiões (ver parágrafos
acima/ São Paulo e Pará), graças a informações fornecidas
pelos próprios detentos, o Relator Especial pôde descobrir
grandes cabos de madeira nos quais haviam sido inscritos - pelos
funcionários encarregados da execução da lei - comentários lacônicos
que não deixavam dúvida quanto a seu uso.
167. Além disso,
as condições de detenção em muitos lugares, conforme
abertamente anunciado pelas próprias autoridades, são subumanas.
As piores condições encontradas pelo Relator Especial tendiam a
ser em celas de delegacias de polícia, onde as pessoas eram
mantidas por mais tempo do que o período legalmente prescrito de
24 horas. O Relator Especial sente-se compelido a observar a
intolerável agressão aos sentidos encontrada na maioria dos
locais de detenção, principalmente nas carceragens policiais
visitadas, agressão para a qual o Relator Especial não tem
palavras para expressar. O problema não foi atenuado pelo fato de
as autoridades muitas vezes estarem cientes e o haverem advertido
das condições que descobriria. O Relator Especial só pôde
concordar com a afirmação comum que ouviu daqueles que se
encontravam amontoados do lado de dentro das grades, no sentido de
que "eles nos tratam como animais e esperam que nos
comportemos como seres humanos quando sairmos."
168. O Brasil é
uma sociedade aberta, que conta com uma imprensa vigorosa. As
conclusões não serão surpresa para muitos no país que se
preocupam em conhecer a realidade. As recomendações que se
apresentam a seguir são predominantemente uma compilação da
melhor prática a ser encontrada no próprio país, embora em
escala por demais esporádica e isolada. Com efeito, muitas das
recomendações abaixo meramente exigiriam que as autoridades
obedecessem à lei brasileira vigente.
À luz do exposto
acima, o Relator Especial formulou as seguintes recomendações:
1. Em primeiro
lugar, as mais altas lideranças políticas federais e estaduais
precisam declarar inequivocamente que não tolerarão a tortura ou
outras formas de maus tratos por parte de funcionário públicos,
principalmente as polícias militar e civil, pessoal penitenciário
e pessoal de instituições destinadas a menores infratores. É
preciso que os líderes políticos tomem medidas vigorosas para
agregar credibilidade a tais declarações e deixar claro que a
cultura de impunidade precisa acabar. Além de efetivar as
recomendações que se apresentam a seguir, essas medidas deveriam
incluir visitas sem aviso prévio por parte dos líderes políticos
a delegacias de polícia, centros de detenção pré-julgamento e
penitenciárias conhecidas pela prevalência desse tipo de
tratamento. Em particular, deveriam ser pessoalmente
responsabilizados os encarregados dos estabelecimentos de detenção
quando forem perpetrados maus tratos. Tal responsabilidade deveria
incluir - porém sem limitação - a prática prevalecente em
algumas localidades segundo a qual a ocorrência de maus tratos
durante o período de responsabilidade da autoridade encarregada
afeta adversamente suas perspectivas de promoção e, com efeito,
deveria implicar afastamento do cargo, sem que tal afastamento
consista meramente em transferência para outra instituição.
2. O abuso, por
parte da polícia, do poder de prisão de qualquer suspeito sem
ordem judicial em caso de flagrante delito deveria ser cessado
imediatamente.
3. As pessoas
legitimamente presas em flagrante delito não deveriam ser
mantidas em delegacias de polícia por um período além das 24
horas necessárias para a obtenção de um mandado judicial de
prisão provisória. A superlotação das cadeias de prisão
provisória não pode servir de justificativa para se deixar os
detentos nas mãos da polícia (onde, de qualquer modo, a condição
de superlotação parece ser substancialmente mais grave do que até
mesmo em algumas das unidades prisionais mais superlotadas).
4. Os familiares próximos
das pessoas detidas deveriam ser imediatamente informados da detenção
de seus parentes e deveriam poder ter acesso a eles. Deveriam ser
adotadas medidas no sentido de assegurar que os visitantes a
carceragens policiais, centros de prisão provisória e penitenciárias
sejam sujeitos a vistorias de segurança que respeitem sua
dignidade.
5. Qualquer pessoa
presa deveria ser informada de seu direito contínuo de
consultar-se em particular com um advogado a qualquer momento e de
receber assessoramento legal independente e gratuito, nos casos em
que a pessoa não possa pagar um advogado particular. Nenhum
policial, em qualquer momento, poderá dissuadir uma pessoa detida
de obter assessoramento jurídico. Uma declaração dos direitos
dos detentos, tais como a Lei de Execução Penal (LEP), deveria
estar prontamente disponível em todos os lugares de detenção
para fins de consulta pelas pessoas detidas e pelo público em
geral.
6. Um registro de
custódia separado deveria ser aberto para cada pessoa presa,
indicando-se a hora e as razões da prisão, a identidade dos
policiais que efetuaram a prisão, a hora e as razões de
quaisquer transferências subseqüentes, particularmente transferências
para um tribunal ou para um Instituto Médico Legal, bem como
informação sobre quando a pessoa foi solta ou transferida para
um estabelecimento de prisão provisória. O registro ou uma cópia
do registro deveria acompanhar a pessoa detida se ela fosse
transferida para outra delegacia de polícia ou para um
estabelecimento de prisão provisória.
7. A ordem judicial
de prisão provisória nunca deveria ser executada em uma
delegacia de polícia.
8. Nenhuma declaração
ou confissão feita por uma pessoa privada da liberdade que não
uma declaração ou confissão feita na presença de um juiz ou de
um advogado deveria ter valor probatório para fins judiciais,
salvo como prova contra as pessoas acusadas de haverem obtido a
confissão por meios ilícitos. O Governo é convidado a
considerar urgentemente a introdução da gravação em vídeo e
em áudio das sessões realizadas em salas de interrogatório de
delegacias de polícia.
9. Nos casos em que
as denúncias de tortura ou outras formas de maus tratos forem
levantadas por um réu durante o julgamento, o ônus da prova
deveria ser transferido para a promotoria, para que esta prove, além
de um nível de dúvida razoável, que a confissão não foi
obtida por meios ilícitos, inclusive tortura ou maus tratos
semelhantes.
10. As queixas de
maus tratos, quer feitas à polícia ou a outro serviço, à
corregedoria do serviço policial ou a seu ouvidor, ou a um
promotor, deveriam ser investigadas com celeridade e diligência.
Em particular, importa que o resultado não dependa unicamente de
provas referentes ao caso individual; deveriam ser igualmente
investigados os padrões de maus tratos. A menos que a denúncia
seja manifestamente improcedente, as pessoas envolvidas deveriam
ser suspensas de suas atribuições até que se estabeleça o
resultado da investigação e de quaisquer processos judiciais ou
disciplinares subseqüentes. Nos casos em que ficar demonstrada
uma denúncia específica ou um padrão de atos de tortura ou de
maus tratos semelhantes, o pessoal envolvido deveria ser
peremptoriamente demitido, inclusive os encarregados da instituição.
Essa medida envolverá uma purgação radical de alguns serviços.
Um primeiro passo nesse sentido poderia ser a purgação de
torturadores conhecidos, remanescentes do período do governo
militar.
11. Todos os
Estados deveriam implementar programas de proteção a testemunhas
nos moldes estabelecidos pelo programa PROVITA para testemunhas de
incidentes de violência por parte de funcionários públicos;
tais programas deveriam ser plenamente ampliados de modo a incluir
pessoas que têm antecedentes criminais. Nos casos em que os
atuais presos se encontram em risco, eles deveriam ser
transferidos para outro centro de detenção, onde deveriam ser
tomadas medidas especiais com vistas à sua segurança.
12. Os promotores
deveriam formalizar acusações nos termos da Lei Contra a Tortura
de 1997, com a freqüência definida com base no alcance e na
gravidade do problema, e deveriam requerer que os juízes apliquem
as disposições legais que proíbem o uso de fiança em benefício
dos acusados. Os Procuradores Gerais, com o apoio material das
autoridades governamentais e outras autoridades estaduais
competentes, deveriam destinar recursos suficientes, qualificados
e comprometidos para a investigação penal de casos de tortura e
maus tratos semelhantes, bem como para quaisquer processos em grau
de recurso. Em princípio, os promotores em referência não
deveriam ser os mesmos que os responsáveis pela instauração de
processos penais ordinários.
13. As investigações
de crimes cometidos por policiais não deveriam estar sob a
autoridade da própria polícia. Em princípio, um órgão
independente, dotado de seus próprios recursos de investigação
e de um mínimo de pessoal – o Ministério Público – deveria
ter autoridade de controlar e dirigir a investigação, bem como
acesso irrestrito às delegacias de polícia.
14. Os níveis
federal e estaduais deveriam considerar positivamente a proposta
de criação da função de juiz investigador, cuja tarefa
consistiria em salvaguardar os direitos das pessoas privadas de
liberdade.
15. Se não por
qualquer outra razão que não a de pôr fim à superlotação crônica
dos centros de detenção (um problema que a construção de mais
estabelecimentos de detenção provavelmente não poderá
resolver), faz-se imperativo um programa de conscientização no
âmbito do Judiciário a fim de garantir que essa profissão, que
se encontra no coração do Estado de Direito e da garantia dos
Direitos Humanos, torne-se tão sensível à necessidade de
proteger os direitos dos suspeitos e, com efeito, de presos
condenados, quanto evidentemente o é a respeito da necessidade de
reprimir a criminalidade. Em particular, o Judiciário deveria
assumir alguma responsabilidade pelas condições e pelo
tratamento a que ficam sujeitas as pessoas que o Judiciário
ordena permaneçam sob detenção pré-julgamento ou sentenciadas
ao cárcere. Em se tratando de crimes ordinários, o Judiciário,
nos casos em que existirem acusações alternativas, também
deveria ser relutante em: proceder a acusações que impeçam a
concessão de fiança, excluir a possibilidade de sentenças
alternativas, exigir custódia sob regime fechado, bem como em
limitar a progressão de sentenças.
16. Pela mesma razão,
a Lei de Crimes Hediondos e outros diplomas legais aplicáveis
deveriam ser emendados de modo a assegurar que períodos de detenção
ou prisão, muitas vezes longos, não sejam passíveis de imposição
por crimes relativamente menos graves. O crime de
"desrespeito à autoridade" (desacatar a funcionário público
no exercício da função) deveria ser abolido.
17. Deveria haver
um número suficiente de defensores públicos para garantir que
haja assessoramento jurídico e proteção a todas as pessoas
privadas de liberdade desde o momento de sua prisão.
18. Instituições
tais como conselhos comunitários, conselhos estaduais de direitos
humanos e as ouvidorias policiais e prisionais deveriam ser mais
amplamente utilizadas; essas instituições deveriam ser dotadas
dos recursos que lhe são necessários. Em particular, cada estado
deveria estabelecer conselhos comunitários plenamente dotados de
recursos, que incluam representantes da sociedade civil, sobretudo
organizações não-governamentais de direitos humanos, com acesso
irrestrito a todos os estabelecimentos de detenção e o poder de
coletar provas de irregularidades cometidas por funcionários.
19. A polícia
deveria ser unificada sob a autoridade e a justiça civis.
Enquanto essa medida estiver pendente, o Congresso pode acelerar a
apreciação do projeto de lei apresentado pelo Governo Federal
que visa transferir para tribunais ordinários a jurisdição
sobre crimes de homicídio, lesão corporal e outros crimes,
inclusive o crime de tortura cometida pela polícia militar.
20. As delegacias
de polícia deveriam ser transformadas em instituições que ofereçam
um serviço ao público. As delegacias legais implementadas
em caráter pioneiro no estado do Rio de Janeiro são um modelo a
ser seguido.
21. Um profissional
médico qualificado (um médico escolhido, quando possível)
deveria estar disponível para examinar cada pessoa, quando de sua
chegada ou saída, em um lugar de detenção. Os profissionais médicos
também deveriam dispor dos medicamentos necessários para atender
às necessidades médicas dos detentos e, caso não possam atender
a suas necessidades, deveriam ter autoridade para determinar que
os detentos sejam transferidos para um hospital, independentemente
da autoridade que efetuou a detenção. O acesso ao profissional médico
não deveria depender do pessoal da autoridade que efetua a detenção.
Tais profissionais que trabalham em instituições de privação
de liberdade não deveriam estar sob autoridade da instituição,
nem da autoridade política por ela responsável.
Os serviços médico-forenses
deveriam estar sob a autoridade judicial ou outra autoridade
independente, e não sob a mesma autoridade governamental que a
polícia; nem deveriam exercer monopólio sobre as provas forenses
especializadas para fins judiciais.
23. A assustadora
situação de superpopulação em alguns estabelecimentos de prisão
provisória e instituições prisionais precisa acabar
imediatamente; se necessário, mediante ação do Executivo,
exercendo clemência, por exemplo, com relação a certas
categorias de presos, tais como transgressores primários não-violentos
ou suspeitos de transgressão. A lei que exige a separação entre
categorias de presos deveria ser implementada.
24. É preciso que
haja uma presença de monitoramento permanente em toda instituição
dessa natureza e em estabelecimentos de detenção de menores
infratores, independentemente da autoridade responsável pela
instituição. Em muitos lugares, essa presença exigiria proteção
e segurança independentes.
25. É preciso
providenciar, urgentemente, capacitação básica e treinamento de
reciclagem para a polícia, o pessoal de instituições de detenção,
funcionários do Ministério Público e outros envolvidos na execução
da lei, incluindo-se temas de direitos humanos e matérias
constitucionais, bem como técnicas científicas e as melhores práticas
propícias ao desempenho profissional de suas funções. O
programa de segurança humana do Programa de Desenvolvimento das
Nações Unidas poderia ter uma contribuição substancial a fazer
nesse particular.
26. Deveria ser
apreciada a proposta de emenda constitucional que permitiria, em
determinadas circunstâncias, que o Governo Federal solicitasse
autorização do Tribunal de Recursos (Superior Tribunal de Justiça)
para assumir jurisdição sobre crimes que envolvam violação de
direitos humanos internacionalmente reconhecidos. As autoridades
federais do Ministério Público necessitarão de um aumento
substancial dos recursos a elas alocados para poderem cumprir
efetivamente a nova responsabilidade.
27. O financiamento
federal de estabelecimentos policiais e penais deveria levar em
conta a existência ou não de estruturas para se garantir o
respeito aos direitos das pessoas detidas. Deveria haver
disponibilidade de financiamento federal para se implementarem as
recomendações acima. Em particular, A Lei de Responsabilidade
Fiscal não deveria ser um obstáculo à efetivação das
recomendações.
28. O Governo
deveria considerar séria e positivamente a aceitação do direito
de petição individual ao Comitê contra a Tortura, mediante a
declaração prevista nos termos do Artigo 22 da Convenção
contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Punições Cruéis,
Desumanos ou Degradantes.
29. Solicita-se ao
Governo a considerar convidar o Relator Especial sobre Execuções
Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias a visitar o país.
30. O Fundo Voluntário
das Nações Unidas para Vítimas da Tortura fica convidado a
considerar com receptividade as solicitações de assistência por
parte de organizações não-governamentais que trabalham em prol
das necessidades médicas de pessoas que tenham sido torturadas e
pela reparação legal da injustiça a elas causada.
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