APRESENTAÇÃO
A Human Rights Watch é a maior entidade
de defesa dos direitos humanos sediada nos Estados Unidos. Desde 1978, com o
estabelecimento de Helsinki Watch para vigiar o cumprimento das normas
internacionais de direitos humanos nos países signatários dos acordos de
Helsinki, a Human Rights Watch trabalha para avançar os direitos humanos
no mundo inteiro. A Americas Watch, agora Human Rights Watch/Americas,
foi estabelecida em 1981, para observar o respeito aos direitos humanos nas
Américas.
Este é o nosso sexto relatório sobre os
desenvolvimentos dos direitos humanos em todo o mundo e o décimo terceiro sobre
a política de direitos humanos dos Estados Unidos, cobrindo eventos ocorridos
entre dezembro de 1994 e novembro de 1995. O volume não inclui um capítulo
para cada país onde trabalhamos, da mesma forma que não discute todos os temas
relevantes, mas cada capítulo trata dos desenvolvimentos mais significativos
para os direitos humanos ocorridos durante o ano, bem como a resposta da
comunidade internacional. Os países e temas tratados refletem o foco do nosso
trabalho em 1995, determinado pela severidade dos abusos e o acesso à
informação sobre os mesmos, nossa habilidade para influenciar as práticas
abusivas e nosso desejo de equilibrar nosso trabalho, ultrapassando as barreiras
políticas e regionais.
Como se trata de um breve resumo dos
acontecimentos de todo o mundo, o World Report não traz notas de
rodapé. Não obstante, baseia-se numa rigorosa pesquisa feita pelos nossos
pesquisadores em mais de 60 países, tanto desenvolvidos quanto em
desenvolvimento.
No Brasil, a Human Rights Watch/Americas
vem pesquisando e publicando relatórios desde 1987, ano no qual lançamos nosso
primeiro relatório, "Police Abuse in Brasil: Summary Executions and
Torture in São Paulo and Rio de Janeiro"(Abuso policial no Brasil:
execuções sumárias e tortura em São Paulo e no Rio de Janeiro). Nos
últimos anos, lançamos 14 relatórios sobre temas variados, tais como
violência contra as mulheres, crianças e adolescentes, condições
carcerárias e massacres nas prisões, violência rural e violência policial
urbana, massacres cometidos contra povos indígenas e a falta de justiça ante
os casos dos desaparecidos e mortos políticos da ditadura militar. Desde o fim
de 1994, a Human Rights Watch/Americas mantém uma representação
permanente no Brasil e em março foi inaugurado o escritório do Rio de Janeiro,
que fica na Avenida Marechal Câmara, 350, sala 906, Castelo. A direção é do
advogado James Cavallaro, a assessoria de comunicação e pesquisas ficam a
cargo da jornalista Anna Claudia Monteiro e a assessoria jurídica do advogado
Celso de Arruda França.
A Human Rights Watch agradece a Simone
Rocha, responsável pela versão original desta tradução, aos nossos
estagiários Gustavo Pacheco e a Ana Cecília Pacheco, à Clip Art Editoração
Eletrônica e a todos que viabilizaram a publicação deste relatório.
Rio de Janeiro, 7 de dezembro de
1995.
OS DIREITOS HUMANOS NO MUNDO:
1995
Por quase toda esta década, as grandes
potências freqüentemente esquivaram-se do seu dever de promover os direitos
humanos. Este ano, principalmente em função da insistência da opinião
pública, existem sinais de que os direitos humanos estão lentamente retornando
à agenda. A tendência está longe de ser uniforme, particularmente quando
interesses comerciais estão em jogo, mas ela aponta para a renovação do
compromisso oficial quanto a estes princípios universais cada vez mais aceitos
pelos povos do mundo.
Não obstante as grandes vitórias dos direitos
humanos representadas pelo colapso de regimes repressores na Europa Oriental,
África e América Latina, a primeira metade desta década testemunhou o
declínio no interesse da defesa dos direitos humanos, por parte das grandes
potências. Os governos temiam que a defesa ativa destes direitos pudesse
desagradar parceiros comerciais e pôr em risco oportunidades econômicas.
Enquanto a emergência da economia global requeria uma visão mais ampla,
líderes políticos mantiveram-se míopes e indiferentes ao domínio dos
direitos humanos.
Para apaziguar o descontentamento do público
face a este abandono dos direitos humanos, líderes políticos propuseram
teorias fáceis segundo as quais o comércio e o investimento levariam
inevitavelmente ao progresso dos direitos humanos. Para acalmar o clamor da
opinião pública por haver recusado dar um fim ao genocídio em Ruanda e na
Bósnia-Herzegovina, eles se reuniram numa tardia assistência humanitária.
Para justificar sua omissão face à carnificina étnica, alegaram que tal
matança é perpétua e inevitável. Para aquietar os brados que pediam que a
justiça fosse aplicada aos assassinos, criaram tribunais internacionais mas se
negaram a fornecer suporte político e financeiro. Ao longo do último ano,
existiram algumas indicações de que o pêndulo havia iniciado um movimento no
sentido oposto. A total falência do "engajamento construtivo" para
assegurar o progresso dos direitos humanos na China começou a minar a
conveniente proposição de que o comércio e o investimento seriam suficientes
para fomentar automaticamente os direitos humanos. O horror das tropas da ONU
terem servido como testemunhas silenciosas no genocídio da Bósnia -
particularmente em Srebrenica - sublinhou a necessidade de enfrentar os
massacres étnicos ou sectários. O enorme custo de pôr fim a conflitos
étnicos aumentou o interesse pela prevenção dos abusos aos direitos humanos,
os quais podem transformar a tensão étnica em violência étnica. A
devastação causada por oficiais de práticas abusivas que desfrutam de
impunidade para seus crimes contra os direitos humanos, trouxe um novo sentido
de urgência à luta para trazê-los aos auspícios da justiça. Cada vez mais
os direitos humanos eram vistos menos como um luxo dispensável e mais como um
pilar essencial da segurança global e do bem estar público.
Líderes políticos exerceram um papel
preocupadamente pequeno na retificação desta conduta. Desde a relutância do
Secretário Geral das Nações Unidas Boutros-Boutros Ghali em incomodar
governos poderosos até a persistente tendência do Presidente americano Bill
Clinton a capitular frente a questões envolvendo princípios dos direitos
humanos, o apoio dos líderes políticos a estes direitos foi freqüentemente
marcado pelo atraso, a inconsistência ou mesmo a má vontade. No entanto, o
público mostrou-se freqüentemente incomodado pôr este abandono da causa dos
direitos humanos. Quando a indiferença oficial aos abusos cometidos na Bósnia,
Chechênia, China e outros países tornou-se intolerável, cresceram as demandas
públicas por ação. O florescente movimento global pelos direitos humanos
exerceu importante papel na construção e na expressão da reação pública.
Ganhando proeminência mais recentemente na
Quarta Conferência das Nações Unidas sobre as Mulheres, realizada em Beijing,
esta rede diversificada de ativistas e associações proporcionou uma voz mais
poderosa e uma perspectiva genuinamente multinacional para combater a tendência
à apatia e ao isolacionismo dos governos nacionais. Ela também assegurou que
os governos paguem um alto preço político por desprezarem seus compromissos
relativos aos direitos humanos.
Um Sistema de Justiça Internacional
Uma questão central na definição do
compromisso internacional para com os direitos humanos diz respeito ao
exercício da justiça para os violadores destes direitos. Pela primeira vez
desde Nuremberg, há uma possibilidade de se criar um sistema internacional de
justiça que supere a impunidade ocasionada por judiciários nacionais fracos,
corruptos ou aterrorizados. O estabelecimento de tal sistema revolucionaria a
defesa dos direitos humanos, uma vez que somaria uma poderosa ameaça de
julgamento e punição internacionais às ferramentas de estigmatização e
pressão econômica existentes. A realização deste projeto depende, no
entanto, da disposição da comunidade internacional para equiparar sua
retórica de apoio à ação concreta.
Enquanto as grandes potências debatem a respeito
do empreendimento deste passo crucial, um inquebrantável clamor por justiça
está surgindo, muitas vezes em partes do mundo onde proponentes da anistia e da
amnésia pensavam que o passado havia sido esquecido e que as feridas supuradas
haviam cicatrizado. Enquanto oficiais de práticas excessivas ainda tentam
explorar seu poder a fim de obter impunidade para seus crimes contra os direitos
humanos, várias sociedades, particularmente na América Latina mas também na
África e na Ásia, demandam que o estado de direito seja aplicado a todos, que
não se negue o passado e que se resista aos compromissos convenientes que levam
à anistia e ao esquecimento oficial, em nome da reconstrução de uma ordem
moral desfalecida.
O Haiti foi ilustrativo. Em setembro de 1994, a
administração do Presidente Clinton, por intermédio de seu enviado, o
ex-presidente Jimmy Carter, induziu os líderes militares a renunciarem ao
poder, prometendo uma anistia generalizada para os milhares de assassinatos
políticos cometidos enquanto governaram o país. Trazido de volta ao poder por
uma força multinacional autorizada pelas Nações Unidas, o presidente
Jean-Bertrand Aristide e o parlamento haitiano recusaram-se a perdoar tais
crimes. Objetivando destruir o ciclo de impunidade que condenou o Haiti a uma
sucessão de regimes brutais, o presidente Aristide iniciou investigações
versando sobre alguns dos mais notórios homicídios. Quando o sistema
judiciário haitiano mostrou-se fraco para assegurar a justiça sozinho, ele
tomou a medida atípica de convocar a ajuda de um time de promotores
estrangeiros. Aristide ainda exonerou todos os oficiais militares superiores,
efetivamente dissolvendo o exército haitiano, e estabeleceu uma "comissão
da verdade" a fim de criar um registro público dos crimes cometidos
durante o regime militar. (No entanto, seu freqüente apoio popular à
"reconciliação e justiça" foi frustrado quando, num elogio fúnebre
a um congressista assassinado, ele contribuiu para uma onda de homicídios
velados, incitando a participação de civis nos esforços de desarmamento da
polícia).
Rompendo seu próprio padrão de impunidade, o
Chile condenou e aprisionou dois ex-oficiais da polícia secreta, General Manuel
Contreras Sepúlveda e Brigadeiro General Pedro Espinoza Bravo, por haver
ordenado o atentado com carro-bomba que, em 1976, vitimou um ex-ministro da
defesa chileno e uma representante americana. Em Honduras, um promotor especial
para os direitos humanos superou ameaças e violência para emitir uma rara
acusação criminal contra oficiais militares latino-americanos da ativa. Entre
os indiciados (por seqüestro, tortura e tentativa de assassinato, em 1992)
estava o Tenente Coronel Alexander Hernández, chefe de operações do Batalhão
3-16, - conhecido por suas práticas abusivas -, no início dos anos 80, e agora
inspetor geral da polícia militar.
Na Argentina, o chefe do staff militar
emitiu um histórico pedido de desculpas pelos crimes cometidos durante a
"guerra suja" dos anos 70. Promotores na Guatemala e no Peru,
corajosamente, pressionaram pela investigação de atrocidades militares. A
Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu que o governo peruano havia
violado o direito à vida durante a repressão mortal contra as revoltas no
presídio de El Frontón, em 1986. Mediante forte recomendação da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, o governo colombiano investigou e aceitou a
responsabilidade pelos assassinatos e desaparecimentos forçados de trinta e
quatro pessoas em 1994 e demitiu o Tenente Coronel envolvido nestes crimes.
Na África, a Etiópia está dando prosseguimento
ao julgamento de quarenta e quatro líderes do governo do ex-presidente Mengistu
Haile Mariam, por sua atuação brutalmente repressiva entre 1974 e 1991 (ainda
que centenas de outros permaneçam sob custódia, sem acusação formal). A
África do Sul também formulou acusações formais contra um número de
ex-oficiais do alto escalão, incluindo um ex-ministro da defesa, General Magnus
Malan, por sua conexão com violações, nos anos 80. Além disso, o país está
pronto para lançar uma "comissão da verdade", diante da qual
oficiais de práticas excessivas deverão confessar seus crimes em troca da
garantia de que não serão processados judicialmente. Na Ásia, o presidente
Sul-Coreano Kim Young Sam solicitou legislação que permite a instauração de
processo judicial contra os antigos líderes militares do país pelo massacre,
em 1980 de indivíduos que protestavam em favor da democracia, em Kwangju.
Se este clamor pela justiça inicia uma
tendência ou não, ela dependerá em larga medida das ações das grandes
potências com relação à ex-Iugoslávia. O Presidente Clinton, a Embaixadora
Americana para as Nações Unidas Madeleine Albright e outros funcionários do
governo americano têm se manifestado de forma eloqüente a respeito da
necessidade de uma justiça que crie os fundamentos de uma paz duradoura, em
oposição a um mero acordo de paz de curta duração. Atrás deste apoio
escondem-se importantes verdades. Apenas a justiça para os assassinos de hoje
pode deter aqueles que poderão retomar o derramamento de sangue no futuro.
Apenas a justiça pode substituir o estado de direito pelo ciclo de vingança
sumária. E apenas a justiça pode substituir uma avaliação da culpa baseada
na falsa premissa da responsabilidade étnica coletiva, que divide as
comunidades Bósnia, Croata e Sérvia, pela determinação da culpa
individualizada.
Em meados de novembro, o Tribunal Internacional
para a ex-Iugoslávia deu importantes passos para a obtenção da justiça, pela
denúncia de cinquenta e duas pessoas por homicídio, tortura, estupro e outros
atos de genocídio, além dos crimes de guerra e crimes contra a humanidade na
Bósnia e na Croácia. Diferentemente de Nuremberg, onde apenas os perdedores
prestaram contas à justiça, o Tribunal para a ex-Iugoslávia indiciou Sérvios
e Croatas, e seus promotores comprometeram-se a denunciar formalmente todos
aqueles contra os quais possam ser encontradas evidências de sérios crimes.
Entretanto, a presença dos réus aos julgamentos dependerá da implementação
do acordo de paz firmado em Dayton, Ohio, no final de novembro.
Este acordo representa um avanço importante para
a obtenção da justiça em vários aspectos. Ele demonstra que um acordo de paz
pode ser alcançado sem a promessa de anistia para os criminosos de guerra,
obriga as partes a "cooperarem inteiramente" com o tribunal, impede
que os indiciados por crimes de guerra exerçam cargos públicos e autoriza a
introdução de tropas internacionais na Bósnia para deter indiciados por
crimes de guerra, que estiverem a seu alcance. No entanto, o acordo também
apresenta ambigüidades, como a falta de uma exigência explícita para que os
criminosos de guerra sejam entregues ao tribunal ou o dever explícito das
tropas internacionais de perseguirem e deterem os indiciados por crimes de
guerra.
A ocorrência dos julgamentos dependerá da
disposição da comunidade internacional para reter a ajuda para a
reconstrução e impor sanções a qualquer governo que se recuse a entregar
seus réus ao tribunal. Os entraves à justiça poderão advir ainda da
relutância natural para enviar tropas internacionais e civis para locais onde
os indiciados pelos crimes de guerra, com ampla história de rompimento de
acordos e táticas selvagens, ainda mantém autoridade formal ou de
facto sobre as tropas. A relutância na demanda de julgamento para
criminosos de guerra indiciados - a indisposição para ajustar a prática à
retórica - põe em risco a luta pela justiça, uma vez que levanta a
possibilidade dos representantes internacionais na Bósnia realizarem negócios,
como de costume, com pessoas acusadas da prática de crimes hediondos. Isto
também abriria um precedente de indiferença que prejudicaria esforços futuros
para estabelecer um sistema internacional de justiça.
O Tribunal Internacional Criminal para Ruanda
progrediu significativamente menos que seu correspondente para a ex-Iugoslávia.
Enquanto as evidências do genocídio em Ruanda são amplas e seus
responsáveis, que encontram-se exilados, são vulneráveis à detenção, o
tribunal de Ruanda tem caminhado a passos lentos devido à falta de fundos e de
pessoal arrojado, e à indiferença internacional. Ao tolerar este ritmo fraco,
a comunidade internacional desperdiça uma oportunidade de reduzir severas
tensões étnicas em Ruanda, onde os extremistas do novo governo tentam difundir
o mito de que todos os Hutus são culpados pelo genocídio, ao invés de
responsabilizar apenas alguns indivíduos. A hostilidade do novo governo para
com os Hutus foi demonstrada pela detenção em condições desumanas e
ameaçantes à vida de aproximadamente 57 mil pessoas acusadas de genocídio e
também pelo massacre de milhares de pessoas deslocadas, pelo exército de
Ruanda. Enquanto isto, cerca de dois milhões de refugiados que encontram-se
fora de Ruanda temem retornar ao seu país, e os líderes do antigo governo, por
enquanto livres de ameaças de prisão ou julgamento, tratam de se rearmar e
preparam incursões cada vez mais sérias no território de Ruanda.
A tentativa de estabelecer, de forma permanente,
um Tribunal Internacional de Justiça Criminal tem progredido de forma lenta. Ao
contrário dos tribunais ad hoc para Ruanda e ex-Iugoslávia, o Tribunal
julgaria ofensores dos direitos humanos sempre que os sistemas judiciários
nacionais falhassem em seu dever de fazer justiça. Dentre os muitos governantes
que defendem tal posição, está o presidente Nelson Mandela, da África do
Sul, que já se pronunciou sobre a contribuição positiva que tal tribunal
poderia ter oferecido para deter a repressão do apartheid. Mas,
precisamente porque este tribunal poderia aplicar-se aos americanos, a
administração Clinton - que não se exime de apoiar a justiça em outras
partes - têm empreendido esforços para minar a independência de um futuro
Tribunal de Justiça Internacional. Os Estados Unidos encontraram-se aliados a
previsíveis oponentes da aplicação dos direitos humanos internacionais como a
China, a Índia, o México, a Coréia do Norte e o Paquistão.
Em discurso de homenagem a um promotor de
Nuremberg, o presidente Clinton endossou os princípios do Tribunal. Entretanto,
seus negociadores continuam a insistir na necessidade de aprovação pelo
Conselho de Segurança, antes que qualquer episódio leve ao processo jurídico
-- uma tentativa transparente de permitir que os Estados Unidos vetem o
julgamento dos seus cidadãos ou de cidadãos de países aliados. Naturalmente,
é de se esperar que os outros membros permanentes do Conselho de Segurança
sigam os Estados Unidos. A justiça parcial oferecida por uma entidade tão
politizada representaria um desperdício do tremendo potencial do Tribunal.
Como os oficiais americanos rapidamente admitem,
se considerarmos o clima político atual em Washington, é pequena a
probabilidade de que os Estados Unidos ratifiquem até mesmo a fraca versão que
propõem para o Tribunal, ao qual os cidadãos americanos não estariam
imediatamente submetidos. Além disso, em vez de permitir o progresso de um
tribunal forte, e simplesmente aguardar até que os líderes políticos
americanos tenham a visão e a coragem para tomar parte num sistema de justiça
internacional, a administração Clinton corre o risco de perder um momento
histórico, sabotando uma instituição da qual o governo americano não tem
nenhuma intenção de participar.
A necessidade de um sistema de justiça
internacional foi dolorosamente demonstrada pela guerra na Chechênia. As tropas
russas atacaram Grozny e as áreas periféricas com tal ferocidade que não se
via em território russo desde a Segunda Guerra Mundial. Civis depararam-se com
bombardeamentos maciços e indiscriminados. Milhares de pessoas morreram e
centenas de milhares foram deslocados. A princípio a comunidade internacional
respondeu com firmeza a estes abusos russos: a União Européia congelou um
acordo comercial provisório e suspendeu a ratificação de um acordo de
parceria e cooperação; o Conselho da Europa suspendeu o pedido russo de
adesão à União; a Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa
estabeleceu uma missão de campo em Grozny; e a Comissão dos Direitos Humanos
das Nações Unidas emitiu uma declaração severa. Esta reação dura gerou uma
pressão significativa para diminuir a matança. Entretanto, tal pressão foi
logo relaxada - particularmente quando o Fundo Monetário Internacional decidiu
outorgar um empréstimo significativo à Rússia - sem nenhuma garantia de que
os que estavam por trás da matança teriam que responder à justiça. Os
tribunais russos chegaram a condenar sete membros das forças armadas por crimes
contra civis, mas os generais que ordenaram a carnificina escaparam sem
punição.
A criação de um tribunal internacional ad
hoc para pôr fim a tal impunidade é improvável devido ao poder de veto
que a Rússia desfruta no Conselho de Segurança. Só se já tivesse existido um
Tribunal Internacional de Justiça Criminal poderia ter tornado possível a
justiça. Além disso, um Tribunal deste tipo oferece a melhor oportunidade para
assegurar que esta carnificina não se repetirá, nem na Chechênia nem em
nenhum outro lugar.
No Burundi, de forma semelhante, um sistema
judiciário paralisado clama pela assistência internacional. Líderes
envolvidos em homicídios e assassinatos em massa continuam a exercer seu poder
porque oficiais do judiciário, por medo ou interesse político, recusam-se a
dar início aos processos. Neste e em vários outros países ao redor do mundo,
apenas um fórum internacional poderia oferecer alguma possibilidade de justiça
para as vítimas de abusos violentos. Este é portanto o momento para que as
grandes potências, e particularmente os Estados Unidos, superem seus medos
provincianos e transformem-se em parceiros ativos na construção de um forte
sistema de justiça internacional.
As Nações Unidas
Cinquenta anos após a fundação das Nações
Unidas para, entre outras coisas, "promover e encorajar o respeito aos
direitos humanos e ...as liberdades fundamentais de todos" (Carta das
Nações Unidas, Art. 1), o Secretário Geral da Organização Boutros-Ghali tem
falhado gravemente na salvaguarda destes princípios. Preocupado em não ofender
governos poderosos, o secretário-geral não criticou o governo chinês por
desprezar impunemente os direitos à livre expressão e associação daqueles
que compareceram à Conferência sobre as Mulheres, patrocinada pelas Nações
Unidas, em Beijing.
Da mesma forma, no auge da carnificina na
Chechênia, o secretário-geral disse aos jornalistas que não tinha
"nenhum comentário" a fazer a respeitos desta guerra brutal. Seu
argumento de que é apenas um humilde servo dos 185 estados da Organização
não consegue mascarar sua renúncia à liderança no campo dos direitos
humanos.
Esta lacuna na liderança transformou-se em
obstrução ativa na Bósnia. Quando as forças sérvias tomaram Srebrenica,
declarada "zona de segurança" pelo Conselho de Segurança, o
secretário-geral permitiu que seu comandante militar, o Tenente General
francês Bernard Janvier bloqueasse a zona fechada de proteção e suporte
aéreo solicitada pelos peacekeepers holandeses, a qual os aviões da
OTAN estavam prontos a prover. O resultado foi o desaparecimento e provavelmente
o assassinato de oito mil homens e meninos muçulmanos.
Ao invés de aprender dessa tragédia sobre a
importância de por fim ao genocídio, o secretário-geral continua a adotar
apenas a visão tradicional das forças de manutenção da paz (peacekeeping
forces): ele defende somente o envio consensual de soldados minimamente
armados e mediante cessar-fogo, enquanto relega a outros a tarefa de prevenir os
assassinatos em massa. A estima do público pelas Nações Unidas diminuiu
significativamente como resultado desta esquiva das Nações Unidas de seu dever
de assegurar os direitos humanos fundamentais.
O Conselho de Segurança saiu-se apenas um pouco
melhor na correspondência às suas responsabilidades. As questões de direitos
humanos chegaram a dominar a agenda do Conselho de Segurança, estando no cerne
de virtualmente todas as situações aí tratadas - Angola, Bósnia, Burundi,
Croácia, El Salvador, Geórgia, Guatemala, Haiti, os territórios ocupados por
Israel, Iraque, Libéria, Moçambique, Ruanda, Sudão, Saara Oriental e
Tajiquistão. Este reconhecimento de facto da importância dos direitos
humanos para a paz e a segurança internacionais é um importante avanço face
aos dias em que os direitos humanos eram relegados à obscuridade de Genebra.
Hoje, as resoluções do Conselho de Segurança rotineiramente requerem o
respeito aos direitos humanos e o estabelecimento de operações de campo para
proteger tais direitos.
No entanto, a eficácia destas operações de
campo variou consideravelmente e mostrou-se freqüentemente pouco significativa.
No lado positivo, seis mil peacekeepers enviados ao Haiti ajudaram a
manter um ambiente estável durante o primeiro ano de exercício de poder do
Presidente Aristide, depois que uma força militar autorizada pela ONU induziu o
exército haitiano a abandonar o poder. A missão das Nações Unidas na
Guatemala produziu três excelentes relatórios e ofereceu alguma proteção
para monitores independentes dos direitos humanos. Os representantes das
Nações Unidas no Camboja também contribuíram para conter tendências
governamentais repressivas pela elaboração de relatórios críticos sobre os
direitos humanos.
Em contraste, a operação das Nações Unidas na
Libéria não fez nenhuma menção pública aos direitos humanos. A operação
das Nações Unidas no Saara Oriental manteve-se silenciosa enquanto o Marrocos
trabalhava para minar a imparcialidade de um plebiscito sobre o status do
território. Os peacekeepers da ONU em Ruanda eventualmente contribuíram
para a segurança de pessoas em risco, mas falharam na execução do seu mandato
de proteger civis quando tropas ruandesas abriram fogo sobre pessoas deslocadas
em Kibeho e multidões atacaram aqueles forçados a retornar ao seu país. A
presença das Nações Unidas em Moçambique assegurou a total impunidade para
crimes horrendos durante a guerra recém-concluída, e a operação em Angola
pareceu direcionada em sentido semelhante. As tropas das Nações Unidas na
Croácia só iniciaram sérios esforços para documentar abusos dos direitos
humanos quando as forças croatas retomaram regiões ocupadas pelos Sérvios.
Até então, as forças da ONU efetivamente aceitaram a "limpeza
étnica" e perderam mais tempo retirando não-Sérvios do que
protegendo-os, muito menos repatriando-os.
A Bósnia foi o palco do mais embaraçoso dos
desempenhos das Nações Unidas. Não obstante inúmeras resoluções
solicitando o respeito pelos direitos humanos, a repetida incapacidade do
Conselho de Segurança para fazer respeitar tais princípios levou a uma
desvalorização de sua autoridade condenatória.
Outrora um instrumento poderoso, resoluções
cruciais do Conselho de Segurança foram depreciadas. Ordens emitidas às
dezenas foram desprezadas porque muito raramente eram endossadas pela
disposição de aplicá-las. Ao contrário, durante quase todo o ano, a única
resposta concreta do Conselho de Segurança às vítimas de massacre étnico foi
uma tardia assistência humanitária - um paliativo que, ao expor vulneráveis
servidores humanitários à ameaça de retaliação, ofereceu um pretexto
conveniente para que se eximisse de uma ação mais eficaz. Foi apenas após a
queda de Srebrenica e Zepa e o bombardeamento de um mercado em Sarajevo que se
eliminou a necessidade do consentimento dos quartéis-generais da ONU para
bombardeios. Também foi só depois destes fatos que a OTAN utilizou uma força
decisiva para por fim ao bombardeamento de Sarajevo (ainda que a "limpeza
étnica" tenha prosseguido em outras partes da Bósnia).
Esta nova determinação deve ser mantida para
que se evite o retorno da visão de que organizados homicídios em massa
delimitados por fronteiras internacionalmente reconhecidas não trazem nenhuma
conseqüência para a "paz e a segurança internacionais", as quais o
Conselho de Segurança é responsável pela salvaguarda. Além disso, as
Nações Unidas têm o dever particular de assegurar que seus representantes
jamais voltarão a assumir o papel de testemunhas silenciosas de atrocidades.
Ainda que os peacekeepers holandeses de Srebrenica atribuam a queda deste
enclave à obstrução do General Janvier, eles não podem fugir à
responsabilidade por seu silêncio constrangedor, num momento em que o protesto
público e imediato poderia ter salvo milhares de vidas.
Uma vitória significativa dos direitos humanos
nas Nações Unidas foi a reafirmação da universalidade destes direitos pela
Conferência Mundial sobre as Mulheres, patrocinada pela Organização. Nesta
ocasião havia o risco do recuo, porque muitos governos repressores viram na
Conferência uma oportunidade para enfraquecer ou modificar as fortes garantias
de direitos humanos contidas em tratados internacionais. Estes governos tentaram
usar a Conferência para sugerir que o abuso dos direitos humanos das mulheres
é assunto "privado" e que deve ser tolerado em nome do
"costume" ou, ainda, para sugerir que é irrelevante superar a
pobreza, a falta de acesso à educação e a desigual oportunidade de empregos
que afetam as mulheres em todos as partes. Ainda assim, ativistas dos direitos
humanos de todo o mundo foram a Beijing para rejeitar este ataque cínico.
Enquanto afirmavam sua variedade cultural e seus
legados religiosos, esses ativistas mantiveram-se coesos em sua crença de que
todas as mulheres merecem respeito total pelos seus direitos humanos, de que
conceitos rígidos de privacidade e tradição não podem atravancar o
exercício destes direitos , e ainda de que a violência e a discriminação
contra as mulheres influem em muitos dos problemas econômicos e sociais
tratados na Conferência.
No entanto, porque a impunidade para a violação
dos direitos humanos das mulheres persiste na norma global, uma pressão maior
será necessária para assegurar que os compromissos oficiais relativos à
proteção dos direitos das mulheres assumidos na Conferência serão traduzidos
em proteção efetiva. O Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos
Humanos, José Ayala Lasso, continuou a manifestar uma tendência decepcionante
ao evitar o confronto em suas relações com governos abusivos. Sua melhor
atuação ocorreu durante sua visita a Kashmir, onde seus comentários
cautelosos foram amplamente divulgados pela imprensa indiana. Mas em Beijing,
onde as autoridades chinesas de fato mantiveram os jornalistas sob sua
observação, ele esquivou-se da oportunidade de criticar esta clara violação
dos direitos humanos, alegando que deveria investigar as circunstâncias. Em
Ruanda, a operação de monitoramento dos direitos humanos que ele supervisiona
passou quase todo o ano sem emitir um único pronunciamento público. A
indicação em setembro de um experiente investigador dos direitos humanos para
chefiar essa missão poderá conferir-lhe um papel mais vigoroso.
Além disso, o Alto Comissário continuou a
tratar sua função como se esta devesse estar limitada ao monitoramento e ao
aconselhamento tradicionalmente oferecidos pelo Centro dos Direitos Humanos das
Nações Unidas. Ainda que ele devesse coordenar todas as atividades dos
direitos humanos, ele não manifestou-se junto ao Conselho de Segurança quando
este desenvolveu e dirigiu uma série de operações de campo das Nações
Unidas de conseqüências imediatas para os direitos humanos. A falta de
especialistas em direitos humanos servindo ao Conselho de Segurança - na
verdade, a inexistência de qualquer vínculo formal entre o Conselho e Centro
dos Direitos Humanos, em Genebra - contribuiu para dificultar a implementação
efetiva das resoluções daquele órgão relativas aos direitos humanos.
O Alto Comissário tomou ainda medidas para
evitar que os governos substituíssem a sua diplomacia relativamente calma pelos
duros relatos públicos dos relatores especiais da ONU, a exemplo do que ocorreu
em 1994, quando Cuba convidou-o a visitar o país, ao mesmo tempo que negou a
entrada do relator especial para o país. Convites para que visitasse o Irã, o
Iraque e o Sudão -- países que proíbem a visita dos relatores especiais --
foram todos aceitos.
Comércio Global e Investimento
O florescimento da economia global não foi
acompanhado pelo compromisso por parte das grandes potências econômicas em
assegurar o respeito aos direitos humanos. Enquanto corporações multinacionais
procuram oportunidades econômicas no exterior, os líderes políticos do
ocidente continuam a passar por cima de questões paralelas de direitos humanos.
Para justificar este desinteresse, esses líderes proferem a teoria de que o
comércio e o investimento são a melhor defesa para os direitos humanos.
Entretanto, como os eventos de 1995 demonstraram a hipocrisia deste argumento, a
idéia de que o mercado não é um fiador automático dos direitos humanos
tornou-se cada vez mais clara.
A falência dessa política de "engajamento
construtivo" foi mais aparente na China, onde o Partido Comunista Chinês
utilizou a renda crescente advinda do comércio internacional para aumentar seu
poder, enquanto impiedosamente reprimia qualquer tentativa para iniciar uma
reforma política. Desde maio de 1994, quando o presidente Clinton desvinculou o
status comercial de Nação Mais Favorecida (Most Favored Nation -MFN) da China
das condições dos direitos humanos neste país, estas deterioraram claramente
lá e no Tibet. Autoridades chinesas detiveram mais dissidentes, tornaram a
aprisionar aqueles previamente liberados, levantaram novas acusações criminais
contra o ativista democrata Wei Jingsheng, retomaram a perseguição aos
tibetanos, suspenderam as negociações sobre visitas do Comitê Internacional
da Cruz Vermelha aos presídios, e aumentaram o controle sobre a mídia e as
práticas religiosas fora das igrejas oficialmente controladas -- tudo isto
somado à prática da tortura, utilização de trabalho escravo e severas
restrições à sociedade civil.
Até mesmo o diálogo sobre os direitos humanos
entre os Estados Unidos e a China, iniciado em 1990, terminou por completo. Em
1991, quando o status de MFN da China foi amplamente contestado, quase 800 casos
de prisioneiros políticos foram discutidos e alguns deles foram liberados. Em
1994, antes que se abandonasse o vínculo entre MNF e os direitos humanos,
outros 400 casos foram trazidos à tona e mais prisioneiros foram postos em
liberdade.
Em contraste, durante o encontro de outubro de
1995 entre os Presidentes Clinton e Jiang Zemin, oficiais dos Estados Unidos
silenciosamente entregaram um lista de quatro prisioneiros políticos, nenhum
dos quais foi solto. Ainda assim, a administração Clinton declarou que o
encontro havia sido "altamente positivo".
Contrariando as previsões dos que defendem uma
política de direitos humanos baseada no comércio, aquelas províncias com o
desenvolvimento mais alto e que captavam a maior quantidade de investimentos
estrangeiros não apresentaram maior respeito aos direitos civis e políticos do
que outras partes da China. Ao contrário, algumas violações dos direitos
humanos - como a repressão aos ativistas trabalhistas e os maus tratos
dispensados a trabalhadores imigrantes - parecem ter aumentado com o
desenvolvimento econômico.
A União Européia, os Estados Unidos, o Japão e
outros têm se esforçado para condenar as condições na China junto à
Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Ainda que a tentativa tenha
sido frustrada por um voto, pela primeira vez uma resolução da Comissão
condenando um membro permanente do Conselho de Segurança sobreviveu aos
desafios do procedimento necessário para se chegar à uma votação
substantiva. A Primeira Dama dos Estados Unidos, Sra. Hillary Rodham Clinton,
também expressou séria reprovação à repressão chinesa na ocasião de seu
discurso na Conferência sobres as Mulheres.
No entanto, a importante mensagem subjacente a
estes esforços foi minada pela torrente de líderes ocidentais que estiveram na
China, à procura de oportunidades de negócios, não obstante a
deteriorização das condições dos direitos humanos no país. O Secretário de
Comércio americano Ron Brown sintetizou tal abordagem quando viajou à China
para prestar homenagem a líderes chineses, sem articular uma única palavra
sobre os brutais pilares da economia chinesa. O Secretário de Energia americano
Hazel O’Leary e uma delegação de executivos juntaram-se à caravana sem
nenhuma crítica pública às práticas de direitos humanos em Beijing. A Casa
Branca tentou chamar a atenção para o potencial da comunidade de executivos
como uma força para os direitos humanos, mas os seus "Princípios Modelos
de Negócios" era por demasiado vago e abrangente para que tivesse algum
impacto sobre o problema específico que intencionava tratar, a saber, as
violações dos direitos humanos na China.
O Chanceler Helmut Kohl expressou prioridades
semelhantes quando liderou uma legião de empresários ávidos pelas
oportunidades comerciais a Beijing. Enquanto sua delegação buscava a
liberação de um grupos de presos políticos, o Chanceler Kohl insistia na
necessidade de levar em conta as diferentes tradições culturais na aplicação
dos padrões dos direitos humanos universais - a mesma argumentação utilizada
pela China para justificar sua repressão. Ele foi também o primeiro chefe de
governo europeu a visitar uma base do exército chinês, ignorando o embargo
decretado pela União Européia, em exercício desde o massacre do movimento
democrático da Praça Tiananmen. O Primeiro Ministro Canadense Jean Chrétien,
outro defensor do "engajamento construtivo", recebeu o Premier chinês
Li Peng como orador de destaque na conferência do conselho de negócios
sino-canadense, com apenas uma discreta menção aos direitos humanos. Ao final,
nenhum governo pareceu disposto a arriscar as conseqüências econômicas da
utilização de pressão política e econômica contra Beijing. Da mesma forma,
nenhum governo tomou a iniciativa de desenvolver formas multilaterais de
pressão que impediriam competidores menos afeitos aos princípios de darem uma
rasteira naqueles que defendem os direitos humanos.
A contínua subordinação dos direitos humanos
às questões comerciais também pode ser encontrada fora da China. Apesar do
enorme impulso do apoio econômico de US$20 bilhões fornecido ao México pelos
Estados Unidos, o governo americano proferiu apenas uma declaração pública a
respeito dos direitos humanos naquele país, e ainda assim de forma cautelosa.
(Como para todos os países, o Departamento de Estado também referiu-se ao
México no seu Relatório das Práticas dos Direitos Humanos por Países. No
entanto, a indisposição generalizada para modificar a política externa
americana de forma a incluir tais constatações continuou a enfraquecer o seu
significado).
O Brasil, outro "grande mercado
emergente" de acordo com a visão do Departamento de Comércio americano,
não foi sujeito a uma única menção pública, por exemplo, com relação a
seus índices alarmantes de assassinatos cometidos pela polícia, nem mesmo
quando o Presidente Clinton encontrou-se com o Presidente brasileiro Fernando
Henrique Cardoso. O mesmo silêncio pairou sobre as relações entre os Estados
Unidos e Arábia Saudita, onde a corrida por bilhões de dólares em novos
contratos incitou a tolerância silenciosa quanto à sistemática
discriminação das mulheres, à repressão da expressão pública independente,
à perseguição a islamistas geralmente não violentos e à ausência de
qualquer previsão de eleições. A França e o Reino Unido mantiveram-se
igualmente silenciosas quanto às práticas sauditas de direitos humanos, uma
vez que competiam pela venda de armamentos militares à Arábia Saudita.
O Japão, apesar de seu compromisso de relacionar
sua "Assistência ao Desenvolvimento no Exterior" à democratização
e à promoção dos direitos humanos, raramente invocou esta política na Ásia.
Burma foi a principal exceção mas, mesmo neste caso, o Japão restabeleceu
rapidamente as negociações para o retomada da assistência quando a ganhadora
do prêmio Nobel Daw Aung San Suu Kyi foi libertada de sua prisão domiciliar,
ignorando a recomendação dela própria de que agisse lentamente no retorno da
ajuda. Além de Burma, os países africanos constituem a maioria daqueles que
tiveram sua assistência cortada, apesar do Japão também haver trazido os
direitos humanos para a pauta dos seus diálogos com os países asiáticos. O
Reino Unido, da sua parte, organizou a segunda "Semana Britânica" a
fim de encorajar os negócios britânicos em Burma. A Associação das Nações
do Sudeste Asiático (Association of Southeast Asian Nations -ASEAN) também
preparou-se para admitir Burma, não obstante o governo militar extremamente
abusivo deste país.
O Chanceler alemão Helmut Kohl ignorou as baixas
taxas de respeito aos direitos humanos na Indonésia, incluindo a nova
repressão à liberdade de expressão e associação, quando presidiu a
assinatura de grandes acordos comerciais durante a visita a seu país do
Presidente indonésio Soeharto. A Rainha Beatriz, da Holanda, visitou a
Indonésia para expressar pesar a respeito do domínio colonial holandês, mas
este gesto foi enfraquecido pela visita de uma delegação de empresários
holandeses ávidos pela obtenção dos contratos indonésios.
Ainda que poderosos interesses comerciais
escondam-se por trás destas prioridades equivocadas, ainda temos esperança no
desconforto público periodicamente demonstrado quanto ao tratamento especial
dispensado aos ditadores e à promessa confortável de que o comércio ilimitado
inevitavelmente aperfeiçoaria a proteção aos direitos humanos.
O Secretário de Comércio americano Brown
exemplificou o cinismo deste comércio realizado com tiranos durante uma visita
à Índia para a conclusão de negócios avaliados em bilhões de dólares. Ele
anunciou que enquanto a "diplomacia comercial" for um caminho para
efetivar a melhora dos direitos humanos, "um não precisa esperar pelo
outro". Apesar da auto-imposição de obrigar-se a promover os direitos
humanos pelo comércio e canais diplomáticos, a União Européia também
aprovou dois grandes projetos de desenvolvimento para a Índia, com poucas
evidências de um esforço sério para levantar as questões destes direitos.
O poder do público para reafirmar seus
princípios em contraposição ao lucro foi visto na reação ao projeto da
represa chinesa Three Georges. O governo chinês já tentou silenciar os
protestos locais sobre os prejuízos para o meio-ambiente que a represa causava
e planeja deslocar forçosamente mais de um milhão de pessoas. A crítica do
público ocidental quanto à competição entre os bancos de investimento
americanos Merrill Lynch e Morgan Stanley pelo financiamento do projeto levou a
China a anunciar a suspensão da busca por financiamento da represa em 1995.
Além disso, a Casa Branca recomendou que o Banco de Exportação e Importação
dos Estados Unidos não financiasse projetos relacionados a represas, em
função das questões relativas ao meio-ambiente e aos direitos humanos.
Da mesma forma, ao visitar a Alemanha para a
assinatura de contratos, o Presidente indonésio Soeharto testemunhou a revolta
do público quanto aos abusos dos direitos humanos em seu país. Protestos
públicos na Austrália contra a nomeação para o cargo de embaixador de um
general que havia defendido a ação militar que assassinou manifestantes em
Dili, Timor Leste, em 1991, levou à retirada de sua candidatura.
Um equilíbrio mais apropriado entre o comércio
e os direitos humanos ocorreu nas relações com o Vietnã. Quando o Presidente
Clinton inaugurou as relações diplomáticas com o Vietnã, ele anunciou que o
estabelecimento de relações econômicas normais - envolvendo questões como o
status comercial de Nação Mais Favorecida (MFN) e o tratamento preferencial
pela Corporação dos Investimento Privados Exteriores (Overseas Private
Investment Corporation -OPIC) - requereria a checagem dos direitos humanos e do
direito do trabalho neste país. A União Européia, por sua vez, assinou um
acordo de comércio e cooperação com o Vietnã, mediante a condição do
"respeito pelos direitos humanos e os princípios democráticos". Este
condicionamento era necessário porque, apesar da crescente integração do
Vietnã na economia mundial e outras conquistas diplomáticas como sua adesão
ao ASEAN, o país ordenou novos aprisionamentos e a perseguição de dissidentes
políticos e religiosos.
Várias decisões pendentes nos demonstrarão se
as grandes potências serão ou não capazes de manter um melhor equilíbrio
entre o comércio e os direitos humanos: o Parlamento Europeu está prestes a
decidir se ratificará um "acordo tarifário" com a Turquia, o qual
vem sendo negociado com a União Européia. A ratificação foi condicionada a
melhoras específicas nas práticas dos direitos humanos. A Turquia empreendeu
alguns passos para responder às condições, mas os sérios abusos contra os
curdos continuam. A Organização para a Cooperação Econômica e o
Desenvolvimento (Organization on Economic Cooperation and Development -OECD), o
clube das democracias industriais, tem considerado a adesão da Coréia do Sul.
O compromisso assumido pela Organização para com a promoção dos direitos
trabalhistas será medido pelo nível de exigência quanto à suspensão das
extensas restrições ao trabalho independente na Coréia do Sul, como
condição de adesão. (O governo da Coréia do Sul boicotou um seminário da
OECD sobre os direitos do trabalhador a fim de evitar questões incômodas sobre
as práticas e leis repressivas que vigoram neste país). O governo americano
anunciou que retirará os benefícios tarifários embutidos no Sistema
Generalizado de Preferências (General System of Preferences - GSP) dos produtos
importados do Paquistão, a menos que este país submeta-se a compromissos
relativos ao uso de trabalho infantil e semi-escravo. Washington está também
considerando pôr em questão a elegibilidade da Indonésia para o mesmo sistema
de benefícios de comércio (GSP), por causa dos abusos aos direitos do trabalho
neste país, incluindo a intervenção militar em disputas trabalhistas
pacíficas e o molestamento de organizadores trabalhistas independentes. A
União Européia está considerando uma petição semelhante baseada na prática
do trabalho infantil semi-escravo no Paquistão, bem como o uso do trabalho
escravo em Burma. Esta e outras decisões pendentes fornecem uma oportunidade
para as potências econômicas agirem com base no fato de que o comércio e o
investimento irrestritos, sem um firme compromisso paralelo para com os direitos
humanos, não oferecem nenhuma garantia de progresso na defesa destes direitos.
Fraudes nas Eleições
Com o crescente reconhecimento do direito dos
indivíduos de elegerem livremente os seus representantes, cada vez mais
governos sentem-se impulsionados a promover eleições, a fim de obter
legitimidade. No entanto, alguns governos tentam realizar verdadeiras farsas
eleitorais no lugar de um pleito competitivo, impedindo desta forma o debate
ativo e a ampla participação, que dão o sentido às eleições.
O caso mais aberrante ocorreu no Iraque onde,
apesar da dura repressão à qualquer atividade política independente, o
Presidente Sadam Hussein alegou ter recebido 99.9% de aprovação num plebiscito
a respeito do seu governo. No Turkmenistão todos os candidatos foram nomeados
pelo presidente e concorreram sem sofrer nenhuma contestação. O Casaquistão
dissolveu seu parlamento e, após um plebiscito cheio de irregularidades,
cancelou as eleições presidenciais de 1996, permitindo que o presidente atual
permaneça no posto até o ano 2.000. O Tajiquistão organizou uma eleição
parlamentar marcada pela intimidação e pela fraude.
O Egito utilizou tribunais militares para
encarcerar candidatos da oposição, antes das eleições. A Argélia,
determinada a obter um alto percentual de participação nas eleições
presidenciais, apesar do número limitado de candidatos, censurou a mídia,
impediu manifestações e prendeu ativistas que defendiam o boicote. O Irã
restringiu a elegibilidade para eventuais candidatos e fechou jornais, antes das
suas eleições de 1996. O presidente do Zaire, Mobutu Sese Seko, adiou para
daqui a dois anos as eleições previstas, estendendo para sete anos a
"transição para a democracia" por ele anunciada. Os militares de
Burma mantiveram detidos dezesseis membros do parlamento que haviam sido eleitos
nas eleições anuladas de 1990, além de outros mil presos políticos.
O governo armênio suspendeu o mais antigo e
popular partido de oposição nos meses que antecederam as primeiras eleições
parlamentares depois do desmembramento da ex-República Soviética. O
Azerbaijão indiciou opositores políticos e excluiu alguns das eleições
parlamentares. A Albânia baniu vários políticos eminentes da oposição das
eleições marcadas para o início de 1996, utilizando uma lei criada para
excluir funcionários do governo, anterior a 1991. O conteúdo desta lei é vago
e não prevê garantias do devido processo legal que facilite sua aplicação
seletiva.
O Direito ao Monitoramento
O movimento dos direitos humanos continuou a
crescer e ganhar focos em novas e muitas vezes hostis partes do mundo. A
explosão de grupos fortes e capazes na África sub-saariana - apesar do caos e
da repressão no Zaire, da perseguição sistemática a ativistas dos direitos
humanos na Nigéria, e das ameaças e perseguições no Quênia - é
sintomática da resistência desse movimento. Na América Latina, o movimento
continua a demonstrar sua sofisticação e força. Partes da Ásia possuem um
aglomerado de grupos de direitos humanos diverso e crescente. Estes grupos
estão lentamente surgindo em muitos dos países da ex-URSS.
Uma vez que a exposição pública das
violações dos direitos humanos é muito poderosa, os governos abusivos fazem
todo o possível para prevenir a revelação de seus crimes. Em casos extremos,
monitores de direitos humanos arriscam suas vidas para revelar tais abusos. A
dedicação excepcional e a coragem de muitos monitores dos direitos humanos foi
ilustrada por Sergei Kovalyev, o representante russo para os direitos humanos
que enfrentou a matança de Grozny para relatar a selvageria das tropas russas
na Chechênia.
Pelo menos nove monitores desapareceram ou foram
assassinados no último ano, aparentemente em retaliação por seu trabalho,
incluindo três na Colômbia e dois na Argélia: na Colômbia, Ernesto
Fernández Fester foi morto por dois homens armados implicados em vários
assassinatos de líderes civis e camponeses. Javier Barriga Vergel e Humberto
Pea Prieto foram assassinados por pessoas não identificadas. Na Argélia, o
ativista dos direitos humanos Abdel-Hafid Megdoud foi morto por assassinos não
identificados, enquanto um grupo armado islâmico reivindicou o assassinato da
ativista dos direitos das mulheres Nabila Djahnine. Na Guatemala, um monitor de
direito humanos, Manuel Saquic Vásquez, foi seqüestrado e brutalmente
assassinado. Este homicídio foi mais tarde reivindicado por um esquadrão da
morte associado aos militares. Outro monitor, Martin Quip Mocu, foi seriamente
ferido quando soldados abriram fogo contra uma multidão desarmada. Jaswant
Singh Khalra de Punjab, Índia, foi preso e desapareceu em seguida à
realização de uma petição legal, por seu escritório, acusando a polícia de
Punjab pelo assassinato e cremação secreta de centenas de pessoas. Em
Honduras, Pedro Espinosa Osorio, segurança do Comissário Nacional para os
Direitos Humanos Leo Valladares Lanza, foi assassinado num ônibus público, por
dois assassinos desconhecidos, após uma série de ameaças a sua vida. Foi
divulgado que o especialista em assistência em situações de catástrofes
naturais, Frederick Cuny, foi declarado detido e sumariamente executado durante
uma missão da Open Society Institute para levar comida e remédios para o sul
da Chechênia. Cidadão americano e membro do Comitê de Assessoria ao Projeto
das Armas da Human Rights Watch, aparentemente ele foi capturado por forças
chechenas, em possível reação a informações deliberadamente vazadas da
inteligência russa. Acredita-se que ele provocou a fúria do governo russo por
expor abertamente sua visão a respeito da condução abusiva da guerra.
Em alguns países, ativistas dos direitos humanos
foram acometidos por encarceramentos e acusações criminais forjadas, devido à
sua bravura. Wei Jingsheng, o mais eloqüente defensor da democracia e dos
direitos humanos na China, foi denunciado por tentativa de derrubar o governo.
Tendo cumprido grande parte de sua pena de quinze anos de prisão, resultado de
sua luta pela mudança democrática, ele foi outra vez encarcerado em 1994,
após apenas seis meses de liberdade.
Na Nigéria, os líderes das duas maiores
organizações de defesa dos direitos humanos e da democracia, como a
Organização das Liberdades Civis e a Campanha pela Democracia, estão
incluídos na lista de detidos. Os monitores em Cuba enfrentaram longas
sentenças de prisão por crimes como "propaganda inimiga" e, ainda
que com menos freqüencia que no passado, ataques por grupos organizados pelo
governo auto-intitulados "atos de repúdio". Ativistas também foram
detidos ou mantidos sob custódia por relatar informações sobre os direitos
humanos em Burma, China e Tibet, Egito, Índia, Indonésia e Timor Leste, a
Cisjordânia, a Faixa de Gaza administrada pela Palestina, Síria, Tunísia e
Turquia.
Monitores dos direitos humanos foram vítimas de
ameaças e outras formas de moléstia no Brasil, Burundi, Camboja, Colômbia,
Egito, Guatemala, Honduras, Índia, Indonésia, Quênia, México, Paquistão,
Peru, Ruanda, Turkmenistão, Uzbequistão e Zaire. Nenhuma manifestação aberta
de monitoramento dos direitos humanos foi possível em Burma, China/Tibet, Irã,
Iraque, Coréia do Norte, Arábia Saudita, Singapura, Sudão, Síria e Vietnã.
Human Rights Watch
Neste último ano a Human Rights Watch continuou
a adaptar-se às mudanças na percepção global quanto à proteção dos
direitos humanos - da proliferação dos conflitos étnicos à crescente
importância do comércio em comparação com a ajuda governamental enquanto
instrumento para conter as violações. Talvez ainda mais importante seja o fato
de que, uma vez que o movimento dos direitos humanos está em expansão,
estabelecendo-se em muitos países, temos procurado formar alianças mais
estreitas e eficazes com nossos colegas locais. Trabalhamos juntos para
estabelecer prioridades de pesquisas, investigar casos e seguir estratégias de
defesa. Nossa contribuição especial para esse trabalho deriva de nosso amplo
mandato, nossa capacidade para realizar longas e difíceis investigações in
loco, nossa reputação consolidada junto à imprensa
internacional e nossa habilidade para inserir os direitos humanos nas
deliberações de política externa de governos influentes.
Como a natureza das violações dos direitos
humanos difere em muitas partes do mundo - o encarceramento clássico dá lugar
a violações relativas ao trabalho, abusos relacionados à competição por
recursos ou guerra entre grupos étnicos - temos procurado ajustar nossas
prioridades de investigação.Neste sentido, devido à nossa capacidade para
empreender complexas investigações durante conflitos e à nossa longa
história de denúncias não apenas relativas aos direitos humanos mas também
ao direito humanitário ou direito da guerra, durante o último ano iniciamos
repetidas investigações e inúmeros relatórios sobre as atrocidades ocorridas
na Bósnia e na Chechênia. Ao final do genocídio de Ruanda, abrimos um
escritório local para coletar evidências detalhadas contra os responsáveis, e
para ajudar na prevenção da retomada da nova matança.
Com esse trabalho relacionado à guerra,
procuramos ressaltar a necessidade de trazer à justiça os responsáveis por
atrocidades. Trabalhamos conjuntamente com promotores dos Tribunais
Internacionais para Ruanda e ex-Iugoslávia e devotamos atenção e recursos
especiais para assegurar o estabelecimento de um Tribunal Internacional de
Justiça Criminal.
Publicamos ainda um relatório global sobre os
conflitos entre comunidades étnicas baseado em dez estudos de caso, a fim de
revelar as violações dos direitos humanos que freqüentemente estão nas
origens destes conflitos. Nosso objetivo foi o de promover uma ação preventiva
através da identificação das violações que podem servir como um sinal
prévio deste tipo de violência.
No campo econômico, intensificamos nosso exame
minucioso dos esforços de desenvolvimento para assegurar que estes dispensam a
devida atenção aos direitos humanos. Sublinhamos as conseqüencias adversas
para os direitos humanos de alguns projetos de desenvolvimento como a represa
chinesa Three Georges e ainda a devastação de florestas e a mineração na
Ásia e na América Latina. Nosso objetivo não é o de pôr obstáculos a estas
atividades econômicas mas assegurar que elas sejam realizadas com base no total
respeito aos direitos humanos e apenas após a incidência de um debate público
livre em cada país a respeito da aceitação destes empreendimentos.
Uma vez que o comércio e o investimento
internacional ganham proeminência em detrimento da assistência entre governos,
estamos dedicando atenção especial ao papel da comunidade empresarial com
relação aos direitos humanos. Muitas companhias nos procuram para
aconselhamento sobre o estabelecimento e a implementação dos padrões de
direitos humanos para suas operações, bem como as de seus fornecedores. Quando
não há um esforço voluntário neste sentido, temos investigado e tornado
pública a cumplicidade do empresariado quanto às violações dos direitos
humanos. Iniciamos uma investigação especial que diz respeito à exploração
de crianças pelo trabalho semi-escravo pelos fornecedores sul-asiáticos de
corporações multinacionais.
A fim de reduzir a destruição causada pelo
crescente comércio de armas, continuamos a investigar não apenas os abusos
atribuídos aos governos e forças rebeldes, mas também a maneira como estas
forças obtém seus armamentos. Conduzimos longas investigações e lançamos
relatórios sobre o papel dos Estados Unidos enquanto fornecedor do exército
turco, sabidamente abusivo, e também o papel da França, Zaire e outros
fornecedores do exército genocida de Ruanda. Ajudamos ainda a iniciar e liderar
amplas frentes de ONGs a fim de deter o uso das minas explosivas
indiscriminadas, bem como das armas a laser que provocam a cegueira.
A revolução na comunicação global, com seu
fluxo de informações sobre os direitos humanos, representa tanto uma
oportunidade quanto um perigo para o nosso trabalho. Ao mesmo tempo em que se
torna mais fácil estigmatizar governos abusivos, a avalanche de notícias sobre
a repressão e as violações pode incitar na opinião pública o isolacionismo
e o sentimento de impotência. Para evitar isto, temos tentado ultrapassar a
simples investigação e a denúncia das violações para tentar relacionar a
informação que publicamos a medidas que poderiam ser tomadas para reduzir as
violações.
Trabalhamos junto a alguns governos na
elaboração de políticas de defesa dos direitos humanos. Nossa resposta
positiva ao pedido do governo brasileiro para que contribuíssemos, junto com as
demais ONGs nacionais e internacionais, na formulação de um plano nacional de
ação de direitos humanos é ilustrativa desse trabalho. Insistimos também no
delineamento de uma nova lei de imprensa para o Camboja e fornecemos ajuda ao
recém criado Conselho Consultivo (US Advisory Board), que está revendo as
práticas dos direitos humanos do Serviço de Imigração e Naturalização
(Immigration and Naturalization Service - INS). Além disso, estamos utilizando
nosso crescente conhecimento jurídico para apoiar e fazer uso de mecanismos
internacionais como o Comitê Internacional dos Direitos Humanos e a Corte
Interamericana de Direitos Humanos.
Reconhecendo a importância do recrutamento do
apoio aos direitos humanos em todo o mundo, continuamos a internacionalizar
nosso trabalho. Tomamos algumas medidas para fortalecer nosso novo escritório
de Bruxelas, criado para expandir nossos contatos com as ONGs e os jornalistas
europeus e ainda para aproximar-nos dos governos europeus. Com nosso novo
representante para as Nações Unidas aí alocado, intensificamos
substancialmente nossa pesquisa e nossa advocacia, direcionando-as diretamente
para as Nações Unidas, com ênfase nas operações de campo da Organização
que afetam os direitos humanos. Continuamos a visitar periodicamente Tóquio,
para trabalhar com aliados locais pressionando o governo japonês para promover
mais vigorosamente os direitos humanos. No Banco Mundial, expandimos nossos
contatos informais e nosso fornecimento de informações sobre direitos humanos
em países para os quais o Banco estuda possibilidade de empréstimos.
Antes mesmo da Conferência das Nações Unidas
sobre as Mulheres, em Beijing, lançamos um relatório global sobre os direitos
humanos das mulheres, o qual salientou a vasta extensão das violações de
direitos sofridas pelas mulheres em todo o mundo e os diversos esforços para
superá-las. O extenso e detalhado relatório ajudou milhares de ativistas em
Beijing a demonstrar que os direitos das mulheres precisam ser tratados caso se
pretenda superar os muitos problemas sociais e econômicos que as afligem. Ele
também ajudou a estabelecer um terreno de trabalho para a forte e emergente
aliança entre as organizações de mulheres e de direitos humanos, o que
assegura a responsabilização das violações dos direitos humanos das
mulheres.
Nossa insistência quanto à aplicação
universal dos padrões de direitos humanos nos levou a realizar uma série de
investigações e relatórios sobre abusos dos direitos humanos em democracias
solidamente estabelecidas. Investigamos e relatamos as condições das prisões
no Japão e o tratamento de estrangeiros e imigrantes na França, Alemanha e
Reino Unido. Nos Estados Unidos, nossas investigações e relatórios trataram
dos abusos cometidos pela polícia, o abuso sexual de detentas, as práticas
cruéis em prisões de segurança máxima, o abuso em locais de custódia para
menores, a execução judicial de menores criminosos, o abuso da Patrulha de
Fronteiras na divisa com o México, as violações pelo país da lei
internacional dos refugiados quando da repatriação sumária de cubanos e
haitianos que demandavam asilo e a observância dos Estados Unidos quanto à sua
responsabilidade de obedecer e respeitar o Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos e a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação Racial. Continuamos também a pressionar os Estados Unidos para
que ratifiquem outros tratados, entre eles o Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção sobre a Eliminação de todas as
Formas de Discriminação contra as Mulheres, a Convenção sobre os Direitos da
Crianças, e os Protocolos de 1977 Adicionais às Convenções de Genebra de
1949.
O texto que segue é um resumo das práticas de
direitos humanos em sessenta e cinco países. Este relatório, lançado antes de
10 de dezembro, Dia dos Direitos Humanos, cobre eventos ocorridos entre dezembro
de 1994 e novembro de 1995. Cada capítulo trata de desenvolvimentos
significativos para os direitos humanos ocorridos durante o ano, bem como a
resposta da comunidade internacional. Enquanto continuamos a dedicar atenção
especial às políticas de direitos humanos do governo americano, este
relatório reflete o aumento do nosso interesse pelas políticas de direitos
humanos da União Européia, das Nações Unidas, do Japão, do Banco Mundial e
de outros atores internacionais. Cada capítulo relativo aos países detalha
ainda as restrições ao monitoramento dos direitos humanos e os esforços da
Human Rights Watch para pôr fim aos abusos.
Este é o nosso sexto relatório sobre os
desenvolvimentos dos direitos humanos em todo o mundo e o décimo terceiro sobre
a política de direitos humanos dos Estados Unidos. O volume não inclui um
capítulo para cada país onde trabalhamos, da mesma forma que não discute
todos os temas relevantes. Os países e temas tratados refletem o foco do nosso
trabalho em 1995, o qual, por sua vez, foi determinado pela severidade dos
abusos, o acesso à informação sobre os mesmos, nossa habilidade para
influenciar as práticas abusivas, e nosso desejo de equilibrar nosso trabalho,
ultrapassando as barreiras políticas e regionais.
AS AMÉRICAS: 1995
Os Acontecimentos no Campo dos Direitos
Humanos
Nos últimos quinze anos, muitos países da
América Latina e do Caribe sofreram importantes transformações políticas,
substituindo ditaduras militares por governos civis. Infelizmente, o respeito
aos direitos humanos não acompanhou o progresso da democratização. Mais de
uma década de governo civil permitiu o florescimento da sociedade civil, porém
os limites do espaço político foram ainda definidos pela tortura,
desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais. Em sociedades que
apresentam amplas disparidades de renda, os setores economicamente vulneráveis
- crianças, populações indígenas, mulheres, camponeses, trabalhadores, e
aqueles que vivem nas ruas - foram desproporcionalmente afetados por violentos
abusos dos direitos humanos.
Os estados do hemisfério precisam adotar medidas
eficazes para prevenir futuras violações dos direitos humanos e punir abusos
praticados tanto por agentes do estado quanto por aqueles que agem amparados
pelo consentimento oficial. Da mesma forma que é inaceitável a adoção da
tortura ou do desaparecimento forçado como política oficial por parte do
estado, um governo também não pode perdoar tais violações ou deixar de
proteger aqueles que estão sob sua jurisdição. Quase todos os estados da
região assumiram a obrigação positiva do direito internacional de assegurar o
exercício incondicional dos direitos inscritos neste corpo jurídico. Eles
assumiram, portanto, a responsabilidade de adaptar sua legislação doméstica
aos padrões internacionais dos direitos humanos e desenvolver sistemas
judiciários independentes e imparciais, capazes de julgar e punir os que
perpetram violações.
A difusão da democracia institucional na região
tem oferecido às legislaturas nacionais oportunidades ímpares no que tange
tanto a aprovação de reformas relativas aos direitos humanos quanto a
supervisão das agências de segurança do estado, um desafio ainda a ser
enfrentado. Em 1995, a maioria dos governos civis da região ainda não havia
revisto seu código penal a fim de codificar explicitamente como crimes
determinadas violações dos direitos humanos como a tortura, os
desaparecimentos forçados e as execuções extrajudiciais. Outras mudanças
prementes dizem respeito à garantia do devido processo legal à restrição da
jurisdição das cortes militares, à revogação das leis de desacato e outros
artifícios legais remanescentes dos regimes autoritários, que penalizam a
livre expressão das idéias. Além disso, as legislaturas nacionais não
exercitaram diligência suficiente no sentido de trazer considerações sobre os
direitos humanos para a agenda da elaboração da política externa de seus
governos.
Freqüentemente os judiciários do hemisfério
abdicaram de seu dever central com relação à defesa dos direitos. As
autoridades judiciárias adotaram um visão excessivamente formal do seu dever,
esquecendo-se de que os requisitos processuais não representam por si só a
justiça, mas sim um meio de alcançá-la. A sua incapacidade de tomar até
mesmo medidas mínimas para proteger pessoas cujos direitos tenham sido violados
garantiu a impunidade para agentes de violações. As cortes "sem
rosto" do Peru e os tribunais militares secretos, por exemplo, privaram
civis acusados de terrorismo ou traição de suas mais básicas garantias de um
processo imparcial. As cortes secretas de "ordem pública" da
Colômbia utilizadas para julgar indivíduos acusados de rebelião e tráfico de
drogas também levantam preocupações quanto ao devido processo legal. No
Chile, o judiciário, especialmente a Suprema Corte, continua sendo ineficiente,
à exceção do notável julgamento dos agentes da polícia de segurança
responsáveis pelo assassinato de Orlando Letelier e Ronni Moffitt em Washington
D.C., em 1976. O medo do exército permeou o sistema judiciário da Guatemala,
tornando-o incapaz de solucionar desaparecimentos forçados e execuções
extrajudiciais. A desorganização e a falta de recursos são características
do sistema judiciário haitiano, que até novembro de 1995 não havia processado
nenhum membro das forças armadas do País.
Os sistemas de justiça militar, que na maioria
dos casos falharam em seu dever de responder aos padrões internacionais de
imparcialidade e independência, continuaram a alimentar um clima de impunidade
para perpetradores de violações dos direitos humanos. No Peru, as cortes
militares atingiram níveis quase perfeitos de condenação de civis (97% em
1994), ao mesmo tempo em que atingiram um nível igualmente impressionante de
absolvição de soldados acusados de violações de direitos humanos.
Um exame realizado pela Human Rights
Watch/Americas dos documentos internos do exército mexicano sobre o massacre na
clínica Ocosingo em Chiapas constatou que os promotores militares estavam mais
interessados em acusar de desonestidade os grupos de direitos humanos, do que em
investigar e julgar os responsáveis. No Brasil, os tribunais militares fizeram
pouco mais que investigações superficiais sobre as graves violações
cometidas por militares e policiais, apesar da existência de amplas
evidências. Ao mesmo tempo, as legislaturas nacionais deixaram de tomar as
providências necessárias para assegurar que as violações dos direitos
humanos cometidas por membros das forças armadas fossem julgadas por tribunais
civis.
Nem todas as notícias provenientes de gabinetes
de juízes durante o ano foram ruins. Alguns juízes e promotores corajosos
deram prosseguimento a casos envolvendo direitos humanos em alguns países,
apesar da considerável pressão para que abandonassem suas investigações. A
promotora peruana Ana Cecília Magallanes reabriu a investigação do massacre
de Barrios Altos, distrito de Lima, ocorrido em 1991, e a juíza Antonia
Saquicuray Sánchez decidiu que a lei de anistia peruana não era aplicável ao
caso. Sonia Marlina Dubón Flores, a promotora especial para direitos humanos de
Honduras, iniciou a primeira investigação por violações de direitos humanos
de oficiais militares da ativa, no hemisfério. E, em outubro, o juiz Roy Medina
expediu mandatos de prisão para três dos dez oficiais militares hondurenhos
que se encontravam sob investigação. O promotor especial Abraham Méndez
García investigou com seriedade e rigor o assassinato de Jorge Carpio Nicolle,
ocorrido na Guatemala, em 1993. Até retirar-se do caso Efran Bamaca Velásquez,
em julho, devido às ameaças que sofria, o promotor especial Julio Arango
Escobar, da Guatemala, demonstrou integridade e iniciativa no prosseguimento que
deu ao caso. Stella Kuhlman, uma promotora brasileira, investigou devidamente o
caso dos 111 presos assassinados no presídio de Carandiru, em 1992, além de
outras instâncias de corrupção e abuso policial, a despeito de ameaças de
morte; em 1995, ela e outros sete promotores da justiça militar paulista
colocaram em questão a jurisdição militar para crimes contra civis. A Corte
Constitucional da Colômbia emitiu uma série de decisões em 1995, demonstrando
compromisso com a defesa dos direitos humanos e resistência ao controle
político. Numa destas decisões, declarou inconstitucional a declaração do
Presidente Ernesto Samper de "estado de comoção nacional" no País.
Na maioria das instâncias em que juristas
trabalharam na obtenção de justiça para casos de direitos humanos, eles foram
de encontro à preferência predominante entre civis eleitos. O caso mais
evidente aconteceu no Peru, onde o Presidente Alberto Fujimori assinou a mais
abrangente lei de anistia da região. Fujimori concedeu anistia para todos os
militares, policiais e civis que haviam cometido sérios crimes no curso do
movimento contrainsurgente ocorrido entre 1980 e 1995. Na Colômbia, o
Presidente Ernesto Samper iniciou o ano admitindo a responsabilidade do estado
pela série de execuções extrajudiciais e desaparecimentos forçados em
Trujillo, em 1990. No entanto, Samper continuou a apoiar a manutenção da
competência militar em casos de direitos humanos, apesar da impunidade que os
tribunais militares haviam promovido.
O Presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso
introduziu uma legislação que prevê a indenização das famílias dos
desaparecidos durante o regime militar. Entretanto, este passo positivo
demonstrou-se superficial, uma vez que a lei não prevê mecanismos nem para que
se esclareça as circunstâncias dos desaparecimentos e a identificação dos
responsáveis, nem para que prevaleça a justiça.
Na Argentina, o chefe das forças armadas,
General Martín Balza, emitiu um histórico pedido de desculpas à nação pelos
crimes cometidos durante a "guerra suja", nos anos 70. Ainda assim, a
administração do Presidente Carlos Menem não obrigou os oficiais a revelarem,
às famílias e à sociedade argentina, o que sabiam a respeito dos destinos de
milhares de desaparecidos.
Além de não conseguirem consolidar a proteção
dos direitos humanos nesta nova era democrática, estes líderes civis eleitos
tampouco foram capazes de prevenir contínuas violações destes direitos.
Execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçados e tortura continuam a
existir na região. Na Guatemala, soldados assassinaram onze refugiados
repatriados, incidente amargo que nos lembrou que o processo de paz em curso
não modificou fundamentalmente a situação dos direitos humanos naquele País.
No Brasil, efetivos das polícias estaduais do Rio de Janeiro, São Paulo, Rio
Grande do Norte e Mato Grosso do Sul participaram de ações, ora fardados, ora
nos chamados grupos de extermínio para liquidar "marginais" - jovens
de rua, desabrigados, e outros suspeitos de delitos que freqüentemente não
constituíam nenhum crime em particular. A preponderância dessas graves
violações na Colômbia levou os relatores das Nações Unidas para a Tortura e
os Desaparecimentos Forçados a emitir um relatório conjunto caracterizando a
situação como "alarmante".
Desaparecimentos forçados foram documentados em
países formalmente democráticos como Brasil, Colômbia, Guatemala e Peru. Até
mesmo na Argentina, a polícia provincial esteve vinculada a diversos casos de
desaparecimentos, revelando que esta tática repressiva ainda não foi
erradicada, apesar das tentativas anteriores de pôr fim a estas violações
terem sido temporariamente bem sucedidas.
Durante o ano de 1995, a tortura também foi
documentada por grupos locais e internacionais de direitos humanos, além das
organizações multilaterais, em países como Brasil, Colômbia, Guatemala e
Peru. Os métodos utilizados não diferem muito daqueles empregados pelas
ditaduras militares durante as décadas de 70 e 80. Apesar de Cuba ter
ratificado em 1995 a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos e
Punições Cruéis, Desumanos e Degradantes, das Nações Unidas, pessoas
detidas por razões políticas ou crimes comuns relataram que não recebiam
cuidados médicos, eram vítimas de espancamentos, buscas arbitrárias e
violentas, e outros tratamentos degradantes por pequenas infrações ou
protestos não violentos como greves de fome. No México, a polícia empregou
torturas físicas e psicológicas severas a fim de obter confissões, o que os
juizes, para sua própria vergonha, aceitaram como provas.
O modelo positivo na região com respeito à
resposta à tortura, foi a decisão tomada pela Suprema Corte argentina, em
1981, de que confissões obtidas por tortura eram inadmissíveis, ainda que
acompanhadas de provas corroborantes. O governo de Alfonsín transformou essa
regra em lei em 1984 e a proibição foi incluída na revisão do Código de
Processo Penal, em 1994. Entretanto, nem mesmo a Argentina conseguiu respeitar
tal procedimento, em 1995. Infelizmente, algumas cortes de apelação
continuaram a admitir como evidências as confissões resultantes de tortura. Em
toda a região, a aceitação por juizes de provas obtidas pôr tortura e a
ausência de leis que proíbam sua aceitação constituem um incentivo para que
agentes do estado continuem a praticar a tortura.
No México, no Brasil, e em menor grau na
Argentina, países que possuem um sistema de governo federativo, as autoridades
federais procuraram evitar a responsabilidade pelas violações cometidas por
forças de segurança dos governos estaduais. Este foi o caso, por exemplo, no
estado mexicano de Guerrero, onde a polícia estadual matou a tiros dezessete
camponeses, em junho, e o governo federal alegou não poder intervir para que a
justiça fosse implementada. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos
considera que os governos nacionais são responsáveis por abusos cometidos por
oficiais dos governos estaduais.
A liberdade de expressão também manteve-se
restrita em muitos países. Cuba continuou a violar sistematicamente este
direito, freqüentemente atribuindo a ativistas de direitos humanos e
dissidentes políticos a "propaganda inimiga", a "impressão
clandestina", o "desrespeito à autoridade", o
"comportamento anti-social", ou ainda a violação da "moral
socialista". No Chile, vários indivíduos foram presos e punidos em
virtude de comentários considerados ofensivos à honra das autoridades civil e
militar ou das instituições do governo.
Um estudo da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos sobre as leis de desacato à autoridade, publicado em fevereiro,
observou que treze estados da região possuíam algum tipo de legislação que
criminaliza expressões que ofendem, insultam ou ameaçam um oficial público,
violando assim a Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
Grupos de guerrilha em vários países da região
violaram o direito humanitário internacional, mantendo civis ou destruindo suas
casas ou outras propriedades. Todas as partes de um conflito armado interno,
sejam elas governo ou guerrilha, estão submetidas às provisões do Artigo 3
das Convenções de Genebra, o principal tratado internacional estipulando as
leis da guerra.
O Sendero Luminoso, do Peru, continuou a violar
sistematicamente o direito humanitário internacional, focando sua violência em
autoridades locais, membros de patrulhas de camponeses e seus opositores
políticos, todos vítimas de assassinatos, ameaças, ou tratamentos humilhantes
e degradantes. Alguns assassinatos deram-se após "julgamentos
populares" nos quais as guerrilhas imitavam um processo jurídico mas não
forneciam nenhuma espécie de independência ou imparcialidade. Em maio, o grupo
massacrou toda uma comunidade pela sua recusa a pagar o chamado "imposto de
guerra".
Na Colômbia, as Forças Armadas Revolucionárias
da Colômbia (FARC) estiveram implicadas em inúmeros casos de seqüestro de
reféns e assassinatos, incluindo um massacre em setembro, no qual vinte e três
pessoas foram assassinadas perto de Urab. Em junho, membros da FARC
aparentemente executaram dois missionários americanos presos à força. Outros
grupos de guerrilha colombianos, notadamente a União Camilista Exército de
Libertação Nacional (UCELN), realizaram execuções e tomada de reféns
durante o ano. Na Guatemala, guerrilhas não se preocuparam em minimizar o risco
para os civis durante ataques a alvos militares e impuseram "impostos de
guerra" para civis, implicitamente ameaçando a integridade física e as
propriedades daqueles que se recusassem a pagá-los. Além disso, inúmeros
civis foram vítimas de minas plantadas pelas guerrilhas guatemaltecas.
O Direito ao Monitoramento
Por toda a região, uma rede de organizações
não-governamentais de defesa dos direitos humanos continuou a se desenvolver.
À exceção de Cuba, onde o monitoramento dos direitos humanos continuou a ser
ilegal e os monitores são submetidos a julgamentos criminais, a maioria dos
estados impôs pouca ou nenhuma resistência formal ao monitoramento dos
direitos humanos. Um número crescente de governos estabeleceu ou agiu para
fortalecer o ombudsmen (ou ouvidor) dos direitos humanos, ainda que não
esteja claro se estes governos estariam dispostos a utilizar as informações
por eles fornecidas para processar criminalmente as violações de direitos
humanos. Em Honduras, a Comissão Nacional dos Direitos Humanos recebeu status
constitucional, formalizando seu mandato permanente para investigar ou denunciar
violações no País. No Peru, o Congresso criou o cargo de "defensor do
povo", mas seus poderes são severamente limitados quando se trata de
realizar investigações em instalações militares ou coagir oficiais a
cooperarem com as investigações. Até o presente momento, tal posto ainda não
foi preenchido.
Tal como aconteceu em anos anteriores, em 1995
monitores independentes correram sérios riscos à integridade física ou morte,
sobretudo na Colômbia e na Guatemala. Pelo menos três ativistas dos direitos
humanos, Ernesto Fernández Fester, Javier Barriga Vergel e Humberto Pea Prieto,
foram assassinados na Colômbia, em 1995. Em junho, o monitor guatemalteco
Manuel Saquc Vásquez desapareceu e, no mês seguinte, seu corpo foi encontrado
decapitado e com trinta e três ferimentos à faca. Monitores de direitos
humanos em outros países como Brasil, Honduras, México e Peru também sofrem
ameaças e outras formas de constrangimento pelo trabalho que realizam.
O Papel da Comunidade Internacional
As Nações Unidas desempenharam papel
fundamental na promoção e no monitoramento dos direitos humanos no Haiti e na
Guatemala. Seis mil soldados da missão das forças de paz da ONU no Haiti
(UNMIH) e mais de 800 monitores do corpo de policiais civis da Organização
(CivPol) contribuíram para a notável melhora nas condições dos direitos
humanos no país, desde o retorno ao poder do Presidente Aristide. A Missão de
Verificação dos Direitos Humanos na Guatemala (MINUGUA), estabelecida em
novembro de 1994, produziu três relatórios documentando casos de tortura,
execuções extrajudiciais e desaparecimentos forçados por parte das forças de
segurança, além de ligações do governo com o crime organizado e operações
de "limpeza social". A presença das Nações Unidas ao longo do ano
proporcionou alguma proteção para a comunidade dos ativistas dos direitos
humanos na Guatemala e possivelmente teve algum efeito direto sobre a redução
das violações dos direitos humanos. No entanto, as forças de segurança e
seus agentes continuaram a cometer graves violações e a desfrutar de
impunidade.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para os
Direitos Humanos anunciou planos para estudar a possibilidade de abrir um
escritório permanente na Colômbia. A iniciativa poderá contribuir para o
progresso da situação dos direitos humanos se conduzida em parceria com outros
projetos da ONU no país -, como os relatores especiais para a tortura e as
execuções extrajudiciais e o Grupo de Trabalho para Desaparecimentos Forçados
ou Involuntários -, ao invés de substituí-los. A Human Rights Watch/Americas
solidarizou-se com a preocupação dos grupos de direitos humanos colombianos de
que o escritório do Alto Comissariado não deveria invalidar outras iniciativas
das Nações Unidas, como a escolha de um relator especial para a Colômbia.
A América Latina e o Caribe têm um dos sistemas
mais progressistas para a proteção internacional dos direitos humanos. As duas
instituições autônomas voltadas para os direitos humanos da Organização dos
Estados Americanos (OEA)-, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, um
tribunal que aplica e interpreta a Convenção Americana sobre Direitos Humanos,
e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, um corpo conselheiro e de
investigação quase judicial-, têm desempenhado um papel vital para a garantia
dos direitos humanos fundamentais dos habitantes do hemisfério.
A Corte assume o papel precioso de tribunal de
última instância para os casos de violações de direitos humanos na região.
Como observado pela Corte no famoso caso Velásquez Rodríquez, as
sentenças por ela pronunciadas constituem uma espécie de reparação uma vez
que proporcionam o esclarecimento dos fatos, identificam precisamente a natureza
das violações cometidas e estabelecem a responsabilidade do estado de tomar
medidas concretas para prevenir, investigar e divulgar as violações e ainda
para restaurar os direitos individuais ou prover as devidas reparações às
vítimas ou seus parentes. Em 1995, a Corte decretou que o Peru era responsável
por violações do direito à vida quando da violenta repressão à rebelião
dos presos de El Frontn, em 1986. Entretanto, quando a Venezuela aceitou a
responsabilidade total pelo massacre de El Amparo, a corte simplesmente observou
tal aceitação, não emitindo nenhuma sentença de mérito sobre a violação
da Convenção pelo país, nem determinando as conseqüências legais dela
resultantes. Como representante das vítimas, a Human Rights Watch/Americas
recomenda de forma veemente à Corte que contorne esta deficiência quanto à
determinação da natureza e da abrangência das reparações.
Em 1995, o trabalho da Comissão foi prejudicado
pela atuação deficiente de seu secretariado. Durante o ano, anomalias na
administração tornaram quase impossível discernir os critérios de atuação,
se é que eles existiram. A recente má vontade do secretariado quanto a
solicitações de medidas cautelares - instrumentos que visam salvaguardar as
vidas de inúmeras vítimas de desaparecimentos forçados e ameaças em todo o
hemisfério - representou uma reversão da tradição das últimas décadas de
solicitar imediatamente ação urgente para este tipo de casos. Este retrocesso
exemplifica, portanto, uma crescente falta de consistência no trabalho do
secretariado da Comissão. Outras irregularidades no procedimento incluíram
atrasos injustificados na publicação de relatórios, a recusa arbitrária e
ilegal a admitir novas petições, a obstrução da solução de casos perante a
Comissão e a permissão para que representantes governamentais tivessem acesso
a documentos e petições antes que estes fossem considerados pelos membros da
Comissão. Assim sendo, alguns representantes de governos foram bem sucedidos na
utilização de sua influência pessoal ou política junto ao Secretariado,
minando assim a independência da Comissão e a credibilidade da OEA enquanto
protetora dos direitos humanos.
A Human Rights Watch/Americas se mostrou
extremamente preocupada com esses desdobramentos na atuação da Comissão
porque o peso e a influência de suas resoluções e recomendações dependem
não apenas de seu conteúdo mas também da autoridade moral da instituição.
Como conseqüência das irregularidades do
secretariado, os comissionários informaram ao secretário geral da OEA, em
setembro, que não tinham confiança total no secretário executivo da
Comissão. No entanto, alguns governos, em particular os da Venezuela e do
Chile, visam manter a atual secretária executiva em seu posto. Até o presente
momento, o secretário-geral ainda não agiu de forma a resolver tal situação,
que ameaça a autonomia e a integridade da Comissão. O secretário-geral
deveria aquiescer às solicitações dos membros da Comissão e resistir à
pressão política que visa a manter a insustentável situação que vigora no
secretariado da Comissão.
A Política Norte-Americana de Direitos
Humanos
A administração do Presidente Clinton
permaneceu sensível às preocupações relativas aos direitos humanos no
hemisfério, mas não fez deste assunto uma prioridade na elaboração de sua
política externa com respeito à região. Em suas relações com o
México, a administração manteve-se silenciosa quanto aos direitos humanos, de
forma a não pôr em risco a política econômica, ainda que o conflito entre
economia e direitos humanos tenha sido raro. Mesmo quando forneceu ao México um
suporte econômico no valor de US$ 20 bilhões, a administração preferiu não
levantar publicamente as questões relativas aos direitos humanos. Ainda que o
embaixador americano no México nos tenha assegurado haver levantado tais
questões junto aos altos escalões do governo mexicano, a falta de discussão
pública conferiu legitimidade aos abusos cometidos no país.
De forma semelhante, em dezembro de 1994, a
administração deixou escapar a oportunidade oferecida pela Cúpula das
Américas de contribuir para o avanço da proteção dos direitos humanos no
hemisfério. Questões de direitos humanos foram incluídas no plano de ação
final aprovado no encontro. Entretanto, o plano não previa encontros
posteriores nem mecanismos de acompanhamento futuro que assegurassem que os
direitos humanos seriam de fato considerados ao longo dos anos posteriores.
Outros tópicos do plano de ação, como por exemplo o comércio, receberam
detalhados mecanismos de acompanhamento futuro.
Na Bolívia, princípios de direitos humanos
foram sacrificados pelo programa de combate às drogas. As forças rurais de
luta contra os narcóticos - forças estas criadas, financiadas e treinadas
pelos Estados Unidos - trataram rudemente moradores de áreas produtoras de
cocaína, agredindo-os fisicamente, roubando seu dinheiro e pertences e
realizando buscas arbitrárias em seus domicílios, a qualquer hora do dia ou da
noite. A Agência de Combate às Drogas dos Estados Unidos (Drug Enforcement
Administration) esteve intimamente envolvida em operações na Bolívia.
Entretanto, as investigações internas da agência sobre a suposta cumplicidade
ou permissão de interrogatórios abusivos não chegaram ao conhecimento
público.
Dando prosseguimento à bem sucedida operação
de restauração da democracia no Haiti, a administração de Clinton
precipitou-se no retorno de Haitianos que encontravam-se protegidos na base
naval americana de Guantánamo, Cuba, sem investigar previamente se estes
indivíduos estariam qualificados ao status de refugiados, de acordo com o
direito internacional. O repatriamento forçado de mais de 3.700 haitianos da
base de Guantánamo, em janeiro de 1995, violou as obrigações americanas
estabelecidas no Protocolo Relativo ao Status de Refugiados, de 1967, de não
retornar refugiados para territórios onde suas vidas ou liberdade poderiam ser
ameaçadas devido à perseguição. O Departamento de Defesa também restringiu
o monitoramento independente da base de Guantánamo, dificultando a
investigação de denúncias de maus tratos e a verificação independente das
alegações daqueles detidos na base. Nos primeiros meses de 1995, menores
haitianos desacompanhados relataram alguns abusos cometidos pelo staff
militar americano, incluindo o uso de algemas e isolamento. Os militares
americanos não revelaram os resultados de suas investigações a respeito
dessas reclamações ou seus regulamentos relativos à disciplina.
Em 2 de maio, a administração de Clinton
anunciou uma nova política para interditar ou repatriar cubanos demandantes de
asilo, baseada em acordo estabelecido com o governo do Presidente Fidel Castro.
Segundo tal acordo, a maioria dos 20.000 cubanos restantes nos campos de
Guantánamo receberiam status humanitário nos Estados Unidos e aqueles que
apresentassem passado criminal ou não correspondessem a outras regras do
estatuto seriam repatriados. Depois de retornar vários grupos de cubanos sem
uma triagem adequada, os Estados Unidos melhoraram seus procedimentos a fim de
aderir aos requisitos internacionais.
As ligações ocultas dos Estados Unidos com
violadores dos direitos humanos no hemisfério chegaram às primeiras páginas
dos jornais em 1995, com a revelação de que um militar guatemalteco pago pela
Agência Central de Inteligência (CIA) havia estado envolvido em duas
execuções extrajudiciais, incluindo a morte do cidadão americano Michael De
Vine, em 1990. Os vínculos da CIA com as violações de direitos humanos na
Guatemala seguiram parâmetros semelhantes aqueles previamente revelados em El
Salvador, Haiti, Honduras e Peru. A administração Clinton anunciou várias
sindicâncias do poder executivo a fim de lidar com a crise, disciplinou vários
oficiais da CIA, promoveu uma revisão de seus agentes no exterior e começou a
estabelecer novas regras de recrutamento destes agentes. No entanto, nenhuma
revisão parece estar a caminho no que tange aos programas liaison que a
CIA estabelece rotineiramente com serviços de inteligência estrangeiros, sem
que o Congresso ou o público sejam informados a respeito. Quando os detalhes da
relação da CIA com a Guatemala tornaram-se públicos, em março e abril, foi
revelado que a agência havia gasto milhões de dólares num programa junto à
inteligência militar guatemalteca, notoriamente violadora dos direitos humanos,
depois que a ajuda militar havia sido suspensa quando do assassinato de Michael
De Vine.
Os passos iniciais para moderar a ação da CIA
foram positivos mas insuficientes. A Human Rights Watch solicitou a
promulgação de lei - ao invés de regulações internas classificadas - que
impeçam a agência de manter torturadores e assassinos na sua folha de
pagamento e proíba ainda as relações liaison com unidades que
consistentemente violam os direitos humanos.
O Trabalho da Human Rights Watch/Americas
Em 1995, nosso trabalho concentrou-se em sete
países - Brasil, Colômbia, Cuba, Guatemala, Haiti, México e Peru - nos quais
a natureza e a abrangência das violações e a resposta do Estado suscitaram
urgentes preocupações. Conduzimos missões, escrevemos e lançamos
publicações e advogamos por mudanças nas práticas de direitos humanos nestes
países, além de trazer à tona questões pontuais de outros países como as
violações dos direitos humanos associadas à guerra das drogas na Bolívia ou
a necessidade de verificar as responsabilidades da CIA em Honduras, no passado.
Chamamos a atenção para a necessidade do governo chileno aplicar o julgamento
de sua Corte Suprema contra o chefe da agência de inteligência durante a
ditadura, e enfatizamos a obrigação do Estado chileno de investigar, julgar e
punir os responsáveis por violações de direitos humanos. Num amicus curie
elaborado conjuntamente com o Centro pela Justiça e o Direito Internacional
(CEJIL), solicitamos veementemente à Suprema Corte argentina que garanta o
direito das vítimas de violações de direitos humanos e seus familiares de
saberem a verdade sobre o papel do Estado na violência sofrida - passo
indispensável para prevenir abusos futuros e prover compensação às vítimas
de crueldades passadas.
Entre nossos esforços para pressionar pela
apuração da responsabilidade por violações de direitos humanos passadas,
patrocinamos junto com a Fundação Myrna Mack dos Estados Unidos uma
conferência internacional sobre o tema da anistia, na Guatemala. Nesta
conferência, concluiu-se que graves violações de direitos humanos e das leis
da guerra não deveriam ser anistiadas jamais e trabalhamos junto ao comissário
nacional de direitos humanos de Honduras, a fim de pressionar a administração
de Clinton a divulgar documentos, até agora confidenciais, relacionados a
desaparecimentos ocorridos nos anos 80, de responsabilidade de um esquadrão da
morte financiado pelos Estados Unidos. No México, revelamos novas informações
sobre o massacre de civis em Chiapas, em 1994, o que contribuiu para o avanço
dos esforços domésticos para investigar o crime. Nosso trabalho no Peru e na
Bolívia chamou a atenção para a falta de garantias de processos devidos para
grupos desfavorecidos ou indivíduos, como aqueles acusados pelo envolvimento
com drogas ou com o terrorismo. Também continuamos nosso monitoramento
tradicional das violações das leis da guerra por todas as partes envolvidas em
conflitos armados na região, incluindo as violações do direito humanitário
internacional pelas guerrilhas na Colômbia e no Peru.
Em parceria com o CEJIL e várias organizações
latino-americanas de direitos humanos, estamos envolvidos em cerca de cem casos
na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, dez dos quais já foram
enviados pela mesma à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
BRASIL: 1995
Os Acontecimentos no Campo dos Direitos
Humanos
A ascensão ao poder em 1995 do maior contingente
eleito de políticos estaduais e federais na história do Brasil e, em
particular, do Presidente Fernando Henrique Cardoso, amplamente visto como
antigo defensor dos direitos dos excluídos, trouxe esperanças quanto à
melhoria da situação dos direitos humanos no Brasil. De fato, em seu primeiro
ano como presidente, Cardoso tomou várias providências importantes para o
encaminhamento de muitos dos problemas críticos do País nesta matéria. Não
obstante, agentes do governo e particulares continuaram a violar direitos
humanos fundamentais no Brasil em 1995.
A amplitude das violações dos direitos humanos
que ocorrem no Brasil foram exemplificadas por dois incidentes significativos.
Em 04 de março, diante de dezenas de pessoas, na parte exterior do Shopping
Center Rio Sul, na próspera zona sul do Rio de Janeiro, o oficial da Polícia
Militar Flávio Ferreira Carneiro arrastou o suspeito de roubo Cristiano Moura
Mesquita de Melo para atrás de uma caminhonete de passeio estacionada e o
executou sumariamente com três tiros à queima roupa. O incidente foi
inteiramente filmado por uma equipe da TV Globo e difundido por todo o Brasil e
pelo mundo. A banalidade deste evento para os brasileiros foi salientada por
pesquisas de opinião realizadas durante as semanas subsequentes que
demonstraram que a maioria dos residentes do Rio apoiavam a iniciativa do Cabo
Flávio.
O segundo incidente ocorreu durante as primeiras
horas do dia 9 de agosto, quando 187 policiais militares conduziram uma ação
de desejo à Fazenda Santa Elina, em Corumbiara, Rondônia, a fim de remover as
200 famílias dos "sem terra" que ocupavam a propriedade. Dois
policiais e vários invasores morreram durante o conflito, marcado pela
violência de ambas as partes. Após o incidente, quando a polícia já obtivera
o controle da situação, muitos outros membros dos "sem terra" foram
ainda assassinados, dezenas foram torturados e mais de cem homens sofreram
agressão física. Os policiais militares humilharam os invasores, forçando
três rapazes a comer o cérebro de um companheiro morto "para que
perdessem o medo de defunto". No total, a polícia assassinou nove pessoas,
incluindo uma menina de sete anos que recebeu um tiro nas costas, e feriu mais
de cem, trinta das quais foram hospitalizadas em estado grave. Nove pessoas
continuam desaparecidas.
Estes dois incidentes não ocorreram
isoladamente: apenas no estado do Rio, a polícia foi responsável pela morte de
191 civis nos primeiros sete meses de 1995, de acordo com estatísticas da
Polícia Civil. Dados fornecidos pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) atestam
que nos primeiros oitos meses de 1995, pelo menos vinte e seis pessoas foram
assassinadas em conflitos rurais. Dentre estas mortes, seis foram atribuídas a
pistoleiros contratados, quatro à polícia civil e duas à Polícia Militar.
Além disso, estes incidentes apontam ainda outros sérios problemas no sistema
da Justiça Militar, órgão encarregado de julgar e condenar violações
cometidas pela Polícia Militar. O Cabo Flávio, por exemplo, apesar de ter sido
condenado após o assassinato transmitido pela TV mencionado acima, nunca havia
sido acusado ou julgado, pela Justiça Militar, por todos os assassinatos de
civis nos quais esteve envolvido. Nas semanas que se seguiram ao incidente na
Fazenda Santa Elina, a justiça comum tomou depoimento de 121 invasores, dos
quais 74 foram indiciados pelo crime de resistência à ordem judicial para que
abandonassem a Fazenda. Quanto aos policiais militares, naquelas semanas, dos
quase duzentos participantes da operação, apenas nove prestaram depoimento
sobre o ocorrido à justiça militar que investiga a violência policial neste
evento.
Em suma, os dois incidentes demonstram que a
instituição de reformas apenas no âmbito federal não é suficiente. Medidas
significativas precisam ser adotadas no nível estadual, caso se pretenda
controlar os abusos perpetrados contra os direitos humanos. Em ambos os
incidentes mencionados, o julgamento dos policiais envolvidos permaneceu sob a
jurisdição exclusiva das autoridades estaduais, como na grande maioria dos
casos de violações de direitos humanos.
O caso do Cabo Flávio é sintomático da
violência urbana, que continuou a ser um dos sérios problemas do tema dos
direitos humanos no Brasil, ao longo de 1995. Em inúmeras grandes cidades, as
execuções extrajudiciais foram freqüentemente praticadas. No Rio de Janeiro,
em outubro de 1994, o massacre de treze moradores da favela Nova Brasília pela
polícia civil resultou na intervenção federal no estado. Intitulada
"Operação Rio" pela imprensa carioca, a ação conjunta do exército
e das polícias estaduais provocou expectativas inversamente proporcionais aos
resultados obtidos face à onda de criminalidade e violência presente na
cidade. Talvez este resultado se deva ao fato da Operação haver ignorado a
criminalidade policial, sabidamente relacionada de forma inexorável à
violência decorrente da questão do tráfico. No final de novembro, tropas
torturaram detidos nas favelas do Borel e Nova Brasília com choques elétricos,
espancamentos e afogamento. Não obstante as evidências a respeito destes e
outros abusos, nenhuma das tropas envolvidas foi responsabilizada pelas
autoridades.
A polícia fluminense também foi responsável
por sérias violações ocorridas durante o ano de 1995. Em maio, efetivos da
Polícia Civil carioca invadiu a favela Nova Brasília, matando pelomenos 13
jovens. Em seguida, a polícia despejou os corpos das vítimas em um caminhão
da empresa de limpeza pública - Comlurb - no qual foram levados ao hospital
para que recebessem os "primeiros socorros". Esta técnica - uma
violação flagrante da lei brasileira - é comumente utilizada pela polícia, a
fim de prejudicar as investigações no local do crime. Ao final desta
operação, moradores da favela declararam haver presenciado a execução de
vítimas que acabavam de render-se à polícia. A Human Rights Watch/Americas
obteve cópias dos relatórios das autópsias, que concluíram que várias
vítimas receberam inúmeros tiros na cabeça e no peito, o que é consistente
com a versão de um massacre e não com a de um tiroteio, como alegado pela
polícia. Não obstante as evidências, o Governador do Rio de Janeiro, Marcello
Alencar, e outras autoridades estaduais declararam que não aceitariam críticas
à ação policial e, passados seis meses, até o presente momento o Ministério
Público ainda não indiciou nenhum dos policiais envolvidos.
Em São Paulo, os assassinatos de civis pela
polícia em 1995 atingiram níveis alarmantes e significativamente superiores
aos registrados em 1994. Durante a primeira metade de 1995, segundo dados da
Secretaria de Segurança Pública, a Polícia Militar do estado matou 336 civis,
revertendo a tendência ao declínio desta estatística, que marcara os três
anos precedentes. A descoberta de um depósito clandestino na periferia de São
Paulo, em abril, - e as evidências de que a polícia utilizava o local para
depositar os corpos de suas vítimas -, levantou a possibilidade de que as
cifras oficiais sobre o assassinato de civis em São Paulo em 1995, por mais
alarmantes que sejam, não reflitam corretamente o número real de homicídios
cometidos pela polícia paulista.
Infelizmente, em 1995, a violência urbana e a
impunidade face a violações, sobretudo aquelas sofridas por suspeitos de
envolvimento em crimes, não estiveram limitadas ao Rio de Janeiro e a São
Paulo. Por exemplo, em 23 de janeiro, em Maceió, Alagoas, um grupo de
policiais, sob o comando do Secretário Estadual de Segurança Pública, José
Azevedo Amaral, invadiu um complexo residencial, supostamente para capturar
suspeitos de assalto a bancos, matando nove e detendo apenas um. Este último,
Wellington Santos, foi fotografado algemado no local da investida, mas seu corpo
foi mais tarde encontrado no Instituto Médico Legal. De acordo com a imprensa
local, outros três detidos desapareceram daquele distrito policial sem que
houvessem sido registrados. Em declaração à imprensa, o Secretário de
Segurança Pública resumiu tal operação da seguinte forma: "Conseguimos
identificar os marginais e mandamos bala".
Em maio, no estado do Rio Grande do Norte,
região nordeste do País, o Procurador Geral da Justiça formou uma comissão
especial para investigar alegações contra o sub-secretário adjunto de
Segurança Pública Maurílio Pinto. Este era acusado de estar diretamente
envolvido na supervisão e nas operações de um grupo de extermínio conhecido
pelo nome de "Meninos de Ouro", que incluía policiais em ação
extra-oficial. Depoimentos de vítimas e testemunhas apresentados à comissão
estabeleceram que os "Meninos de Ouro" haviam sido responsáveis pelo
assassinato de oito pessoas e pelo desaparecimento de outras duas, desde 1988.
Além disso, dentre as alegações surgidas constava a supervisão direta de
sessões de tortura por Maurílio Pinto. Em entrevista transmitida pela
televisão, Pinto admitira que havia instruído seus oficiais a agredirem
"marginais", e declarara ainda que continuaria a fazê-lo. Não
obstante, ele foi mantido em sua posição de responsável pela polícia no
estado do Rio Grande do Norte.
O programa "Repórter SBT" denunciou,
em sua transmissão de 12 de setembro, o suposto envolvimento de uma força
especial da polícia de Mato Grosso do Sul, o "Grupo de Operações da
Fronteira" -GOF-, em dezenas de assassinatos extrajudiciais. Em entrevista
concedida ao programa, o comandante do GOF admitiu que o grupo havia assassinado
"marginais".
O extermínio de crianças e adolescentes de rua
também continuou a ser praticado em ritmo assustador nas maiores cidades
brasileiras ao longo do ano. De acordo com o "Centro de Articulação dos
Povos Marginalizados"- CEAP-, um grupo de defesa dos direitos humanos
sediado no Rio de Janeiro que trata da discriminação racial e da violência,
574 menores foram assassinatos por armas de fogo no estado em 1994, e 1.274
tiveram mortes violentas. Nos primeiros três meses de 1995, 189 menores
cariocas foram vítimas de disparos, enquanto no mesmo período do ano anterior
a cifra foi de 151. Apesar destes números alarmantes, a polícia e outras
autoridades responsáveis falharam em sua tarefa de proteger menores na zona
urbana; em alguns casos, membros de grupos de extermínio e policiais fora de
seu expediente de serviço foram os responsáveis pelos assassinatos.
Um fator crítico na persistência destes abusos
foi a impunidade virtualmente garantida a policiais militares que violaram
direitos humanos - impunidade esta que manifestou-se de forma particularmente
extrema na justiça militar paulista. Em 1995, não obstante a pressão do
governo federal, casos significativos permaneceram paralisados naquele sistema,
incluindo o massacre dos 111 detentos do presídio de Carandiru, em 1992, e o
assassinato de 18 presos do Parque São Lucas, por espancamento e asfixia, em
1989. Num encontro ao qual compareceram representantes do Núcleo de Estudos da
Violência, o Ministro da Justiça Nelson Jobim conversou sobre ambos os casos
com o presidente do Tribunal de Justiça Militar de São Paulo. Em seu discurso
sobre os direitos humanos, em 7 de setembro, dia da Independência, o Presidente
Fernando Henrique Cardoso mencionou a impunidade que caracteriza a estagnação
do caso de Carandiru. Neste mesmo discurso, ele reconheceu ainda a
permissividade que caracteriza a impunidade, destacando particularmente, entre
outras graves violações, o caso de Carandiru e o massacre de oito crianças de
rua por policiais fora de serviço, na Candelária, centro do Rio, em julho de
1993. Na segunda metade de 1995, o Presidente e seu gabinete criaram uma
divisão dentro da Polícia Federal destinada à investigação de violações
de direitos humanos, prepararam a primeira versão de uma legislação que
prevê a jurisdição federal para alguns tipos de violações e anunciou a
criação de um plano nacional de direitos humanos.
Em 1995, a administração de Cardoso deu ainda
um importante passo pela criação de uma legislação que prevê a
compensação dos parentes daqueles que desapareceram durante o regime militar
(1964-1985), vítimas da ação de agentes do Estado. Infelizmente, tal
legislação não inclui nem a investigação das circunstâncias dos
desaparecimentos, nem a compensação pelas mortes daqueles que foram de fato
executados por razões políticas. A contínua relutância por parte do País em
investigar os desaparecimentos e as execuções extrajudiciais constituem
violações dos compromissos brasileiros firmados na Convenção Americana sobre
Direitos Humanos e no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos que
dizem respeito ao dever de assegurar justiça e reparações efetivas às
vítimas de violações de direitos humanos.
Outro importante avanço ocorrido em 1995 foi a
criação de uma Comissão de Direitos Humanos pela Câmara dos Deputados
Federais, em março. Presidida pelo deputado Nilmário Miranda, a Comissão tem
desenvolvido um excelente trabalho no sentido de chamar a atenção do público
para os severos problemas de direitos humanos que o País apresenta, incluindo
aqueles cuja denúncia mostrou-se pouco popular, como os abusos cometidos pela
polícia contra suspeitos de crimes. Apesar da limitação dos recursos, a
Comissão conseguiu transformar-se numa voz ativa na denúncia de violações de
direitos humanos e na pressão sobre os governos federal e estaduais para que
tratem das questões relativas à matéria.
A reincidência de notícias sobre
desaparecimentos no campo tem sido particularmente preocupante. Em 30 de junho
de 1995, a polícia de Conceição do Araguaia, cidade localizada no sul do
Pará, deteve José Carlos B. Matos e outro indivíduo não identificado,
alegando a suspeita do envolvimento de ambos no furto de uma motocicleta. Os
policiais responsáveis pela prisão levaram os dois homens para o distrito
policial local, entregando-os na mesma noite para um grupo de quatro homens,
dentre eles um policial. Passados três dias, dois corpos carbonizados e quase
irreconhecíveis foram encontrados ao longo de uma estrada. A mãe de José
Matos identificou os restos de seu filho por fotos fornecidas pela polícia.
Em 12 de julho, cinco detidos por acusação de
roubo a banco e outros assaltos foram intimados a depor perante um juiz no
interior de Alagoas. No caminho de volta ao distrito onde se encontravam presos,
sob a custódia da polícia, os cinco homens desapareceram. As autoridades
declararam que os detidos haviam sido seqüestrados por um grupo de homens
fortemente armados, ainda que não tenha ocorrido um só disparo. Outro aparente
caso de desaparecimento forçado seguido de morte no campo é o de Sérgio
Gomes, um dos desaparecidos durante o massacre ocorrido em 9 de agosto em
Rondônia. Ele foi visto por um vereador local pela última vez entrando numa
viatura de polícia e, dias mais tarde, seu corpo foi encontrado boiando no Rio
Tanaru, distante 70 Km da localidade.
As investigações da CPT revelaram um aumento
contínuo nas denúncias de trabalho escravo ou semi-escravo em 1994, prática
pela qual trabalhadores rurais são recrutados por promessas de altos salários
para atividades extenuantes em localidades distantes. Estes trabalhadores são
freqüentemente mantidos em regime de servidão devido às dívidas que contraem
junto a seus empregadores e permanecem confinados no local mediante a ameaça de
guardas armados. Os números documentados pela CPT são os seguintes: vinte e
sete casos de trabalho escravo envolvendo 4.883 pessoas em 1991, dezoito casos
envolvendo 16.442 vítimas em 1992, vinte e nove casos e 19.940 trabalhadores em
1993 e ainda vinte e oito casos e 25.193 indivíduos em 1994.
A resposta do atual governo às denúncias de
trabalho escravo foi aberta e construtiva. Em pronunciamento em cadeia nacional
de rádio, o Presidente Fernando Henrique Cardoso reconheceu a seriedade do
problema e estabeleceu uma comissão interministerial para lidar com ele. Ainda
que muito deva ser feito para erradicar o trabalho escravo no País, - a
Polícia Federal investigou apenas dois entre os mais de doze casos denunciados
na primeira metade de 1995 -, o reconhecimento pelo Presidente da importância
da questão e seus esforços preliminares para resolvê-la constituem um
importante primeiro passo.
Apesar dos brasileiros terem geralmente
respeitado seu direito à liberdade de expressão, em algumas ocasiões em 1995
o poder judiciário foi utilizado para impor limites à aplicação irrestrita
deste direito, o que constitui uma violação direta do Artigo 13 da Convenção
Americana de Direitos Humanos e do Artigo 19 do Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos. Em março, o ativista de direitos humanos Padre Júlio
Lancellotti foi condenado judicialmente pelo crime de desacato à autoridade. Em
entrevista à televisão em 1992, o Padre Lancellotti havia acusado a Polícia
Militar de São Paulo de atuação em grupos de extermínio. Naquele ano, a
Polícia Militar de São Paulo foi responsável pela morte de 1.470 civis,
incluindo o massacre de 111 presos desarmados em um único episódio.
Em maio, o livro "O Calvário de Sônia
Angel" foi finalmente liberado, passado mais de um ano de sua edição.
Nele, o ex-oficial militar João Luiz de Moraes descreve a sua provação ao
longo de vinte anos para tentar descobrir como sua filha havia sido torturada e
assassinada por forças de segurança, durante a ditadura. Em 1994, uma corte do
Rio de Janeiro concedeu ao oficial da Aeronáutica General João Paulo Burnier,
um dos militares mencionados pelo texto de João Moraes, uma liminar proibindo a
circulação do livro.
Em junho, a 12a Vara Federal de
Brasília acatou a petição do Conselheiro da Câmara dos Deputados do
Congresso Nacional Bonifácio de Andrada, proibindo a banda "Paralamas do
Sucesso" de executar uma composição, de sua autoria, baseada em discurso
do ex-candidato à Presidência Luiz Inácio da Silva, o "Lula". A
canção "Luiz Inácio (300 picaretas)", como o próprio nome indica,
acusa de picaretas a maioria dos congressistas.
O Direito ao Monitoramento
O governo brasileiro não impôs nenhum
obstáculo formal ao monitoramento da situação dos direitos humanos no Brasil,
e o País continua a manter uma rede bem desenvolvida de Organizações
Não-Governamentais (ONGs) defensoras da causa. Estes grupos monitoram os
direitos de mulheres, crianças, grupos indígenas, trabalhadores rurais e
ativistas, presos, e outras vítimas das violações dos direitos humanos. No
entanto, estas organizações sofreram ameaças, intimidações e violência
física da parte da polícia, fazendeiros e outros.
Após ter prestado seu testemunho sobre o
massacre de oito crianças na Candelária em 1993, o sobrevivente Wagner dos
Santos, também atingido por disparos no incidente, foi mais uma vez vítima de
um ataque de policiais em ação extra-oficial. Em setembro Wagner fugiu do Rio
de Janeiro e abandonou o caso, ressaltando a necessidade de um programa eficaz
de proteção às testemunhas.
Ativistas dos direitos humanos do sul do estado
do Pará continuaram a agir, a despeito das ameaças de morte advindas de um
grupo liderado por Jerônimo Alves de Amorim, proprietário da Fazenda Nazaré.
O padre Ricardo Rezende e o frei Henri des Roziers, da CPT, faziam parte de uma
lista de extermínio da qual constavam quarenta nomes, que continuou a circular
na região. Em 1994, cinco dessas pessoas foram assassinadas. Durante o ano de
1995, Jerônimo permaneceu em liberdade, a despeito de significativas
evidências de seu envolvimento em diversos homicídios.
Em junho, os oito promotores da Justiça Militar
de São Paulo assinaram um documento requerendo a transferência para a justiça
comum dos crimes cometidos contra civis. Esta relevante proposta de reforma, uma
tentativa de trazer alguma medida de justiça para uma série de casos
importantes, chegou ao conhecimento do alto comando militar. Na semana seguinte,
dois destes promotores começaram a receber ameaças de morte anônimas. Um
terceiro, responsável pela acusação dos 120 policiais militares envolvidos no
massacre de 111 presos na Casa de Detenção (Carandiru), já vinha recebendo
ameaças de morte há mais de dois anos. Apesar da freqüência e da semelhança
destas ameaças, em mais de dois anos as autoridades encarregadas de
investigá-las não foram capazes de identificar os responsáveis.
A Política Norte-Americana de Direitos
Humanos
Em abril, o Presidente Fernando Henrique Cardoso
visitou os Estados Unidos e encontrou-se com oficiais do alto escalão,
incluindo o Presidente Bill Clinton. Apesar das pressões exercidas pela
comunidade das ONGs, entre elas a Human Rights Watch/Americas, Clinton não
incluiu em sua agenda para o encontro a questão da situação dos direitos
humanos no Brasil. À exceção da seção brasileira na retrospectiva
"Relatórios Sobre a Situação dos Direitos Humanos em cada País", o
responsável pela pasta brasileira no Departamento de Estado não apontou
nenhuma declaração oficial sobre os direitos humanos no Brasil de autoria do
Departamento de Estado ou da embaixada americana em Brasília durante o ano de
1995.
O relatório do Departamento de Estado sobre o
Brasil, de 1994, apresentou um retrato geral e justo da situação dos direitos
humanos no País. No entanto, o sumário do relatório e do tratamento dado à
"Operação Rio" não mencionou os abusos cometidos pelas tropas
militares e pela polícia, relatando, ao contrário, que tais operações
conjuntas haviam sido "essencialmente não violentas e apoiadas pelos
moradores da cidade", e reiterando o argumento das autoridades militares de
que "atuaram junto aos juizes para a obtenção das autorizações
necessárias". As investigações da Human Rights Watch/Americas
constataram a ocorrência de inúmeros abusos, incluindo a prática de tortura,
buscas e prisões maciças e arbitrárias, e inúmeras detenções que careciam
de base legal.
Em dezembro de 1994, o oficial responsável pelos
direitos humanos da Embaixada dos Estados Unidos viajou para Belém, Pará, para
presenciar o julgamento dos acusados pelo assassinato do ativista rural Expedito
Ribeiro de Souza, em 1991. Neste julgamento, os dois réus presentes foram
condenados, enquanto o terceiro acusado, o fazendeiro Jerônimo Alves de Amorim,
permaneceu foragido.
Em 1995, os Estados Unidos prestaram uma
assistência relativamente pequena ao Brasil. Para o ano fiscal de 1996, a
administração americana solicitou US$200,000 para treinamento militar através
do Programa Internacional de Treinamento e Educação Militar (IMET) e ainda um
milhão de dólares para assistência a programas de combate às drogas. O
governo americano deveria utilizar ambas subvenções para pressionar a polícia
e os militares no sentido de que tomem medidas visando a eliminação das
violações dos direitos humanos por seus oficiais e ainda para que respondam
às denúncias de violações quando estas ocorrem.
O Trabalho da Human Rights Watch/Americas
Dadas a seriedade e a abrangência das
violações dos direitos humanos no Brasil, a Human Rights Watch/Americas
decidiu estabelecer uma representação permanente no País, abrindo escritório
conjunto com o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), no Rio de
Janeiro. A existência deste escritório permanente no Brasil tem nos permitido
participar de perto do debate público relativo às violações dos direitos
humanos e ainda pressionar funcionários do governo para que tomem as devidas
medidas no trato destas violações.
Em março, juntamente a outros grupos de direitos
humanos brasileiros, submetemos uma agenda para os direitos humanos ao
Presidente Fernando Henrique Cardoso, àquela época recentemente eleito. Este
documento, uma carta aberta distribuída à imprensa, resumiu nossos relatórios
e preocupações principais com relação ao Brasil desde a elaboração de
nosso primeiro relatório, em 1987. Muitas das recomendações contidas nesta
carta, como a necessidade de criar uma jurisdição federal para as violações
de direitos humanos e a necessidade de modificar a jurisdição da justiça
militar, foram temas de debate público e da ação do governo, em 1995.
Em abril, juntamente com várias outras
organizações, encontramo-nos em Washington com o Presidente Cardoso, o
Ministro da Justiça Nelson Jobim e outros membros da delegação oficial
brasileira que visitava os Estados Unidos. Mais tarde, demos prosseguimento ao
encontro em conversas com membros do alto escalão da administração do governo
brasileiro sobre questões relativas aos direitos humanos.
Em setembro, lançamos no Brasil a versão em
português do Relatório Global da Human Rights Watch sobre o Direito das
Mulheres (ver seção sobre Projeto para os Direitos das Mulheres), enfatizando
o capítulo que tratava das violações dos direitos humanos das mulheres no
País. O lançamento recebeu ampla cobertura da televisão, rádio e imprensa
escrita.
Ao longo de 1995, continuamos a utilizar
mecanismos internacionais para pressionar o governo brasileiro a respeitar suas
obrigações internacionais. Conjuntamente com o CEJIL, levamos uma série de
casos à atenção da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, incluindo o
massacre de agosto em Rondônia. Em fevereiro, de acordo com a petição da
Human Rights Watch/Americas e do CEJIL, a Comissão Interamericana solicitou que
o governo brasileiro tomasse medidas para proteger a vida do Padre Rezende,
homenageado em dezembro de 94 pela Human Rights Watch pelo trabalho contínuo
que a CPT vem realizando no sul do Pará. Em 1995, após anos de pressão por
parte da Human Rights Watch e do CEJIL, o governo brasileiro decidiu, num
encontro com a Human Rights Watch/Americas e outras ONGs em abril, que
permitiria a visita ao País da Comissão Interamericana de Direitos Humanos
para investigar as condições dos direitos humanos no País, que estava sendo
efetuada no momento da publicação deste livro.
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