
Mortos
sob tortura
Nos
processos políticos analisados pelo Projeto BNM constatou-se,
consignado nos autos, o testemunho de pessoas que presenciaram,
nos cárceres brasileiros, a morte de outros presos políticos,
sob tortura. Pode ser que, nas mesmas circunstâncias, tenham se
dado outras mortes de pessoas tidas como “desaparecidas” ou
apontadas como falecidas em “tiroteio” com os agentes do
governo. Como neste trabalho não cabem as conjecturas — dada a
natureza da pesquisa — mas tão somente os relatos oficialmente
registrados nos processos, será feita neste capítulo a narrativa
dos episódios de mortes denunciadas em juízo, deixando para
abordar no seguinte, que encerra esta reportagem, a questão dos
“desaparecidos”.
Chaci
Charles Schreider
Ao
depor no Rio, em 1969, a estudante Maria Auxiliadora Lara
Barcelos, de 25 anos, denunciou:
(...)
que a declarante ouviu os gritos de Chael, quando espancado;
(...) que das dez horas da noite às quatro da manhã, Antonio
Roberto e Chael ficaram apanhando; (...) que lã pelas quatro
horas da madrugada, Chael e Roberto saíram da sala onde se
encontravam, visivelmente ensanguentados, inclusive no pênis, na
orelha e ostentando cortes nas cabeças; (...) que ouvia gritos de
Chael dizendo não saber de nada; (...) que tais torturas duraram
até sete horas da manhã, quando Chael parou de gritar, ficando
caído no chão; (...) que Chael foi pisado; que era uma
sexta-feira, tendo Chael morrido no sábado; C..) que Chael estava
gritando desesperadamente na Policia do Exército, no sábado pela
manhã; que somente vinte dias depois veio (a) ter notícias da
morte de Chael; que Antonio Roberto assistiu à morte de Chael;
(...) CHARLES CHAEL, que foi chutado igual a um cão, cujo atestado
de óbito registra 7 costelas quebradas, hemorragia interna,
hemorragias puntiformes cerebrais, equimoses em todo o corpo.
(...)
Em
seus depoimentos no Rio e em São Paulo, o estudante Antônio
Roberto Espinosa, de 23 anos, confirma o que declarara Maria
Auxiliadora Lara Barcelos:
(...)
que estava preso no quartel já citado, em companhia de Chael, o
qual, não aguentando os sofrimentos, acabou falecendo; (...)
(...)
que após essas 3 horas de torturas, Chael foi conduzido a uma
sala contígua, onde havia uma máquina de choques; que, nesta
ocasião, o declarante foi colocado no corredor contíguo à sala
de onde o declarante ouvia os gritos de Maria Auxiliadora e Chael;
(..) que o declarante, enquanto sofria choques, ouvia os gritos de
Chael, até que às 2 horas da tarde cessaram os gritos de Chael;
que Chael havia sido assassinado pelo Capitão José Luiz, pelo
Capitão Lauria e pelos policiais do DOPS; que é capaz de
reconhecê-los; (...)
O
auto de autópsia de Chael Charles Schreider foi realizado, a 24
de novembro de 1969, no Serviço Médico-Legal do Hospital Central
do Exército, no Rio, e é assinado pelo Major-médico Dr. Oswaldo
Cayammi Ferreira, chefe do SML; pelo Capitão-médico Dr.
Guilherme Achilles de Faria Mello; e pelo médico civil Dr. Rubens
Pedro Macuco Janini. Traz a seguinte conclusão: “Justificada a
causa da morte é encerrada a necrópsia e concluída por contusão
abdominal com roturas do mesocolon transverso e mesentério, com
hemorragia interna.(...)
João
Lucas Alves e Severino Viana Calú
O
assassinato dessas duas pessoas foi denunciado, em 1970, no
decorrer do interrogatório, em Juiz de Fora, do estudante Afonso
Celso Lana Leite, de 25 anos:
(...)
que os interrogatórios dos acusados, inclusive os do interrogado,
foram feitos sob torturas as mais atrozes, ocasionando a morte
de dois companheiros seus: João Lucas Alves e Viana Calú; que
esses dois companheiros morreram em virtude de não terem
aquiescido com os depoimentos que lhe eram impostos pelos
torturadores THACYR MENEZES SIA, do DOPS, ARIOSVALDO, do DOPS e
diversos outros, dos quais não se lembra o nome, no DOPS; (...)
No
mesmo processo, o trocador de ônibus Antonio Pereira Mattos, de
36 anos, reforça a denúncia:
(...)
que dá, como exemplos de torturas, o caso de João Lucas Alves
que, depois de seis (6) meses de prisão, mais ou menos, e depois
de barbaramente torturado, em conseqüência veio a falecer, e foi
dado pelas Autoridades Policiais, como “causa mortis”, o suicídio,
quando é do conhecimento do púbico, e isto consta da perícia médica,
que esse companheiro tinha os olhos perfurados ao falecer e as
unhas arrancadas; (...) que morreu também, em razão de torturas,
um outro companheiro do interrogado, de nome Severino Viana Calú;
(...) que Severino Viana Calú faleceu na Guanabara e João Lucas
Alves, na (delegacia de) Furtos e Roubos de Belo Horizonte,
ambos companheiros do interrogado na Guanabara; que soube que o
falecimento de João Lucas Alves ocorreu em razão de torturas,
porque os próprios policiais contaram ao interrogado; (...)
O
auto de corpo de delito de João Lucas Alves, 36 anos, foi reallzado
a 6 de março de 1969 no Departamento de Medicina Legal de Belo
Horizonte, e está assinado pelos doutores Djezzar Gonçalves
Leite e João Bosco Nacif da Silva. Nela consta:
“Autoridade
que requisitou — Del. de Furtos e Roubos.
LESÕES
CORPORAIS: (...) Duas escoriações lineares alargadas, medindo
a maior cerca de 5 cm, e situadas na face interna, terço
inferior do antebraço esquerdo. Escoriações vermelhas
situadas nos 4 últimos pododátilos (dedos do pé) esquerdos:
Edema do pé direito. Contusão com equimose arroxeada sobre a
unha do primeiro pododátilo direito. Equimose arroxeada na região
glútea direita, face posterior da região escapular direita e
flanco direito. Região anal normal. Ausência da unha do
primeiro pododátilo esquerdo.
CAUSA
DA MORTE — asfixia mecânica”7
Eduardo
Leite
A
morte premeditada de Eduardo Leite, em 1970, foi denunciada, no
Rio, pelo estudante Ottoni Guimarães Fernandes Júnior, de 24
anos, que esteve com ele no cárcere privado numa residência no
bairro de São Conrado:
(...)
que os policiais apresentaram para o interrogado, ainda quando se
encontravam na casa de São Conrado, um cidadão de nome Eduardo
Leite, cognominado Bacuri; que Bacuri também estava sendo
torturado em outra dependência da casa; que, no instante em que
apresentaram Bacuri ao interrogado, os policiais declararam que
ele iria ser morto, como realmente ocorreu no mês de novembro, em
São Paulo; (...)
Em
São Paulo, o economista Vinicius José Nogueira Caldeira Brant,
de 30 anos, também declarou em Juízo ter visto Eduardo Leite num
cárcere oficial paulista:
(...)
que as ameaças de sua vida tiveram uma base concreta ao se
concretizarem na pessoa de outro preso, que sofria juntamente com
o interrogado, tratando-se de Eduardo Leite, que estava preso na
solitária ao lado da sua, no DOPS; que dali foi retirado na
madrugada do dia 27 de outubro, 3 dias depois que os jornais
haviam noticiado a sua fuga, sendo de conhecimento público que
Bacuri foi assassinado com requintes de perversidade; (...)
A
certidão de óbito de Eduardo Leite, de 25 anos, técnico em
telefonia, foi assinada, a 8 de dezembro de 1970, pelo médico-legista
Dr. Aloisio Fernandes. Dá como “causa mortis”: “hemorragia
interna e fratura de crânio por ferimento pérfuro contuso por
projéteis de arma de fogo (balas)”. Consta ainda que o local
do óbito foi a “Estrada Bertioga/Boracéia” e o sepultamento
deu-se no cemitério de Areia Branca, em Santos.
O
exame necroscópico, realizado na mesma data no Posto Médico-Legal
de Santos, e assinado pelos doutores Aloisio Fernandes e Décio
Brandão Camargo, registra:
“HISTÓRICO:
Segundo consta, este cadáver foi encontrado às vinte e duas
horas do dia sete de dezembro do corrente ano, na estrada que liga
o Distrito de Bertioga com o de S. Sebastião. (...)
CONCLUSÃO
— Em face dos achados necroscópios, concluímos que a morte
se deu por fratura do crânio, destruição da massa encefálica,
hemorragia interna, traumatismos consequentes a ferimentos
contusos produzidos por instrumentos pérfuro-contundentes
(bala), com lesão do encéfalo e do coração”
Luiz
Eduardo da Rocha Menino
A
1ª Auditoria de São Paulo consignou nos autos, em 1972, as
seguintes declarações do físico Laurindo Martins Junqueira
Filho, de 26 anos:
(...)
quer afirmar, também, que nesse processo de torturas assistiu a
espancamentos de um companheiro de “organização”, chamado
Luiz Eduardo da Rocha Menino, e que posteriormente, ainda na
fase do interrogatório, esse companheiro foi retirado da OBAN em
estado lastimável, vindo a falecer em conseqüência das torturas
que recebeu; (...)
No
mesmo ano, essas declarações foram reiteradas, em São Paulo,
pelo depoimento da socióloga Eleonora de Oliveira Soares, de 27
anos:
(...)
que durante sua estadia na OBAN sofreu torturas físicas, desde
choques elétricos até pauladas no corpo, ameaças de torturarem
sua filha menor, de um ano e dez meses, e ter assistido à morte
de Luiz Eduardo da Rocha Merlino no recinto da OBAN, morte esta
provocada por torturas; (...)
O
réu Ricardo Prata Soares também confirmou em juízo, em 1972,
ter presenciado os suplícios do referido preso:
(...)
que o depoimento policial foi realizado sob coações moral e física,
às quais deixou o interrogando de resistir após presenciar as
torturas infligidas em Luiz Eduardo da Rocha Merlino, que deram
como conseqüência, em poucos dias, no falecimento do mesmo;
(...)
O
exame necroscópico do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino,
de 23 anos, foi realizado no Instituto Médico-Legal de São
Paulo, a 12 de agosto de 1971, e assinado pelos médicos legistas
Isaac Abramovitc e Abeylard de Queiroz Orsini. Nele consta:
“HISTÓRICO:
Segundo consta, foi vítima de atropelamento”.
Joaquim
Alencar Seixas
Ao
depor em São Paulo, em 1972, a senhora Fanny Aksclrud Seixas, de
54 anos, fez registrar no auto de interrogatório e qualificação
da 2a Auditoria do Exército:
(...)
que não procede o (ilegível) de seu interrogatório de fls. 217,
onde consta que seu marido morreu em tiroteio travado com a Polícia,
na rua, porquanto a interrogada o viu no interior da OBAN sendo
seviciado, ouvindo inclusive a sua voz e seus gritos; que a
interrogada viu quando colocaram o corpo de seu marido numa
camionete, ouvindo naquele momento alguém indagar de quem era
aquele corpo, ao que responderam que se tratava de Joaquim
Alencar Seixas; (...)
O
exame necroscópico de Joaquim Alencar Seixas, 49 anos, foi feito
no Instituto Médico-Legal de São Paulo, a 19 de abril de 1971, e
assinado pelos médicos legistas Pérsio José R. Carneiro e Paulo
Augusto de Q. Rocha. Constata-se que, entre várias equimoses e hematomas,
a vítima foi atingida por sete tiros. Consta ainda:
“HISTÓRICO:
faleceu em virtude de ferimentos recebidos após travar violento
tiroteio com os órgãos da Secretaria de Segurança do Estado
de São Paulo, às treze horas de dezesseis de abril de mil
novecentos e setenta e um, na Av. do Cursino – Ipiranga –
Capital” .
Carlos
Nicolau Danielíl
A
primeira denúncia desta morte foi na 1ª Auditoria de São Paulo,
em 1973, através do auto de interrogatório e qualificação da
professora Maria Amélia de Almeida Telles, de 28 anos:
(...)
que, conduzidos para a OBAN todos os três ou seja:
Carlos
Nicolau Danielli, (ela e) seu marido, foram encaminhados para três
salas de tortura diferentes, sendo que pediu a eles que não
torturassem seu marido, pois estava tuberculoso, acabara de sair
de um sanatório e era diabético; que seu marido quando foi preso
portava um cartão de diabético e uma receita; que seu marido
chegou a ficar em estado de coma e só então recebeu insulina,
porque senão morreria naquela hora; que seu marido desmaiou e,
em estado de coma, eles me chamaram para vê-lo; que Carlos
Danielli foi torturadíssimo durante três dias, pois a
interroganda ouvia seus gritos até que ele faleceu; (...) que
eles mostraram para a interroganda um jornal noticiando a morte de
Carlos Nicolau Danielli, descrevendo que ele teria sido morto num
tiroteio, exatamente como a história da morte que teriam a
depoente e seu marido; ~...) que Carlos Nicolau Danielli era pai
de três filhos; (...)
Em
1973, também em São Paulo, o motorista César Augusto Telles, de
29 anos, confirmou o depoimento de sua esposa:
(...)
apeados do carro, fomos levados para o Opala sob a mira das
referidas armas, sob ameaça de morte em caso de resistência,
onde verifiquei que já se encontrava dentro do veículo meu amigo
Carlos Danielli, manietado por um outro elemento e denotando ter
sido espancado; já mesmo ao entrar no pátio desse departamento
policial, ao descer do carro Carlos Danielli foi espancado à
vista de centenas de pessoas que ali se aglomeravam. (...) Fomos
levados, em seguida, para o interior do edifício, onde, ao
entrar, ouvi de imediato gritos lancinantes que reconheci serem de
Carlos Danielli, no pavimento térreo. (...) Já pela madrugada,
sob ameaça constante de morte e ouvindo constantemente os gritos
de Carlos Danielli, minha esposa entrou em estado de choque psíquico,
o que tornou inútil os esforços de seus agressores. (...) Nesse
meio tempo e até o 49 dia, Nicolau Danielli continuou sendo
torturado barbaramente e, à medida que o tempo passava, seus
gritos se transformavam em lamentos e, finalmente, constatamos o
seu silêncio, apesar de que ouvíamos o barulho de espancamentos.
No 50 dia, foram apresentadas a mim e à minha esposa manchete de
jornais que anunciavam a morte de Carlos Danielli, como tendo
tombado num tiroteio com agentes policiais. Sob os nossos
protestos de que ele havia sido morto como conseqüência e ao
cabo das torturas que sofreu na OBAN, fomos ameaçados de ter o
mesmo destino. (...)
A
certidão de óbito de Carlos Nicolau Danielli, 43 anos, datada de
30 de dezembro de 1972 e assinada pelo Dr. Isaac Abramovitc,
registra como “causa mortis”: “anemia aguda traumática”.
Dá como local do óbito a “Av. Armando de Arruda Pereira, 1800
— S. Paulo”. Seu corpo foi sepultado no cemitério de Perus.
O
exame necroscópico, realizado no Instituto Médico Legal de São
Paulo, a 2 de janeiro de 1973, é assinado pelos médicos legistas
Isaac Abramovitc e Paulo A. de Queiróz Rocha. Não se refere a
marcas de sevícias e traz a seguinte “CONCLUSÃO: Concluímos
que o examinado faleceu em virtude de anemia aguda traumática
produzida por projétil de arma de fogo, cuja direção foi de
trás para frente, ligeiramente de baixo para cima e no plano
sagital”.
Odijas
Carvalho de Souza
A
morte sob tortura deste preso político, em Pernambuco, está
consignada em dois processos penais. O primeiro tem como réu
Alberto Vinícios Meio do Nascimento, estudante, ouvido pelo Conselho
de Justiça em 1971, no Recife:
(...)
que aqui no DOPS, presenciou a tortura, ou melhor, escutou os
efeitos da tortura por que passou um preso por nome Odijas; que após
essas torturas o referido preso veio a falecer; (...) que o
responsável por essas ocorrências é o próprio delegado do DOPS,
que é o Dr. Silvestre; que segundo Odijas lhe contou ainda em
vida, existe um investigador que é responsável por torturas; que
esse investigador foi um dos torturadores de Odijas, chegando a
bater no mesmo até se cansar, segundo relato do próprio Odijas;
que esse investigador atende pelo nome de Miranda; (...)
No
segundo processo figura a estudante Lylia da Silva Guedes, de 18
anos, interrogada no Recife em 1971:
(...)
que assistiu quando um outro prisioneiro era torturado, sendo tal
prisioneiro de nome Odijas Carvalho de Souza; que o referido indivíduo
se encontrava sentado, despido, e era agredido por cerca de quinze
pessoas; que a interroganda reconheceria cerca de dez dessas
pessoas, entre essas: MIRANDA, EDMUNDO, EUSEBIO, DR. CARLOS DE
BRITO, OSWALDQ FAUSTO, ROCHA, BRITO, sendo as torturas comandadas
pelo Dr. SILVESTRE, atual diretor do DOPS do Recife — PE; que,
em conseqüência das torturas, ODIJAS CARVALHO veio a falecer;
(...) que a interroganda pôde relacionar os diversos elementos
que torturaram Odijas por já conhecer os referidos indivíduos
da DOPS do Recife e vê-los diariamente, inclusive quando foi
torturada dois dias; que os jornais noticiaram a morte de ODIJAS,
como tendo ocorrido no dia 8 de fevereiro, em virtude de
“embolia pulmonar”; (...)
De
fato, na certidão de óbito de Odijas Carvalho de Souza, 25 anos,
fornecida a 8 de fevereiro de 1971 pelo Hospital da Polícia
Militar do Estado de Pernambuco, e assinada pelo médico legista
Dr. Ednaldo Paz de Vasconcelos, consta: “causa mortis” –
Embolia pulmonar.
Alexandre
Vannucchi Leme
Todas
as denúncias sobre a morte deste estudante de Geologia da USP
foram feitas em 1973, na 1ª Auditoria Militar de São Paulo, exceção
apenas para este depoimento do engenheiro Marcus Costa Sampaio, de
27 anos, colhido no mesmo ano pela Auditoria Militar de Fortaleza:
(...)
que quando estava nesta última cela, de certa feita ouviu os
gritos e gemidos de uma pessoa que foi colocada na cela solitária;
que já estava em tal cela 15 dias antes do interrogando chegar ao
pavilhão; (...) quer esclarecer também que, durante sua permanência
em tal pavilhão, sempre ouviu gritos e gemidos, quer durante o
dia, quer durante à noite; que observou, com respeito àquele
rapaz da solitária, que no início os seus gritos tinham certa
intensidade, que foi diminuindo gradativamente até se tornar débil;
que esse rapaz foi chamado a depor, ocasião em que deixou,
caminhando normalmente, essa solitária e, em seguida, retornou à
mesma solitária nos braços de alguns soldados, ao que lhe
parecem pertenciam à Polícia Militar, o que não tem certeza;
que em seguida o interrogando constatou que o carcereiro, ao abrir
a porta da cela onde se encontrava o mencionado rapaz, saiu
correndo e foi chamar algumas pessoas; que foi dada a ordem para
que os presos permanecessem no fundo de suas celas e não se
aproximassem das portas das mesmas que davam para o corredor e, em
seguida, foi determinada uma revista em todas as celas e em todos
os presos, sob a alegativa que se procurava instrumentos
cortantes, ocasião em que declarou, o carcereiro, que aquele moço
da solitária havia tentado o suicídio cortando os pulsos; que o
interrogando veio a saber que o nome desse rapaz da solitária era
ALEXANDRE VANNUCHI; que estando aqui em Fortaleza, e lendo o
jornal O Estado de 5. Paulo, viu duas notícias: uma que diz
respeito à morte do mesmo ALEXANDRE VANNUCCHI, que teria ocorrido
por atropelamento ao tentar fugir de uma abordagem policial, notícia
esta que era dada como tendo sido fornecida por órgãos
policiais; que também, no mesmo jornal e na mesma edição,
(havia) uma outra notícia dando conta de que o magnífico reitor
da Universidade de São Paulo, Miguel Reali, buscava o paradeiro
do referido moço que cursava Geologia e era (o) representante dos
alunos na Congregação da Escola de Geologia; (...)
Consta
do auto de interrogatório e qualificação do radiotécnico
Carlos Vitor Alves Delamónica, de 27 anos, ouvido em São Paulo,
em 1973:
(...)
que ainda na fase que passei na OBAN, e como prova cabal das
torturas a mim e a outros submetidos, veio a falecer, em conseqüência
dos maus-tratos e das barbaridades, o meu vizinho de cela, o
estudante do 49 ano de Geologia, Alexandre Vannucchi; (...)
A
mesma tragédia foi testemunhada pelo vendedor Roberto Ri. beiro
Martins de 28 anos:
(...)
essas torturas foram presenciadas por muitas pessoas, como também
presenciei muitas pessoas sendo torturadas, entre as quais posso
citar Luiz Vergatti, José Augusto Pereira e o caso mais grave
deu-se com um jovem de nome Alexandre Vannucchi. Durante dois ou
três dias ouvi os seus gritos e, por fim, na tardezinha do dia 19
de março, salvo engano, vi o seu cadáver ser retirado da cela
forte, espalhando sangue por todo o pátio da carceragem, e depois
ouvi comentários dos carcereiros que falavam em suicídio, e para
justificar foi feita uma revista em todas as celas; (...)
Também
a psicóloga Leopoldina Brás Duarte, de 25 anos, revelou ter
presenciado esta morte:
(...)
esclarecendo que foi coagida a assinar, pois quando chegou ao DOPS
haviam mais acusações e, caso a interroganda não (as)
aceitasse, teria de voltar para o DOI e, como lá havia sido muito
torturada com ameaças de prisão de seu pai e irmão e,
inclusive, assistindo à morte de um menino que, mais tarde, veio
a saber que se chamava Alexandre Vannucchi, não teve condições
de recusar a assinatura”; (...)
Igual
experiência teve a auxiliar pedagógica Neide Richopo, de 26
anos, conforme narrou em seu depoimento:
(...)
que, além de ser torturada e de assistir torturas em outras
pessoas, presenciou também o assassinato de um rapazinho no DOI,
chamado Alexandre; que se ouviam os gritos de tortura de Alexandre
durante todo o dia e, no segundo dia, ele foi arrastado, já
morto, da cela onde ele se encontrava. E, depois disso, os
interrogadores apresentaram, pelo menos, três versões sobre a
morte dele como sendo suicídio, sendo que a versão oficial é
totalmente diferente das três anteriores, pois era a de que ele
havia sido atropelado; que (ele) jamais poderia ser atropelado,
porque já estava morto quando saiu do DOI. Que tudo o que disse
com referência à morte de Alexandre é porque encara isso como
meio de coação psicológica. Se a interroganda não assinasse o
seu depoimento, poderia acontecer com ela o mesmo que aconteceu
com Alexandre; (...)
Incluído
em processo político com outros companheiros de farda, este
tenente da Polícia Militar de São Paulo, de 63 anos, veio a
morrer em conseqüência das sevícias sofridas, conforme depoimento
registrado pelo Conselho de Justiça. Em 1975, escreveu o capitão
PM, Manoel Lopes, de 68 anos, em carta ao juiz-auditor:
(...)
Neste dia, quando me recolheram à cela, encontrei na mesma Carlos
Gomes Machado, Luiz Gonzaga Pereira e José Ferreira de Almeida,
que tinham ido para o DOPS e agora retornavam ao DOI. José
Ferreira de Almeida, deitado num colchão imundo estendido sobre o
chão, agarrou a mão que eu lhe estendia para cumprimentá-lo e
me disse: Lopes, eu não agüento mais, eu te acusei injustamente
quando me torturavam; perdoa-me; e os soluços vieram-lhe até a
garganta, dizendo por fim: eu vou morrer. (...)
Também
em carta às autoridades, o coronel PM Carlos Gomes Machado, 62
anos, reafirmou a denúncia:
(...)
Além disso, embora sabendo ser eu cardíaco, não podendo
sofrer emoções, levaram-me para ver outros colegas meus serem
torturados, como foram os casos do tenente Atílio Geromin, que
ficou com marcas indeléveis nas duas pernas, visto que fora
amarrado em uma cadeira de braços chamada, pelos interrogadores,
de “cadeira do dragão”; tenente José Ferreira de Almeida
que, apesar de seus 63 anos de idade, foi levado à morte em
virtude das torturas que lhe foram aplicadas, tais como
“pau-de-arara”, choques elétricos, palmatória, etc., que
se repetiam diariamente; (...)
Assinado
pelos doutores Harry Shibata e Marcos Almeida, o exame necroscópico
de José Ferreira de Almeida foi realizado no Instituto Médico
Legal de São Paulo, a 12 de agosto de 1975, e registra: “HISTÓRICO:
segundo consta, faleceu por enforcamento em sua cela, onde estava
detido”.
Wladimir
Herzog
A
7 de novembro de 1975, o jornalista Rodolfo Osvaldo Konder, co-réu
no mesmo processo do jornalista Wladimir Herzog, prestou
depoimento juramentado, em São Paulo, cujos termos foram tomados
e assinados pelo padre Olivo Caetano Zolin e pelos juristas Prudente
de Moraes Neto, Goffredo da Silva Telles Júnior, Maria Luiza
Flores da Cunha Bierrenbach, José Roberto Leal de Carvalho e Arnaldo
Malheiros Filho. O depoimento foi, posteriormente, anexado aos
autos do processo:
(...)
No sábado pela manhã, percebi que Wladimir Herzog tinha chegado.
(...) Wladimir Herzog era muito meu amigo e nós comprávamos
sapatos juntos, e eu o reconheci pelos sapatos. Algum tempo
depois, Wladimir foi retirado da sala. Nós continuamos sentados lá
no banco, até que veio um dos interrogadores e levou a mim e ao
Duque Estrada a uma sala de interrogatório no andar térreo,
junto à sala em que nós nos encontrávamos. Wladimir estava lá,
sentado numa cadeira, com o capuz enfiado, e já de macacão.
Assim que entramos na sala, o interrogador mandou que tirássemos
os capuzes, por isso nós vimos que era Wladimir, e vimos também
o interrogador, que era um homem de trinta e três a trinta e
cinco anos, com mais ou menos um metro e setenta e cinco de altura,
uns 65 quilos, magro mas musculoso, cabelo castanho claro, olhos
castanhos apertados e uma tatuagem de uma âncora na parte interna
do antebraço esquerdo, cobrindo praticamente todo o antebraço.
Ele nos pediu que disséssemos ao Wladimir “que não adiantava
sonegar informações”. Tanto eu, como Duque Estrada de fato
aconselhamos Wladimir a dizer o que sabia, inclusive porque as
informações que os interrogadores desejavam ver confirmadas, já
tinham sido dadas por pessoas presas antes de nós. Wladimir disse
que não sabia de nada e nós dois fomos retirados da sala e
levados de volta ao banco de madeira onde antes nos encontrávamos,
na sala contígua. De lá, podíamos ouvir nitidamente os gritos
primeiro do interrogador e, depois, de Wladimir, e ouvimos quando
o interrogador pediu que lhe trouxessem a “pimentinha” e
solicitou ajuda de uma equipe de torturadores. Alguém ligou o rádio
e os gritos de Wladimir confundiam-se com o som do rádio.
Lembro-me bem que durante essa fase o rádio dava notícia de que
Franco havia recebido a extrema-unção, e o fato me ficou
gravado, pois naquele mesmo momento Wladimir estava sendo
torturado e gritava. A partir de um determinado momento, o som da
voz de Wladimir se modificou, como se tivessem introduzido coisa
em sua boca; sua voz ficou abafada, como se lhe tivessem posto uma
mordaça. Mais tarde, os ruídos cessaram. (...) O interrogador
saiu novamente da sala e dali a pouco voltou para me apanhar pelo
braço e me levar até à sala onde se encontrava Wladimír,
permitindo mais uma vez que eu tirasse o capuz. Wladimir estava
sentado na mesma cadeira, com o capuz enfiado na cabeça, mas
agora me parecia particularmente nervoso, as mãos tremiam muito
e a voz era débil. (...) Na manhã seguinte, domingo, fomos
chamados (...) para ouvirmos uma preleção sobre a penetração
russa no Brasil, feita por um homem que me pareceu o principal
responsável pela análise das informações colhidas no DOI. Este
cidadão, acompanhado pelo “Doutor Paulo”, um japonês de
cerca de quarenta e poucos anos, magro, um metro e setenta de
altura, e de um interrogador de cerca de vinte e cinco anos, alourado,
magro e alto, com mais ou menos um metro e setenta e sete. O homem
que me pareceu ser o principal é um homem moreno, rosto redondo,
gordo, estatura mediana, e uma barba emoldurando o rosto. Ele
primeiro se estendeu sobre a questão da espionagem russa no
Brasil, e depois nos comunicou que Wladimir Herzog se suicidara na
véspera, para concluir que Wladimir devia ser um agente da KGB,
sendo ao mesmo tempo “o braço direito do governador Paulo
Egydio”. (...) Que o interrogador de Wladimir Herzog vestia
camiseta branca de gola olímpica e mangas curtas, e uma calça de
brim que lhe pareceu ser do uniforme do Exército. (...) Que o
interrogador de Wladimir, antes descrito pelo depoente como sendo
aquele que tinha uma tatuagem de âncora no braço, era branco.
Que quando se iniciou a tortura de Wladimir, o declarante,
estando na sala ao lado, chegou a ouvir sons de pancadas que lhe
eram desferidas. Que o declarante, embora não possuísse relógio,
calcula que a tortura de Wladimir tenha durado cerca de duas
horas, menos que a do próprio declarante, que teria durado
cerca de quatro horas. Que a tortura de Wladimir a que acima se
referiu foi aquela que pôde ouvir, ignorando se Wladimir sofreu
outras posteriormente em outra dependência do próprio DOI. (...)
|