
Intimidação
pela tortura
O
emprego sistemático da tortura foi peça essencial da engrenagem
repressiva posta em movimento pelo Regime Militar que se Implantou
em 1964. Foi, também, parte integrante, vital, dos procedimentos
pretensamente jurídicos de formação da culpa dos acusados.
A
Justiça Militar brasileira, conforme demonstrado nesta pesquisa
do Projeto BNM, tinha plena consciência da aplicação rotineira
de sevícias durante os inquéritos, e ainda assim atribuía validade
aos resultados destes, apoiando neles seus julgamentos. Conforme
foi visto nos últimos capítulos, essa foi a postura quase invariável
do Judiciário nos processos por crimes políticos, das Auditorias
ao STM, havendo episódios em que o próprio STF se subjugou com
atitudes omissas e até mesmo coniventes.
O
início desta reportagem já focalizou, à maneira de choque,
alguns aspectos terríveis dessa moléstia punitiva que tomou
conta das mentalidades militares e policiais brasileiras, no
enfrentamento daqueles que ousaram recusar o credo da Segurança
Nacional.
Os
capítulos seguintes mostrarão, numa seqüência organizada de
forma a revelar um crescendo na gravidade das conseqüências,
outras dimensões dessa abominável arma de pressão e subjugação.
Arma que representava, na verdade, a base da pirâmide do autoritarismo
e do sistema de imposição da vontade absoluta dos governantes.
No topo existiam os Atos Institucionais, o SNI, o Conselho de
Segurança Nacional, as altas esferas de poder. Na porção intermediária
da pirâmide, toda a estrutura jurídico-política de repressão e
controle: LSN, Lei de Imprensa, inúmeros instrumentos legais de
exceção. Pouco acima da base, a Justiça Militar
“legalizando” as atrocidades dos inquéritos, ignorando as
marcas e laudos das torturas, transformando em decisões
judiciais aquilo que os órgãos de segurança arrancavam dos
presos políticos mediante pressões que iam da intimidação para
que confessassem, até ao limite dos assassinatos seguidos de
desaparecimento dos cadáveres.
Como
primeiro passo desta nova seqúência de relatos, serão focalizados
os testemunhos de presos políticos a quem foram exibidas pessoas
torturadas como forma de pressão para que declarassem aquilo que
as autoridades militares e policiais pretendiam.
A
assistente social Ilda Brandle Siegl, de 26 anos, declarou em seu
depoimento no Rio, em 1970:
(...)
(o) que mais influiu no ânimo da depoente foi o fato de ser
mostrado a ela um rapaz, que hoje sabe ser Flávio de Melo e que
se encontrava arroxeado no braço e com o rosto inchado, e
disseram à depoente que, só não concordasse em colaborar,
ficaria igual a ele; (...) que disseram a ela que a tortura ali
era cientifica, não deixava marca; que foi esparicada e
despiram a depoente e provocaram choques elétricos; que, enquanto
um aplicava choque, o Dr. Mimoso abanava a depoente para que a
mesma não desmaiasse; que havia pausa a critério médico; que
aplicaram choques nos seios, no umbigo e na parte interna das
coxas; que, após, foi jogada numa cadeira, já que não podia
ficar de pé; (...)
No
mesmo ano, e também na 1ª Auditoria da Marinha do Rio, a
estudante Iná de Souza Medeiros, de 21 anos, contou ao Conselho
de Justiça:
(...)
que, após, trouxeram Milton despido, pendurado no pau-de-arara,
para que a declarante visse o seu estado e dizendo que, com ela,
fariam a mesma coisa e, constantemente, os torturadores proferiam
nomes contra Milton e a declarante; (...) que essas moças levaram
ferro na unha, choque elétrico e tentativa de afogamento que
consistia em tapar o nariz da pessoa e jogar água em cima; (...)
A
fim de propiciarem essa visão aterrorizadora aos prisioneiros políticos,
os autores das sevícias chegaram ao requinte de promover, em
dependências policiais e militares, reformas sofisticadas, como o
caso do vidro a que se refere, em seu depoimento, o estudante
Manuel Domingos Neto, de 22 anos, ouvido em 1972, em Fortaleza:
(...)
Que teve oportunidade de ver, por intermédio de um vidro
existente em uma dependência da Delegacia Regional, vidro esse
que permite ao observador ver sem ser visto, que a acusada Rosa
Maria Pereira Fonseca, que se encontrava no interior daquela
dependência, estava em estado de convulsão; que o interrogando
atribui que Rosa chegou a esse estado em virtude de torturas pela
mesma sofridas na referida Delegacia; que lhe foi proporcionada
essa visão com o evidente intuito de atemorizar o interrogando;
(...)
Houve
situações em que as torturas não conseguiram romper o silêncio
a que se impôs a vítima. O último recurso era tentar fazer com
que um prisioneiro convencesse o outro a falar, como o comprova a
carta ao juiz-auditor de São Paulo, escrita por Marlene de Souza
Soccas, de 35 anos, dentista, em 1972:
(...)
Supunham que eu estivesse ligada a Marcos Sattamini Pena de
Arruda, geólogo, que há mais de um mês vinha sendo torturado.
Levaram-me à sala de torturas e um dos torturadores, Capitão do
Exército, avisou: “Prepare-se para ver entrar o Franksteín”.
Vi aquele cidadão entrar na sala com o passo lento e incerto,
apoiando-se numa bengala, uma das pálpebras caídas, a boca
contorcida, os músculos do abdômen tremendo constantemente,
incapaz de articular bem as palavras. Ele havia ficado
hospitalizado entre a vida e a morte, após o violento
traumatismo que sofreu nas torturas. Disseram: “Obrigue-o a
falar porque a Gestapo não tem mais paciência e, se um de vocês
não falar, nós o mataremos e a morte dele será de sua
responsabilidade”. Não falamos, não por heroismo, mas porque
nada tínhamos a falar. (...)
O
depoimento do técnico em contabilidade João Manoel Fernandes,
de 22 anos, no Rio, em 1970, demonstra como os cárceres
brasileiros abrigavam um coletivo de estropiados:
(...)
que, na Ilha das Flores, quando lhe colocaram em contato com os
presos, encontrou uma situação de verdadeiro terror; que Nielse
(...) estava com o braço na tipóia completamente roxo, em
virtude de ter sido colocado em “pau-de-arara”, onde lhe
jogavam jatos de água na cabeça e davam choques em partes sensíveis
do corpo; que Rogério, o qual conheceu na Ilha das Flores, em
virtude dos espancamentos e em virtude dos choques elétricos,
estava com hemorróidas; que Martha Motta Lima, a qual conheceu
também na Ilha das Flores, estava com o dedo da mão quebrado, em
virtude de palmatória; que Rui Cardoso de Xavier, o qual veio a
conhecer na Ilha das Flores, estava todo (...) com abdômen todo
enfaixado, em virtude dos espancamentos recebidos; que dava para
perceber o estado de completo abatimento e (...) tudo isso
provocado pelas torturas físicas e pela ameaça constante de
ser torturado e até ameaçado de perder a própria vida; (...)
Descrição
semelhante encontra-se no auto de interrogatório e qualificação
do engenheiro José Milton Ferreira de Almeida, de 32 anos, ouvido
em São Paulo, em 1976:
(...)
que, pior do que tudo isso, foi passar dias inteiros, por vários
dias, vendo e ouvindo várias pessoas serem torturadas,
crucificadas, penduradas nos registros das celas, espancadas nos
corredores, gritando numa agonia indescritível; que viu pais e
filhos sendo torturados, esposos e esposas serem também
torturados e um sendo obrigado a torturar o outro; que viu velhos
de quase 70 anos serem praticamente espancados e chegarem ao
ponto de debilitamento total; que essas coisas que diz agora são
uma síntese do que viveu; (...)
Nos
autos dos processos, a Justiça Militar brasileira consignou
outros depoimentos de réus que se viram intimidados pelo estado
lastimável de outras vítimas da tortura:
(...)
que declara ainda que não conhece os outros acusados, com exceção
dos já citados, fazendo uma ressalva à Dulce Chaves Pandolfi, a
qual lhe foi apresentada na Polícia do Exército em estado
deplorável e foi obrigado, o declarante, a reconhecê-la; (...)
(Depoimento de Jorge Raimundo Júnior, 23 anos, estudante, Rio,
1972).
(...)
Começou a interrogar-me. Visto que eu nada podia adiantar-lhe,
por nada saber do que era perguntado, nesse momento mandou virem
à minha presença, para acareação, o Cel. Carlos Gomes Machado
e o Ten. Atílio Gerimos, que haviam sido presos já há alguns
dias. Esses dois colegas estavam em estado lastimável, pois
vinham sendo torturados desde que ali haviam chegado; (...)
(Relato ao juiz-auditor do 1º Tenente PM José de Araújo
Cavalcanti, 67 anos, S. Paulo, 1975).
(...)
que um outro policial empurrou o interrogando dizendo-lhe: “fala
logo”; que, em seguida, chegou o Delegado Fleury dizendo que
logo o interrogando ia saber do que se tratava, isto porque o
interrogando alegava não saber o que estava havendo; que foi
levado para uma sala onde encontrou Frei Ivo e Frei Fernando
apresentando sinais de espancamentos, com os rostos bastante
inchados, em estado de semi-inconsciência, quase irreconhecíveis;
(...) (Auto de interrogatório de Nestor Pereira da Mota, 29 anos,
professor, S. Paulo, 1970). (...) que foi preso no dia dez de
setembro, em sua casa, e levado para a Operação Bandeirantes;
que, ao entrar na viatura que o conduziu, começou a ser tratado
de maneira a mais violenta; que, ao cabo de algum tempo, acesas as
luzes da viatura, mandaram que o interrogando olhasse para trás,
quando viu Wilson Palhares caído ao fundo, apresentando aspecto
que o interrogando descreve como de farrapo humano; que disseram
ao interrogando que ele assim ficaria se não confessasse; (...)
(Auto de interrogatório de Luís Antonio Maciel, jornalista, S.
Paulo, 1970).
(...)
Depois de toda essa guerra psicológica, como se não bastasse,
ainda trouxeram à minha presença o Padre Gerson e Lúcio Castelo
Branco, ambos colegas de serviço do meu marido, para que eu visse
o seu estado em que se encontravam, podendo verificar que os
dois referidos acusados apresentavam um estado físico precário,
sendo que Lúcio Castelo Branco dava a impressão de um retardado
mental, não concatenando as expressões e nem sequer andando
direito, enquanto o Padre Gerson se queixava de dores (ilegível)
em conseqüência do espancamento que tivera. A tudo isso o Dr.
Rangel mostrava-se indiferente, procurando atemorizar-me mais
ainda, descrevendo as torturas que tinham usado, afirmando que
eu, como mulher, não agüentaria. (...) (Carta, a seu advogado,
de Rosa Maria Pires de Freitas, Rio, 1971).
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