
Prefácio
Em
Defesa do Milagre da Vida
Frei Betto*
Este
Relatório Anual da Justiça Global envergonha o Brasil. Há mais
de 50 anos o nosso país somou-se a tantos outros que proclamaram
e assinaram, na ONU, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos. No entanto, aqui está a prova do profundo abismo entre o
documento e a vontade política, o princípio e a prática, o
? discurso e a ação deliberada em prol da erradicação das violações
dos direitos do mais belo e sagrado fruto da Criação: o ser
humano.
Se
o sentimento de vergonha não nos imobiliza é por ser mais
profunda a indignação. Ela irrompe como um sinal vulcânico de
que lateja vivo o fogo da ética. O humano tem direito ao humano.
Quinze bilhões de anos foram necessários para gerar uma pessoa,
considerando que cada um de nós é feito de células, que são
feitas de moléculas, que são feitas de átomos. Dos mesmos 92 átomos
que fazem as águas do oceano Atlântico e as árvores da Amazônia,
as geleiras dos Andes e a pedra do Pão de Açúcar. E fazem todo
o Universo.
Cada
uma dessas 92 "notas musicais" da sinfonia cósmica foi
produzida num único lugar: no forno das estrelas. Lá foram
cozidos todos os átomos do corpo de uma criança de rua, bem como
os da rainha da Inglaterra, com exceção do átomo de hidrogênio,
a matéria-prima da Criação.
No
entanto, hoje, significativa parcela da humanidade ainda aspira
por direitos animais. Comer, educar a cria, abrigar-se das intempéries,
são necessidades que nem a natureza, nem a sociedade recusam aos
animais. Mas o senso egoísta de lucro e propriedade nega à
metade da população mundial, calculada em 6 bilhões. Na recente
reunião do FMI e do Bird, em Praga, os números tornaram-se
conhecidos: 1,2 bilhão de pessoas sobrevivem com renda diária
inferior a U$ 1; e 2,8? bilhões com menos de US$ 2 por dia. No
Brasil, entre 167 milhões de habitantes, são 32 milhões de
miseráveis e 54,1 milhões de pobres. Entre os 410 milhões de
habitantes da América Latina, 224 milhões são pobres e 90 milhões,
miseráveis.
Um
ser humano – da criança de rua a Bill Gates com seus US$ 83
bilhões – é um milagre da vida. Nenhum de nós escolheu a família,
a classe social, a nação ou a época em que nasceu. Somos todos
filhos da loteria biológica. Parecemos, contudo, não nos dar
conta desse acaso que constitui, num mundo tão desigual, uma
injustiça. Constatá-la deveria incutir em nós, os premiados, um
mínimo de sentimento da dívida pessoal e social para com aqueles
que tiveram a infelicidade de nascer em condições criadas pelo
colonialismo, a exploração e o descaso político de nossos
antepassados.
Ainda
hoje prossegue o processo de devastação, agora trazendo também
graves danos ao meio ambiente. Às nações metropolitanas
importavam mais o ouro e a prata da América Latina que a vida de
nossos povos. O mesmo sucedeu na África, onde o brilho do
diamante e do marfim atraiu uma horda de "civilizados",
que só deixou em seu rasto sangue e dor. A Ásia, do ópio
introduzido na China pelo Império
Britânico à bomba nuclear lançada pelos EUA em Hiroshima e
Nagasaki, é também palco de como a lógica do poder permanece
distante da ética do humano.
Es?te
relatório revela que, no Brasil, a conquista da democracia, após
21 anos de ditadura militar (1964-1985), não se traduziu ainda em
respeito aos direitos humanos. Ao contrário, a crítica da razão
cínica, por vezes respaldada pelo poder público e por certos
meios de comunicação, infunde o consenso de que "direitos
humanos" são "coisa de bandido", assim como, há
poucos anos, lutar por democracia era "coisa de
terrorista". Na Alemanha de Hitler, judeu era sinônimo de
"raça impura".
A
situação brasileira em relação aos direitos humanos, como o
comprova este documento, é tão lastimável e preocupante que,
neste ano de 2000, o país mereceu a visita de Mary Robinson, Alta
Comissária das Nações Unidas; Nigel Rodley, relator especial da
ONU; e acolheu a audiência da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos da OEA, em junho, em São Paulo.
Os
dados são alarmantes: só na cidade de São Paulo ocorreram 78
chacinas nos primeiros dez meses de 2000, com 273 mortos – índice
que supera o número de vítimas de guerra regionais que merecem
atenção da mídia internacional. Acumulam-se, por outro lado, os
casos inconclusos, sem desfechos processuais ou com resultados
parciais que desmoralizam a Justiça e fortalecem a cultura oligárquica
da imunidade e da impunidade: Corumbiara, Eldorado dos Carajás,
Vigário Geral, Candelária, Carandiru, CPI do Narcotráfico etc.
Dados
da CPT (Comi?ssão Pastoral da Terra) revelam que, de 1988 a 2000,
1517 trabalhadores rurais foram assassinados no Brasil. Em 2000,
até setembro, foram 11 vítimas. Em matéria de truculência e
repressão, destacou-se o governo do Estado do Paraná, cuja
policia assassinou o lavrador Antônio Tavares Pereira.
As
páginas deste documento comprovam que o trabalho do Centro de
Justiça Global é imprescindível como elo de uma corrente de
solidariedade aos condenados da Terra, segundo o imperativo ético
da dar voz aos que não têm voz para que, amanhã, eles também
possam ter vez. Essa é uma tarefa evangélica à luz dos princípios
cristãos, uma vez que, para Jesus, todo ser humano – ainda que
cego, surdo, mudo ou paralítico – é templo vivo de Deus. E
profaná-lo é ofender o próprio Criador e negar a nossa natureza
de imagem e semelhança divinas.
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Frei
Betto é escritor e membro do Conselho Consultivo do Centro de
Justiça Global.
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