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Relatório sobre a Tortura no Brasil

Produzido pelo Relator Especial sobre a Tortura da Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU)

Genebra, 11 de abril de 2001

Introdução

 

1. Após uma solicitação do Relator Especial, em novembro de 1998, o Governo do Brasil convidou-o, em maio de 2000, a realizar uma missão de levantamento de fatos ao País, como parte de seu mandato. O objetivo da visita, que ocorreu de 20 de agosto a 12 de setembro de 2000, consistia em permitir que o Relator Especial coletasse informações em primeira mão a partir de uma ampla gama de contatos, a fim de melhor avaliar a situação da tortura no Brasil, permitindo, assim, que o Relator Especial recomendasse ao Governo um conjunto de medidas a serem adotadas no intuito de assegurar o cumprimento de seu compromisso de pôr fim a atos de tortura e outras formas de maus tratos.

Durante sua missão, o Relator Especial visitou os seguintes distrito e estados: Distrito Federal, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco e Pará. Em Brasília, o Relator Especial reuniu-se com as seguintes autoridades: o Presidente da República Federativa do Brasil, Sua Excelência Sr. Fernando Henrique Cardoso; o Ministro da Justiça, Dr. José Gregori; o Secretário de Estado para Direitos Humanos, Embaixador Gilberto Vergne Sabóia; a Secretária Nacional de Justiça, Sra. Elizabeth Süssekind; o Secretário Geral do Ministério das Relações Exteriores (Ministro em exercício), Embaixador Luis Felipe de Seixas Correa; o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Carlos Mário da Silva Velloso; o Presidente do Superior Tribunal de Justiça, Sr. Paulo Roberto S. da Costa Leite; o Procurador Geral da República, Dr. Geraldo Brindeiro; o Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, Sr. Carlos Rolim, bem como alguns membros da Comissão e o Presidente da Subcomissão de Prevenção e Punição da Tortura, Sr. Nilmario Miranda; a Procuradora Federal para Direitos do Cidadão, Sra. Maria Eliane Menezes de Farias; e alguns promotores públicos do Núcleo Contra a Tortura do Ministério Público do Distrito Federal.

3. Na cidade de São Paulo (Estado de São Paulo), o Relator Especial reuniu-se com as seguintes autoridades: o Governador, Sr. Mário Covas; o Secretário Estadual de Segurança Pública, Sr. Marco Vinício Petrelluzi; o Secretário Estadual de Administração Penitenciária, Sr. Nagashi Furukawa; o Secretário Estadual de Desenvolvimento Social, Sr. Edson Ortega Marques, bem como alguns de seus colegas que trabalham para a Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor – FEBEM; o Secretário Estadual de Justiça, Sr. Edson Vismona; o Assessor Especial da Procuradoria de Direitos Humanos, Sr. Carlos Cardoso de Oliveira Júnior; o Chefe da Polícia Civil, Sr. Ruy Estanislau Silveira Mello; o Ouvidor da Polícia, Sr. Benedito Domingos Mariano; o Chefe da Polícia Militar, Coronel Luiz Carlos de Oliveira Guimarães; o Presidente do Tribunal de Recursos, Sr. Márcio Martins Bonilha. No Rio de Janeiro (Estado do Rio de Janeiro), o Relator Especial reuniu-se com as seguintes autoridades: o Governador, Sr. Anthony Garotinho; o Secretário Estadual de Justiça, Sr. João Luís Duboc Pinaud; o Secretário Estadual de Segurança Pública, Coronel Josias Quintal; o Coordenador de Segurança Pública, Coronel Jorge da Silva; o Chefe da Corregedoria da Polícia Civil, Dr. José Versillo Filho, o Corregedor da Polícia Militar, Coronel José Carlos Rodrigues Ferreira, a Ouvidora Externa das Polícias Militar e Civil, Dra. Celma Duarte; o Procurador Geral, Dr. José Muños Pinheiro; o Presidente do Tribunal de Justiça, Sr. Humberto de Mendoça Manes. Em Belo Horizonte (Estado de Minas Gerais), o Relator reuniu-se com: o Governador, Sr. Itamar Franco; a Secretária Estadual de Justiça, Dra. Angela Maria Prate Pace; o Secretário Estadual de Segurança Pública, Dr. Mauro Ribeiro Lopes; o Corregedor da Polícia Militar, Sr. José Antonio de Moraes; o Corregedor da Polícia Civil, Sr. José Antonio Borges; o Comandante Geral da Polícia Militar, Coronel Mauro Lúcio Gontijo; o Subsecretário de Direitos Humanos, Dr. José Francisco da Silva. Em Recife (Estado de Pernambuco), o Relator reuniu-se com: o Governador, Sr. Jarbas de Andrade Vasconcelos; o Secretário Estadual de Justiça, Sr. Humberto Vieira de Melo; o Diretor do Sistema Penitenciário, Sr. Geraldo Severiano da Silva; o Diretor da Fundação para o Apoio a Crianças e Adolescentes (FUNDAC), Sr. Ivan Porto; o Secretário Estadual de Defesa Social, Sr. Iran Pereira dos Santos; o Chefe da Polícia Civil e Corregedor das Polícias Militar e Civil, Sr. Francisco Edilson de Sé; o Ouvidor das Polícias Militar e Civil, Sr. Sueldo Cavalcanti Melo; o Presidente do Tribunal de Justiça, Sr. Nildo Nery dos Santos; o Promotor Geral, Sr. Romero Andrade. Em Belém (Estado do Pará), o Relator reuniu-se com: o Presidente do Tribunal de Justiça, Sr. José Alberto Soares Maia; o Procurador Geral, Sr. Geraldo Rocha; a Secretária Estadual de Justiça, Sra. Maria de Lourdes Silva da Silveira; o Secretário Estadual de Segurança Pública, Sr. Paulo Sette Cámara; o Superintendente do Sistema Penitenciário, Sr. Albério Sabbá; o Chefe da Polícia Civil, Sr. Lauriston Luna Gáes; o Chefe da Polícia Militar, Capitão Jorgilson Smith; a Ouvidora da Polícia, Sra. Rosa Rothe. Em todos os estados, o Relator reuniu-se, igualmente, com membros da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do respectivo estado.

4. O Relator Especial também se reuniu com pessoas que teriam sido vítimas de tortura ou de outras formas de maus tratos, ou pessoas cujos familiares supostamente haviam sido vítimas de tortura ou de outras formas de maus tratos, e recebeu informação verbal e/ou por escrito da parte de Organizações Não-Governamentais (ONGs), inclusive as seguintes: Núcleo de Estudos da Violência; Centro Justiça Global; Gabinete de Assessoria Jurídica a Organizações Populares - GAJOP; Movimento Nacional de Direitos Humanos; Ação Cristã pela Abolição da Tortura (ACAT); Tortura Nunca Mais; Pastoral Carcerária; Comissão Pastoral da Terra. Por fim, o Relator também se reuniu com advogados e promotores públicos, inclusive promotores públicos encarregados de menores infratores em São Paulo.

5. Em todas as cidades, à exceção de Brasília, o Relator Especial visitou carceragens policiais, centros de detenção pré-julgamento e centros de detenção de menores infratores, além de penitenciárias. Com relação às instalações de detenção, embora não esteja diretamente no âmbito do mandato do Relator Especial descrever e analisar exaustivamente as condições de detenção, como em suas visitas a outros países, o Relator Especial aproveitou a oportunidade de sua permanência no Brasil para visitar várias delas, principalmente com o propósito de se reunir com pessoas que podiam testemunhar quanto ao tratamento que haviam recebido em estabelecimentos de detenção antes de serem transferidas para um centro de detenção pré-julgamento ou para uma penitenciária. No entanto, anteriormente à sua visita, o Relator Especial havia recebido informações segundo as quais as condições de detenção eram eqüivalentes à tortura, e, portanto, não pôde ignorar essa questão. O leitor encontrará uma descrição das condições encontradas nesses vários locais de detenção na primeira parte do presente Relatório.

O Relator Especial deseja expressar seus agradecimentos ao Governo da República Federativa do Brasil por tê-lo convidado. O Relator Especial deseja agradecer, igualmente, às autoridades federais e estaduais por terem lhe dispensado plena cooperação durante a missão, o que facilitou muito a consecução de sua tarefa. O Relator Especial expressa aqui sua gratidão ao Representante Residente das Nações Unidas e aos integrantes de seu quadro funcional do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento pelo apoio tanto logístico quanto de outra natureza.

I. A PRÁTICA DA TORTURA: ALCANCE E CONTEXTO

A. Questões Gerais

7. Ao longo dos últimos anos (ver E/CN. 4/1999/61, parágrafos 86 e seguintes, E/CN.4/2000/9, parágrafos 134 e seguintes), o Relator Especial havia informado o Governo do Brasil de que vinha recebendo informações segundo as quais a polícia rotineiramente espancava e torturava suspeitos de crimes para extrair informações, confissões ou dinheiro. O problema da brutalidade policial, quando da prisão ou durante o interrogatório, segundo os relatos, seria endêmico. O fato de não se investigar, processar e punir agentes policiais que cometem atos de tortura havia - segundo os relatos recebidos - criado um clima de impunidade que estimulava contínuas violações dos direitos humanos. O Relator Especial também havia transmitido informação acerca das condições de encarceramento que, de acordo com os relatos recebidos, eram notoriamente duras. Foi informado que a grave situação de superlotação prevalecia em todo o sistema prisional. Em decorrência disso, os motins de presos nas penitenciárias seriam uma ocorrência comum e os agentes penitenciários recorriam ao uso excessivo de força. Muito embora a legislação interna possa conter disposições adequadas para salvaguardar os direitos humanos dos detentos, uma combinação de corrupção, falta de capacitação profissional para os agentes penitenciários e falta de diretrizes oficiais e de um monitoramento efetivo de incidentes de maus tratos teria levado a uma crise no sistema penitenciário. Acreditava-se, também, que a tortura era usada como punição ou castigo por parte de agentes penitenciários que supostamente aplicam "castigo" coletivo ilegal.

8. Em seu Relatório Inicial sobre a Implementação da Convenção Contra a Tortura e Outras Formas de Tratamento ou Punição Cruel, Desumano ou Degradante, o Governo reconheceu que "a existência de uma lei que tipifica crimes de tortura, a disposição do Governo Federal e de alguns estados de conter a perpetração desse crime e de impedir que se imponha um tratamento desumano aos presos são iniciativas que, lentamente, estão mudando a situação da tortura no Brasil. A persistência dessa situação significa que os agentes penitenciários ainda estão recorrendo à tortura para extrair informações e forçar confissões como meio de extorsão ou punição. O número de confissões feitas sob tortura e a elevada incidência de denúncias ainda são significativos (...). As reivindicações das pessoas presas em delegacias de polícia por assistência médica, social ou jurídica, ou pela mudança de certos aspectos da rotina prisional, nem sempre são recebidas pacificamente pelos policiais ou agentes. Vale observar que é comum a retaliação contra os presos na forma de tortura, espancamentos, privação e humilhação. (...) Muitos desses crimes permanecem impunes, em decorrência de um forte sentimento de corporativismo existente entre as forças policiais no que se refere à investigação e punição dos funcionários envolvidos na prática da tortura. (...) A falta de capacitação dos policiais e agentes penitenciários para desempenharem suas atribuições é outro aspecto importante no que tange à continuidade das práticas de tortura."

9. Durante sua missão, o Relator Especial recebeu informações de fontes não-governamentais e um número muito grande de relatos de supostas vítimas ou testemunhas de tortura – das quais uma seleção encontra-se reproduzida no Anexo ao presente Relatório – que indicavam que a tortura é prática generalizada e, na maioria das vezes, envolve pessoas das camadas mais baixas da sociedade e/ou de descendência africana ou que pertencem a grupos minoritários. É preciso observar que um grande número de detentos expressou temor de represálias por terem falado com o Relator Especial e um número significativo deles, portanto, recusou-se a tornar públicos seus testemunhos. Os espancamentos com barras de ferro ou bastões de madeira ou palmatória (um pedaço de madeira plano, porém espesso, com a aparência de uma esponja grande, que teria sido usado para espancar a palma das mãos e a sola dos pés dos escravos no Brasil), bem como técnicas descritas como "telefone", que consiste em bater, repetidas vezes, contra os ouvidos da vítima, alternada ou simultaneamente, e "pau-de-arara", que consiste em espancar uma vítima pendurada de cabeça para baixo e submetida a choques elétricos em várias partes do corpo, inclusive os órgãos genitais, ou a sufocamento com sacos plásticos, às vezes cheios de pimenta, colocados por sobre a cabeça das vítimas, foram algumas das técnicas de tortura mais comumente relatadas. Foi alegado que o propósito de tais atos era fazer com que as pessoas presas assinassem uma confissão ou extrair um suborno, ou punir ou intimidar pessoas suspeitas de haverem cometido um crime. Foi relatado que o fato de a pessoa ser de descendência africana ou pertencer a um grupo minoritário ou marginalizado, e, em particular, uma combinação dessas características, tornam tais pessoas mais facilmente suspeitas de atos criminosos aos olhos dos funcionários encarregados da execução da lei.

10. O Presidente do Brasil expressou que seu Governo planejava implementar um plano de segurança pública de amplo alcance. O Relator Especial observa, entretanto, que a luta contra o elevado nível de criminalidade muitas vezes foi apresentada por seus interlocutores oficiais como uma explicação, senão mesmo uma justificativa, para o comportamento um tanto duro por parte dos funcionários encarregados da execução da lei, que, segundo relatos recebidos, teriam de enfrentar criminosos violentos, contando com limitados recursos à sua disposição. Acreditava-se que, em face dessa situação, as políticas de segurança pública eram voltadas para a repressão – aparentemente, às vezes sem limites bem definidos –, e não para a prevenção. A necessidade de aliviar o sentimento geral de insegurança pública que alimenta constantes solicitações da população por medidas cada vez mais fortes e mais repressivas contra suspeitos de crimes foi enfatizada com freqüência. Os meios de comunicação também foram apontados como parcialmente responsáveis por esse sentimento de insegurança entre o público. Nesse particular, a educação da população em geral para os direitos humanos foi indicada, principalmente por ONGs, como uma grande necessidade de aperfeiçoamento.

11. Para facilitar a referência, a presente seção começa com uma descrição pormenorizada dos lugares de detenção visitados pelo Relator Especial durante sua permanência nos seguintes estados: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco e Pará. A presente seção está subdividida nas seguintes categorias de estabelecimentos de detenção: delegacias de polícia/ carceragens policiais, centros de detenção pré-julgamento, penitenciárias e centros de detenção para menores infratores. O Relator Especial não visitou estabelecimentos de detenção no Distrito Federal, uma vez que haviam sido recebidas poucas denúncias relativas ao Distrito Federal. De modo semelhante, o Relator havia recebido poucas informações segundo as quais funcionários federais de execução da lei estariam envolvidos em atos de tortura. Em todos os lugares de detenção visitados pelo Relator Especial, à exceção de Nelson Hungria, em Minas Gerais, o principal problema encontrado foi a situação de superlotação, que, somada a uma arquitetura inadequada, muitas vezes caindo aos pedaços, falta de higiene e saneamento, falta de serviço de saúde e precária qualidade ou até mesmo escassez de alimentos, tornam subumanas as condições de detenção, conforme advertido ao Relator Especial por várias autoridades. Segundo ONGs, essas condições não podem ser atribuídas unicamente à falta de recursos financeiros ou materiais, mas são, também, conseqüência de políticas deliberadas ou de uma grave negligência por parte das autoridades competentes. O Relator Especial, entretanto, observa que muitos de seus interlocutores oficiais, em particular delegados de polícia, queixaram-se acerca da situação material extrema que eram obrigados a enfrentar, em razão, segundo eles, da falta de recursos. A maioria dos delegados lamentou ter de manter as pessoas presas em condições tão precárias. Além disso, conforme destacado pelo delegado da Delegacia de Furtos e Roubos de Belo Horizonte, devido ao fato de a maioria dos detentos ser mantida em delegacias, em vez de centros de detenção pré-julgamento ou prisões, os policiais são obrigados a atuar como agentes carcerários, em vez de investigadores, enquanto sua principal função e capacitação é para atuarem como investigadores.

12. Muitos delegados, bem como chefes de centros de detenção pré-julgamento e de penitenciárias, chamaram a atenção do Relator Especial para o fato de que a situação de superlotação, somada à carência de recursos humanos, muitas vezes resultava não só em uma grande tensão entre o pessoal de segurança e a população carcerária, mas também em tentativas de fuga e rebeliões, muitas vezes violentas – situações que só podiam ser superadas mediante o uso da força. Assim, o duro tratamento ao qual os detentos estariam submetidos foi justificado, por algumas autoridades, pela necessidade de o pessoal de segurança controlar a população carcerária e manter a ordem nos estabelecimentos de detenção. É preciso observar que, em várias ocasiões, o Relator Especial recomendou às autoridades em questão que tomassem medidas imediatas no sentido de assegurar que fosse providenciado tratamento médico adequado aos detentos.

Também há relatos de os espancamentos serem freqüentemente usados para punir os presos que supostamente desobedeceram regras disciplinares internas. Unidades policiais especiais muitas vezes são chamadas a intervir para restaurar a ordem e a segurança e o uso excessivo da força é comum nesses casos. Muitas denúncias referiam-se a membros das unidades especiais que usavam capuzes, cabos de madeira, pedaços de ferro e fios. Também há informações que dão conta que os espancamentos ocorriam nas noites seguintes a uma rebelião ou a uma tentativa de fuga, como forma de punição. As transferências para novos lugares de detenção seriam, muitas vezes, seguidas de espancamentos por parte de agentes penitenciários quando da chegada dos presos, como forma de indicar aos recém-chegados quem manda no lugar. Os detentos supostamente seriam forçados a passar entre fileiras formadas pelos agentes penitenciários e pelo pessoal de segurança, que lhes aplicavam socos e pontapés, muitas vezes com cabos e correntes, ao mesmo tempo em que recitavam regras disciplinares internas (técnica descrita como "corredor polonês"). Segundo a informação recebida, a violência entre presos é freqüente nas carceragens policiais e nas penitenciárias. O fato de recidivistas condenados por crimes violentos serem mantidos juntos com transgressores primários de menor gravidade, as duras condições de detenção, a falta de supervisão efetiva devido à escassez de pessoal de segurança, a falta de atividades para os detentos e a abundância de armas introduzidas nos estabelecimentos de detenção, supostamente com a cumplicidade da polícia ou do pessoal penitenciário, são considerados os principais fatores responsáveis por essa violência. Em certos casos, foi alegado que tal violência era tolerada ou até mesmo estimulada pelas autoridades públicas responsáveis por esses estabelecimentos.

14. De acordo com ONGs, no que se refere ao nível de responsabilidade, alguns dos incriminados agem por ignorância e outros por puro hábito, uma vez que agiram dessa forma por muito tempo, sem temer quaisquer conseqüências, particularmente durante o regime militar (1964-1985). Entretanto, as ONGs reconheceram a determinação de propósito do Governo Federal e de alguns governos estaduais no sentido de pôr fim a essas práticas, ainda que as medidas tomadas ainda sejam recebidas com cautela. Com efeito, as ONGs chamaram a atenção do Relator Especial para o fato de que pelo menos um certo grau de violência contra suspeitos de transgressão à lei parece ser socialmente aceito ou até mesmo estimulado, sendo o próprio conceito de direitos humanos percebido como forma de proteção aos transgressores da lei. De acordo com várias fontes não-governamentais e algumas oficiais, a percepção comum, por parte da população em geral, é que as pessoas presas ou detidas merecem ser maltratadas, bem como mantidas em condições precárias. Acreditava-se, portanto, que os tomadores de decisão nas instâncias políticas encontravam-se sob pressão para combater a criminalidade por todos os meios, em vez de combater a tortura.

15. O Presidente do Brasil expressou sem compromisso e o empenho de de seu governo para com os direitos humanos e a determinação de superar o problema da tortura. Em particular, o Presidente afirmou que consideráveis esforços estavam sendo envidados no sentido de se construírem novos estabelecimentos de detenção com vistas à atenuação da situação de superpopulação, muito embora tenha reconhecido que muitas pessoas eram presas e detidas desnecessariamente. De modo semelhante, o Presidente do Supremo Tribunal reconheceu a necessidade de se dedicar mais atenção ao problema da tortura e afirmou que todos os juízes eram instruídos acerca dos direitos humanos.

B. Estado de São Paulo

1. Delegacias de Polícia

16. O Relator Especial visitou várias delegacias de polícia. Em todas elas, a superlotação era o principal problema. As celas da delegacia do 50° Distrito Policial, por exemplo, mantinham cinco vezes mais pessoas do que sua capacidade oficial. Em todas as delegacias visitadas, os detentos eram mantidos em condições subumanas, em celas muito sujas e com forte mau cheiro, sem iluminação e ventilação apropriadas. O ar estava completamente saturado na maioria das celas. Os detentos tinham de compartilhar colchões de espessura fina ou dormir no piso de concreto descoberto e, muitas vezes, dormir por turnos de revezamento, devido à falta de espaço. Os detentos estavam todos misturados; alguns haviam acabado de ser presos e outros estavam detidos aguardando julgamento, enquanto muitos já haviam sido condenados, porém não podiam ser transferidos para as penitenciárias por causa da falta de espaço nestas.

17. Em todas as carceragens de delegacias de polícia o Relator Especial recebeu os mesmos testemunhos dos detentos, dando conta de espancamentos com pedaços ou barras de ferro e de madeira ou "telefone", particularmente durante sessões de interrogatório, com a finalidade de se extraírem confissões, após tentativas de fuga ou rebeliões e com o propósito de se manter a calma e a ordem. Sacos plásticos, borrifados com pimenta, seriam aplicados sobre a cabeça dos detentos para sufocá-los e muitas das denúncias fizeram referência a choques elétricos.

18. Em 26 de agosto, o Relator Especial visitou a delegacia do 5° Distrito Policial, onde 166 pessoas estavam detidas em seis celas, projetadas para comportar até 30 pessoas. Foi informado que dez dias antes da visita do Relator Especial, elas continham mais de 200 pessoas. Alguns haviam passado mais de um ano nessas celas. Foi informado que os policiais eram cinco por turno, para a função de segurança de todos os detentos, o que representava sérios problemas de segurança e ordem. De acordo com as autoridades, na semana anterior à visita do Relator Especial, houve quatro tentativas de fuga.

19. Em uma cela que media aproximadamente 15 metros quadrados, 32 pessoas encontravam-se detidas. Elas informaram que estavam dormindo em revezamento por turno nos seis colchões de espessura muito fina que possuíam. Um buraco era usado como vaso sanitário e banheiro. De segunda a sexta-feira, eles teriam permissão para sair de suas celas e podiam usar o pequeno pátio. De acordo com a informação recebida, os familiares e amigos dos detentos eram humilhados e molestados pelos policiais durante as visitas. Também foi alegado que os detentos eram insultados pelos agentes penitenciários durante as visitas. Unicamente os parentes mais próximos teriam autorização para entrar e somente eram permitidos alimentos básicos, tais como bolachas de água e sal e macarrão.

20. O Relator Especial visitou as celas onde estavam detidos os chamados "seguros", isto é, aqueles que supostamente precisavam de proteção contra outros detentos e, portanto, estavam sendo mantidos separados de outros presos pelas razões de segurança alegadas. A cela media aproximadamente 9 metros quadrados e continha cinco camas. Dezesseis pessoas eram mantidas ali. Algumas confirmaram ter brigado com outros presos, enquanto outras não sabiam porque estavam detidas naquela cela. Um detento acreditava que tinha uma doença contagiosa que justificava sua colocação nessa cela. Também se acreditava que alguns eram mantidos na cela dos "seguros" porque não dispunham de meios para comprar espaço em uma cela normal. Eles relataram que nunca podiam sair de sua cela, nem mesmo quando recebiam a visita de seus familiares.

21. Em um escritório adjacente àquele em que, segundo a informação recebida, realizavam-se as sessões de interrogatório, e conforme indicado pelos detentos, o Relator Especial encontrou várias barras de ferro semelhantes às descritas por aqueles que haviam alegado ter sido vítimas de espancamentos. Os agentes encarregados explicaram, primeiro, que se tratava de peças probatórias inquéritos criminais policiais. O Relator Especial não se convenceu por essa explicação, uma vez que essas peças não estavam etiquetadas como tais. Eles, então, explicaram que elas eram usadas para conferir as barras das celas. Os detentos informaram ao Relator Especial que, ao conferir as barras das celas, eles na verdade espancavam os detentos. Em uma outra sala no primeiro pavimento, o Relator Especial encontrou outras barras de ferro. A mesma explicação foi dada ao Relator Especial pelo delegado, que havia chegado naquele ínterim e acrescentou que algumas das barras haviam sido confiscadas de detentos que estavam planejando usá-las durante rebeliões. O Relator Especial observou que alguns desses instrumentos de fato estavam etiquetados, ao passo que outros não. Por fim, o Relator Especial encontrou alguns capuzes idênticos aos descritos pelos detentos, isto é, com referência ao incidente de 9 de junho de 2000 (ver anexo) e um pequeno pacote de eletrodos. O delegado explicou que os capuzes haviam sido descobertos nas celas, porém não conseguiu explicar seu uso pelos detentos.

A maioria dos detentos temia represálias, particularmente a possibilidade de serem enviados para a delegacia de Itacoá, onde acreditavam que sua vida estaria em perigo por causa da violência por parte dos outros presos, que, segundo as alegações, recebiam facas, barras de ferro e instrumentos semelhantes dos próprios agentes de segurança. Os detentos também reconheceram que desde a chegada do novo delegado, em julho de 2000, os espancamentos haviam parado. O delegado reconheceu que alguns integrantes de seu quadro funcional possivelmente ainda usavam a ameaça de mandar os detentos para a delegacia de Itacoá a fim de conseguir a ordem.

23. Em 27 de agosto, o Relator Especial visitou a delegacia do 11° Distrito Policial, em Santo Amaro. A carceragem continha cinco celas, que mediam aproximadamente 12 metros quadrados cada e continham 176 pessoas naquela data, ou seja, mais de 35 pessoas em cada cela. As celas eram dispostas ao redor de um pátio, que media aproximadamente 40 metros quadrados, no qual os detentos, segundo o informado, tinham liberdade para se movimentar nos dias de semana de 8:00 às 18:00. Cada cela continha um chuveiro básico, isto é, um cano, e um buraco usado como vaso sanitário, separados por um plástico que havia sido colocado pelos próprios detentos numa tentativa de assegurar alguma intimidade. O fornecimento de água, segundo o informado, era interrompido em várias ocasiões. Em uma cela, os detentos indicaram que haviam estado sem água durante os últimos três dias. Uma vez que todos os detentos se sentaram em suas respectivas celas, o Relator Especial observou que não havia sequer um único espaço. Os detentos informaram que, por essa razão, estavam dormindo em revezamento por turno. Não havia colchões.

24. Muitos detentos apresentavam graves problemas de saúde, supostamente decorrentes do tratamento a que haviam sido submetidos durante o interrogatório. Em particular, um detento havia improvisado uma sonda, colocada por ele mesmo e por outros detentos, após uma lesão por um tiro, a qual, devido à falta de tratamento médico, havia se infeccionado seriamente. Um outro detento tinha o ombro direito deslocado. Um terceiro relatou que sofria de tuberculose e se encontrava em evidente estado de fraqueza. Foi alegado que as solicitações de assistência médica não eram respondidas pelas autoridades policiais e que muitas vezes levavam a mais espancamentos. Um grande número de detentos também se queixou de doenças de pele, devido às condições de detenção. O Relator Especial observa que um grande número de detentos se recusou a falar com ele por medo de represálias. Quando perguntados pelo Relator Especial se seus nomes podiam ser encaminhados ao delegado no intuito de se assegurar que lhe fosse dispensado um tratamento médico adequado, alguns detentos recusaram-se a dar permissão, também por medo de represálias.

25. No segundo pavimento, na sala de arquivo, o Relator Especial encontrou várias barras de ferro, algumas com alças de plástico, bem como um grande facão. Uma vez mais, foi explicado ao Relator Especial que essas peças haviam sido confiscadas dos detentos (apesar do fato de não estarem etiquetadas) ou eram usadas para conferir a solidez das barras das celas.

26. Em 27 de agosto, o Relator Especial visitou a sede do DEPATRI (Departamento de Investigações sobre Crimes Patrimoniais), composta de diversas unidades de investigação, mas que possui uma única carceragem comum. Dois mil policiais, segundo o informado, são vinculados ao DEPATRI. Sua carceragem se divide em quatro seções, das quais uma ainda era usada, sendo que as outras teriam sido destruídas durante rebeliões. A seção que ainda permanece em uso é composta de quatro celas que medem aproximadamente 20 metros quadrados e continham, naquela data, 178 pessoas, ao passo que a capacidade oficial seria de 15 pessoas por cela. Como não existe um pátio, os detentos eram mantidos 24 horas por dia atrás das grades, em suas celas. A única luz natural vinha de uma janela no fim do corredor ao longo do qual se localizavam as celas. 12 camas tinham de ser compartilhadas pelos detentos, que, portanto, eram obrigados a dormir no piso de concreto descoberto ou em revezamento por turno. Um chuveiro, do qual corria constantemente uma água imunda, e um buraco usado como vaso sanitário, eram separados da parte principal da cela por um plástico colocado pelos próprios detentos. Várias marcas de tiros, consistentes com a alegação de que os policiais haviam atirado por sobre a cabeça dos detentos para ameaçá-los ou para manter a ordem, principalmente após supostas rebeliões ou tentativas de fuga, podiam ser vistas nas paredes das celas e do corredor. A qualidade da comida pareceu precária ao Relator Especial. Foi informado que somente eram autorizadas visitas de familiares do sexo feminino, segundo as autoridades, por razões de segurança. De acordo com informação recebida posteriormente pelo Relator Especial, as autoridades decidiram desativar a carceragem do DEPATRI em meados de janeiro de 2001.

27. Na noite de 27 de agosto, o Relator Especial visitou a delegacia de polícia do 2º Distrito, para onde os detentos eram levados antes de comparecerem em juízo. A delegacia consiste de um longo corredor de 1,5 metros de largura e 40 metros de comprimento, em torno a um pátio quadrado aberto. Como estava chovendo, o corredor estava literalmente lotado de detentos, muitos deles seminus, uma vez que, conforme o informado, eles haviam sido obrigados a se despirem. A delegada de plantão indicou que havia 188 pessoas detidas na delegacia, mas que, às vezes, havia mais de 220. O ar no corredor era sufocante. Havia lixo no chão do corredor e no pátio e os quatro sanitários, que consistiam de um buraco entupido por excrementos, eram abertos para o corredor. O Relator Especial não pôde evitar notar o cheiro nauseante resultante desse fato. Segundo a informação recebida antes dessa visita, esse local era limpo uma vez por semana, o que teria acontecido no dia anterior ao dia da visita efetiva do Relator Especial. As paredes estavam cobertas de marcas de tiros. Segundo a informação recebida, os tiros eram disparados de tempos em tempos pelos agentes carcerários para amedrontar os detentos. A maioria dos detentos acreditava que entrar no pátio para ter acesso, por exemplo, a água – uma vez que a única torneira se situava no pátio – era perigoso demais por causa dos tiros. A delegada de plantão nessa delegacia de polícia confirmou que os detentos eram proibidos de entrar no pátio, uma vez que ela acreditava que havia um risco muito alto de fuga pelo teto semi-aberto, mediante a formação de uma pirâmide humana. As autoridades informaram que os detentos eram transferidos a essa delegacia de polícia para ficarem mais próximos do tribunal.

28. O Relator Especial acredita que o fato de os detentos aguardarem para comparecerem perante o tribunal nessas condições subumanas só poderia fazer com que pareçam corrompidos e perigosos aos olhos dos juízes. Um grande número de detentos expressou sua vergonha por serem vistos numa condição de sujeira e mau cheiro quando levados perante o juiz. Eles não entendiam porque haviam sido levados para essa delegacia antes de serem levados ao tribunal, em vez de irem diretamente de suas respectivas carceragens policiais. Eles compreensivelmente acreditavam que essa humilhação se fazia de propósito, a fim de desgastar qualquer simpatia por parte dos juízes. O Relator Especial observa com preocupação o comentário feito por um agente penitenciário, ao responder ao Relator Especial que lhe havia transmitido os temores dos presos de que poderiam ser submetidos a represálias por falarem com o Relator Especial e sua equipe; segundo o comentário, como os detentos haviam se comportado bem naquela noite, não seria necessário fazer nada com eles.

2. Penitenciárias

29. Em 25 de agosto, o Relator Especial visitou a Casa de Detenção da Penitenciária de Carandiru, onde se encontravam presas 7.772 pessoas em nove pavilhões, nos quais os detentos, segundo o informado, estariam divididos de acordo com o crime pelo qual haviam sido condenados. A capacidade oficial da Casa de Detenção, 3.500, segundo o diretor, teria sido aumentada pelos próprios presos, que haviam construído novas camas em suas celas. Nos pavilhões visitados, o Relator Especial observou que transgressores primários e reincidentes estavam misturados. Os detentos se queixaram da má qualidade da comida, composta, principalmente, de uma mistura de macarrão e arroz.

30. No Pavilhão Quatro, o Relator Especial visitou as celas de castigo localizadas no porão, comumente chamadas de masmorra. As celas medem aproximadamente nove metros quadrados e contêm uma cama de cimento, uma pia e um buraco que serve como vaso sanitário. Os detentos teriam recebido um colchão de espessura muito fina e um lençol no dia anterior à visita do Relator Especial. Quando da visita, as celas estavam sem luz, muito sujas e com um forte mau cheiro, apesar do fato de o corredor principal estar sendo lavado, segundo os detentos, pela primeira vez desde sua chegada (para alguns, mais de 20 dias antes da visita). Nas celas havia cinco detentos, enquanto deveriam comportar uma única pessoa. A maioria deles havia passado mais de 20 dias nessas celas e desconhecia a duração de seu castigo.

31. Muitos dos presos presentes nessas celas queixaram-se de que haviam sido castigados por terem se recusado a ser transferidos de seu pavilhão original, o Pavilhão Nove, para o pavilhão onde são mantidos os travestis e estupradores, como punição por terem brigado entre si. Antes de serem enviados para as celas de castigo, eles haviam sido severamente espancados com pedaços de ferro e alguns haviam sido obrigados a assinar um papel expressando que aceitavam tal transferência. Três detentos ainda apresentavam marcas de tortura visíveis e consistentes com suas alegações. O Relator Especial foi informado que um deles havia ficado com a perna quebrada por causa dos espancamentos e havia sido transferido dali, juntamente com dois outros gravemente feridos, algumas horas antes da visita do Relator Especial. Quando o Relator Especial pediu para vê-los, foi informado que dois deles haviam sido levados ao hospital e deveriam ser trazidos de volta em breve e que um havia sido transferido para o hospital Mandaqui. Decorridas algumas horas, finalmente foi informado que dois dos detentos estariam na Penitenciária Estadual de Alta Segurança do Carandiru, onde o Relator Especial pôde entrevistar Marcelo Ferreira da Costa e Ronaldo Gaspar dos Santos, apesar de se encontrarem em estado de choque e muitíssimo temerosos de serem submetidos a represálias após a partida do Relator Especial (ver anexo). Na manhã seguinte, o Relator Especial foi ao hospital de Mandaqui para entrevistar o terceiro detento. Ao chegar ao hospital, foi informado que o preso havia sido levado de volta à Casa de Detenção na noite anterior, às 23:30. Por fim, em 26 de agosto, o Relator Especial entrevistou Marcelo Miguel dos Santos, que, devido a seu mau estado de saúde, só pôde ser apresentado em uma cadeira de rodas (ver anexo).

32. O Relator Especial também visitou a instalação médica localizada no segundo andar desse pavilhão. O Relator Especial observou os recursos médicos muito limitados e as condições de sujeira, em particular as precárias instalações sanitárias nas quais os detentos enfermos eram tratados por uma pequena equipe médica. De acordo com os enfermeiros presentes, qualquer preso podia se dirigir até a ala médica e ser medicado, se necessário, e os pacientes que necessitassem de tratamento mais especializado seriam transferidos para um hospital.

33. No Pavilhão Cinco, o Relator Especial visitou o quinto andar, onde ficam detidos os "seguros", muito comumente chamados de "amarelos", devido à cor de sua pele, que, em razão da falta de luz natural, torna-se pálida ao ponto de efetivamente tornar-se amarela. Os detentos informaram que tinham permissão para sair de suas celas aos domingos, porém somente se houvesse visitas, o que disseram raramente ocorria no caso de muitos deles. Do contrário, eles eram mantidos em suas celas o tempo todo, segundo o informado. Dez a quinze detentos eram mantidos em celas de 15 metros quadrados, com colchões sujos e de espessura fina no chão, e um canto com um buraco, usado como sanitário e chuveiro. As celas estavam infestadas de insetos que, segundo o relatado pelos detentos, causava-lhes coceira e doenças de pele. Alguns alegaram que haviam estado detidos nessas celas por mais de seis meses sem ter visto a luz natural. Muitos deles pareceram ao Relator Especial estar mentalmente doentes ou seriamente perturbados, e muitos alegaram que haviam sido transferidos para essa ala da penitenciária como forma de punição. Um deles alegou que havia sido espancado com barras de ferro por ter pedido tratamento médico. Marcas consistentes com essas alegações, em particular na cabeça e nos ombros do detento, ainda eram visíveis quando da visita do Relator Especial. Dois outros detentos que apresentavam marcas de espancamentos graves e recentes recusaram-se a falar com o Relator Especial por medo de represálias. Um outro detento portava uma sonda muito rudimentar e improvisada. O Relator Especial posteriormente foi informado que o Secretário Estadual encarregado do sistema penitenciário havia decidido desativar essa ala. Em meados de janeiro de 2001, foi informado que 230 dos 300 presos mantidos ali já haviam sido transferidos para outra penitenciária em Sorocaba.

34. No mesmo pavilhão, o Relator Especial visitou as celas situadas no mesmo andar, porém do outro lado do corredor, onde ficavam os detentos predominantemente não-católicos, que teriam sido colocados juntos por sua própria solicitação. Havia quatro presos em cada cela, que eram limpas e bem guarnecidas de colchões e, na maioria das vezes, um fogão. Dois andares abaixo, o Relator Especial visitou celas que continham até oito presos em mais de 20 metros quadrados. Essas celas eram limpas e dispunham de chuveiro, vaso sanitário e pia separados. Cada detento tinha um colchão e alguns artigos de uso pessoal. Os detentos informaram que estavam detidos em condições tão boas em comparação a outros porque estavam trabalhando. Nenhuma explicação foi dada quanto à razão pela qual eles haviam sido selecionados para realizar certas atividades manuais. Antes da visita, o Relator Especial havia recebido informações segundo as quais os detentos tinham de pagar ou alugar suas celas por intermédio de líderes de celas que colaboravam com os agentes penitenciários. O chefe desse pavilhão refutou categoricamente esta alegação. No entanto, tanto nesse quanto em outros pavilhões, os detentos que viviam nas piores condições puderam informar ao Relator Especial o preço de celas melhores.

35. Durante sua visita aos vários pavilhões, o Relator Especial pôde descobrir, na maioria das vezes graças às indicações dadas pelos detentos, pedaços de ferro e de madeira, alguns com alças. Em um bastões estava escrito "até 19:30", que seria a hora em que o pessoal do turno noturno começava seu plantão. Algumas desses instrumentos foram encontrados no escritório do chefe do Pavilhão Cinco, atrás de uma geladeira; outros, no escritório dos agentes penitenciários do Pavilhão Quatro, atrás das cortinas. As autoridades em questão deram várias explicações: tratava-se de pedaços de móveis quebrados, tais como mesas e cadeiras deixados abandonados, barras usadas para verificar a solidez das barras das celas ou barras retiradas pelos próprios presos para usá-las como armas durante rebeliões.

O Relator Especial foi posteriormente informado da intenção do Secretário Estadual encarregado do sistema penitenciário de dividir a Casa de Detenção em quatro unidades distintas, chefiadas por quatro diretores, que já teriam sido identificados, a fim de exercer melhor controle sobre a população carcerária. Além disso, acredita-se que o Pavilhão Quatro em breve se tornará um hospital penitenciário.

37. Em 26 de agosto, o Relator Especial visitou uma das três penitenciárias femininas do estado de São Paulo, a Prisão Feminina de Tatuapé, onde, segundo o informado, estariam detidas 446 mulheres naquela data, enquanto a capacidade oficial era de 600, embora a diretora de segurança encarregada de plantão quando da visita do Relator Especial tenha reconhecido que o limite real devia ser 450. Ela chamou a atenção do Relator Especial para o problema da escassez de pessoal e as implicações de segurança disso decorrentes. A diretora queixou-se do fato de que contava com apenas 20 agentes penitenciárias por turno, por causa do grande número de agentes penitenciárias em licença-saúde, predominantemente devido às duras condições de trabalho. Foi informado que as agentes penitenciárias, em sua maioria, eram mulheres, mas também havia alguns homens, inclusive, para grande surpresa, o filho da Diretora Geral. No dia da visita, havia quinze mulheres e quatro homens. De modo semelhante, havia apenas um veículo disponível para realizar todas as transferências, tais como transferências para tribunais, outras penitenciárias ou hospitais. Foi informado que as detentas não eram separadas de acordo com a faixa etária ou o crime pelo qual haviam sido condenadas e que trabalhavam das 7:00 às 12:00 e das 13:00 às 17:00, remuneradas a um salário de R$ 115,00 por mês. De acordo com as detentas, elas efetivamente recebiam apenas R$ 60,00. Elas eram mantidas em um número de cinco por cela. As celas mediam de oito a dez metros quadrados. Cada cela continha colchões e um vaso sanitário, sendo os chuveiros separados das celas. As celas estavam limpas e as detentas haviam feito algumas melhorias básicas, tais como a colocação de cortinas em frente das camas para assegurar-lhes alguma privacidade. O Relator Especial visitou a enfermaria onde se encontrava uma detenta que havia dado à luz recentemente. Ela acreditava que seu bebê seria levado dela e colocado em algum lugar sem a possibilidade de ela rever seu filho.

38. O Relator Especial visitou as celas de castigo do Pavilhão Dois, as quais eram semelhantes às outras celas, exceto pela ausência de um sanitário. As detentas informaram que tinham permissão para sair de suas celas dependendo da boa vontade dos(das) agentes penitenciários(as). Algumas detentas queixaram-se de estar "em trânsito", ou seja, sendo transferidas, a cada 30 dias mais ou menos, para outro presídio, sendo que seus familiares não eram informados de tais transferências. Nas celas de castigo sujas do Pavilhão Cinco, o Relator Especial entrevistou três mulheres que compartilhavam dois colchões. Uma mulher de 20 anos de idade informou ter sido espancada pelo filho da diretora, que, segundo o relatado, era um agente penitenciário que tinha acesso a todas as alas da prisão a qualquer tempo. O ombro e a mão direita dessa detenta apresentavam marcas de espancamento (hematomas) consistentes com suas alegações. Ela também acreditava estar "em trânsito", uma vez que havia sido transferida de uma prisão para outra a cada mês, o que impedia que sua família a visitasse. Em outra cela, uma jovem detenta recusou-se a falar com o Relator Especial por medo de represália. No entanto, ela expressou a um integrante da equipe do Relator Especial que havia sido vítima de abuso sexual por um agente penitenciário, o qual ela identificou, porém estava temerosa demais para autorizar o Relator Especial a citar seu nome.

3. Centros de detenção de menores infratores

No Estado de São Paulo, os menores são internos em instituições que se encontram sob a jurisdição da Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor (FEBEM), à qual cabem o planejamento e a execução de programas de detenção para menores infratores, sob a supervisão da Secretaria de Desenvolvimento e Assistência Social. Existem cerca de 4.000 menores internados a título de "medida sócio-educativa", nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.

40. O Relator Especial observa a destruição, em outubro de 1999, da unidade Imigrantes da FEBEM, onde eram mantidos todos os menores infratores e cujas condições de detenção, particularmente no que se refere à situação de superlotação, equivaliam a tratamento ou condição cruel, desumana ou degradante, de acordo com relatos recebidos antes da missão. Foram-lhe exibidos vários vídeos gravados na unidade Imigrantes que pareciam confirmar os relatos recebidos. Além disso, o Relator Especial tomou conhecimento das graves sessões de espancamento, em particular com o uso de longos cabos de madeira, às quais detentos seminus eram submetidos, em várias ocasiões, à noite, no pátio dessa unidade. Após a destruição de Imigrantes, alguns menores (cerca de 950, de acordo com um estudo não-governamental realizado em julho de 2000) teriam sido transferidos para unidades separadas de unidades prisionais já existentes, inclusive o Centro de Observação Criminológica (COC) das penitenciárias de Carandiru, Santo André e Pinheiros, em violação do ECA, enquanto outros teriam sido transferidos para estabelecimentos especificamente projetados para abrigar menores. Segundo organizações não-governamentais, relatórios da Divisão Técnica Judicial e da Secretaria de Saúde indicavam que à época os menores eram mantidos sem as mínimas condições de higiene. Também há relatos de que eles não eram separados por idade ou pela natureza do crime cometido, conforme exige o ECA. Segundo Promotores de Justiça da Infância e da Juventude da Cidade de São Paulo, esses menores não recebiam o benefício de quaisquer atividades educativas ou recreacionais. Várias ações judiciais contra essas transferências haviam sido interpostas recentemente pelo Departamento de Promotores Públicos responsável pela aplicação do ECA no estado de São Paulo, porém em vão. O Supremo Tribunal Estadual de São Paulo, com efeito, derrubou, por razão de segurança pública, mandados judiciais expedidos por tribunal de instância inferior ordenando o fechamento dessas unidades da FEBEM. Foi explicado ao Relator Especial que diferentes promotores públicos, ou seja, os encarregados de impetrar recursos, têm o poder de recorrer dessa decisão ao Supremo Tribunal Federal, porém, aparentemente, não estavam dispostos a agir nesse sentido. Contudo, novas unidades da FEBEM haviam sido abertas recentemente ou havia planos de se construírem mais unidades em breve, em um esforço por resolver a situação herdada desde a destruição da unidade Imigrantes.

41. O Secretário de Assistência Social informou que, desde a destruição da unidade Imigrantes, havia sido iniciado um programa de construção de unidades descentralizadas (para que os adolescentes ficassem mais próximos de suas famílias) e pequenas (para permitir a separação dos adolescentes de acordo com sua idade ou a natureza do crime que eram suspeitos de haver cometido ou pelo qual haviam sido condenados), com a finalidade de suplementar as 15 unidades já existentes. O Secretário reconheceu que se tratava de um período de transição difícil, muitas vezes criticado, e que exigia um grande esforço, principalmente em termos financeiros. Também foi suscitada a questão da localização dessas unidades da FEBEM, uma vez que os cidadãos não queriam ter um estabelecimento dessa natureza em seu bairro. Ao final desse processo, os adolescentes seriam mantidos em um número de oito por cela, em unidades de cinco celas. Cada complexo da FEBEM teria duas ou três unidades. Uma minoria dos adolescentes, os mais perigosos, ainda teria de ser enviada para complexos do tipo prisional. O Secretário planejava desativar, dentro de 30 dias, a unidade Pinheiros, um centro de detenção para menores infratores desprovido de pátio. Franco da Rocha e, em seguida, Tatuapé estariam na lista dos centros de detenção de menores infratores a serem desativados em um futuro próximo, uma vez que não haviam sido arquitetonicamente projetados para abrigar menores. Foi informado que mais monitores haviam sido contratados e capacitados; o profissionalismo teria sido aprimorado e continuaria sendo um objetivo precípuo da FEBEM. Foi informado que o tratamento de jovens trangressores teria sido aceito pelas autoridades de São Paulo como uma prioridade. Foi explicado ao Relator Especial que a FEBEM estava tratando menores infratores como adolescentes, não como delinqüentes. O Secretário também expressou sua esperança por um maior número de sentenças não-privativas de liberdade ou semi-privativas de liberdade.

42. O Relator Especial recebeu informação sobre a Unidade de Atendimento Inicial de São Paulo, comumente chamada de Bráz, um centro de triagem para onde todos os menores infratores são levados inicialmente, antes de serem transferidos para as várias unidades da FEBEM. Foi informado que alguns menores aguardavam durante semanas e meses em condições de detenção básicas (que foram levadas ao conhecimento do Relator Especial por meio de fitas de vídeo) até que fosse proferida sua sentença. Também foi informado que os menores eram detidos seminus, sentados em absoluto silêncio no chão de concreto descoberto e com as mãos atrás da cabeça durante todo o dia. Foi igualmente informado que, quando a regra de silêncio é quebrada, os menores são espancados pelos monitores. Os espancamentos e as humilhações seriam prática comum.

43. De acordo com organizações não-governamentais, três menores eram espancados ou torturados por dia em instalações sob a jurisdição da FEBEM. As rebeliões e as tentativas de fuga, que seriam freqüentes, levariam ao uso excessivo de força, em particular, severos espancamentos com cabos de madeira ou canos de ferro e fios, por monitores, muitas vezes usando máscaras ou capuzes, e por unidades especiais chamadas a intervir para restaurar a ordem e a segurança. Também foi informado que os espancamentos continuavam como represálias ou punição durante as noites subseqüentes a uma rebelião. Acreditava-se que esses espancamentos geralmente ocorriam à noite, uma vez que esse é o período em que os assistentes técnicos ou visitantes externos não estão presentes na unidade. Após as rebeliões, os detentos também eram trancados em celas de castigo, construídas para abrigar uma pessoa, em grupos de mais de 12 detentos, durante alguns dias. Além disso, conforme informações recebidas, os familiares dos detentos também não teriam tido permissão de acesso em diversas ocasiões, particularmente após as supostas rebeliões. As rebeliões, segundo um grande número de detentos entrevistados pelo Relator Especial, eram, na maioria das vezes, provocadas pelos monitores. Foi relatado que os monitores do turno noturno muitas vezes chegavam embriagados ou drogados às celas e aleatoriamente espancavam os detentos. Os menores relataram ser forçados a passar pelo chamado corredor polonês quando da chegada a uma nova unidade de detenção da FEBEM. O Relator Especial recebeu de ONGs uma cronologia descritiva dos incidentes de maus tratos que teriam ocorrido desde outubro de 1999 em unidades da FEBEM, alguns dos quais se encontram reproduzidos no anexo.

Em 24 de agosto, o Relator especial visitou Franco da Rocha, uma instituição da FEBEM situada nos arredores de São Paulo, onde se encontravam detidos 420 menores. Essa unidade, construída no início do ano 2000 e arquitetonicamente projetada como presídio, só havia estado em funcionamento desde julho de 2000. A unidade se divide em oito alas. As celas são dispostas ao redor de um pátio, onde os detentos, segundo os monitores, passariam a maior parte do tempo durante o dia. Quando o Relator Especial visitou algumas dessas alas, ele observou que apenas um pequeno número de detentos de fato estava jogando no pátio, mas que a maioria dos detentos estava trancada em suas celas. O diretor de Franco da Rocha explicou que, desde a rebelião ocorrida em 10 de agosto, alguns detentos tiveram de ser mantidos trancados 24 horas por dia em suas celas, a fim de se manter a ordem e restabelecer a relação entre os monitores e os menores. No entanto, foi relatado que todos eles eram levados para fora da cela para uma sala grande e adjacente ao pátio para o café da manhã, almoço e jantar. Os detentos expressaram ao Relator Especial que, quando se aplicava o regime normal, eles tinham permissão para sair da cela por um período que variava de apenas meia hora a duas horas por dia.

45. Ao lado da enfermaria onde apenas um detento estava sendo tratado quando da visita do Relator Especial (ver anexo), o Relator Especial viu quatro internos em reuniões com os chamados assistentes técnicos, que são responsáveis pelos programas de assistência educacional, psicológica e legal. Eles informaram ao Relator Especial que cada um deles era responsável por 70 internos e que podiam conversar com cada um deles somente uma vez por semana. O Relator Especial, no entanto, observa que, segundo os promotores públicos, era a primeira vez que tais atividades se realizavam em Franco da Rocha. O Relator Especial observa, igualmente, que, durante sua visita, um membro de sua delegação testemunhou uma discussão entre um assistente técnico e o chefe do programa de educação com relação ao fato de que o primeiro havia sido ameaçado por um monitor. Segundo organizações não-governamentais, os menores são transferidos de um assistente social para outro o tempo todo e passam tão pouco tempo com os assistentes que nenhuma atividade de reabilitação real se desenvolve. Além disso, vale observar que, após cada rebelião, muitos internos são transferidos para outras unidades da FEBEM.

46. Cada cela continha 12 camas de cimento. À noite, os detentos recebiam um colchão e cobertores. As celas eram bem ventiladas e bastante limpas. Cada uma continha uma seção separada, desprovida de porta, porém com dois chuveiros, dois vasos sanitários e três torneiras. Muitos detentos queixaram-se da qualidade da comida, que pareceu ruim ao Relator Especial. Não houve menção de qualquer problema de superlotação em Franco da Rocha.

47. Conforme mencionado acima, os internos alegaram que as rebeliões geralmente eram provocadas pelos espancamentos por parte dos monitores, um relato que os promotores públicos e assistentes técnicos também mencionaram ter ouvido com freqüência. Estes últimos informaram ao Relator Especial que os monitores muitas vezes explicavam que era uma questão de se saber quem de fato mandava na instituição, eles ou os detentos. O diretor de Franco da Rocha reconheceu que havia um clima muito pesado e que eram freqüentes os conflitos entre monitores e detentos. Ele reconheceu que a segurança era uma questão difícil, porém negou todas as alegações de espancamentos e provocação por parte dos monitores. Com relação à rebelião de meados de agosto, foi relatado que o sistema de gravação em vídeo implementado em Franco da Rocha certamente havia registrado o incidente e poderia muito bem explicar várias das questões pendentes. O Secretário encarregado da FEBEM informou ao Relator Especial que as fitas estavam sendo estudadas por uma equipe de investigação interna.

O Relator Especial visitou quatro alas distintas. Em cada uma delas, recebeu testemunhos de espancamentos consistentes e pôde ver as marcas deixadas por esses espancamentos (ver anexo). Um detento pediu a intervenção do Relator Especial em favor de sua transferência para outras unidades, nas quais, segundo ele, ao contrário de Franco da Rocha, os internos com efeito são espancados "somente se fizermos alguma coisa de errado". Os internos informaram ao Relator Especial a localização dos canos de ferro e pedaços de madeira usados pelos monitores para espancá-los. Em particular, foi informado que estariam escondidos em pequenos cômodos que dão para o pátio no primeiro andar do corredor principal, que leva a todas as alas. O Relator Especial pôde descobrir, escondidos atrás de alguns colchões e cobertores, um grande número de pedaços de ferro e de madeira, consistentes com aqueles descritos pelas supostas vítimas. Aparentemente surpreso pela presença desses instrumentos, o diretor de Franco da Rocha explicou que se tratava de restos da última rebelião, escondidos pelos próprios detentos. O Relator Especial, no entanto, observou que somente os monitores tinham acesso aos cômodos onde haviam sido descobertos esses instrumentos. Isso foi confirmado pelo diretor, que, então, disse acreditar que os canos e cabos haviam sido deliberadamente escondidos ali por alguns integrantes de seu quadro funcional para prejudicar a imagem da instituição e o programa de reabilitação que estava empreendendo. Diante do número de testemunhos consistentes de internos de diferentes alas que, todos eles, indicaram os mesmos lugares onde poderiam ser encontrados os canos e cabos com os quais teriam sido espancados, e diante das marcas – consistentes com suas alegações – ainda visíveis na maioria dos internos, o Relator Especial deixou claro que considerava implausível essa explicação. O diretor, por fim, reconheceu que não podia "justificar o injustificável".

49. Na última ala visitada, Ala G, foi informado que estariam detidos os internos mais perigosos, provenientes da penitenciária de Carandiru, e que seriam transferidos para outras unidades da FEBEM. O Relator Especial observou que havia colchões em todas as celas. Os detentos informaram que os colchões haviam sido trazidos pela primeira vez naquele mesmo dia. De acordo com os detentos, até então eles haviam tido de dormir seminus, com cobertores sujos, sobre as camas de cimento. Também atraiu a atenção do Relator Especial o fato de que em pelo menos uma cela dessa ala, somente água quente, literalmente fervente, saía do chuveiro, o que impossibilitava qualquer higienização. Também é preciso observar que, nessa ala, a grande maioria dos detentos, senão todos, apresentava marcas visíveis e predominantemente recentes em todo o corpo, inclusive na cabeça, marcas consistentes com as alegações de espancamentos com pedaços de ferro e de madeira. Vários deles, na presença do Relator Especial, perguntaram ao diretor por que eram espancados por seus monitores se eles não os ameaçavam nem os agrediam. As agressões – infligidas por cerca de 30 a 50 monitores, que, conforme as alegações, na maioria das vezes cobrem o rosto e estão embriagados ou drogados – ocorreriam à noite, sem qualquer razão. Uma vez mais, alguns detentos forneceram informação ao Relator Especial referente ao lugar onde eram guardados os cabos usados para espancá-los. O Relator Especial pôde, assim, descobrir vários pedaços de madeira, consistentes com a descrição dada pelos detentos, escondidos em baixo de uma mesa e cobertos com um lençol, na sala dos monitores, que, conforme confirmado pelo diretor, era acessível somente aos próprios monitores.

50. Ao final de sua visita, o Relator Especial entrevistou dois menores que ele havia visto no dia anterior na Coordenadoria dos Promotores Públicos da Infância e da Juventude da Cidade de São Paulo. Segundo a informação recebida, quando eles foram levados de volta para Franco da Rocha na companhia de seis outros internos que haviam estado com eles no escritório dos promotores públicos, vários monitores, bem como algumas pessoas que eles não puderam identificar como monitores de Franco da Rocha, estavam esperando por eles no corredor. Eles alegaram ter sido severamente espancados com canos de ferro e cabos de madeira, socos e pontapés. Em seguida, eles teriam sido forçados a tomar um banho frio, supostamente para fazer as marcas desaparecer. Os menores alegaram que, durante a noite, cerca de 30 monitores mascarados – comumente chamados de "ninjas" pelos detentos – entraram em suas celas e começaram a indiscriminadamente espancar todos eles com barras de ferro. Alguns, então, teriam sido tirados das celas e levados para um pequeno cômodo escuro por uma hora e meia, onde, com as mãos atrás da cabeça, eles teriam sido ameaçados de serem espancados novamente. Quando da entrevista, marcas de espancamentos recentes – que não estavam presentes no dia anterior quando o Relator Especial os entrevistou no escritório dos promotores públicos – eram visíveis em seus corpos, principalmente nas costas. Questionados pelo Relator Especial sobre as marcas recentes, os monitores disseram que elas certamente haviam sido auto-infligidas pelos detentos quando tomaram conhecimento de que o Relator Especial estava visitando a unidade. Diante da natureza das marcas, particularmente os hematomas que puderam ser vistos nos corpos dos detentos e que claramente não haviam sido auto-infligidos nas horas anteriores, o Relator Especial não se convenceu por essa explicação.

51. Como faz ao final de toda visita a um estabelecimento de detenção, o Relator Especial solicitou que o diretor de Franco da Rocha adotasse medidas específicas para assegurar que os menores que haviam colaborado com ele e com sua equipe não fossem submetidos a quaisquer represálias. Dado o fato de que se acreditava que os menores com os quais ele havia falado na Promotoria Pública já haviam sido submetidos a espancamentos como forma de represália por haverem cooperado com o Relator Especial, este solicitou especificamente que o diretor agisse com devida diligência nesse caso. Também é preciso observar que, por medo de represálias, um grande número de internos havia se recusado a ser chamado pelo Relator Especial ao final de sua visita para serem entrevistados individualmente e em caráter confidencial. A maioria deles observou que, de qualquer modo, após a partida do Relator Especial, eles seriam espancados por terem falado com ele. Em 28 de agosto de 2000, o Relator Especial foi informado pelos Promotores Públicos da Infância e da Juventude da Cidade de São Paulo que o haviam acompanhado durante sua visita a Franco da Rocha, que pelo menos três menores que ele havia conhecido haviam sido submetidos a intimidação e represálias, inclusive espancamentos, por monitores, alguns dos quais teriam usado capuzes, após sua partida de Franco da Rocha. Segundo a informação recebida, eles disseram aos menores que aquilo era em retaliação pela visita do Relator Especial à unidade e pelas entrevistas e informações que eles lhe haviam dado. Além disso, o Relator Especial foi informado que, desde sua visita, um grande número de menores, principalmente os detidos nas alas G e H, duas das alas visitadas, haviam sido trancados em suas celas 24 horas por dia. Foi informado que o diretor, quando solicitado pelos Promotores Públicos a tomar medidas no sentido de assegurar o direito à integridade mental e física dos menores detidos em sua unidade, disse que, devido ao grande número de menores detidos sob sua responsabilidade, ele não podia controlar todos os seus subordinados. No mesmo dia, o Relator Especial enviou um apelo urgente às autoridades federais e estaduais competentes.

52. Quando de volta a Brasília, o Relator Especial foi informado pelas autoridades que, após seu apelo urgente, o Secretário de Estado para Direitos Humanos havia se reunido imediatamente com as autoridades competentes em São Paulo. Mediante carta datada de 5 de setembro de 2000 da Missão Permanente do Brasil nas Nações Unidas em Genebra, o Governo brasileiro informou que estava profundamente preocupado com esses relatos e que estava plenamente comprometido com seu imediato esclarecimento. O Secretário Estadual de Desenvolvimento Social afirmou, em subsequente comunicação por escrito enviada ao Relator Especial, que havia sido instaurada uma sindicância administrativa. Dois menores foram levados ao Instituto Médico Legal, que concluiu que eles não haviam sido espancados. Além disso, o diretor da unidade de Franco da Rocha teria negado completamente os fatos e dito que os adolescentes entrevistados pelo Relator Especial e pelos Promotores Públicos eram os que haviam organizado a rebelião de 10 de agosto. O Relator Especial foi posteriormente informado que, após solicitação dos Promotores Públicos, os menores em questão haviam sido transferidos para outra unidade da FEBEM, da qual, na noite de sua chegada, eles haviam fugido após terem tomado alguns monitores como reféns. Outro inquérito foi, portanto, instaurado para apurar esses fatos. Por fim, o Secretário informou que o diretor havia sido interpretado equivocadamente quando teria dito que não tinha controle sobre todos os seus subordinados. Esse incidente é objeto de acompanhamento direto junto ao Governo.

53. Por fim, o Relator Especial reuniu-se com o Presidente do Sindicato dos Trabalhadores de Entidades de Assistência ao Menor e à Família do Estado de São Paulo, que explicou que o Sindicato vinha advertindo as autoridades da FEBEM sobre a situação explosiva em Franco da Rocha ao longo dos últimos meses, devido ao fato de a unidade não ter sido projetada como um local de reeducação, e sim como uma prisão, e por haver um número excessivo de detentos mantidos ali, principalmente em comparação com o número de monitores e assistentes técnicos. Ele acreditava que transgressores de menor gravidade e viciados em drogas não deveriam ser mantidos na unidade. O Presidente chamou a atenção do Relator Especial para o fato de que, devido às condições de trabalho muito difíceis nas unidades da FEBEM, tais como plantões que se estendem por mais de 24 horas e uma situação de muito estresse, principalmente durante rebeliões ou tentativas de fuga, muitos funcionários, mais de 300 trabalhadores, estavam de licença para tratamento de saúde por depressão e outras causas psicológicas e não eram substituídos por outros funcionários. Também foi reconhecido o fato de que alguns estavam gozando de licença-saúde injustificada por longos períodos. Além disso, foi mencionado que o pessoal de licença para tratamento de saúde estaria sob pressão para voltar ao serviço, se não quisessem perder 50% de seu salário em breve. Contudo, o Presidente do Sindicato expressou seu compromisso para com os programas de reabilitação e sua esperança de que eles poderiam ser efetivamente implementados em boas condições. Segundo o Presidente do Sindicato, a maioria das rebeliões é prevista pelos monitores, que, assim sendo, informam as autoridades da FEBEM, as quais supostamente não levam suas advertências em consideração.

C. Rio de Janeiro

1. Delegacias de Polícia

54. Em 31 de agosto, o Relator Especial visitou a 1ª delegacia legal inaugurada no estado do Rio de Janeiro em março de 1999. As delegacias legais fazem parte de um amplo projeto de construção de delegacias de polícia cuja arquitetura é projetada para ser transparente ao monitoramento externo. O Relator Especial considerou essa iniciativa como das mais positivas. Ele, no entanto, observou que a cela de 1,5 metro quadrado na qual as pessoas permaneceriam por algumas horas apenas, era desprovida de iluminação. A ausência de luz foi justificada por razões de segurança. Ninguém teria sido detido nessa delegacia de polícia por mais de 24 horas. Quatro dessas delegacias legais deveriam estar em funcionamento e, até o fim da atual administração, em 2002, todas as delegacias de polícia seriam desse modelo.

55. No mesmo dia, o Relator Especial visitou a Delegacia do 54º Distrito Policial, de onde todos os detentos haviam sido transferidos em 15 de agosto para a Penitenciária de Bangu ou para a Delegacia do 64º Distrito Policial, uma vez que as instalações da 54ª Delegacia foram convertidas em uma delegacia legal. Na Delegacia do 64º Distrito Policial, 272 pessoas estavam detidas quando da visita do Relator Especial, enquanto a capacidade oficial seria de 150. Os detentos, segundo o informado, teriam permissão para sair de suas celas durante o dia e passavam a maior parte de seu tempo diurno em um pequeno pátio com pouca luz natural. Cinqüenta e sete pessoas estavam detidas em uma cela muito quente, suja e com forte mau cheiro, medindo aproximadamente 30 metros quadrados. Havia poucos colchões no chão. Um buraco era usado como vaso sanitário e chuveiro. O Relator Especial observou que a distribuição de detentos entre as diferentes celas não era uniforme. Os detentos explicaram que tinham de pagar os agentes carcerários para serem transferidos para uma cela menos lotada. A delegada justificou a distribuição efetiva pelo fato de que os detentos tinham de ser divididos segundo a gangue (criminosa) à qual pertenciam, a fim de se evitar a violência entre os detentos. O Relator Especial observou que, durante o dia, todos os detentos supostamente estariam misturados no pátio e que não havia relatos de qualquer briga deflagrada por essa situação. A delegada, então, queixou-se da situação de superpopulação que era obrigada a enfrentar por causa da falta de vagas nas penitenciárias. No entanto, ela também reconheceu que nunca havia entrado na carceragem.

56. A maioria dos detentos queixou-se de espancamentos quando da prisão e durante o interrogatório preliminar, quando eram instados a assinar uma confissão. Um grande número dos detentos alegou que eles haviam sido espancados por policiais tanto nessa delegacia de polícia quanto na 64ª Delegacia de Polícia, da qual muitos provinham (ver anexo). Muitas queixas também se referiam aos presos de confiançaNT, que receberiam canos de ferro ou tacos de madeira dos agentes carcerários e mantinham a ordem espancando outros detentos. Os detentos informaram que esses instrumentos eram mantidos pelos presos de confiança em suas celas, localizadas na entrada da carceragem, em frente ao escritório dos agentes carcerários. Essas duas celas eram muito limpas e bem providas de colchões e fogões, bem como outros artigos de uso pessoal. Escondido sob uma das camas, o Relator Especial descobriu um cacetete de borracha e dois cacetetes de madeira com alças, bem como algumas barras de ferro. Questionado, o chefe da carceragem informou que os presos de confiança usavam as barras de ferro para verificar a solidez das barras das celas. Não foi dada qualquer explicação para a presença dos três instrumentos encontrados. A delegada garantiu ao Relator Especial que tomaria as medidas necessárias e investigaria o comportamento do chefe da carceragem.

2. Um centro de detenção pré-julgamento

57. Em 30 de agosto, o Relator Especial visitou a Casa de Custódia Muniz Sodré, um dos centros de detenção provisória do Complexo Penitenciário de Bangu. Naquela data, 1.577 detentos eram mantidos nas 24 celas oficialmente construídas para comportar 62 pessoas cada, ou seja, um total de 1.488 detentos. O centro de detenção é dividido em dois grandes pavilhões, cada um com 12 celas. De acordo com o diretor, embora Muniz Sodré seja um centro de detenção pré-julgamento, cerca de 40% dos presos de fato estavam cumprindo ali suas penas – as quais, na maioria dos casos, eram objeto de recurso – e deviam, portanto, ter sido transferidos para outras instalações. Diante da situação geral de superlotação no estado, o diretor informou que não era possível saber quando tais transferências ocorreriam. No entanto, ele assegurou ao Relator Especial que os presos condenados eram separados dos detentos que aguardavam julgamento.

58. O diretor informou que os detentos tinham permissão para sair de suas celas quatro horas por dia, em turnos, o que mais tarde foi negado pelos detentos entrevistados pelo Relator Especial. Os detentos alegaram que somente eram somente podiam sair de suas celas uma vez por semana, durante duas horas, quando recebiam visitas. As celas estavam limpas, bem iluminadas e arejadas, os sanitários e chuveiros eram separados da parte principal da cela. Em uma das celas visitadas, havia 68 presos, o que significa que seis presos tinham de dormir no chão. Todos os presos, no entanto, tinham seus próprios colchões e cobertores.

59. O Relator Especial visitou as celas de castigo, onde, de acordo com o registro, havia 8 detentos. Oito detentos, seminus, estavam detidos em condições muito básicas naquela data. Os detentos, em sua maioria, informaram que haviam sido castigados por terem brigado com outros detentos e alguns se queixaram de terem sido espancados por agentes penitenciários quando foram transferidos para as celas de castigo. Todos disseram que 12 detentos – que eles acreditavam estar em más condições por causa dos espancamentos a que teriam sido submetidos após uma tentativa de fuga – haviam sido tirados recentemente das celas de castigo.

60. O Relator Especial, então, visitou a cela de onde esses detentos teriam saído. Os presos ali presentes informaram que, em 28 de agosto, havia ocorrido uma busca geral em sua cela, após uma tentativa de fuga a partir de outra cela durante a noite de 26 para 27. Eles não sabiam por que haviam sido alvo da busca, uma vez que a tentativa de fuga se deu em outra cela. Após a busca, alguns detentos se queixaram do desaparecimento de alguns artigos pessoais. Acredita-se que, por causa dessas queixas, eles teriam sido levados, passando primeiro pelo chamado corredor polonês, até o pátio, onde foram severamente espancados por cerca de 50 agentes penitenciários, acompanhados por integrantes de forças especiais da polícia, que usaram cabos de madeira e canos de ferro, alguns dos quais enrolados em fios, durante 5 ou 6 horas. O Diretor e o Subdiretor de Segurança também teriam participado dos espancamentos. De acordo com os detentos, um deles havia ficado gravemente ferido. No mesmo dia, ele tinha de comparecer perante um juiz, que teria ordenado sua transferência para um hospital. Todos os 70 detentos mantidos nessa cela naquela data apresentavam marcas visíveis e recentes (contusões, hematomas e arranhões em várias partes do corpo), consistentes com suas alegações. Os detentos informaram que 5 deles, que se encontravam em mau estado e cujos nomes foram informados ao Relator Especial, haviam sido tirados da cela pouco antes da chegada do Relator Especial. Os agentes penitenciários disseram que os detentos haviam sido levados ao Instituto Médico Legal (IML), mas que deveriam ser levados de volta a Muniz Sodré na mesma noite, se houvesse veículos disponíveis. Após ter esperado por algumas horas, o diretor assegurou ao Relator Especial que os 5 detentos mencionados acima seriam levados de volta à penitenciária.

61. Naquela noite, entrevistados individualmente pelo Relator Especial, os 5 detentos (Jailson Thaumaturgo da Rocha Júnior, Alexandre Arantes, Flávio Ailton da Silva, Paulo Sérgio Souza de Oliveira e Roberto da Costa Santiago) confirmaram as denúncias feitas por seus colegas de prisão. Eles também confirmaram ter sido examinados por médicos do IML na ausência de quaisquer agentes penitenciários. Todos apresentavam lesões graves, algumas das quais precisavam ser tratadas com pontos, e grandes contusões (ver anexo). Por fim, eles confirmaram que o preso que acreditavam ter sido o mais gravemente ferido havia sido levado para comparecer ao tribunal, de onde ele teria sido levado diretamente para um hospital. O Relator Especial solicitou que o diretor descobrisse onde esse detento estava sendo mantido. Decorrida cerca de uma hora, o diretor informou que ele havia sido transferido à Penitenciária Vieira Ferreira Neto. Segundo o diretor, esse detento havia sido levado para essa penitenciária porque, do contrário, ele seria submetido a violência por parte dos outros presos. Diante dos testemunhos recebidos dos colegas de prisão desse detento, os quais se mostraram extremamente preocupados com o seu paradeiro e bem-estar, o Relator Especial acredita que essa não foi uma explicação plausível para sua transferência para outro centro de detenção. Na Penitenciária Vieira Ferreira Neto, o Relator Especial pôde entrevistar Alexandre Madado Pascoal (ver anexo), que pareceu estar extremamente fraco e sofrer intensa dor. Ele confirmou ter sido levado para aquela penitenciária naquela noite, por volta da meia noite. Com a diligente ajuda do guarda de plantão em Vieira Ferreira Neto, Alexandre Madado Pascoal foi levado, em uma maca, até uma unidade médica vizinha, onde um médico, chocado, determinou que ele fosse transferido para um hospital. Informado da situação pelo Secretário Estadual de Justiça, o Secretário Adjunto de Direitos Humanos e o Chefe de Segurança do Sistema Penitenciário foram ao encontro do Relator Especial por volta das 2:00 da madrugada e registraram o testemunho de Alexandre Madado Pascoal. Eles asseguraram que ele receberia tratamento médico adequado e seria protegido contra represálias. O Relator Especial também foi informado, na ocasião, que o Secretário de Justiça já havia decidido afastar de seus respectivos cargos o Diretor de Muniz Sodré e seu Chefe de Segurança, até que se concluíssem as investigações. O Relator Especial solicitou especificamente que as autoridades tomassem as medidas necessárias, inclusive a instauração de uma investigação penal para apurar as alegações de tortura. Esse incidente é objeto de acompanhamento direto junto ao Governo.

3. Um centro de detenção pré-julgamento para menores infratores

62. Os menores infratores no estado do Rio de Janeiro são mantidos em instituições sob a jurisdição da Secretaria de Justiça e, mais especificamente, do DEGASE. A convite das autoridades, o Relator Especial visitou, em 29 de agosto, o Instituto Padre Severino, onde 193 menores, na faixa etária de 14 a 18 anos, estavam detidos naquela data, enquanto a capacidade oficial seria de 160. O diretor informou que havia apenas 7 monitores por turno, o que – frisou ele – dificultava a tarefa de se assegurar a ordem. A maioria dos menores mantidos nessa instituição, segundo a informação recebida, estaria aguardando julgamento ou sentença, uma vez que Padre Severino deve servir como centro de detenção pré-julgamento e local de pré-triagem, onde os menores ficam detidos por até 45 dias (ver abaixo) antes de serem transferidos para outras unidades do DEGASE, se assim necessário. O diretor, no entanto, reconheceu que 40% dos detentos estavam efetivamente cumprindo suas penas. Segundo o diretor, 90% dos menores mantidos na unidade naquela data tinham acesso a educação, ao mesmo tempo em que admitiu que somente os jovens sentenciados tinham acesso a atividades educacionais e recreativas. Durante sua visita, o Relator Especial viu alguns jovens tendo aulas em diferentes salas de aula, enquanto três foram observados trabalhando em máquinas de costura em uma oficina. De acordo com organizações não-governamentais que visitam regularmente centros de detenção de menores infratores, e conforme posteriormente confirmado pelos menores entrevistados, aquela era a primeira vez que tais aulas ocorriam em Padre Severino.

63. As celas são divididas entre duas alas separadas por um grande pátio, no qual os menores estavam jogando quando da visita do Relator Especial. As celas eram muito diferentes umas das outras. Todas elas tinham camas de cimento. Em algumas celas, todas as camas estavam cobertas com colchões de espuma de espessura fina, ao passo que em outras, a maioria das camas não tinha colchão. O diretor afirmou ao Relator Especial que todos os detentos, mesmo os 36 que tinham de dormir no chão devido à situação de superpopulação, dispunham de um colchão à noite. Os detentos confirmaram que somente um pequeno número deles não dispunha de colchões. Alguns cobertores sujos também foram mostrados ao Relator Especial. Os sanitários e banheiros eram, de um modo geral, separados do dormitório por uma parede. Todas as celas haviam sido limpas recentemente (de acordo com os internos, elas eram limpas uma vez por semana), porém em algumas ainda havia um forte cheiro proveniente dos sanitários. O sistema de abastecimento de água, inclusive a descarga dos vasos sanitários, seria controlado de fora das celas unicamente pelos monitores. As celas eram desprovidas de iluminação, uma vez que, conforme explicado pelo diretor, as lâmpadas eram usadas pelos internos para acender cigarros, o que representava um perigo em potencial. Todas as celas eram bem ventiladas, função das paredes vazadas. Os internos se queixaram de que, à noite, as celas às vezes ficavam muito frias e que era proibido tapar as muitas aberturas das paredes com jornais, por exemplo. Um menor alegou que um monitor lhe havia dado tapas no rosto e o havia agarrado pelo pescoço, como punição por ter tentado tapar as aberturas nas paredes algumas noites antes da visita do Relator Especial. Na data da visita (29 de agosto), ainda eram visíveis marcas consistentes com suas alegações, em particular, um hematoma do tamanho de uma mão no lado esquerdo de seu rosto, bem como alguns arranhões no pescoço.

64. Foi informado que os menores passavam a maior parte do dia no pátio, de 5:00 às 18:00, e que somente eram permitidas visitas de seus pais, aos domingos. Vários dos jovens de mais idade queixaram-se do fato de que suas esposas e seus filhos não tinham permissão para visitá-los. Muitos dos menores queixaram-se de monitores que lhes haviam espancado e batido no rosto, por tentativa de fuga, brigas entre os internos e desobediência às regras disciplinares internas, particularmente a regra de silêncio à noite, que incluiria também uma proibição de se usar o sanitário. Foi alegado que os monitores muitas vezes lhes perguntavam em quais partes do corpo eles preferiam ser espancados. Alguns ainda apresentavam marcas consistentes com suas alegações, principalmente hematomas na cabeça/ rosto, nos ombros e nas costas, bem como lesões mais graves, tais como feridas abertas (ver anexo). Alguns informaram ter sido ameaçados recentemente por alguns dos monitores do turno noturno com uma arma. De acordo com a informação recebida, alguns dos adolescentes haviam passado até dois meses nas celas de castigo, onde teriam ficado trancados 24 horas por dia. Eles tinham de dividir um colchão com um ou dois outros internos.

D. Estado de Minas Gerais

1. Delegacias de polícia

65. Em 3 de setembro, o Relator Especial visitou a carceragem da delegacia de polícia encarregada de casos de furtos e roubos em Belo Horizonte, na qual 280 pessoas estavam detidas em 21 celas naquela data. Foi informado que eles eram mantidos 24 horas por dia nas celas, exceto uma vez por mês, quando – após serem obrigados a se despir e forçados a manter suas bocas bem abertas até chegarem ao pátio – eram levados para um banho de sol, enquanto suas celas eram revistadas e lavadas com água, o que deixava todos os artigos de uso pessoal, particularmente os cobertores, completamente molhados. De acordo com a informação recebida, as celas eram revistadas em outras ocasiões também, até duas vezes por semana. O delegado explicou ao Relator Especial que isso era considerado necessário diante do grande número de tentativas de fuga e incidentes violentos que ocorriam nessa carceragem policial. A cada quinzena, os detentos teriam permissão para receber visitas durante uma hora. Porém, somente seus pais teriam autorização para visitá-los. Não havia colchões nas celas e os detentos, assim, estavam dormindo no piso de concreto, com cobertores sujos que, segundo informado pelos detentos, eles não eram autorizados a lavar. No fundo de cada cela, um buraco usado tanto como sanitário quanto banheiro era separado da parte principal da cela por lençóis colocados pelos próprios detentos para assegurar alguma privacidade. Foi informado que somente água fria corria da torneira muito básica usada para o banho. O delegado foi o primeiro a se queixar das condições de detenção um tanto precárias e lamentou que recursos materiais e humanos tinham de ser usados para a carceragem, em vez de para a atividade de investigação criminal, principal função da polícia civil.

66. Em uma cela que media aproximadamente 20 metros quadrados, estavam detidas até 18 pessoas. Os detentos, em sua maioria, já haviam sido sentenciados. Eles explicaram ao Relator Especial que, para serem transferidos para uma penitenciária, onde as condições de detenção eram consideradas melhores, era necessário pagar uma certa quantia de dinheiro ao chefe da carceragem policial. O delegado disse que o Superintendente da Organização Penitenciária era responsável pelas transferências, que, entretanto, são efetuadas com base em suas recomendações como chefe da delegacia. Um grande número dos detentos pareceu ao Relator Especial estar carente de atendimento médico urgente e seus casos foram encaminhados à atenção do delegado, que disse que imediatamente seriam tomadas as medidas necessárias. Por fim, é preciso observar que os detentos, em sua maioria, informaram haver sido espancados quando da prisão e/ou durante o interrogatório (ver anexo).

67. Em 4 de setembro, o Relator Especial visitou a Delegacia de Polícia de furtos e roubos de veículos (DETRAN). Quarenta e dois detentos encontravam-se detidos em 5 celas. O delegado reconheceu que eram precárias as condições em que eles estavam detidos. Em particular, ele informou que eles não podiam ter permissão para sair de suas celas devido à falta de um pátio nessa delegacia de polícia. Até 9 pessoas encontravam-se detidas em uma cela de aproximadamente 12 metros quadrados e estavam dormindo no piso de concreto descoberto. Um buraco era usado tanto como sanitário quanto banheiro e era separado da parte principal da cela por plásticos colocados pelos detentos. O delegado disse que 30% das pessoas mantidas ali já haviam sido sentenciados. O Relator Especial observa que muitos dos detentos se recusaram a falar por medo de represálias, enquanto alguns fizeram alegações de espancamentos durante o interrogatório com o propósito de extrair-lhes confissões.

68. No mesmo dia, o Relator Especial visitou a carceragem feminina da principal delegacia de polícia de Belo Horizonte, o Departamento de Investigação. Acredita-se que essa seja a única carceragem policial feminina da cidade. Na ocasião, 104 mulheres encontravam-se detidas em 8 celas limpas. As detentas, em sua maioria, já haviam sido sentenciadas e expressaram a esperança de em breve serem transferidas para uma penitenciária. Algumas se queixaram de tortura, inclusive violência sexual, à qual teriam sido submetidas quando da prisão ou durante o interrogatório inicial (ver anexo), e a maioria delas reconheceu ser bem tratada pela equipe de policiais, inclusive policiais do sexo masculino às vezes encarregados da carceragem. A maioria das queixas referia-se à lentidão do processo judicial.

2. Uma penitenciária

69. Em 3 de setembro, o Relator Especial visitou a Penitenciária Nelson Hungria, que lhe pareceu uma penitenciária relativamente moderna, composta de 12 pavilhões nos quais os presos eram mantidos em celas individuais de 6 metros quadrados. Cada cela continha um chuveiro e um vaso sanitário. As celas estavam limpas e continham um colchão e artigos pessoais, tais como televisores e aquecedor de água. A capacidade oficial é para 721 presos, mas apenas 701 presos estariam mantidos na penitenciária naquela data. Foi informado que todos os presos trabalhavam durante o dia, à exceção de 5 detentos, que teriam se recusado. Esse foi o único estabelecimento prisional no qual os detentos não se queixaram da qualidade da comida. O encarregado da prisão naquela data, o Diretor de Reeducação e Ressocialização, explicou ao Relator Especial que uma ala hospitalar havia sido construída, porém nunca havia sido aberta por falta de pessoal médico. Um médico e uma enfermeira voluntária eram os únicos profissionais disponíveis para realizar o exame inicial e recomendar transferências para hospitais, quando necessário.

70. O Diretor de Reeducação e Ressocialização explicou ao Relator Especial que todas as queixas de maus tratos expressas pelos detentos são objeto de uma sindicância interna determinada pelo Diretor Geral de Nelson Hungria para um de seus subdiretores, ou seja, de reeducação e ressocialização, de segurança ou de associação e segurança. Ele explicou ainda que, quando se fazia necessário um laudo médico, a suposta vítima tinha, primeiramente, de ser levada a uma delegacia de polícia, onde era preciso preencher um formulário antes de qualquer detento poder ser levado ao Instituto Médico Legal. Ele informou que, ao longo dos últimos cinco anos e seis meses, 47 agentes penitenciários haviam estado sob investigação interna. Apenas dez deles haviam sido considerados culpados e demitidos pelo Superintendente da Organização Penitenciária. Não foi oferecida qualquer informação sobre a instauração de processo penal contra esses agentes.

71. Um décimo terceiro pavilhão era utilizado como Centro de Observação Criminológica (COC), onde os presos recentes seriam levados inicialmente para permanência por um período de observação de 30 dias, durante o qual eles passariam por vários exames psicológicos, médicos e sociológicos. Também foi explicado ao Relator Especial que, durante esse período, o Diretor Geral da penitenciária se reúne com cada preso individualmente para explicar-lhes as regras disciplinares internas. Os presos detidos naquela data no COC informaram que eles ainda não haviam sido examinados por qualquer pessoa, ao passo que alguns disseram já terem passado mais do que uma quinzena naquele pavilhão. Eles esperavam ser transferidos para um pavilhão normal assim que houvesse liberação de celas. Alguns dos presos mantidos no COC queixaram-se de haver sido gravemente espancados no corredor desse pavilhão na noite de sua chegada. Eles teriam sido obrigados a se encostar contra a parede e teriam sido chutados e espancados nas costelas e nas costas com pedaços de madeira e enxadas por cerca de quinze minutos. Foi informado que isso teria acontecido durante algumas noites. Segundo a informação recebida, eles também foram ameaçados de ser enterrados em um cemitério clandestino. Os detentos acreditavam que apenas uma equipe de agentes penitenciários noturnos era responsável por esses espancamentos.

72. Ao final da visita, o Relator Especial se reuniu com alguns agentes penitenciários. Embora eles tenham reconhecido que não havia compromisso por parte de todos eles, eles se queixaram da falta de treinamento e da carga de trabalho a que eram submetidos devido à escassez de pessoal. Foi informado que dois terços do pessoal penitenciário eram contratados em regime temporário (contratos administrativos) e não recebiam qualquer treinamento em absoluto. No que se refere aos turnos de plantão, foi informado que eles trabalhavam 12 horas e descansavam as 24 horas seguintes. Por fim, os agentes penitenciários destacaram o alto nível de estresse a que eram expostos, o que reconhecidamente levava a um certo nível de agressividade para com a população de detentos e a problemas psicológicos entre a maioria do pessoal penitenciário.

E. Estado de Pernambuco

1. Delegacias de Polícia

73. Em 6 de setembro, o Relator Especial visitou a delegacia de polícia do 16º Distrito Policial de Ibura (Recife), onde não havia sequer um suspeito sendo interrogado ou detido, apesar de esse bairro ser considerado uma área de alta criminalidade. O delegado explicou que, mesmo em dias de semana, apenas duas ou três pessoas eram levadas àquela delegacia por dia. O delegado, no entanto, não pôde especificar o período de tempo médio durante o qual uma pessoa fica detida naquela delegacia de polícia. O Relator Especial observou as condições de trabalho deploráveis do pessoal policial. O teto de um dos escritórios estava caindo aos pedaços; os arquivos criminais estavam empilhados sobre mesas devido à falta de arquivos/fichários; o banheiro dos policiais era imundo e não dispunha de um mínimo de conforto. Em um dos escritórios, onde supostamente ocorriam os interrogatórios, o Relator Especial descobriu alguns cabos de madeira, bem como uma palmatória, um pedaço de madeira de aspecto semelhante ao de uma colher plana e grande, que teria sido usada no passado para espancar a palma das mãos e a sola dos pés dos escravos. O delegado informou que esses instrumentos não haviam sido usados por muito tempo. A palmatória e os cabos estavam, com efeito, cobertos de poeira. A carceragem era composta de duas celas, medindo aproximadamente três metros quadrados, muito sujas e com um forte mau cheiro e, em um canto, um buraco cheio de excrementos. Segundo a informação recebida posteriormente, o delegado foi afastado do cargo para se realizarem investigações referentes à palmatória e à falta de registros apropriados.

O Relator Especial, então, visitou a Delegacia do 15° Distrito Policial de Cavaleiro (Recife), onde não havia sequer um suspeito detido naquela data. Uma vez mais, as condições de trabalho pareceram precárias ao Relator Especial. Um investigador chamou a atenção do Relator Especial para a falta de recursos materiais elementares, tais como papel, máquinas de escrever ou arquivos/fichários. Ele observou ainda que, não obstante o fato de serem muito comuns tiroteios na área sob a jurisdição dessa delegacia, os policiais não haviam recebido coletes à prova de bala. Para sua segurança, o investigador havia, portanto, decidido adquirir um colete à prova de balas com seu próprio dinheiro. Ele também destacou que, em uma área de criminalidade violenta, ele havia tido de adquirir sua própria arma e informou que não existia qualquer regra que exigisse que ele protocolasse um relatório quando a descarregava. A carceragem consistia de duas celas completamente escuras, medindo aproximadamente dois metros quadrados e, em um canto, um buraco usado como sanitário, localizado ao fim de um pequeno corredor sem luz. O delegado informou que ninguém havia ficado detido nessas celas por mais de três horas. Na sala dos investigadores, o Relator Especial descobriu algumas barras de ferro que, segundo as autoridades, seriam peças probatórias. O Relator Especial, no entanto, observou que essas peças não estavam etiquetadas como tais e, portanto, não acreditou que essa fosse uma explicação plausível. O Relator Especial confirmou a informação que ele havia obtido na delegacia de polícia anterior, isto é, que não existe qualquer livro de registro padrão no qual todas as informações relativas a um determinado caso são registradas, particularmente quando uma pessoa é levada à delegacia e solta ou transferida para outro estabelecimento.

75. Por fim, o Relator Especial visitou o 1° Distrito Policial, encarregado de furtos e roubos, onde não havia sequer um suspeito sendo interrogado ou mantido naquela data. A carceragem consistia de duas celas grandes e completamente escuras. O delegado informou que as pessoas geralmente eram detidas por apenas algumas horas. Mais tarde, após o Relator Especial ter consultado o livro de registro, o delegado, no entanto, reconheceu que um grupo de pessoas recentemente havia ficado detido naquela delegacia de polícia por oito dias, antes de ter sido possível transferi-los em caráter de prisão provisória para uma penitenciária em outro estado. Nos fundos dessa delegacia de polícia havia doze celas grandes e completamente escuras, medindo aproximadamente 15 metros quadrados. Foi informado que elas já não vinham sendo usadas há muito tempo. A poeira e as teias de aranha pareciam confirmar essa afirmação. Para explicar a ausência de qualquer pessoa sob prisão policial, o delegado apresentou ao Relator Especial um livro de registro que indicava que apenas de dez a vinte e cinco pessoas eram presas por mês. Desde o começo de setembro, somente quatro pessoas haviam sido presas e, portanto, levadas até aquela delegacia de polícia. De acordo com o delegado, as pessoas mantidas naquela delegacia, em sua maioria, eram presas em virtude de um mandado judicial de prisão e acreditava-se que apenas 40% eram detidas após terem sido presas em flagrante delito. As organizações não-governamentais ficaram surpresas pelo fato de o Relator Especial não ter visto ninguém preso ou sendo interrogado durante sua visita a essas três delegacias de polícia, localizadas em bairros considerados de alta criminalidade. Segundo as ONGs, o fato de apenas um pequeno número de pessoas haver sido registrado como presas ou detidas nessas delegacias de polícia, conforme indicado nos livros de registro apresentados ao Relator Especial, poderia ser resultado da falta de um registro adequado das prisões e detenções efetuadas.

2. Uma penitenciária

76. Em 7 de setembro, o Relator Especial visitou a Penitenciária Aníbal Bruno, onde havia 2.971 detentos, enquanto a capacidade oficial dessa penitenciária, segundo as autoridades, era de 524. O problema da superlotação foi reconhecido como o problema mais difícil que a instituição tinha de enfrentar e enfatizou-se o fato de que, em quaisquer circunstâncias, o diretor dispunha de apenas quinze efetivos da polícia militar e oito agentes penitenciários com os quais assegurar a ordem e a segurança dessa penitenciária de grandes dimensões. Além disso, ele destacou que os policiais militares destacados para atuar na segurança das penitenciárias recebem apenas uma semana de treinamento, do qual as ONGs também participam. A situação de falta de pessoal também foi apresentada como explicação para o fato de que os presos tinham permissão para sair de suas celas por apenas algumas horas por dia. O diretor, no entanto, informou ao Relator Especial que desde sua nomeação em abril de 2000, não havia ocorrido qualquer rebelião. Várias medidas haviam sido tomadas para diminuir a tensão e manter a calma e a ordem entre a população carcerária, tais como permitir que as famílias passassem uma noite com seus parentes presos a cada quinzena. Foi informado que psicólogos, assistentes sociais, advogados, médicos e enfermeiros se faziam presentes regularmente na prisão e realizavam várias atividades com os presos, alguns dos quais também estavam trabalhando em pequenas unidades que haviam sido montadas em colaboração com o setor privado. No entanto, ao responder a uma pergunta levantada pelo Relator Especial, o diretor reconheceu que, durante a semana anterior, por exemplo, nenhum médico havia visitado a penitenciária. A única razão que ele pôde dar foi que havia uma falta de compromisso por parte de vários profissionais que trabalham com questões relativas à população carcerária. Ao final, o diretor informou que os presos estariam divididos segundo os crimes pelos quais haviam sido condenados.

O Relator Especial procurou informações suplementares sobre as denúncias constantes de um recente relatório produzido pelo Conselho Comunitário após uma visita feita em 11 de julho, durante a qual dois detentos se queixaram de haver sido espancados e que, naquela data, apresentavam marcas consistentes com suas denúncias. Com relação às queixas de maus tratos aos detentos, o diretor informou, primeiramente, que as supostas vítimas são imediatamente encaminhadas a um Instituto Médico Legal para se obter um laudo médico. Com relação a esse caso em particular, o diretor explicou que havia sido enviada uma notificação ao Comandante do Batalhão ao qual pertenciam os dois policiais supostamente implicados no incidente. Foi informado que haviam sido marcadas audiências para se decidir se o corregedor da Secretaria de Justiça dirigiria a investigação interna, conforme havia sido sugerido pelo próprio diretor. Devido ao problema da falta de pessoal, os dois policiais suspeitos ainda estavam trabalhando no mesmo pavilhão onde eram mantidas as duas supostas vítimas. No entanto, o diretor informou que eles só eram usados como pessoal de apoio e não tinham mais qualquer contato direto com os presos.

78. O Relator Especial visitou, primeiramente, as celas de castigo. Quinze detentos estavam presos em uma grande cela que continha apenas um colchão e poucos cobertores. Todos, exceto um, haviam recebido um castigo que durava de 20 a 30 dias. O Relator Especial observou que o livro de punição indicava que havia apenas 13 presos naquela cela. Embora um tenha sido levado à cela pouco minutos antes da visita do Relator Especial, um outro teria havia sido mantido naquela cela de castigo por dois dias. O diretor explicou que a decisão de castigar aquele detento que havia sido levado pelo Chefe de Segurança do pavilhão ainda não havia sido confirmada por ele. Nove outros presos, segundo o informado, estavam detidos em duas celas de castigo de isolamento especial, que continham camas, cobertores, colchões e outros produtos pessoais, tais como ventiladores. Eles informaram que suas esposas tinham permissão para visitá-los nessas celas e se queixaram da falta de intimidade nessas ocasiões. Eles estavam segregados dos demais supostamente porque eram considerados presos de alta periculosidade. De acordo com o diretor, qualquer decisão de punir um preso deve ser precedida por uma investigação, durante a qual o preso, no entanto, tem a oportunidade de se defender. Para a defesa, unicamente o preso encarregado da vigilância do pavilhão é ouvido. A maioria, senão todos os detentos entrevistados pelo Relator Especial nessas três celas de castigo nunca haviam sido interrogados e não sabiam em que estágio se encontrava o processo pelo qual haviam sido punidos. Eles também não sabiam a quantos dias haviam sido castigados. Foi informado que um deles teria passado mais de três meses em uma cela de castigo. Em sua maioria, os detentos se queixaram de haverem sido espancados antes de serem levados para a cela de castigo, em particular por policiais militares (ver anexo). Alguns informaram que haviam assinado um documento, expressando que eles haviam violado regras internas da penitenciária, por medo de serem espancados ou de serem mandados para a cela onde eram mantidos os membros da gangue (criminosa) inimiga. As ameaças dos agentes penitenciários de sujeitar um preso a violência por parte de outros presos, colocando-o em uma cela onde estão detidos os seus assim chamados inimigos, seria prática comum nessa penitenciária, segundo os relatos recebidos. Alguns dos presos acreditavam que essa violência havia resultado em mortes anteriormente. Segundo a informação recebida posteriormente pelo Relator Especial de ONGs fidedignas, alguns desses presos foram submetidos a represálias, inclusive espancamentos, quando o Relator Especial estava visitando outros pavilhões do estabelecimento (ver anexo). Esse incidente é objeto de acompanhamento direto junto ao Governo.

79. O Relator Especial, em seguida, visitou a grande cela de triagem, que media aproximadamente 35 metros quadrados, na qual os detentos recém-transferidos para a penitenciária eram mantidos antes de serem divididos segundo os crimes pelos quais haviam sido condenados e antes de ser traçado seu retrato psicológico. Trinta e um detentos estavam presos naquela data na cela de triagem, que não tinha colchões nem cobertores. A maioria deles já havia passado três ou quatro dias ali. Eles acreditavam que permaneceriam naquela cela até que se chegasse a um total de 100 presos. O diretor informou que os detentos eram mantidos nesse pavilhão por oito dias, período durante o qual passavam por exames médicos, psicológicos e outros exames ditos técnicos. A maioria dos detentos, senão todos, mostraram-se temerosos de falar com o Relator Especial por causa das possíveis represálias. Foi alegado que, antes da visita do Relator àquela cela, os presos haviam sido ameaçados por alguns agentes penitenciários para que não falassem com o Relator Especial. Alguns, no entanto, disseram que eles haviam sido espancados quando de sua chegada em Aníbal Bruno e durante exames técnicos (ver anexo). Foi informado que esses exames eram humilhantes.

F. Estado do Pará

1. Uma delegacia de polícia

80. Em 9 de setembro, o Relator Especial visitou a Delegacia de Polícia de Guama (Marabá). Os delegados de plantão chamaram sua atenção para as condições de trabalho. A título de exemplo, vale mencionar que eles trabalhavam em turnos de mais de 14 horas nos dias de semana e de 24 horas nos finais de semana. Foi informado que os recursos materiais e humanos eram escassos. Na sala de depósito e no sanitário, bem como no escritório do delegado, o Relator Especial descobriu vários cabos de madeira, inclusive tacos de sinuca, os quais, segundo informado, seriam peças probatórias de processos criminais. O Relator Especial, no entanto, observou que essas peças não estavam mantidas nas respectivas salas e não apresentavam qualquer etiqueta que o levasse a não considerar essa explicação implausível. Na carceragem, três pessoas estavam detidas naquela data, a saber, Fábio Tavares da Silva, Rilton de Silva Soares e Amadeu Almeida Pemental. Eles alegaram ter sido severamente espancados na noite de sua prisão e quando da chegada na delegacia de polícia; um deles ainda estava de cueca, sem suas roupas, uma vez que havia sido preso em sua casa no meio da noite e não havia sido autorizado a levar consigo suas roupas (ver anexo).

2. Centros de detenção pré-julgamento

81. No mesmo dia, o Relator Especial visitou o centro de detenção pré-Julgamento (Seccional Urbana) de São Braz, onde naquela data cerca de 80 pessoas estavam detidas em cinco celas em condições precárias. Embora localizadas em uma delegacia de polícia, as celas seriam vigiadas por agentes do sistema penitenciário, uma vez que se destinavam a detentos que aguardavam julgamento e, portanto, encontravam-se sob jurisdição da Secretaria Estadual de Justiça. Em cada cela, de aproximadamente 14 metros quadrados, havia 16 pessoas. Os detentos estavam dormindo no piso de concreto descoberto, uma vez que não havia sequer um colchão e apenas pouquíssimos cobertores a sua disposição. Foi informado que pertences pessoais – trazidos, por exemplo, por seus familiares – eram guardados pelos agentes penitenciários. Alguns detentos disseram que haviam tido de pagar os agentes penitenciários para finalmente poder receber artigos de uso pessoal, tais como creme dental ou sabonete, levados por suas famílias.

82. De acordo com os testemunhos recebidos, eles nunca tinham permissão para sair de suas celas, exceto quando recebiam visitas de seu advogado ou de parentes. O Relator Especial observou que a pele da maioria dos detentos, com efeito, era muito pálida. O agente de plantão na carceragem confirmou que a infra-estrutura do lugar não permitia aos detentos a exposição direta à luz natural, apesar de haver um pátio pequeno e sujo com abertura para o céu. A comida fornecida uma vez por dia pelo sistema penitenciário pareceu não só precária mas até podre ao Relator Especial. Os detentos disseram que seus familiares normalmente tinham permissão para dar-lhes alimentos, porém sem poder vê-los.

A maioria dos detentos nesse centro de detenção pré-julgamento não sabia em que estágio se encontrava o processo judicial contra suas pessoas. A maioria deles não havia tido uma audiência com um juiz desde sua prisão. Alguns estavam presos nesse centro de detenção por até 15 meses. De acordo com a informação recebida de detentos mantidos em diferentes celas, toda pessoa levada para essa cadeia fica, primeiramente, detida na cela de castigo, chamada "o forte", localizada na entrada da cadeia, e que media aproximadamente três metros quadrados. Quando o Relator Especial visitou "o forte", viu, em um canto, um buraco, usado como vaso sanitário, que estava cheio de excrementos. Foi alegado que até vinte pessoas podiam ficar detidas naquela cela por até dez dias. Alguns disseram ter sido mantidos naquela cela superlotada por até trinta dias. Foi relatado que os detentos usavam a água que saía do vaso sanitário como água de beber.

84. Entre as pessoas entrevistadas pelo Relator Especial (ver anexo), três detentos disseram haver sido presos recentemente por policiais militares e espancados com uma palmatória e um posto policialNT. Naquela data, ainda eram visíveis marcas consistentes com a alegação dos detentos, tais como um hematoma de forma redonda na parte superior da perna esquerda de José Ricardo Vianna Gomez, hematomas na parte superior do braço esquerdo de Márcio Furtado Correia Paiva, uma cicatriz inflamada e inchada de um a dois centímetros de comprimento em sua cabeça, bem como marcas observadas na parte direita das costas, ombros e braço de Valdi Aleixo Barata. No mesmo dia, o Relator Especial encontrou uma palmatória com um buraco no meio, no postoNT da polícia militar de Terra Firme, na qual estava inscrito "Tiazinha, chega-te a mim" e "Agora me dão medo", o que era consistente com a descrição dada pelas pessoas supracitadas.

85. Em 10 de setembro, o Relator Especial visitou o centro de detenção pré-julgamento (superintendência) de Marabá, localizado no mesmo prédio da Sede da Polícia. Naquela data, 74 pessoas estavam detidas em 14 celas divididas em torno a um grande pátio com abertura para o céu. Havia apenas alguns colchões em cada cela, sendo que a maioria dos detentos tinha de dormir em cobertores ou no piso de concreto descoberto. Os detentos se queixaram da qualidade da comida, que, como nos demais lugares visitados pelo Relator Especial, compunha-se de arroz e macarrão e pareceu ao Relator Especial ser de precária qualidade e muitas vezes podre. Eles relataram receber essa refeição uma vez por dia, para o almoço, e informaram receber café e pão para o café-da-manhã e o jantar.

86. Foi informado que os detentos saíam de suas celas durante duas horas por dia. Porém, de acordo com os detentos, eles só saíam das celas dia sim, dia não, por duas horas. Muitos deles se queixaram de tortura e outras formas de maus tratos quando da prisão, tanto por policiais militares quanto civis, e durante o interrogatório (ver anexo), mas todos reconheceram que, desde a nomeação do novo diretor daquele centro de detenção pré-julgamento, a situação havia melhorado muito no que se refere a maus tratos. Foi relatado que os espancamentos por agentes penitenciários não ocorriam mais. Além disso, o diretor informou que uma pessoa detida sob sua responsabilidade somente podia ser levada de volta por um investigador policial mediante ordem judicial.

O Relator Especial, em seguida, visitou a carceragem da Sede da Polícia. Quatro pessoas estavam sendo mantidas no pátio, enquanto um menor se encontrava detido em cada uma das duas celas. Embora o pátio estivesse limpo e fosse bem ventilado, o ar das duas celas tinha um mau cheiro muito forte e estava saturado. As duas celas eram absolutamente escuras e não tinham colchão. Os dois menores detidos ali haviam brigado na noite anterior. Um deles havia ferido o outro gravemente ao enfiar uma escova de dentes no pescoço e no estômago do outro, que havia recebido tratamento médico subseqüentemente. No entanto, as ataduras estavam com secreção e acreditava-se que os analgésicos que lhe haviam sido dados pelo médico haviam sido guardados pelo policial civil que o havia acompanhado. Os dois menores haviam passado mais de três meses nessas celas escuras, onde, devido a problemas de saneamento, eles haviam tido de fazer suas necessidades fisiológicas em garrafas ou sacos plásticos durante os últimos 15 dias antes da visita do Relator Especial.

De acordo com ONGs e alguns promotores públicos com que o Relator Especial se reuniu em Marabá, a violência policial é um grande problema na região e em outras áreas rurais remotas do país. Geograficamente distante do sistema judiciário, a polícia civil, segundo os relatos, assumiria funções tanto policiais quanto judiciais a um só tempo, sendo que os promotores públicos e juízes confiavam inteiramente nos inquéritos policiais, sem questionar as formas como são realizados. Com relação ao movimento agrário, foi relatado que tem sido muito violento o conflito entre proprietários de terra – que seriam, muitas vezes, funcionários da segurança pública e do Judiciário – e trabalhadores, inclusive envolvendo muitos casos de execuções extrajudiciais e tortura. Foi alegado que as forças policiais civis e militares atuavam como milícias privadas dos proprietários de terra. A resposta da capital, segundo informado, teria sido inadequada e as autoridades judiciais não teriam assumido suas responsabilidades normais.

II. PROTEÇÃO DE DETENTOS CONTRA A TORTURA

89. As normas de processo e execução penal no Brasil são definidas, principalmente, na legislação federal, a saber, o Código Penal (Decreto-Lei No. 2.848, de 7 de dezembro de 1940), o Código de Processo Penal (Decreto-Lei No. 3.689, de 30 de outubro de 1941) e a Lei de Execução Penal – LEP (Decreto-Lei No. 7.210, de 11 de julho de 1984), aplicáveis em todo o território brasileiro. Os Estados exercem total responsabilidade pelas atividades operacionais relativas à polícia e aos estabelecimentos de detenção, bem como pela execução de sentenças judiciais. Especialistas em direito e ativistas pró-direitos humanos enfatizam que, apesar de a proteção conferida pela lei nacional a suspeitos de crimes e detentos ser avançada e abrangente, em muitos casos, as normas legais cabíveis não são aplicadas na prática.

90. O Relator Especial observa que recebeu versões contraditórias ou inconsistentes no que se tange a várias disposições legais, principalmente com relação às referentes a prisão e detenção provisória (pré-julgamento), da parte de seus interlocutores oficiais, inclusive do Judiciário. Isso parece corroborar as alegações, tanto de detentos quanto de representantes da sociedade civil, que dão conta de que as garantias estabelecidas pela lei não são respeitadas na prática, pelo menos face ao fato de que elas não são conhecidas por todos aqueles a quem cabe implementá-las. Nesse particular, as ONGs e alguns funcionários, principalmente da Secretaria Estadual de Justiça do Rio de Janeiro, enfatizaram a necessidade de capacitação para policiais e agentes penitenciários, não só com relação a direitos humanos mas também com relação a técnicas de investigação e segurança.

91. A polícia estadual se divide em duas forças policiais autônomas, a saber, a polícia civil e a militar, ambas sob o controle do Governador do Estado. A responsabilidade pela grande maioria das atividades criminais foi atribuída à polícia civil, a quem cabe "exercer as funções de polícia judicial e apurar crimes, exceto os militares". A polícia militar, uma força policial fardada definida como "força auxiliar do exército", é encarregada de realizar as funções de policiamento público, inclusive a segurança externa das penitenciárias e a preservação a ordem pública.

A. Prisão

92. A Constituição Federativa da República do Brasil de 5 de outubro de 1988 estabelece que "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem por escrito e fundamentada de autoridade judiciária competente (...)" e que "a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada." No caso de prisão em flagrante, a jurisprudência, de acordo com o informado, estabeleceu que um período de detenção de até 24 horas antes que seja expedido um mandado de prisão provisória por um juiz é um período razoável. É preciso observar que o Artigo 310 do Código de Processo Penal estabelece que o juiz ouvirá o promotor público sobre a prisão. De acordo com a informação recebida, na prática, os juízes e os promotores públicos são informados pela polícia sobre qualquer prisão mediante uma comunicação por escrito. Não existe qualquer disposição legal que assegure que uma pessoa presa seja vista ou por um juiz ou por um promotor público dentro das primeiras horas de sua prisão. O Relator Especial, no entanto, observa que muitos, inclusive promotores públicos, acreditavam que uma pessoa presa em flagrante deve ser levada para comparecer perante um juiz dentro de 24 horas de sua prisão. Também foi relatado que nos termos da atual lei, a menos que a prisão se faça em flagrante delito, um promotor público será informado de uma prisão somente 30 dias depois. A Constituição dispõe sobre o direito a habeas corpus quando uma pessoa "sofre ou corre o risco de sofrer violência ou coerção contra sua liberdade de movimento, devido a ações ilegais ou a abuso de poder." Qualquer pessoa tem locus standi para dar entrada em uma petição de habeas corpus em sua própria defesa ou em defesa de outrem.

93. Uma vez que a polícia militar tem a competência constitucional de exercer o policiamento público, as prisões em flagrante geralmente são realizadas pela polícia militar, embora tenha sido relatado que a polícia civil, às vezes, também atua em tais ocasiões. Os policiais que efetuam a prisão são obrigados a levar o suspeito diretamente a um estabelecimento policial (delegacia), onde o caso é registrado. As delegacias são administradas pela polícia civil e chefiadas por um delegado, que, por lei, deve ser bacharel em Direito. A essa altura, a polícia militar não tem mais qualquer participação na investigação criminal correspondente. A Constituição estabelece que "o preso será informado de seus direitos (...), sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado". No entanto, parece não haver qualquer disposição legal específica referente ao período de tempo após o qual uma pessoa detida tem acesso a um advogado.

94. Com relação à assistência jurídica, o Artigo 5 (LXXIV) da Constituição estabelece que "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos." As ONGs e os advogados com que o Relator Especial se reuniu acreditam que 95% dos detentos se qualificam para tal assistência. À Defensoria Pública cabe proporcionar assistência jurídica a pessoas de recursos limitados, que seriam a grande maioria das pessoas presas. No entanto, em muitos estados, essas defensorias ainda não foram estabelecidas e foi informado que, praticamente em todos os lugares onde elas existem, há insuficiência de pessoal. Em decorrência disso, outros órgãos, tais como o Ministério Público do Estado de São Paulo, prestam serviços jurídicos a réus penais. Em outros casos, são nomeados advogados em caráter rotativo pro bono publico (advogados dativos). O Relator Especial também foi informado pelos Defensores Públicos do Rio de Janeiro que antigamente havia uma Defensoria Pública Especial (Núcleo de Defesa da Cidadania), que prestava assistência em delegacias de polícia a pessoas presas em flagrante. O serviço funcionava 24 horas por dia. Infelizmente, esse serviço teve de ser desativado porque não havia defensores públicos dispostos a trabalhar no serviço, dados os baixos salários e o fato de que, como promotores, eles receberiam um salário mais alto. Profissionais e ONGs também informaram que os defensores públicos raramente dedicam tempo adequado à representação de réus não-pagantes. Foi relatado que eles muitas vezes se reúnem com seus clientes na primeira, ou até mesmo segunda audiência e não necessariamente falam em defesa de seus clientes durante os julgamentos.

95. Durante suas visitas a carceragens policiais, o Relator Especial constatou que a maioria dos suspeitos acreditava que suas famílias não haviam sido informadas de sua prisão e seu paradeiro e que, na prática, as pessoas presas muito raramente eram assistidas por um advogado. Ao contrário, foi relatado que, nos poucos casos em que um detento contava com um advogado particular, este havia sido impedido de ver seus clientes até que se concluísse o processo preliminar. Os advogados informaram que eles muitas vezes vêm seus clientes pela primeira vez quando da primeira audiência judicial. Segundo os defensores públicos com os quais o Relator Especial se reuniu no Rio de Janeiro, nos termos de um decreto aprovado em 1995, os delegados devem enviar uma carta à Defensoria Pública informando-a da prisão dentro de três a quatro dias a contar da data da prisão. De acordo com promotores do Núcleo Contra a Tortura do Distrito Federal (Brasília), 97% dos suspeitos não são assistidos por um advogado durante a fase de investigação, enquanto na fase judicial, a maioria só é assistida por estudantes de direito. Foi informado que os estudantes não comparecem às delegacias de polícia e geralmente se reúnem com seus clientes pela primeira vez durante as primeiras audiências de instrução e que, portanto, não estão em condições de arrolar testemunhas.

96. O Relator Especial, durante visitas a delegacias de polícia, observou que, na maioria dos casos, não se mantinha qualquer registro oficial da hora e do local da prisão, nem da identidade dos policiais que efetuam a prisão e da subseqüente transferência de suspeitos para uma delegacia de polícia. A transferência para estabelecimentos médicos ou o traslado até o tribunal muitas vezes não eram registrados. Durante sua visita à delegacia do 16º Distrito Policial do Recife, o delegado informou ao Relator Especial, primeiramente, que não havia um livro de registro no qual fosse documentado esse tipo de informação. O Ccorregedor de Polícia que acompanhava o Relator Especial confirmou que essas informações devem ser documentadas em um livro de registro, porém informou que não havia um livro de registro padronizado. Além disso, ele informou ao Relator Especial que a Corregedoria havia proposto padronizar todos os livros de registro. Por fim, um livro de ocorrências foi apresentado ao Relator Especial. Dele constava o registro da data e da hora de prisão, porém não havia qualquer menção da data e da hora de soltura ou transferência para outro estabelecimento de detenção. Essa informação seria encontrada, segundo o relatado, no arquivo pessoal do suspeito. O Relator Especial observa que, no entanto, não foi encontrado registro da informação no arquivo pessoal da pessoa escolhida aleatoriamente no livro de ocorrências pelo Relator Especial. Essa ausência de registro dificulta a possibilidade de as autoridades refutarem as denúncias ouvidas com freqüência, segundo as quais, durante essas transferências, os suspeitos são submetidos a tortura e a outras formas de maus tratos, inclusive ameaças com a propósito de se extraírem confissões ou como forma de intimidação a fim de impedir que eles se queixem de maus tratos sofridos anteriormente, seja a juízes, seja a médicos e peritos forenses. Essas transferências muitas vezes durariam mais tempo do que o efetivamente necessário, uma vez que os suspeitos muitas vezes são levados para áreas afastadas, onde são submetidos a maus tratos ou ameaças. Muitos dos detentos entrevistados pelo Relator Especial também relataram que, após a prisão, eles haviam sido levados de carro e conduzidos durante horas, supostamente no intuito de se permitir que a imprensa chegasse à delegacia de polícia e, assim, estivesse em condições de registrar e divulgar a prisão dos suspeitos de crimes. Os detentos se queixaram de que, nessas circunstâncias, eles haviam sido caracterizados como criminosos, em vez de suspeitos, tanto pela polícia quanto pela mídia. Alguns alegaram que haviam sido torturados ou de outro modo sujeitos a maus tratos e ameaçados pelos policiais que haviam efetuado a prisão, no intuito de fazê-los confessar, diante da mídia, os crimes pelos quais haviam sido presos.

97. Não obstante as salvaguardas legais contra a prisão arbitrária, há informações que dão conta de que tanto a polícia civil quanto a militar rotineiramente efetuam prisões fora dessas limitações legais. As prisões em flagrante parecem ser amplamente utilizadas. Ao que parece, a julgar pelos testemunhos recebidos pelo Relator Especial, há uma tendência de se realizarem prisões posteriormente classificadas como "em flagrante", mesmo quando a pessoa não é efetivamente presa no ato propriamente dito, mas sim, com base em uma forte suspeita de sua participação em atividades criminais. Pessoas de descendência africana ou de grupos marginalizados parecem ser particularmente afetadas por esse fenômeno. Além disso, o Relator Especial recebeu várias denúncias segundo as quais provas incriminatórias, tais como armas ou entorpecentes, haviam sido posteriormente colocadas pela polícia em pessoas que teriam sido presas em flagrante.

B. Investigações Penais

O Brasil é um dos poucos países da América Latina a manter a instituição de uma investigação penal preliminar realizada unicamente pela polícia. A polícia civil realiza o inquérito policial, que pode ser instaurado mediante ordem por escrito expedida pela autoridade policial a pedido da vítima, ou mediante ordem expedida por um juiz ou pelo Ministério Público. Nos termos do Artigo 5 do Código de Processo Penal, devem ser instaurados inquéritos quando a polícia tiver sido informada de uma possível violação do Código Penal. O procurador pode requerer que a polícia realize investigações adicionais a qualquer momento. A decisão do procurador de processar ou não processar o caso fundamenta-se nos resultados da investigação policial. Devido ao sistema de trabalho rotativo (turno de 24 horas seguido por 48 horas de folga) e à conseqüente falta de continuidade, não há um único policial ou delegado responsável por toda a investigação policial, o que, segundo foi informado por ONGs e alguns promotores públicos, gera sérios problemas no que tange à qualidade da investigação.

99. Esse sistema tem sido culpado não só pela má qualidade da investigação, mas também porque fomenta abusos por parte da polícia na realização das investigações. Em janeiro de 2000, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo teria apresentado uma proposta ao Congresso com vistas a uma reforma constitucional que permitiria a eliminação da investigação policial preliminar e sua substituição por uma etapa de investigação encabeçada por um promotor e controlada por um tipo de juiz de investigação. Somente as confissões feitas perante o juiz de investigação seriam admissíveis e qualquer pessoa sujeita a prisão provisória teria de ser levada para comparecer perante tal juiz após o período de 24 horas. De acordo com informações recebidas pelo Relator Especial durante reuniões com representantes da sociedade civil, essa proposta, ainda que respaldada pelo Governo, tem encontrado forte resistência por parte da polícia.

100. Durante sua visita a delegacias, o Relator Especial observou que parece haver uma prática policial de se usarem investigações de crimes hediondos, em vez de investigações de crimes ordinários igualmente aplicáveis, a fim de se impedir a concessão de fiança, muito embora a acusação formal subseqüentemente emitida pelo juiz possa ser referente a um crime não tão grave. Muitas pessoas detidas disseram, por exemplo, haver sido investigadas por tráfico de entorpecentes (Artigo 12 do Código Penal), enquanto teriam sido presas com uma pequena quantidade ou na posse de uma substância relativamente não prejudicial, tais como poucas gramas de maconha, o que deveria ter resultado em uma investigação por posse de entorpecente (Artigo 16). De igual modo, parece haver uma tendência de se usarem acusações de roubo (Artigo 157), em vez de acusações de furto (Artigo 155). A primeira acarreta uma sentença mínima de mais de quatro anos, o que, consequentemente, significa que não pode ser concedida fiança até que se conclua o julgamento, ao passo que a segunda acarreta uma sentença de um a quatro anos e admite a concessão de fiança até que se conclua o julgamento. Muitos testemunhos dos detentos referiam-se a crimes de menor gravidade, que envolviam pequenas quantias e sem ameaça grave a pessoas ou propriedades. Ainda assim, a polícia, os promotores ou até os juízes teriam livremente qualificado um crime de furto como roubo, a fim de colocar criminosos de menor gravidade – que, em muitos países, não receberiam sequer uma sentença de prisão – em uma penitenciária por longos períodos de tempo. Além disso, foi alegado que a polícia freqüentemente exerce coerção para obtenção de confissões de crimes mais graves, mesmo quando um suspeito se mostra disposto a confessar um crime de gravidade menor. A lei parece atuar como incentivo para que a polícia extraia confissões de um crime que possa ser mais grave do que o(s) crime(s) efetivamente cometido(s). Essa tendência também parece ser reforçada pelas constantes reivindicações da opinião pública e de políticos pela adoção de medidas mais rígidas contra suspeitos de crimes. Essa política não só resulta em um nível substancial de privação desnecessária da liberdade, mas também contribui para o problema da superlotação carcerária. Essa política parece ser respaldada por estatísticas apresentadas pela Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo: em 31 de outubro de 2000, 50% dos presos haviam sido condenados por roubo, ao passo que apenas 8,75 por furto. De igual modo, de acordo com o Governador do Estado de Minas Gerais, mais de 40% dos detentos daquele estado haviam sido sentenciados por tráfico de entorpecentes, enquanto ONGs e profissionais do direito destacaram que a maioria deles havia sido encontrada com uma pequena quantidade de entorpecentes (predominantemente maconha), que se acreditava ser para seu próprio consumo.

101. Com relação a confissões, o Artigo 5 (LVI) da Constituição estabelece que "provas obtidas por meio ilícitos são inadmissíveis no processo". Quanto ao ônus da prova, o Artigo 156 do Código de Processo Penal afirma que "o ônus de provar uma denúncia cabe à pessoa que a fizer, porém o juiz poderá, durante a fase probatória ou antes de proferir a sentença, expedir uma ordem ex officio para o cumprimento de quaisquer ações que ele julgue apropriadas para se esclarecerem quaisquer dúvidas sobre uma questão relevante."

102. De acordo com o Presidente do Supremo Tribunal Federal, no caso de denúncias de tortura feitas por um réu durante um julgamento, ocorre uma inversão do ônus da prova. O promotor público teria de provar que a confissão foi obtida por meios lícitos e o ônus da prova não caberia ao réu que tiver feito a denúncia. De acordo com os promotores públicos do Núcleo Contra a Tortura do Distrito Federal (Brasília), se um juiz ou promotor público for informado que uma confissão pode ter sido obtida por meios ilegais, ele deverá iniciar investigações, a serem realizadas por um promotor que não aquele inicialmente encarregado do caso. De acordo com sua interpretação, enquanto estiverem em andamento investigações para apurar a matéria, as confissões a ela referentes devem ser retiradas do processo. O Presidente do Superior Tribunal de Justiça confirmou essa interpretação da lei. Ele afirmou que quando existe prova prima facie de que um réu fêz uma confissão sob tortura e se suas alegações forem consistentes com outras provas, tais como laudos médico-forenses, o julgamento deve ser suspenso pelo juiz e o promotor público deve requerer a abertura de uma investigação para apurar as denúncias de tortura. Se o juiz pretender proceder à instauração de processo contra o suspeito, a confissão em questão, bem como outras provas obtidas por meio dessa confissão, não devem integrar o conjunto de provas do julgamento original. De acordo com o Presidente do STJ, se uma confissão for a única prova contra um réu, o juiz deve decidir que não há qualquer fundamento para condenar o suspeito. O Procurador Geral da República afirmou que o promotor encarregado da investigação criminal inicial poderá, às vezes, estar também encarregado da investigação relativa às alegações de que as confissões teriam sido obtidas ilicitamente. Ele admitiu que, muito embora possa haver um conflito de interesses, essa situação ocorre com freqüência em lugares pequenos.

C. Prisão Provisória (pré-julgamento)

103. Há dois tipos de prisão provisória.

1. Prisão preventiva

104. Uma ordem de prisão preventiva pode ser expedida por um juiz a pedido oficial de uma autoridade policial ou de um promotor público quando satisfeitas as duas seguintes condições: (a) materialidade de um crime (indicação de que o crime de fato ocorreu) e (b) provas suficientes da autoria, bem como as seguintes condições alternativas: (a) proteção da ordem pública, (b) proteção da ordem econômica, (c) necessidade de obtenção de prova(s) ou (d) risco de evasão do suspeito. O Artigo 10 do Código de Processo Penal estabelece que o inquérito policial deve, então, ser concluído dentro de 10 dias a contar da prisão quando o suspeito estiver sob prisão preventiva ou detido após uma prisão em flagrante.

2. Prisão temporária (também denominada prisão para investigação)

105. A prisão temporária precisa ser decretada por um juiz a pedido oficial de uma autoridade policial ou de um promotor público dentro de um período de 24 horas a contar do recebimento do requerimento oficial. O juiz poderá, a seu próprio critério ou por solicitação do promotor público ou do advogado, determinar que um detento lhe seja apresentado, solicitar informações e esclarecimentos por parte da polícia e submetê-lo a um exame de corpo de delito. Após ter sido decretada uma prisão temporária, um mandado de prisão deve ser expedido e uma cópia entregue ao preso a título de notificação das acusações feitas contra ele (nota de culpa). O Relator Especial entende o termo "nota de culpa", conforme empregado tanto pelos detentos quanto pela sociedade civil, se referia, na maioria dos casos, a uma confissão, e não à notificação de acusações, como prevê a lei. O Relator Especial, portanto, reteve esse termo empregado por seus interlocutores, particularmente no que se refere às entrevistas dos detentos (ver anexo).

"A prisão temporária aplicar-se-á quando: (a) for indispensável às investigações policiais; (b) o réu não tiver uma residência fixa ou não oferecer os elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade e (c) houver razões fundadas, em conformidade com qualquer prova admitida na legislação penal, de que o réu cometeu ou participou dos seguintes crimes: homicídios dolosos (Artigo 121 do Código Penal), seqüestro ou encarceramento privado (Art. 148), roubo (Art. 157), extorsão (Art. 158), extorsão mediante seqüestro (Art. 159), estupro (Art. 213), atentado ao pudor (Art. 214), seqüestro violento (Art. 219), epidemia resultante em morte (Art. 267), envenenamento de água potável ou produtos alimentícios ou substâncias médicas que resulte em morte (Art. 270), participação de quadrilhas ou de grupos criminosos (Art. 288), genocídio (Arts. 1 a 3 da Lei No. 2.899, de 21 de outubro de 1967), tráfico de entorpecentes (art. 12 da Lei No. 6.368, de 21 de outubro de 1976) e crimes contra o sistema financeiro (Lei N. 7.492, de 26 de junho de 1986)". Há informação de que a jurisprudência e opinio juris estabeleceram que a prisão temporária pode ser decretada no caso dos crimes relacionados acima quando for cumprida uma das duas outras condições (a e b). O período máximo de prisão de um suspeito detido sob prisão temporária é de cinco dias, "prorrogável por igual período quando extrema e absolutamente necessário".

107. Além disso, são estipulados diferentes prazos para prisão temporária com relação aos chamados crimes hediondos. O Artigo 5 (XLIII) da Constituição estabelece que os seguintes crimes são crimes hediondos: tortura, tráfico ilícito de entorpecentes, terrorismo e outros a serem definidos em lei. A Lei de Crimes Hediondos amplia a relação constitucional de modo a incluir os seguintes crimes: latrocínio, extorsão qualificada por subseqüente morte da vítima, estupro e atentado violento ao pudor, propagação de doença epidêmica qualificada por morte subseqüente e genocídio. A mesma disposição constitucional estabelece, adicionalmente, que a tais crimes não se aplicará anistia, indulto ou soltura provisória sob fiança. No caso de uma pessoa presa sob suspeita de haver perpetrado um crime hediondo, será decretada a prisão temporária por 30 dias, renovável por igual período se absolutamente necessário.

3. A regra de 81 dias

108. De acordo com a jurisprudência, no caso de prisão preventiva, os dez primeiros dias de prisão anteriores a uma acusação formal devem estar incluídos no período provisório (pré-julgamento) de 81 dias. Esse período é um construto jurisprudencial constituído, inter alia, pelos seguintes períodos: 10 dias para a polícia concluir o inquérito criminal; 5 dias para o promotor dar entrada em uma ação penal; três dias para o réu apresentar sua réplica; 20 dias para serem ouvidas as testemunhas de acusação e 20 dias para as testemunhas de defesa. No caso de prisão temporária, inclusive nos casos de crimes hediondos, o período de 81 dias começa a contar após o período inicial de prisão temporária (isto é, 5 mais 5 dias, ou, no caso de crimes hediondos, 30 mais 30 dias).

Entretanto, em ambos os casos, isto é, se o suspeito tiver sido mantido inicialmente sob prisão preventiva ou temporária, parece não haver qualquer disposição legal que estabeleça que os suspeitos devem ser soltos ao final do período legal de prisão provisória se não houver sido emitida qualquer decisão judicial quanto ao mérito do caso. Ao contrário, foi informado que o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o período de 81 dias não deve ser considerado estritamente e que o juiz pode aplicar o "princípio da razoabilidade" a fim de manter alguém preso caso ocorram certos atrasos justificados pelas dificuldades naturais de processos penais. O STJ declarou que "o construto jurisprudencial que definiu o limite de 81 dias para comprovação de culpa no caso em que o réu é preso deve aplicar-se com flexibilidade, de modo a levar em conta o princípio da razoabilidade. É admissível ultrapassar esse limite em circunstâncias adequadamente justificadas." Os promotores públicos chamaram a atenção do Relator Especial para o fato de que essa jurisprudência era, em potencial, extremamente perigosa, uma vez que ela não estabelece um limiar para a aplicação do "princípio da razoabilidade". As pessoas sob prisão preventiva qualificam-se para soltura provisória sob fiança.

4. Estabelecimentos de prisão provisória (pré-julgamento)

110. O Artigo 84 da LEP estabelece que os presos condenados sempre devem ser mantidos separados dos presos em caráter provisório. O Artigo 102 da LEP estabelece que os detentos sob prisão provisória devem ser mantidos em unidades prisionais pré-julgamento ou cadeias públicas. Cada comarca ou vara deve dispor de pelo menos uma instalação de prisão provisória a fim de preservar o interesse da administração da justiça penal e assegurar que os detentos sejam mantidos próximos de sua família ou comunidade. Entretanto, não fica claro se existe um limite de tempo para o período em que uma pessoa que tenha sido formalmente acusada pode ser mantida em uma delegacia de polícia antes de ser transferida para um estabelecimento de prisão provisória. Embora a lei pareça clara e estabeleça que uma pessoa pode ser mantida em uma carceragem policial por até 24 horas (isto é, o período dentro do qual um juiz deve emitir uma ordem de prisão provisória), a jurisprudência é relativamente contraditória. O Supremo Tribunal Federal, assim, teria decidido que "a prisão de uma pessoa acusada em uma delegacia de polícia não pode ultrapassar o período de tempo dos processos regulares", sem, no entanto, fazer referência ao período de 24 horas sobre que dispõe a lei. De acordo com alguns dos interlocutores oficiais do Relator Especial, para os fins da lei, as delegacias de polícia são, com efeito, consideradas "cadeias públicas" e, portanto, os presos provisórios, ou seja, pessoas detidas seja com base em um mandado de prisão temporária ou preventiva, podem permanecer em celas policiais por mais de 24 horas. Eles destacaram, todavia, que era ilegal manter presos condenados em delegacias de polícia ou unidades prisionais pré-julgamento e manter presos provisórios em penitenciárias destinadas a presos condenados. De acordo com ONGs e promotores públicos, a prisão provisória em carceragens policiais deve ser considerada ilegal, uma vez que o Artigo 102 estabelece que os presos em caráter provisório devem ser detidos em instalações de prisão provisória específicas. Devido à falta de espaço em centros de prisão provisória, acredita-se que as autoridades policiais e judiciais foram "obrigadas" a ignorar a lei. Assim, vários tribunais estaduais decidiram que, nos casos em que não havia lugar adequado em uma instituição penitenciária, mesmo presos condenados – o que supostamente significa presos provisórios a fortiori – podem permanecer em celas policiais. Porém, o Superior Tribunal de Justiça teria decidido que um preso condenado não pode ser mantido em uma delegacia de polícia. Como a polícia civil é responsável pela investigação preliminar e as carceragens policiais estão sob a guarda de agentes da polícia civil, acredita-se que essa situação, por si só, facilita os abusos cometidos pelos investigadores policiais contra suspeitos, na tentativa de extraírem confissões ou informações relacionadas ao inquérito penal. Além disso, devido à situação de superlotação nas penitenciárias na maioria dos estados, os presos condenados muitas vezes são mantidos em delegacias e, portanto, são freqüentemente misturados com os que aguardam julgamento, em violação do disposto na LEP.

111. O Governador do Estado do Rio de Janeiro informou ao Relator Especial sobre sua intenção de criar "casas de custódia", sob a jurisdição da Secretaria de Justiça, para onde as pessoas encontradas em flagrante delito – que, quando da visita do Relator Especial, eram detidas em delegacias de polícia – seriam imediatamente levadas após a prisão. De acordo com esse novo procedimento, uma vez preso, um suspeito seria a uma delegacia legal, onde seria estabelecida sua identidade e se faria um interrogatório preliminar. O suspeito, no entanto, seria prontamente levado para uma "casa de custódia", onde investigadores peais teriam de questioná-lo suplementarmente. O Relator Especial acolheu com bons olhos essa intenção, ao mesmo tempo em que frisou a necessidade de se definir um limite de tempo para a polícia entregar o suspeito a uma instituição sob a jurisdição da Secretaria de Justiça. De acordo com o Secretário Estadual de Segurança Pública do Rio de Janeiro, seria difícil estabelecer tal limite de tempo, uma vez que isso dependerá do número de depoimentos de vítimas e testemunhas a serem registrados.

D. Sentenças

112. De acordo com o Artigo 33 do Código Penal, o regime fechado é obrigatório para sentenças de reclusão superiores a oito anos, que devem ser cumpridas em instalações de segurança máxima ou média. O regime semi-aberto pode ser concedido nos casos de sentenças de prisão entre quatro a oito anos, se a pessoa sentenciada não for reincidente, ao passo que o regime aberto pode ser concedido àqueles cuja sentença for inferior ou igual a quatro anos, se a pessoa sentenciada não for reincidente. No caso de a pessoa ser reincidente, a sentença deve ser cumprida em regime fechado.

113. Os Artigos 43 e 44 do Código Penal dispõem sobre a aplicação de sentenças alternativas que têm caráter obrigatório. Isso significa que, se cumpridas as condições para a determinação de sentenças alternativas, o juiz é obrigado a determinar tal penalidade. As condições para a determinação de sentenças alternativas são as seguintes: a pena de reclusão não deve superior a quatro anos, o crime não foi intencional, ou foi cometido sem uso de violência ou grave ameaça de violência, e a pessoa a ser sentenciada não é reincidente em um crime intencional. A aplicação de sentenças alternativas também deve levar em consideração o histórico dos antecedentes comportamentais, conduta social, intensidade da culpa e as circunstâncias em que o crime foi cometido. As sentenças alternativas variam desde o pagamento de indenização a título de reparação ou multas, até prestação de serviço comunitário ou serviço a título beneficente ou a suspensão temporária de direitos.

114. O fato de as sentenças alternativas serem aplicadas unicamente nos casos de sentenças não superiores a quatro anos, somado à tendência de a polícia procurar obter confissões que admitam a comissão de crimes mais graves do que aqueles de fato cometidos, contribui para o favorecimento de medidas privativas de liberdade. Foi informado que os juízes parecem ter a tendência de evitar a imposição de sentenças alternativas, mesmo no caso de réus primários. De acordo com ONGs, bem como alguns funcionários e promotores públicos com que o Relator Especial se reuniu, isso se deve, uma vez mais, à crescente pressão por parte da opinião pública, que exige sejam tomadas fortes medidas de combate à criminalidade e que tem pressionado para que os criminosos sejam mantidos na prisão. O Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo enfatizou que, em se tratando de combate à criminalidade, a cultura que prevalece no Judiciário não é uma cultura de direitos humanos, e fez referência ao dito popular brasileiro segundo o qual "bandido bom é bandido morto".

115. Também existe um sistema de progressão de pena pelo qual os presos podem passar de um regime estrito para um menos estrito, contanto que estejam se comportando em conformidade com as regras disciplinares internas. Nesse particular, desempenha seu papel o juiz de execução penal, que é responsável pela progressão das penas, bem como pela remissão, unificação de sentenças e soltura sob liberdade condicional. Vale destacar que um terço de uma sentença de mais de oito anos precisa ser cumprido em um regime fechado antes de o preso poder se beneficiar do sistema de progressão. Uma queixa que o Relator Especial ouviu de vários presos foi que os prazos para a conversão de um sistema de detenção para outro geralmente passam sem que se tomem quaisquer medidas cabíveis. Além disso, de acordo com a Pastoral Carcerária de São Paulo, até 90% dos pedidos de progressão de pena são recusados, supostamente com base em uma curta entrevista com um psicólogo e em relatórios pré-estabelecidos. O Secretário Estadual de Justiça de Pernambuco esperava que a lei em breve seria emendada de modo a assegurar que os presos pudessem progredir do regime fechado para o semi-aberto com base no tempo de pena cumprido, com a possibilidade de os promotores públicos requererem que os juízes emitam um parecer nos casos em que houver razões para atrasar a progressão, por exemplo, por razões de segurança. Acredita-se que um projeto de lei nesse sentido tenha sido apresentado pelo Ministro da Justiça.

116. Além disso, o Artigo 31 da LEP estabelece que todas as pessoas privadas de liberdade devem trabalhar de acordo com sua capacidade ou habilidade. Os presos, assim, devem obter uma redução de um dia de sua pena para cada três dias trabalhados. Na prática, nos estabelecimentos prisionais visitados pelo Relator Especial, as instalações não permitiam que todos os presos trabalhassem, quer por problemas relacionados a infra-estruturas insuficientes, quer por supostas razões de segurança, principalmente devido à situação de superlotação. Segundo estatísticas fornecidas pela Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, em 31 de outubro de 2000, de uma população total de 57.048 presos, somente 61,33% estavam trabalhando.

117. No caso de crimes hediondos, a sentença deve ser cumprida inteiramente em regime fechado. Entretanto, foram introduzidas mudanças pela Lei de Crimes Organizados e pela Lei da Tortura, estabelecendo que, para crimes cometidos por quadrilhas e organizações criminosas e no caso do crime de tortura, o regime fechado deve ser imposto somente como regime inicial, permitindo-se progressão posterior. Foi informado que atualmente há um debate sobre se essa disposição deve ser estendida a outros crimes hediondos. Algumas decisões do Supremo Tribunal teriam determinado a manutenção da imposição do regime fechado ao longo de toda a sentença para outros crimes hediondos, ao passo que outras decisões do mesmo tribunal teriam admitido que as mudanças ocasionadas pela Lei da Tortura se apliquem a todos os crimes hediondos.

E. Reclusão dos presos condenados

1. Estabelecimentos prisionais

118. A LEP enumera as instituições penais nas quais as penas podem ser cumpridas. Os presos cujas penas têm de ser cumpridas em regime fechado serão mantidos em unidades prisionais ou penitenciárias. As penas em regime fechado devem ser cumpridas em celas individuais de pelo menos 6 metros quadrados. Entretanto, à exceção de uma unidade prisional visitada no Estado de Minas Gerais (Nelson Hungria), o Relator Especial constatou que, na prática, essa disposição era completamente desconsiderada. Os presos condenados cujas penas têm de ser cumpridas em "regime aberto" devem ser mantidos em uma "casa do albergado". Foi informado que, como um grande número de estados não estabeleceu as "casas do albergado", os tribunais determinaram que, nesses casos, deve ser decretada a soltura provisória condicional (o que também pode ser obtido mediante habeas corpus). As penas a serem cumpridas em "regime semi-aberto" devem ser cumpridas em colônias industriais ou agrícolas. Essas diferentes instituições penais podem ser acomodadas em um único complexo prisional. Entretanto, em conformidade com o Artigo 5 (XLVIII) da Constituição da República Federativa do Brasil, "a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado".

119. Durante sua visita, o Relator Especial observou que as carceragens policiais eram usadas tanto como lugares de prisão provisória de curto prazo, quanto como lugares de prisão para presos sentenciados, devido à situação de superlotação do sistema penitenciário. Representantes da sociedade civil nos estados de São Paulo e Minas Gerais enfatizaram que "a polícia tornou-se uma autoridade prisional de facto, suplementando ou praticamente substituindo o sistema prisional convencional". Conforme afirmado acima, essa situação também foi lamentada pelos agentes de polícia, que reconheceram não possuir o treinamento nem o pessoal necessários para assumirem funções tanto de polícia judicial quanto de agentes penitenciários.

Na prática, as disposições relativas à separação dos presos de acordo com seu status legal (presos que aguardam julgamento/ presos condenados) ou a natureza do regime ao qual foram sentenciados (regime aberto/ semi-aberto/ fechado) freqüentemente são desconsideradas. De acordo com ONGs, isso pode se dar, em grande medida, devido à divisão de atribuições entre as diferentes secretarias estaduais. Na maioria dos Estados, a Secretaria de Segurança Pública é responsável pelas carceragens policiais, ao passo que a Secretaria de Justiça ou de Administração Penitenciária (como no Estado de São Paulo), pelo sistema penitenciário. Os presos inicialmente são levados às carceragens policiais e geralmente só são transferidos para estabelecimentos penitenciários mediante autorização das autoridades penitenciárias. Acredita-se que estas sejam relutantes em autorizar tais transferências em um sistema penitenciário já superlotado e que, portanto, estaria exposto a um risco de rebeliões mais alto. É por isso que se acredita que as penitenciárias nunca são tão gravemente superlotados quanto as carceragens policiais, ainda que que estas últimas operem em nível de lotação cinco vezes mais alto do que sua capacidade. Ao mesmo tempo, a superlotação das carceragens policiais e os atrasos na transferência de presos para penitenciárias resulta na mistura rotineira daqueles que aguardam julgamento com aqueles que já foram condenados.

121. As mulheres devem cumprir suas sentenças em estabelecimentos prisionais distintos e as pessoas com idade superior a 60 anos precisam ser acomodadas em uma instituição penal própria e adequada a sua situação pessoal. As instituições penais destinadas a mulheres deverão dispor de um berçário, onde as presas condenadas possam cuidar de seus filhos. As presas devem ser supervisionadas por agentes penitenciárias do sexo feminino, o que não se dava na unidade prisional feminina visitada pelo Relator Especial em São Paulo (Tatuapé). O Relator Especial, contudo, observa que não foram encontradas mulheres presas misturadas com presos do sexo masculino em nenhum dos estabelecimentos prisionais por ele visitados.

2. Direitos dos presos

122. Com relação a visitas, o Artigo 41(X) da LEP dispõe sobre o direito dos presos a visitas de seu "cônjuge, namorada, parentes e amigos em dias pré-estabelecidos". De acordo com a informação recebida, os visitantes às vezes não têm permissão de acesso a seus familiares, e são rotineiramente molestados e humilhados, inclusive com revistas de corpo despido, antes de entrarem em um centro de detenção. Foi alegado que as revistas raramente são efetuadas em conformidade com padrões de higiene apropriados e que incluem acocoramento e, às vezes, revistas íntimas. Mulheres idosas e menores de idade, segundo o relatado, seriam semelhantemente submetidas a tais revistas. Em um exemplo particularmente notável, acredita-se que as autoridades de Nelson Hungria (Minas Gerais) teriam tentado efetivamente barrar o acesso por parte da Pastoral Carcerária, ao decidirem que seus integrantes deviam passar por uma revista de corpo despido. Além disso, de acordo com presos sentenciados, mantidos em penitenciárias ou em carceragens policiais, somente os pais e às vezes as cônjuges e crianças até uma certa idade tinham permissão para visitá-los. Essa política foi justificada pelas autoridades encarregadas de tais estabelecimentos prisionais por razões de segurança e falta de infra-estrutura adequada.

123. Com relação a alimentação e vestuário, o Artigo 41(I) da LEP dispõe sobre os direitos dos presos a alimentação e vestuário adequados. Entretanto, na maioria, senão em todos os estabelecimentos prisionais visitados pelo Relator Especial, os detentos queixaram-se da qualidade da comida, alegando que muitas vezes era podre. A comida, bem como o café servido na maioria dos estabelecimentos prisionais, com efeito pareceram ao Relator Especial ser de qualidade muito ruim. Os detentos queixaram-se do fato de os visitantes serem proibidos de lhes fornecer alimentos, exceto produtos tais como bolachas de água e sal. O Relator Especial observa, também, que os presos, em sua maioria, eram mantidos ou seminus ou sem roupas apropriadas e adequadas.

124. Com relação a acesso a assistência médica, os presos têm o direito a tratamento médico, farmacêutico e dentário. Nos casos em que a penitenciária não dispuser de instalações adequadas para prestar a assistência médica necessária, a assistência será prestada em um outro local mediante autorização do diretor. A LEP estabelece, além disso, que os presos têm o direito de contratar os serviços de um médico conhecido do interno ou do paciente ambulatorial, por meio de seus familiares ou dependentes, a fim de lhe proporcionar orientação e acompanhar o tratamento.

125. A grande maioria dos estabelecimentos de prisão provisória e penitenciárias visitados pelo Relator Especial caracterizavam-se por uma falta de recursos médicos, tanto no que se refere a quadro de pessoal qualificado quanto a medicamentos. Foi informado que teria sido negada assistência médica aos presos. Na Casa de Detenção de Carandiru (São Paulo), o Relator Especial observou com preocupação uma placa no quinto andar que afirmava que na enfermaria da penitenciária "não há medicamentos", que o médico ia uma vez por semana e que somente dez nomes de presos eram entregues ao médico para fins de tratamento. Foi relatado que o tratamento médico fora das unidades prisionais era providenciado de má vontade e raramente. A alegada indisponibilidade de veículos ou de efetivo da polícia militar para acompanhar o transporte até o hospital, a falta de planejamento ou de consultas e, em alguns casos, a indisposição dos médicos em tratar os presos, freqüentemente levam à negação de um tratamento médico pronto e adequado. Com relação à situação encontrada em muitas das delegacias de polícia visitadas, que, na maioria das vezes, mantinham um número significativo de presos condenados, o Relator Especial recebeu denúncias de que os presos que necessitavam de tratamento médico urgente não eram transferidos para hospitais ou somente eram transferidos tardiamente para hospitais, apesar de que nenhuma dessas delegacias de polícia dispunha de qualquer instalação médica. Além disso, os presos alegaram ser ameaçados de espancamento quanto pedem atendimento médico. Em decorrência disso, doenças comuns que afetam um grande número de presos, tais como erupções cutâneas, resfriados, tonsilite e gripe, raramente eram tratadas, quando eram tratadas. Assim sendo, o Relator Especial encaminhou vários presos que evidentemente necessitavam com urgência de tratamento médico adequado aos consultórios dos encarregados.

3. Disciplina interna

126. Com relação às regras disciplinares internas, a LEP regulamenta a imposição de sanções disciplinares, que podem variar de advertência verbal e suspensão de visitas, até o isolamento dos presos em sua própria cela ou em outro lugar adequado nas penitenciárias que possuem celas coletivas. O isolamento deve ser imposto por um conselho disciplinar, não unicamente pelo diretor do estabelecimento, e deve ser comunicado ao juiz responsável pela execução penal. O isolamento e a suspensão ou restrição de direitos somente podem ser aplicados no caso de infrações graves, tais como incitação ou participação em um movimento com vistas à subversão da ordem ou da disciplina, tentativa de fuga, posse de arma ou provocação de um acidente de trabalho, e não devem ser superiores a 30 dias. Vale observar que o isolamento preventivo pode ser determinado por um período máximo de 10 dias, a bem da disciplina e com vistas à apuração dos fatos, sendo esses dias incluídos na contagem do período de punição disciplinar. Nenhuma medida disciplinar pode ser imposta sem uma disposição legal clara e prévia e sem um processo em que tenha sido assegurada a defesa do suspeito. Na aplicação de uma sanção disciplinar, é preciso levar em consideração o autor da transgressão, bem como a natureza, as circunstâncias e conseqüências da transgressão. As medidas disciplinares não podem colocar em risco a integridade física e moral do apenado. É proibido o uso de celas escuras e de punição coletiva.

127. O Relator Especial constatou que, em muitos casos, os presos haviam sido transferidos para punição em celas de isolamento por infrações de menor gravidade, tais como terem sido encontrados em posse de um telefone celular ou por desrespeito aos agentes penitenciários, ou porque eram ameaçados por outros presos. Em alguns casos, eles haviam sido privados de seus pertences e de suas roupas. O limite de 30 dias nem sempre era respeitado, uma vez que alguns presos alegaram ter sido mantidos em celas de isolamento ou celas de punição por mais de dois meses. Na maioria dos casos, senão em todos, os presos encontrados em celas de punição declararam que haviam sido colocados ali por decisão do diretor do penitenciária ou do chefe de segurança. Eles não haviam sido ouvidos por nenhum outro órgão, tal como o conselho disciplinar mencionado acima. Portanto, eles não haviam podido dar sua interpretação dos fatos ou assegurar sua defesa. Muitos deles não sabiam por quanto tempo seriam mantidos em celas de isolamento ou punição. Essa situação foi particularmente flagrante no caso do complexo prisional de Aníbal Bruno (Estado de Pernambuco), onde o Relator Especial, que havia recebido a relação dos presos sob punição das autoridades prisionais, viu-se informando aos presos as razões de sua punição, bem como sua duração. Muitos detentos referiram-se a punição coletiva (ver acima e anexo). Em particular, foi alegado que as visitas teriam sido suspensas indiscriminadamente para todos os presos por ocorrências que envolviam apenas alguns deles.

4. Monitoramento externo

128. Com relação ao monitoramento externo das penitenciárias, a LEP identifica sete mecanismos responsáveis pela execução penal, seis dos quais têm funções de monitoramento prisional, a saber, o Conselho Nacional de Política Penal e Penitenciária, juízes de execução penal, promotores públicos, o Conselho Penitenciário (isto é, conselhos prisionais locais), o Departamento Penitenciário e o Conselho Comunitário. Em particular, é preciso observar que os juízes de execução penal, bem como os promotores públicos, devem inspecionar as penitenciárias com periodicidade mensal, a fim de verificar que as disposições da LEP estão sendo respeitadas. O Conselho Penitenciário, que deve ser integrado por profissionais e acadêmicos de direito penal nomeados pelos Governadores de Estado, têm uma obrigação semelhante e devem apresentar ao Conselho Nacional de Política Penal e Penitenciária um relatório sobre suas constatações durante o primeiro trimestre de cada ano. Por fim, em conformidade com a LEP, cada comarca ou vara deve estabelecer um Conselho Comunitário composto de pessoas de diferentes profissões e cuja atribuição consiste em "visitar, pelo menos uma vez por mês, estabelecimentos penais da área, entrevistar presos, apresentar relatórios mensais ao juiz de execução penal e ao Conselho Penitenciário, trabalhar pela aquisição de recursos materiais e humanos a fim de proporcionar maior assistência aos presos e a pessoas detidas, em cooperação com o diretor do estabelecimento." Vale observar que no estado de São Paulo, também existe uma Corregedoria Administrativa do Sistema Penitenciário, que pertence à Secretaria Estadual de Administração Penitenciária e é responsável pela inspeção dos estabelecimentos prisionais. Por fim, o Relator Especial observa o papel crucial desempenhado no monitoramento do respeito pelos direitos humanos pela Pastoral Carcerária, que tem um status semi-oficial e tem acesso a todos os lugares de detenção em todo o país. No entanto, foi lamentado o fato de que, em alguns lugares, a Pastoral Carcerária não dispunha de pessoal suficiente para realizar suas funções adequadamente, apesar da dedicação de seus membros.

129. Não obstante todas essas disposições, foi relatado que, em muitos casos, as inspeções a estabelecimentos prisionais haviam sido impedidas pelas autoridades prisionais. De acordo com um promotor com que o Relator Especial se reuniu em Brasília, os promotores públicos não têm permissão para visitar delegacias de polícia ou penitenciárias. Membros dos Conselhos Comunitários teriam sido impedidos de entrar em penitenciárias e teriam sido molestados por autoridades prisionais indispostas a cooperar. No Estado de São Paulo, de acordo com o Decreto No. 17, de 29 de junho de 2000, as organizações não-governamentais que trabalham com direitos da infância precisam solicitar autorização do Presidente da FEBEM para entrar em suas unidades com antecedência de pelo menos cinco dias.

130. Por fim, o Relator Especial registra a seguinte recomendação, feita pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, que reivindica que o Governo Federal condicione a liberação de recursos do Fundo Penitenciário e do Fundo Nacional de Segurança à observação de determinadas condições, inclusive o fim das revistas corporais dos visitantes, a garantia do direito a visitas conjugais, o respeito a certos padrões mínimos de detenção, a elaboração de um cronograma para a transferência de todos os presos sentenciados que se encontram detidos em estabelecimentos policiais, bem como a apresentação de um cronograma para garantir assistência legal a todos os presos.

F. Menores infratores

Nos casos de "atos infracionais" cometidos por adolescentes ou crianças, o Estatuto da Criança e do Adolescentes (ECA - Lei N.º 8.069, de 13 julho de 1990) dispõe sobre medidas que variam desde admoestação, obrigação de reparar o dano causado, prestação de serviços comunitários, liberdade assistida, semiliberdade, até a internação em uma instituição educacional, ou medidas de assistência à família, ou outras definidas no Artigo 101 do ECA. O Artigo 122 do ECA estabelece que a internação só se aplica nos casos em que o ato infracional: tiver sido cometido "mediante grave ameaça ou violência a pessoa"; ou envolver "reiteração no cometimento de outras infrações graves"; envolver "descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta", em cujo caso a internação não poderá ser imposta por um período superior a três meses. O período máximo de internação não deve exceder a três anos, quando o adolescente deve ser liberado, em regime de semiliberdade ou de liberdade assistida. A manutenção da medida de internação deve ser reavaliada a cada seis meses. Aos vinte e um anos de idade, a liberação é compulsória.

132. Nos termos do Artigo 106, "nenhum adolescente será privado de sua liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente." A autoridade judiciária competente, os pais e qualquer outra pessoa indicada pelo menor suspeito deverão ser imediatamente comunicados da prisão e do lugar onde o menor se encontra recolhido. Em conformidade com o Artigo 108 do ECA, as crianças e os adolescentes, antes da sentença, podem ser internos provisoriamente por um período máximo de quarenta e cinco dias. Conforme o Artigo 141 (1) do ECA, os menores suspeitos devem ter acesso à Defensoria Pública, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, e deve ser prestada assistência legal gratuita a todos aqueles que dela necessitarem por meio do defensor público ou do advogado designado.

133. De acordo com promotores públicos para crianças e adolescência de São Paulo, um menor preso é levado a uma delegacia de polícia para que sejam preenchidos os registros preliminares. Os menores não devem ser mantidos em uma delegacia de polícia por mais de 24 horas, período durante o qual devem ter acesso a um advogado. Porém, uma vez que apenas poucos dispõem dos meios para pagar um advogado particular, os menores suspeitos, em geral, são assistidos por promotores estaduais, que, após ouvido o caso, podem solicitar investigações suplementares ou podem decidir arquivar as acusações por falta de provas. Somente no caso de transgressões graves é que um promotor pode encaminhar o processo a um juiz e solicitar custódia temporária. No estado de São Paulo, os menores detidos provisoriamente são levados à Unidade de Atendimento Inicial. De acordo com a informação recebida, a primeira audiência geralmente ocorre dentro de uma semana. Somente os menores sentenciados podem ser transferidos para uma unidade da FEBEM. Promotores públicos de São Paulo acreditam que a família só é informada da prisão em dois de cada três casos.

134. De acordo com o Artigo 123 do ECA, os menores infratores devem ser acomodados em "entidade exclusiva" para adolescentes, obedecida "rigorosa separação" por critérios de idade, compleição física, temperamento e gravidade da infração. Além disso, entre os direitos garantidos pelo ECA, deve-se observar que eles devem ser internados em uma localidade próxima ao domicílio de seus pais, receber visitas, ao menos semanalmente, habitar em condições de higiene, realizar atividades de lazer e manter a posse de seus objetos pessoais. A detenção em regime de incomunicabilidade é absolutamente proibida. O Artigo 94 do ECA descreve as obrigações de entidades que realizam "programas de internação", tais como a de oferecer atendimento personalizado em pequenas pequenas, trabalhar em prol do restabelecimento e da preservação dos vínculos familiares, oferecer instalações físicas em condições adequadas de habitabilidade, higiene, salubridade e segurança, bem como os objetos necessários à higiene pessoal, assegurar vestuário e alimentação suficientes, oferecer atendimento médico, psicológico e dentário, propiciar escolarização e profissionalização, atividades culturais, esportivas e de lazer, bem como assistência religiosa, quando desejado. O Artigo 201 (VIII) do ECA estabelece que compete ao Ministério Público "zelar pelo efetivo direito aos direitos e garantias legais assegurados a crianças e adolescentes, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis".

135. Durante sua visita a estabelecimentos de internação de menores infratores em São Paulo e no Rio de Janeiro (ver acima), o Relator Especial observou que os menores não estavam separados por idade, compleição física ou gravidade do crime pelo qual estavam provisoriamente recolhidos ou haviam sido sentenciados. Ao contrário, todos eram mantidos juntos, de modo indiscriminado, inclusive internos com distúrbios mentais. As ONGs, bem como promotores públicos para crianças e adolescentes de São Paulo, também enfatizaram a falta de assistência psicológica adequada e o fato de a estrutura arquitetônica dos estabelecimentos nos quais os menores se encontravam recolhidos não permitir atividades recreacionais ou educacionais.

G. Procedimentos de Queixa

136. De acordo com a informação recebida, queixas relativas a tortura e outras formas de maus tratos às vezes são feitas pelos réus, particularmente durante as primeiras audiências. Entretanto, o Relator Especial observa que muitos dos detentos que ele entrevistou indicaram que, devido à constante presença de funcionários encarregados da execução da lei nessas ocasiões, eles não ousavam se queixar do tratamento a que eram submetidos por medo de represálias, uma vez que eles geralmente eram levados de volta à mesma carceragem policial onde a tortura teria acontecido. Além disso, foi alegado que, na maioria dos casos, suas queixas permaneceriam sem resposta por parte dos juízes. O Relator Especial também observa que a crença de que queixas de tortura dirigidas ao sistema judiciário seriam em vão era generalizada entre a população de detentos. Os defensores públicos devem relatar tais alegações a uma delegacia de polícia e solicitar que se realize um exame forense. Uma sindicância administrativa, então, deve ser aberta pela corregedoria (ver abaixo), que passaria a ser responsável por informar o Ministério Público. ONGs e advogados de direitos humanos alegam que geralmente leva muito tempo até que a informação chegue ao Ministério Público e seja aberto um inquérito penal. Nesse particular, foi sugerido que uma maior interação entre defensores públicos e promotores públicos certamente ajudaria a tornar o processo mais célere. Na esfera estadual, há vários órgãos oficiais encarregados de supervisionar o comportamento policial.

1. O Ministério Público

137. O Ministério Público é responsável por supervisionar a instauração de processos de todos os réus. O Artigo 129 da Constituição estabelece que, inter alia, cabe ao Ministério Público instituir, com exclusividade, ações penais públicas "II. zelar pelo efetivo respeito dos poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia; (...) VII. exercer o controle externo da atividade policial [e] VIII. requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais". Deve-se observar que essas disposições têm sido interpretadas no sentido de que o Ministério Público tem o poder de proceder a investigações penais independentes, mesmo em casos nos quais não tenha sido instaurado um inquérito policial ou nos quais um inquérito policial ainda não tenha sido concluído ou tenha sido arquivado, e que ele pode indiciar funcionários encarregados da execução da lei envolvidos em atividades criminais, tais como tortura. O inquérito policial, portanto, não é um procedimento obrigatório em um caso em que um promotor possua indícios prima facie suficientes. Além disso, nenhuma disposição legal obsta a competência do Ministério Público de coletar indícios por outros meios que não um inquérito policial, tais como, por exemplo, um inquérito civil ou administrativo. De acordo com promotores com quem o Relator Especial se reuniu, essa interpretação está sujeita a uma das mais sérias batalhas institucionais atuais, uma vez que a polícia tem forte resistência a essa abordagem. Um projeto de lei sobre a polícia civil que visa dar mais poder aos promotores públicos em inquéritos policiais atualmente está em tramitação no Congresso. Nesse particular, o Presidente do STJ informou ao Relator Especial haver denunciado em público o fato de que políticos influenciados pela força policial estavam tentando comprometer os poderes dos promotores públicos de supervisionar o comportamento policial.

138. As denúncias de tortura praticada por funcionários encarregados da execução da lei seriam, segundo o relatado, enviadas diretamente à corregedoria, à qual cabe abrir o inquérito correspondente. A essa altura, o Ministério Público geralmente é o único órgão em condições de iniciar qualquer outra investigação quando do recebimento do processo da parte da polícia. Alega-se que tais inquéritos realizados pela polícia são extremamente demorados, uma vez que os policiais são muito relutantes em investigar o comportamento de seus colegas. Também há informação de que é difícil para os promotores públicos investigar crimes cometidos em delegacias de polícia. Em 1995, por exemplo, vários promotores que pretendiam entrar em uma delegacia de polícia em Gama (Brasília) tiveram sua entrada barrada por policiais armados. De acordo com o Procurador Geral da República, o Ministério Público poderia instaurar um inquérito penal quando um inquérito administrativo paralelo é realizado pela corregedoria. Entretanto, ele reconheceu que seria difícil aos promotores apresentar provas adicionais, devido à escassez de meios disponíveis. Ele também lamentou o fato de que, devido à longa duração do inquérito administrativo, geralmente leva muito tempo até que um caso chegue à atenção do Ministério Público. Essa longa etapa inicial do processo também favoreceria a impunidade, uma vez que, em alguns casos, o crime já teria sido invalidado por prescrição quando o processo chegasse ao promotor público.

139. Em Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, uma divisão especial de direitos humanos foi criada no âmbito do Ministério Público para processar casos de violação de direitos humanos. Quando da visita do Relator Especial, essa divisão estava dotada de apenas um promotor de direitos humanos e havia recebido mais de 600 denúncias de maus tratos, lesão corporal e tortura, tendo processado cerca de 2.000 policiais por violações de direitos humanos. Os promotores também visitaram vários estabelecimentos de detenção, inclusive carceragens policiais, sem aviso prévio. As autoridades foram culpadas pela sociedade civil por não fornecerem recursos suficientes para que os promotores públicos processassem casos de tortura.

140. Os interlocutores da sociedade civil muitas vezes expressaram temor de que, pelo fato de ser nomeado pelos Governadores, o Chefe do Ministério Público pode nem sempre ser genuinamente independente do poder político. Além disso, em vários casos, foi chamada a atenção do Relator Especial para o fato de que o combate ao crime era, muitas vezes, a prioridade do Ministério Público. Apenas poucos recursos, tanto pessoais quanto financeiros, eram alocados às divisões de promotores públicos que se ocupam de direitos humanos.

141. Por fim, a Procuradora Federal para Direitos dos Cidadãos informou ao Relator Especial que, muito embora sua Procuradoria tivesse o direito de investigar quaisquer denúncias de violação de direitos humanos por parte de agentes federais, estaduais ou municipais, inclusive mediante o recebimento de informações de quaisquer fontes, na prática, era muito difícil coletar informações e testemunhos sobre incidentes de tortura, devido, inter alia, à morosidade da justiça, ao medo de represálias, principalmente devido à falta de proteção imediata, duradoura e efetiva às vítimas, testemunhas e seus familiares, à insuficiência de pessoal qualificado, à existência de um sistema de justiça à parte para os militares e à dificuldade de obtenção de provas de peritos forenses, em particular por causa de sua vinculação de subordinação às autoridades de segurança pública.

2. Corregedorias

142. Os departamentos estaduais de polícia estabeleceram uma corregedoria, responsável pelas investigações administrativas iniciais e por casos de desvio de conduta policial. Normalmente, há duas corregedorias, uma para a polícia civil e uma para a polícia militar. Entretanto, no Estado de Pernambuco, havia uma corregedoria unificada para ambos serviços policiais (unificados sob a Secretaria Estadual de Defesa Social), chefiada por um ex-procurador, com a finalidade, de acordo com o Secretário Estadual de Defesa Social, de assegurar sua independência da polícia. Segundo a informação recebida dos corregedores, embora eles tenham o poder de propor a demissão de agentes policiais, somente o Governador pode decidir demiti-los. Entre outras formas de sanções disciplinares incluem-se, em particular, repreensões ou a proibição de os policiais trabalharem por um determinado número de dias. De acordo com a informação recebida pelo Relator Especial, uma das sanções administrativas comuns consiste em transferir o policial considerado culpado para uma outra delegacia, especialmente para uma delegacia localizada em uma área mais distante. Acredita-se que essa prática acentua a brutalidade policial nas áreas rurais e reforça a impunidade em regiões já distantes de um estreito monitoramento pelas ouvidorias e pela sociedade civil urbana mais atuante. Em janeiro de 2000, a Secretaria Estadual de Segurança Pública de São Paulo teria apresentado ao Congresso uma proposta, respaldada pelo Fórum Nacional de Ouvidores Policiais, com vistas a uma reforma constitucional que criaria uma corregedoria unificada e autônoma, no intuito de assegurar um controle externo da polícia.

3. Ouvidorias

143. As ouvidorias policiais atualmente estão estabelecidas em alguns departamentos policiais estaduais como órgão de supervisão adicional destinado ao controle do comportamento policial. A primeira ouvidoria foi criada no estado de São Paulo, em 1995. Desde então, foram criadas ouvidorias nos estados do Pará, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, sob a jurisdição da Secretaria Estadual de Segurança Pública.

144. O ouvidor do estado de São Paulo, que atua como ouvidor tanto para a polícia militar quanto para a civil, informou que, durante os quatro anos anteriores, sua ouvidoria havia recebido 764 denúncias de tortura, envolvendo cerca de 3.000 pessoas e principalmente relativas a conduta policial imprópria em delegacias de polícia e em centros de detenção provisória. Ele lamentou que apenas cinco investigações penais haviam sido instauradas nos termos da Lei da Tortura. Todas as denúncias de má conduta policial recebidas pela ouvidoria precisam, inicialmente, ser transmitidas à corregedoria, que decide se existem provas suficientes para se instaurar um inquérito administrativo. De acordo com o ouvidor, os casos que envolvem membros da polícia militar, principalmente os de postos elevados, são tratados com relutância pela corregedoria da polícia militar, uma vez que o próprio corregedor é subordinado à cadeia de comando militar. Ele também informou que os casos encaminhados à corregedoria da polícia civil muitas vezes não eram objeto de qualquer investigação.

145. Por fim, o ouvidor informou que os maus tratos praticados pela polícia no interior gozam de praticamente absoluta impunidade. Para corrigir essa situação, ele havia proposto a descentralização das atividades de sua ouvidoria. Ele informou que dois decretos haviam sido aprovados nesse sentido, porém que ainda não haviam sido publicados quando da visita do Relator Especial e, portanto, não podiam ser implementados. Deve-se observar que, quando existem provas suficientes, as ouvidorias podem encaminhar um caso diretamente ao Ministério Público, mesmo se o caso tiver sido arquivado anteriormente pela polícia ou pela corregedoria. O ouvidor enfatizou que, se os promotores públicos pudessem acompanhar os casos desde o início do inquérito, em vez de dependerem de provas coletadas pela polícia, isso contribuiria, em grande medida, para o combate à impunidade. O ouvidor, bem como ONGs, alegaram que, muito embora os promotores públicos tenham o poder de realizar suas próprias investigações, eles raramente exercem esse poder e simplesmente dependem predominantemente de investigações policiais que nunca questionavam.

146. Em Minas Gerais, foi informado que a criação, em 1998, da ouvidoria prisional e da ouvidoria da polícia civil levou a uma redução do número de queixas de tortura. Esse órgão consiste apenas do ouvidor de polícia, um assessor, uma secretária executiva e um estagiário. Uma vez que não há um assessor jurídico na equipe, acredita-se ser difícil para a ouvidoria adotar uma abordagem jurídica aos casos recebidos. Foi informado que o promotor de direitos humanos está cooperando com a ouvidoria. Também foi informado que os casos de queixas contra a polícia militar são enviados diretamente ao comando do pessoal militar.

4. O Instituto Médico Legal (IML)

147. As vítimas de tortura devem solicitar um formulário médico de um delegado a fim de serem examinadas em um Instituto Médico Legal. Esses institutos ficam sob a jurisdição da mesma Secretaria que a polícia, isto é, a Secretaria Estadual de Segurança Pública. De acordo com o Promotor Público do Estado de São Paulo, é obrigatório o exame forense das pessoas presas quando de prisão por mandado judicial, bem como quando houver vencido o prazo de prisão provisória. De acordo com ONGs e promotores, os delegados ou os policiais que acompanham uma vítima de tortura a um IML muitas vezes ditam ao médico legista o conteúdo de seu laudo. Além disso, muitos dos detentos com quem o Relator Especial se entrevistou informaram que, por medo de represálias, quando examinados em um IML eles não se queixavam dos maus tratos a que haviam sido submetidos. Eles muitas vezes se queixaram de terem sido levados ao IML por seus próprios torturadores e de terem sido intimidados e ameaçados durante o traslado. Muitos deles teriam inventado histórias para responder às perguntas dos médicos, de modo a não implicar quaisquer funcionários encarregados da execução da lei. Isso também aconteceria quando o incidente de tortura tivesse ocorrido em uma penitenciária, uma vez que, nesse caso, as vítimas são acompanhadas por policiais militares, que, em muitos estados, também participam da vigilância das penitenciárias. A Secretaria Estadual de Defesa Social de Pernambuco negou as alegações muitas vezes ouvidas pelo Relator Especial de que os funcionários encarregados da execução da lei geralmente estavam presentes na sala do IML em que ocorria o exame. Também foi alegado que os peritos forenses do IML apenas registram lesões externas e visíveis. Além disso, foi dito que laudos médicos elaborados por profissionais médicos independentes não teriam valor tanto probatório nos tribunais quanto um testemunho do IML.

148. Embora não seja possível avaliar até que ponto as alegações acima revelam um problema generalizado, é evidente que o problema é suficientemente real com relação a um número significativo de funcionários do IML. Além disso, enquanto esses funcionários permanecerem sob a mesma autoridade governamental que a polícia, só poderão persistir dúvidas quanto à confiabilidade de suas constatações.

H. Criminalização da Tortura

149. Em 28 de setembro de 1989, o Brasil ratificou a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984, e, em 26 de maio de 2000, o País apresentou seu relatório de estado inicial, nos termos do Artigo 19 (ver Convenção Contra a Tortura/C/9/Ad. 16), cuja data de entrega havia sido em outubro de 1990. De acordo com esse relatório, o Artigo 5 da Constituição da República Federativa do Brasil, datada de 5 de outubro de 1988, relaciona os direitos garantidos em tratados internacionais dos quais o Brasil é parte e que, portanto, receberam o status de direitos constitucionais diretamente aplicáveis.

150. Com relação à proibição da tortura, esse artigo estabelece que "todas as pessoas são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: ... III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante." O Artigo 5 (XLIII) da Constituição estipula que, a exemplo de outros crimes hediondos, a prática da tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia e que os superiores, cúmplices e pessoas capazes de impedir tal crime, porém que não o fizerem, ainda que por omissão, devem ser responsabilizadas pelo crime. O Artigo 5 (XLVI alínea e) proíbe penas "cruéis" e o Artigo 5 (XLIX) estabelece que "é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral." De igual modo, o Artigo 40 da LEP estabelece que "todas as autoridades são obrigadas a respeitar a integridade física e mental dos apenados e de presos provisórios" e o Artigo 45 proíbe pena que coloque em risco "a integridade física e moral do condenado" (parágrafo 1), nem como punição coletiva (parágrafo 3) e o uso de celas escuras (parágrafo 2). Por fim, o Artigo 5 do ECA estipula que "nenhuma criança ou adolescente será submetido a qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade ou pressão, e qualquer violação de seus direitos fundamentais, seja por ato ou por omissão, será punida em conformidade com o disposto na lei."

151. O crime de tortura foi definido há nove anos no Artigo 1 da Lei N.º 9.455, de 7 de abril de 1997 (doravante a Lei da Tortura) conforme especificado a seguir:

"Artigo 1. Um crime de tortura define-se como:

I – constranger uma pessoa mediante o uso de violência ou grave ameaça que resulte em sofrimento físico ou mental; com o propósito de obter informação, uma declaração ou confissão da vítima ou de terceiro; provocar ação ou omissão criminosa; devido a discriminação racial ou religiosa;

II – submeter uma pessoa sob a responsabilidade, poder ou autoridade de outrem a intenso sofrimento físico ou mental, mediante uso de violência ou ameaça grave, como modo de forçar uma punição pessoal ou como medida preventiva."

Embora a tortura seja definida em termos semelhantes aos constantes do Artigo 1 da Convenção de 1984, a definição constante da lei brasileira não reflete inteiramente a definição de tortura internacionalmente acordada. A definição brasileira restringe os atos de tortura a "violência ou grave ameaça", ao passo que a definição da Convenção refere-se a "qualquer ato". Assim sendo, a definição brasileira não abrange atos que não são violentos per se, mas que, no entanto, podem impor "dor ou sofrimento intenso, seja físico ou mental". Também importa observar que, de acordo com a definição brasileira, o crime de tortura não se limita a atos cometidos por funcionários públicos. Entretanto, é estipulado que a pena é mais severa "se o crime for perpetrado: a) por um agente público (...)."

152. Embora a lei estabeleça que uma pessoa deve ser sentenciada a um período de dois a oito anos de prisão se condenada de tortura, a sentença deve ser aumentada em até um terço no caso de agentes públicos. A mesma penalidade, isto é, de dois a oito anos de reclusão, aplica-se àqueles "que submetem uma pessoa presa ou sujeita a medidas de segurança a sofrimento físico ou mental, mediante a prática de uma ação não contemplada na lei ou não resultante de uma medida legal" (parágrafo 1). Nos termos do Artigo 1(2), a cumplicidade por omissão de uma pessoa que tenha "a responsabilidade de evitar ou investigar" tal conduta deve ser condenada a uma pena de um a quatro anos de prisão. O parágrafo 3 estipula que "se o crime resultar em lesões físicas graves ou extremamente graves, a penalidade consistirá de reclusão de quatro a dez anos; se resultar em morte, (...) de oito a dezesseis anos". Por fim, o Artigo 2 torna a lei aplicável também ao crime de tortura não cometido em território brasileiro, contanto que a vítima seja cidadão brasileiro ou o agressor se encontre em uma área sob jurisdição brasileira (jurisdição universal).

153. Antes da promulgação da Lei da Tortura, os casos de tortura haviam sido classificados exclusivamente como abuso de autoridade, ou, inter alia, como lesões corporais, nos termos do Artigo 129 do Código Penal; homicídio (nos casos em que resultasse em morte), nos termos do Artigo 121 do Código Penal; ameaça, nos termos do Artigo 147 do Código Penal, ou constrangimento ilegal, nos termos do Artigo 146 do Código Penal. De acordo com a informação recebida, particularmente de promotores públicos, as sentenças decretadas antes de a Lei da Tortura entrar em vigor variavam de dez dias a três meses. O número de casos nos quais os agentes públicos eram absolvidos ou demitidos sempre era consideravelmente mais alto do que os casos de condenação, e, dos casos de condenação, cerca de cinqüenta por cento eram por abuso de autoridade ou lesão corporal. Quando os casos resultavam em uma condenação, os funcionários da execução da lei recorriam e raramente eram efetivamente punidos devido à expiração dos períodos de limitação de responsabilidade legal. De acordo com advogados e ONGs de direitos humanos, antes da Lei da Tortura, a prescrição também comprometia os esforços pela responsabilização penal de incidentes de tortura. A prescritibilidade do crime passa a contar a partir da comissão do crime até a data de condenação e sentenciamento. Se uma pessoa é condenada após expirado o prazo de prescrição, o juiz não pode impor uma sentença de prisão. Também é informado que essa possibilidade estimulava juízes corruptos a deliberadamente retardarem certos casos, de modo que pudessem ser arquivados. A fim de evitar o desperdício de recursos judiciais, os promotores muitas vezes arquivavam casos de lesão corporal, certos de que, mesmo se tivessem êxito em processar a parte responsável, a prescrição provavelmente interviria antes da condenação, eliminando, assim, a possibilidade de um período de reclusão.

154. Segundo vários funcionários, inclusive integrantes da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, promotores públicos e o Corregedor de Polícia do Estado de Minas Gerais e ONGs, os casos de tortura ainda são muitas vezes classificados erroneamente por juízes como "lesão corporal" ou "abuso de autoridade". "Abuso de autoridade" e "lesão corporal" também seriam crimes mais comumente usados por juízes devido à sua definição mais precisa do que a de tortura. De acordo com promotores públicos que haviam trabalhado com casos de tortura, após ouvir depoimentos tanto da suposta vítima quanto dos oficiais encarregados da execução da lei, os juízes muitas vezes agem in dubio pro reo e aceitam as afirmações deste último no sentido de que eles "não haviam espancado um detento, mas apenas dado um tapa nele". Os réus, então, confessariam culpa por uma acusação menos grave. De acordo com ONGs, muitos juízes consideram excessiva a pena aplicável pelo crime de tortura. Em decorrência disso, os promotores de direitos humanos de Minas Gerais relataram que, por exemplo, haviam sido registrados apenas dois casos de instauração de processo nos termos da Lei da Tortura naquele estado. Importa enfatizar que nenhuma pessoa jamais foi condenada por tortura nos termos da Lei da Tortura no Brasil. O fato de essa lei ser praticamente ignorada foi objeto de uma importante conferência realizada em setembro de 2000 no Supremo Tribunal de Justiça em Brasília, com o apoio da Secretaria de Estado de Direitos Humanos e do Fórum Nacional de Ouvidores de Polícia. Estes teriam recomendado, inter alia, que o Governo Federal condicione a liberação de recursos aos departamentos de polícia nacionais a determinadas condições, tais como a criação de mecanismos destinados a assegurar que agentes policiais sujeitos a processos administrativos sejam suspensos de suas atribuições e a criação de corregedorias autônomas e independentes.

O sistema judicial como um todo tem sido culpado por sua ineficiência, em particular por sua morosidade, falta de independência, corrupção e por problemas relacionados à falta de recursos e de pessoal qualificado, além da prática generalizada de impunidade para os poderosos. Há relatos de que juízes e advogados têm estado sujeitos a ameaças e intimidações. Apesar de seu poder previsto em lei, os juízes muitas vezes estariam sob pressão para não agirem ex-officio com relação, por exemplo, às condições de detenção. Um juiz penal de Brasília que havia começado a fechar delegacias de polícia teria sido substituído. Em março de 1999, foi nomeada uma Comissão Parlamentar de Inquérito para examinar as deficiências do Judiciário.

156. Por fim, o Relator Especial observa que, com relação a crimes cometidos por policiais militares, o Código de Processo Penal Militar (Decreto-Lei No. 1002/69, de 21 outubro de 1969) estabelece que eles devem ser julgados pelo sistema de justiça militar. Pela Lei 9299/96, foi transferida para tribunais da Justiça Comum a jurisdição sobre casos de homicídio doloso contra um civil. Entretanto, o inquérito policial inicial continua nas mãos de investigadores policiais, bem como a classificação pela qual um crime é considerado "homicídio doloso" ou "homicídio culposo". Os crimes de lesão corporal, tortura e homicídio culposo, quando cometidos por policiais militares, continuam sendo da jurisdição exclusiva dos tribunais militares, compostos de quatro oficiais militares e um juiz civil. O crime de abuso de autoridade não existe no Código Penal Militar e, portanto, acusações dessa prática contra policiais militares podem ser formalizadas em tribunais da Justiça Comum. Os processos penais em tribunais militares, segundo relatos, levam muitos anos, uma vez que o sistema de justiça militar estaria sobrecarregado e ineficiente. Além disso, as ONGs observam um falta de disposição, por parte de policiais militares, em investigar seus colegas policiais. De acordo com a informação recebida, numa tentativa de se alcançar um solução amigável perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos nos casos de Roselândio Borges Serrano e Edson Damião Calixto, o Governo Federal encaminhou um projeto de lei ao Congresso para ampliar a transferência dos crimes cometidos por policiais militares para que sejam julgados por tribunais civis, de modo a incluir homicídio culposo, lesão corporal e outros crimes não incluídos no Código Penal, mas sobre que dispõe legislação específica, tais como tortura.

Conclusões

157. O Brasil é um vasto e complexo país sul-americano, que abrange 8.531.500 quilômetros quadrados, com uma população de 160 milhões de habitantes. A maioria dos assentamentos populacionais situam-se na parte leste do país, adjacentes ou próximos ao Oceano Atlântico. O interior é mais esparsamente povoado. A população é uma mistura de imigrantes portugueses e de outros países europeus, negros (predominantemente descendentes da população escrava do período colonial), mulatos e indígenas.

158. O Brasil é a décima maior economia do mundo, sendo que 17,4% de sua população vive abaixo da linha da pobreza. Trata-se de um país federativo, no qual fortes poderes são conferidos aos estados individuais. Embora a lei penal seja de âmbito federal, a administração da justiça no que concerne a crimes cometidos no nível estadual fica inteiramente no âmbito da autoridade dos estados, que são responsáveis pela organização e pela alocação de recursos do Poder Judiciário, do Ministério Público, da polícia e assim por diante. Além disso, os fortes centros de poder político-partidário no nível estadual podem limitar seriamente a influência do Governo Federal, principalmente em termos da composição do Congresso, que também é vulnerável à pressão por parte do aparelho de execução da lei, do qual ex-membros são proeminentes Senadores e Deputados. A influência de um período de governo militar, de 1964 a 1985, caracterizado por tortura, desaparecimentos forçosos e execuções extralegais, ainda paira sobre a atual administração democrática. Existe liberdade de associação política e de expressão, inclusive uma imprensa vigorosa e uma sociedade civil cada vez mais atuante. Porém, apesar da existência da Lei 9.140, de 1995, que concedeu indenizações a título de reparação a famílias de algumas vítimas do regime militar, não houve uma plena responsabilização oficial pelos crimes cometidos por aquele regime.

159. Conforme constatado pelo Relator Especial em vários países, existe uma inquietação pública generalizada acerca do nível de criminalidade comum, o que gera um senso de insegurança pública amplamente difundido que, por sua vez, resulta em demandas por uma reação oficial draconiana, às vezes sem restrição legal. Tem havido uma prática, por parte de alguns políticos e partidos políticos, de explorar esse medo para fins eleitorais.

160. Entretanto, o Relator Especial tem a impressão de que as pessoas que atualmente ocupam o poder na esfera federal, bem como na esfera dos estados por ele visitados, estavam dispostos a adotar um discurso que afirmasse princípios do Estado de Direito e dos Direitos Humanos. Alguns, muitas vezes exibindo uma corajosa liderança política, claramente se mostraram comprometidos com o aperfeiçoamento dos aparelhos corruptos e violentos de aplicação da lei que haviam herdado de governos anteriores (ver parágrafo 61). Outros, no entanto, pareceram menos dispostos a traduzir a retórica em ação (ver parágrafo 52).

161. Há muitos aspectos positivos da legislação brasileira. A Lei sobre Tortura de 1997 caracterizou a tortura como um crime grave, embora o tenha feito em termos que limitam a noção de tortura mental, em comparação à definição constante do Artigo 1 da Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984. Após 24 horas de detenção em uma delegacia de polícia, isto é, uma vez expedido um mandado judicial de prisão temporária ou provisória, a pessoa deve ser transferida para um estabelecimento de prisão provisória (pré-julgamento) ou de custódia preventiva. A assistência jurídica gratuita deve estar disponível àqueles que não dispõem de assistência jurídica própria. Um testemunho obtido mediante tortura deve ser inadmissível contra as vítimas. Um serviço médico forense deverá poder detectar muitos casos de tortura. Várias categorias de pessoas devem ser separadas umas das outras (detentos que aguardam julgamento de presos condenados, por exemplo). As condições de detenção e de tratamento dos detentos devem ser humanas e, para menores infratores, devem, no mínimo, propiciar uma experiência educativa. O problema é que essas condições são amplamente ignoradas, somadas a um Judiciário muitas vezes complacente, que sustenta os desvios dos estados em relação a esses requisitos por várias razões, seja por indisponibilidade de recursos para se implementarem as obrigações, seja mediante a imposição, aos reclamantes, de um ônus insustentável para a comprovação de suas queixas. A Lei sobre Tortura é praticamente ignorada, sendo que os promotores e juízes preferem usar as noções tradicionais e inadequadas de abuso de autoridade e lesão corporal. O serviço médico forense, sob a autoridade da polícia, não possui independência para inspirar confiança em suas constatações.

162. A assistência jurídica gratuita, principalmente no estágio inicial de privação de liberdade, é uma ilusão para a maioria dos 85% das pessoas que se encontram nessa condição e que necessitam de tal assistência. Isso se deve ao limitado número de defensores públicos. Além disso, em muitos estados, os defensores públicos (São Paulo é uma notável exceção) são tão mal remunerados em comparação com os promotores que seu nível de motivação, comprometimento e influência é muitíssimo deficiente, bem como sua capacitação e experiência. Vulneráveis, os suspeitos ficam à mercê da polícia, dos promotores e dos juízes, muitos dos quais com facilidade permitem que sejam feitas e sustentadas acusações com base em legislação que permite pouca margem para a soltura de transgressores, muitas vezes de menor gravidade, muitos dos quais foram coagidos a confessar haverem cometido crimes mais graves do que os que possivelmente tenham cometido, se é que cometeram algum crime.

163. De modo semelhante, existe uma ampla gama de iniciativas e instituições positivas, destinadas a assegurar a execução da lei de modo lícito e a proteger aqueles que se encontram sob o poder das autoridades. Entre essas iniciativas e instituições incluem-se o acesso, pela Pastoral Prisional Católica, por conselhos comunitários, conselhos estaduais de direitos humanos, ouvidores policiais e prisionais e departamentos de corregedoria. Uma vez mais, o problema é a dependência de um trabalho predominantemente voluntário no que se refere aos três primeiros (em muitos lugares, os conselhos comunitários e os conselhos estaduais de direitos humanos não existem ou não funcionam) ou o fato de que carecem seriamente dos recursos (como no caso de algumas ouvidorias) e, às vezes, da independência genuína necessários para se realizar um trabalho efetivo (como no caso de algumas corregedorias).

164. Os poderes exorbitantes dos delegados de polícia no que diz respeito à realização de investigações tornam a maioria das investigações externas excessivamente dependentes de sua boa vontade e cooperação. Além disso, o atual sistema policial dividido torna muito difícil o monitoramento externo da polícia militar, o órgão mais freqüentemente responsável pelas prisões em flagrante delito.

165. A capacitação e o profissionalismo da polícia e de outros quadros de pessoal responsáveis pela custódia de pessoas são, muitas vezes, inadequados. Alguns, a ponto de não existirem. Uma cultura de brutalidade, e muitas vezes corrupção, é generalizada. Os poucos suspeitos ricos, se privados de liberdade em absoluto ou até condenados, podem comprar tratamento e condições de detenção toleráveis ou, no mínimo, menos intoleráveis do que muitos que são pobres e geralmente negros ou mulatos ou, nas áreas rurais, indígenas.

166. Surgiram relativamente poucas denúncias com relação ao nível federal ou o Distrito Federal. A tortura e maus tratos semelhantes são difundidos de modo generalizado e sistemático na maioria das localidades visitadas pelo Relator Especial no país e, conforme sugerem testemunhos indiretos apresentados por fontes fidedignas ao Relator Especial, na maioria das demais partes do País também. A prática da tortura pode ser encontrada em todas as fases de detenção: prisão, detenção preliminar, outras formas de prisão provisória, bem como em penitenciárias e instituições destinadas a menores infratores. Ela não acontece com todos ou em todos os lugares; acontece, principalmente, com os criminosos comuns, pobres e negros que se envolvem em crimes de menor gravidade ou na distribuição de drogas em pequena escala. E acontece nas delegacias de polícia e nas instituições prisionais pelas quais passam esses tipos de transgressores. Os propósitos variam desde a obtenção de informação e confissões até a lubrificação de sistemas de extorsão financeira. A consistência dos relatos recebidos, o fato de que a maioria dos detentos ainda apresentava marcas visíveis e consistentes com seus testemunhos, somados ao fato de o Relator Especial ter podido descobrir, em praticamente todas as delegacias de polícia visitadas, instrumentos de tortura conforme os descritos pelas supostas vítimas, tais como barras de ferro e cabos de madeira, tornam difícil uma refutação das muitas denúncias de tortura trazidas à sua atenção. Em duas ocasiões (ver parágrafos acima/ São Paulo e Pará), graças a informações fornecidas pelos próprios detentos, o Relator Especial pôde descobrir grandes cabos de madeira nos quais haviam sido inscritos - pelos funcionários encarregados da execução da lei - comentários lacônicos que não deixavam dúvida quanto a seu uso.

167. Além disso, as condições de detenção em muitos lugares, conforme abertamente anunciado pelas próprias autoridades, são subumanas. As piores condições encontradas pelo Relator Especial tendiam a ser em celas de delegacias de polícia, onde as pessoas eram mantidas por mais tempo do que o período legalmente prescrito de 24 horas. O Relator Especial sente-se compelido a observar a intolerável agressão aos sentidos encontrada na maioria dos locais de detenção, principalmente nas carceragens policiais visitadas, agressão para a qual o Relator Especial não tem palavras para expressar. O problema não foi atenuado pelo fato de as autoridades muitas vezes estarem cientes e o haverem advertido das condições que descobriria. O Relator Especial só pôde concordar com a afirmação comum que ouviu daqueles que se encontravam amontoados do lado de dentro das grades, no sentido de que "eles nos tratam como animais e esperam que nos comportemos como seres humanos quando sairmos."

168. O Brasil é uma sociedade aberta, que conta com uma imprensa vigorosa. As conclusões não serão surpresa para muitos no país que se preocupam em conhecer a realidade. As recomendações que se apresentam a seguir são predominantemente uma compilação da melhor prática a ser encontrada no próprio país, embora em escala por demais esporádica e isolada. Com efeito, muitas das recomendações abaixo meramente exigiriam que as autoridades obedecessem à lei brasileira vigente.

À luz do exposto acima, o Relator Especial formulou as seguintes recomendações:

1. Em primeiro lugar, as mais altas lideranças políticas federais e estaduais precisam declarar inequivocamente que não tolerarão a tortura ou outras formas de maus tratos por parte de funcionário públicos, principalmente as polícias militar e civil, pessoal penitenciário e pessoal de instituições destinadas a menores infratores. É preciso que os líderes políticos tomem medidas vigorosas para agregar credibilidade a tais declarações e deixar claro que a cultura de impunidade precisa acabar. Além de efetivar as recomendações que se apresentam a seguir, essas medidas deveriam incluir visitas sem aviso prévio por parte dos líderes políticos a delegacias de polícia, centros de detenção pré-julgamento e penitenciárias conhecidas pela prevalência desse tipo de tratamento. Em particular, deveriam ser pessoalmente responsabilizados os encarregados dos estabelecimentos de detenção quando forem perpetrados maus tratos. Tal responsabilidade deveria incluir - porém sem limitação - a prática prevalecente em algumas localidades segundo a qual a ocorrência de maus tratos durante o período de responsabilidade da autoridade encarregada afeta adversamente suas perspectivas de promoção e, com efeito, deveria implicar afastamento do cargo, sem que tal afastamento consista meramente em transferência para outra instituição.

2. O abuso, por parte da polícia, do poder de prisão de qualquer suspeito sem ordem judicial em caso de flagrante delito deveria ser cessado imediatamente.

3. As pessoas legitimamente presas em flagrante delito não deveriam ser mantidas em delegacias de polícia por um período além das 24 horas necessárias para a obtenção de um mandado judicial de prisão provisória. A superlotação das cadeias de prisão provisória não pode servir de justificativa para se deixar os detentos nas mãos da polícia (onde, de qualquer modo, a condição de superlotação parece ser substancialmente mais grave do que até mesmo em algumas das unidades prisionais mais superlotadas).

4. Os familiares próximos das pessoas detidas deveriam ser imediatamente informados da detenção de seus parentes e deveriam poder ter acesso a eles. Deveriam ser adotadas medidas no sentido de assegurar que os visitantes a carceragens policiais, centros de prisão provisória e penitenciárias sejam sujeitos a vistorias de segurança que respeitem sua dignidade.

5. Qualquer pessoa presa deveria ser informada de seu direito contínuo de consultar-se em particular com um advogado a qualquer momento e de receber assessoramento legal independente e gratuito, nos casos em que a pessoa não possa pagar um advogado particular. Nenhum policial, em qualquer momento, poderá dissuadir uma pessoa detida de obter assessoramento jurídico. Uma declaração dos direitos dos detentos, tais como a Lei de Execução Penal (LEP), deveria estar prontamente disponível em todos os lugares de detenção para fins de consulta pelas pessoas detidas e pelo público em geral.

6. Um registro de custódia separado deveria ser aberto para cada pessoa presa, indicando-se a hora e as razões da prisão, a identidade dos policiais que efetuaram a prisão, a hora e as razões de quaisquer transferências subseqüentes, particularmente transferências para um tribunal ou para um Instituto Médico Legal, bem como informação sobre quando a pessoa foi solta ou transferida para um estabelecimento de prisão provisória. O registro ou uma cópia do registro deveria acompanhar a pessoa detida se ela fosse transferida para outra delegacia de polícia ou para um estabelecimento de prisão provisória.

7. A ordem judicial de prisão provisória nunca deveria ser executada em uma delegacia de polícia.

8. Nenhuma declaração ou confissão feita por uma pessoa privada da liberdade que não uma declaração ou confissão feita na presença de um juiz ou de um advogado deveria ter valor probatório para fins judiciais, salvo como prova contra as pessoas acusadas de haverem obtido a confissão por meios ilícitos. O Governo é convidado a considerar urgentemente a introdução da gravação em vídeo e em áudio das sessões realizadas em salas de interrogatório de delegacias de polícia.

9. Nos casos em que as denúncias de tortura ou outras formas de maus tratos forem levantadas por um réu durante o julgamento, o ônus da prova deveria ser transferido para a promotoria, para que esta prove, além de um nível de dúvida razoável, que a confissão não foi obtida por meios ilícitos, inclusive tortura ou maus tratos semelhantes.

10. As queixas de maus tratos, quer feitas à polícia ou a outro serviço, à corregedoria do serviço policial ou a seu ouvidor, ou a um promotor, deveriam ser investigadas com celeridade e diligência. Em particular, importa que o resultado não dependa unicamente de provas referentes ao caso individual; deveriam ser igualmente investigados os padrões de maus tratos. A menos que a denúncia seja manifestamente improcedente, as pessoas envolvidas deveriam ser suspensas de suas atribuições até que se estabeleça o resultado da investigação e de quaisquer processos judiciais ou disciplinares subseqüentes. Nos casos em que ficar demonstrada uma denúncia específica ou um padrão de atos de tortura ou de maus tratos semelhantes, o pessoal envolvido deveria ser peremptoriamente demitido, inclusive os encarregados da instituição. Essa medida envolverá uma purgação radical de alguns serviços. Um primeiro passo nesse sentido poderia ser a purgação de torturadores conhecidos, remanescentes do período do governo militar.

11. Todos os Estados deveriam implementar programas de proteção a testemunhas nos moldes estabelecidos pelo programa PROVITA para testemunhas de incidentes de violência por parte de funcionários públicos; tais programas deveriam ser plenamente ampliados de modo a incluir pessoas que têm antecedentes criminais. Nos casos em que os atuais presos se encontram em risco, eles deveriam ser transferidos para outro centro de detenção, onde deveriam ser tomadas medidas especiais com vistas à sua segurança.

12. Os promotores deveriam formalizar acusações nos termos da Lei Contra a Tortura de 1997, com a freqüência definida com base no alcance e na gravidade do problema, e deveriam requerer que os juízes apliquem as disposições legais que proíbem o uso de fiança em benefício dos acusados. Os Procuradores Gerais, com o apoio material das autoridades governamentais e outras autoridades estaduais competentes, deveriam destinar recursos suficientes, qualificados e comprometidos para a investigação penal de casos de tortura e maus tratos semelhantes, bem como para quaisquer processos em grau de recurso. Em princípio, os promotores em referência não deveriam ser os mesmos que os responsáveis pela instauração de processos penais ordinários.

13. As investigações de crimes cometidos por policiais não deveriam estar sob a autoridade da própria polícia. Em princípio, um órgão independente, dotado de seus próprios recursos de investigação e de um mínimo de pessoal – o Ministério Público – deveria ter autoridade de controlar e dirigir a investigação, bem como acesso irrestrito às delegacias de polícia.

14. Os níveis federal e estaduais deveriam considerar positivamente a proposta de criação da função de juiz investigador, cuja tarefa consistiria em salvaguardar os direitos das pessoas privadas de liberdade.

15. Se não por qualquer outra razão que não a de pôr fim à superlotação crônica dos centros de detenção (um problema que a construção de mais estabelecimentos de detenção provavelmente não poderá resolver), faz-se imperativo um programa de conscientização no âmbito do Judiciário a fim de garantir que essa profissão, que se encontra no coração do Estado de Direito e da garantia dos Direitos Humanos, torne-se tão sensível à necessidade de proteger os direitos dos suspeitos e, com efeito, de presos condenados, quanto evidentemente o é a respeito da necessidade de reprimir a criminalidade. Em particular, o Judiciário deveria assumir alguma responsabilidade pelas condições e pelo tratamento a que ficam sujeitas as pessoas que o Judiciário ordena permaneçam sob detenção pré-julgamento ou sentenciadas ao cárcere. Em se tratando de crimes ordinários, o Judiciário, nos casos em que existirem acusações alternativas, também deveria ser relutante em: proceder a acusações que impeçam a concessão de fiança, excluir a possibilidade de sentenças alternativas, exigir custódia sob regime fechado, bem como em limitar a progressão de sentenças.

16. Pela mesma razão, a Lei de Crimes Hediondos e outros diplomas legais aplicáveis deveriam ser emendados de modo a assegurar que períodos de detenção ou prisão, muitas vezes longos, não sejam passíveis de imposição por crimes relativamente menos graves. O crime de "desrespeito à autoridade" (desacatar a funcionário público no exercício da função) deveria ser abolido.

17. Deveria haver um número suficiente de defensores públicos para garantir que haja assessoramento jurídico e proteção a todas as pessoas privadas de liberdade desde o momento de sua prisão.

18. Instituições tais como conselhos comunitários, conselhos estaduais de direitos humanos e as ouvidorias policiais e prisionais deveriam ser mais amplamente utilizadas; essas instituições deveriam ser dotadas dos recursos que lhe são necessários. Em particular, cada estado deveria estabelecer conselhos comunitários plenamente dotados de recursos, que incluam representantes da sociedade civil, sobretudo organizações não-governamentais de direitos humanos, com acesso irrestrito a todos os estabelecimentos de detenção e o poder de coletar provas de irregularidades cometidas por funcionários.

19. A polícia deveria ser unificada sob a autoridade e a justiça civis. Enquanto essa medida estiver pendente, o Congresso pode acelerar a apreciação do projeto de lei apresentado pelo Governo Federal que visa transferir para tribunais ordinários a jurisdição sobre crimes de homicídio, lesão corporal e outros crimes, inclusive o crime de tortura cometida pela polícia militar.

20. As delegacias de polícia deveriam ser transformadas em instituições que ofereçam um serviço ao público. As delegacias legais implementadas em caráter pioneiro no estado do Rio de Janeiro são um modelo a ser seguido.

21. Um profissional médico qualificado (um médico escolhido, quando possível) deveria estar disponível para examinar cada pessoa, quando de sua chegada ou saída, em um lugar de detenção. Os profissionais médicos também deveriam dispor dos medicamentos necessários para atender às necessidades médicas dos detentos e, caso não possam atender a suas necessidades, deveriam ter autoridade para determinar que os detentos sejam transferidos para um hospital, independentemente da autoridade que efetuou a detenção. O acesso ao profissional médico não deveria depender do pessoal da autoridade que efetua a detenção. Tais profissionais que trabalham em instituições de privação de liberdade não deveriam estar sob autoridade da instituição, nem da autoridade política por ela responsável.

Os serviços médico-forenses deveriam estar sob a autoridade judicial ou outra autoridade independente, e não sob a mesma autoridade governamental que a polícia; nem deveriam exercer monopólio sobre as provas forenses especializadas para fins judiciais.

23. A assustadora situação de superpopulação em alguns estabelecimentos de prisão provisória e instituições prisionais precisa acabar imediatamente; se necessário, mediante ação do Executivo, exercendo clemência, por exemplo, com relação a certas categorias de presos, tais como transgressores primários não-violentos ou suspeitos de transgressão. A lei que exige a separação entre categorias de presos deveria ser implementada.

24. É preciso que haja uma presença de monitoramento permanente em toda instituição dessa natureza e em estabelecimentos de detenção de menores infratores, independentemente da autoridade responsável pela instituição. Em muitos lugares, essa presença exigiria proteção e segurança independentes.

25. É preciso providenciar, urgentemente, capacitação básica e treinamento de reciclagem para a polícia, o pessoal de instituições de detenção, funcionários do Ministério Público e outros envolvidos na execução da lei, incluindo-se temas de direitos humanos e matérias constitucionais, bem como técnicas científicas e as melhores práticas propícias ao desempenho profissional de suas funções. O programa de segurança humana do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas poderia ter uma contribuição substancial a fazer nesse particular.

26. Deveria ser apreciada a proposta de emenda constitucional que permitiria, em determinadas circunstâncias, que o Governo Federal solicitasse autorização do Tribunal de Recursos (Superior Tribunal de Justiça) para assumir jurisdição sobre crimes que envolvam violação de direitos humanos internacionalmente reconhecidos. As autoridades federais do Ministério Público necessitarão de um aumento substancial dos recursos a elas alocados para poderem cumprir efetivamente a nova responsabilidade.

27. O financiamento federal de estabelecimentos policiais e penais deveria levar em conta a existência ou não de estruturas para se garantir o respeito aos direitos das pessoas detidas. Deveria haver disponibilidade de financiamento federal para se implementarem as recomendações acima. Em particular, A Lei de Responsabilidade Fiscal não deveria ser um obstáculo à efetivação das recomendações.

28. O Governo deveria considerar séria e positivamente a aceitação do direito de petição individual ao Comitê contra a Tortura, mediante a declaração prevista nos termos do Artigo 22 da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

29. Solicita-se ao Governo a considerar convidar o Relator Especial sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias a visitar o país.

30. O Fundo Voluntário das Nações Unidas para Vítimas da Tortura fica convidado a considerar com receptividade as solicitações de assistência por parte de organizações não-governamentais que trabalham em prol das necessidades médicas de pessoas que tenham sido torturadas e pela reparação legal da injustiça a elas causada.

 

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