
“Aqui
é o inferno”
Na
linguagem forjada ao calor do enfrentamento entre vítimas e
algozes da repressão policial-militar, “aparelhos” eram
casas, sítios ou apartamentos especialmente usados como
esconderijos dos militantes políticos.
Para
facilitar ainda mais seu trabalho, situando-o à margem da própria
legislação autoritária vigente, o sistema repressivo passou a
dispor de seus próprios “aparelhos”, nos quais presos políticos
eram mantidos em cárcere privado, após serem seqüestrados.
Alguns encontraram a morte naqueles locais. Outros, mantidos
permanentemente encapuzados, retornaram sem noção de onde haviam
estado. São raros os que viram com os próprios olhos os
sinistros imóveis devidamente equipados e adaptados para toda
sorte de torturas e que retiveram, em suas memórias, detalhes
como vias de acesso e tempo de percurso, que talvez facilitem a
identificação exata daqueles “aparelhos” do sistema
repressivo.
A
“Casa dos Horrores”
O
bancário Gil Fernandes de Sá, 29 anos, preso em Fortaleza,
narrou ao Conselho de Justiça Militar, em 1973:
(...)
que do quartel do 10º GO foi conduzido em uma camioneta
veraneio, deitado sobre o piso da mesma, a um lugar distante da
cidade, cerca de uma hora de viagem; (...) que os policiais diziam
que iam conduzir o interrogando a uma casa chamada “Casa dos
Horrores”; que, lá chegando, o interrogando realmente
percebeu que a coisa era séria porque ouviu gritos e gemidos;
(...).
A
existência daquela prisão clandestina foi confirmada, no mesmo
ano, pelo depoimento do comerciante Geraldo Magela Lins Guedes, 24
anos:
(...)
uma vez aqui em Fortaleza, a camioneta trafegou por cerca de uma
hora, terminando afinal por chegar a um local que o interrogando
ignora; que, nesse local, o interrogando foi conduzido a um
pavimento superior do prédio, onde o piso é de assoalho; (...)
que nesse pavimento superior viu e ouviu pessoas serem torturadas;
(...) que durante o tempo em que esteve nesse local ignorado
presenciou todas essas torturas, ouvindo gritos e ruídos
decorrentes da aplicação de pancadas e outros maus-tratos sendo
que, durante a noite, descia e deitava-se numa dependência de
formato longo no pavimento térreo, onde se tinha a impressão de
que aquele imóvel era uma casa de campo, pois nesse pavimento térreo
estavam depositados pneus velhos, espigas de milho, esteiras,
camburões; (...) que havia, ainda, nesse local, um elemento que
preparava as refeições e que era homossexual; que esse elemento
era conhecido por CILENE; (...)
Como
os prisioneiros eram transportados de olhos vendados para o
misterioso local nas cercanias da capital cearense, era difícil
identificá-lo com precisão, ainda que pudessem vê-lo quando se
encontravam em seu interior. É o que confirma o interrogatório,
em 1974, do farmacêutico José Elpídio Cavalcante:
(...)
que, desse quartel, foi conduzido pelos policiais e, de novo, com
o capuz na cabeça, a uma propriedade fora desta cidade; que
observou uma mudança de clima quando saiu dos limites da cidade;
que essa casa ou propriedade é cercada por um muro alto; que, lá
chegando, o interrogando foi encaminhado ao pavimento superior do
prédio (...) (que ouviu) de outro policial a explicação de que
“AQUI NÃO É O EXÉRCITO, NEM MARINHA E NEM AERONÁUTICA, AQUI
É O INFERNO”; (...)
A
“mudança de clima” constatada pelo farmacêutico encontra
confirmação no depoimento, em 1973, do arquiteto José Tarcísio
Crisóstomo Prata, 28 anos:
(...)
que essa casa de campo fica próxima a uma lagoa; (...) que o
interrogando ouviu os gritos e gemidos daquelas pessoas que eram
torturadas, lá do depósito, onde se encontrava recolhido, no
pavimento térreo da referida casa de campo; (...)
Para
o auxiliar de contador Francisco Nilson de Vasconcelos, 24 anos,
que foi torturado no mesmo local, os policiais “diziam ser uma
fazenda” .
O
estudante Ottoni Guimarães Fernandes Júnior, 24 anos, contou na
lª Auditoria da Aeronáutica, em 1974, o que lhe ocorreu após
ter sido preso, no Rio, pela equipe comandada pelo delegado Sérgio
Paranhos Fleury:
(...)
conduzido para uma casa particular, situada em São Conrado; que o
interrogado foi retirado do veículo algemado, com os olhos
vendados e os pés também amarrados; que o interrogado foi
carregado e notou que estava descendo uma escada íngreme com
cerca de quarenta degraus; que a casa em questão era de dois
pavimentos, que na parte superior existia uma varanda,
acrescentando o detalhe que a casa estava apoiada, na parte
traseira, no morro de pedra, e o banheiro estava localizado na
parte inferior, tendo como uma das paredes a própria pedra; (...)
que se tratava de uma residência de alto padrão, de estilo
colonial, e que na ocasião estava desabitada, pois nem a luz e
nem a água estavam ligadas e que, da varanda da casa, podia
divisar o Hotel Nacional; (...)
A
casa de Petrópolis
Ouvida
pela Justiça Militar no Rio, em 1972, a bancária Inês Etiene
Romeu, 29 anos, contou:
(...)
que esteve cem dias em cárcere privado, onde foi submetida a
coações e sevícias de ordem física, psicológica e moral.
(...)
Dez
anos depois, já em liberdade, Inês entregou à imprensa minucioso
relato das circunstâncias de sua prisão e do local em que ficara
presa em Petrópolis:
(...)
Chegando ao local, uma casa de fino acabamento, fui colocada numa
cama de campanha, cuja roupa estava marcada com as iniciais
C.I.E. (Centro de Informação do Exército), onde o interrogatório
continuou. (...) Colocavam-me completamente nua, de madrugada, no
cimento molhado, quando a temperatura estava baixíssima. Petrópolis
é intensamente fria na época em que lá estive (oito de maio a
onze de agosto).
Posteriormente,
Inês identificou a casa utilizada como cárcere privado como
sendo de propriedade de Mano Lodders, situada à rua Arthur
Barbosa n0 120.
Também
se refere a uma casa em Petrópolis a cabeleireira Jussara Lins
Martins, 24 anos, que, em 1972, depôs na auditoria de Minas
Gerais, onde fora presa:
(...)
que posteriormente a isso, foi enviada para a Guanabara onde,
novamente, foi submetida a torturas numa casa que, ao que pensa,
esta localizada no caminho de Petrópolis, ficando ali no período
de quatro dias; (...).
O
“local ignorado” de Belo Horizonte
O
juiz auditor da Auditoria de Juiz de Fora, em Minas Gerais passou
aos autos este trecho do depoimento do repórter fotográfico José
do Carmo Rocha, 39 anos, quando este foi interrogado em 1976:
(...)
que foi preso na sua residência, pela manhã, por vários homens
armados, em número de seis (6) aproximadamente e levado para um
local ignorado; que nesse lugar passou nove (9) dias, depois foi
interrogado na Polícia Federal; que quando esteve preso, no
lugar que ignora, foi espancado; (...) que após ser ouvido na
Policia Federal retornou ao lugar de onde viera antes, onde passou
mais dois dias. (...)
O
Colégio Militar de Belo Horizonte
Processos
pesquisados registram que até uma instituição de ensino, que
abriga menores, foi utilizada para a prática de torturas, como é
o caso do Colégio Militar da capital mineira. Consta do auto de
qualificação e interrogatório do professor José Antônio Gonçalves
Duarte, 24 anos, que prestou depoimento em 1970:
(...)
que depois desse episódio foi levado para o Colégio Militar,
onde foi submetido a torturas no “pau-de-arara”, local em que
presenciou, também, ser torturada da mesma forma a acusada Neuza;
(...)
O
depoimento da socióloga Neuza Maria Marcondes Viana de Assis, 33
anos, prestado em 1970, confirma a denúncia acima:
(...)
que a interrogada, ao ser levada para dentro do mato, dentro da área
do Colégio Militar, para ser colocada no pau-de-arara, viu quando
JOSÉ ANTONIO GONÇALVES DUARTE, ali estava amarrado apanhando com
vareta nas costas; (...)
O
registro do depoimento do professor Lamartine Sacramento Filho, 28
anos, colhido no mesmo ano, comprova a utilização daquela
instituição de ensino em atividades repressivas:
(...)
que depois desse período foi levado para o Colégio Militar,
onde foi interrogado sem que as autoridades tomassem por termo
suas declarações, havendo durante esses interrogatórios
sofrido ameaças de torturas; que depois daí foi transferido
para Neves onde passou mais ou menos uns 40 dias, sendo, nesse período,
vez por outra, trazido ao Colégio Militar, onde era
interrogado; que dessas últimas vezes em que esteve no Colégio
Militar, assinou vários depoimentos; (...)
A
“fazenda” e a casa de São Paulo
São
de 1975 os depoimentos mais significativos sobre os cárceres
privados do “braço clandestino da repressão” em São Paulo.
O jornalista-vendedor Renato Oliveira da Motta, 59 anos, contou
ao Conselho Militar que o inquiriu:
(...)
que foi encapuzado e levado para uma casa onde lhe tiraram o
capuz, numa habitação inacabada e iluminada por lampiões a gás,
(...)
O
mesmo depoente descreve em carta anexada aos autos:
(...)
O prédio deveria ter vários aposentos, porém observei a existência
de três: uma sala de uns 4 x 4 ms 2, com armário onde eram
guardados os instrumentos de tortura e roupas. Uma janela que dava
a impressão de a casa estar localizada em terreno amplo, embora não
muito longe da estrada. Uma saleta que serviu de escritório,
junto à qual um quarto. Chegava-se ao mesmo passando pela
cozinha. Tinha uma janela lacrada e, no seu interior, dois grandes
blocos de cimento retangulares. Em um dos blocos havia uma argola
afixada numa das faces laterais; no outro, na face superior, havia
duas argolas destinadas a prenderem os pés dos prisioneiros. Na
saleta, um rádio e uma vitrola ligados, alternadamente, no mais
alto volume. (...) A casa, sem acabamento, não tinha luz elétrica.
As vezes faltava água. Para iluminação, usavam-se lampiões de
gás colocados em pedestais de uns dois metros de altura. A
alimentação era preparada pelos próprios indivíduos que ali
atuavam. (...) No dia 17 de maio, enfim, fui transferido para
outro local. Vendaram-me os olhos com largos esparadrapos e uns
óculos pretos. Rodamos horas e horas, dando voltas intermináveis,
até chegarmos a uma casa residencial. Para chegarmos ao corpo
da casa havia uma escada. O prédio iluminado a eletricidade tinha
banheiro completo e uma estação rádiotransmissor, como no outro
local. No quarto que me servia de cela, tinha mesa e cama. Um
bloco de cimento semelhante aos já descritos. Para a entrada de
ar, um pequeno vasculante. (...)
O
comerciário Ednaldo Alves Silva, 31 anos, também se refere a um
local semelhante, conforme registra sua carta anexada aos autos.
Após ter sido preso, a 30 de setembro de 1975, por um grupo de
homens que o seqüestrou no centro de São Paulo, obrigando-o a
entrar num Volks, Ednaldo foi conduzido a um local onde
trocaram-lhe o capuz preto por óculos escuros e prosseguiram
viagem:
(...)
Rodamos bastante, a certa altura percebi que percorríamos uma
estrada, tendo, inclusive, surgido o problema de um pedágio,
quando me advertiram para ficar calado e não me mover, caso
contrario eles atirariam em mim. (...) Percebi, também, que os
que agora me transportavam não eram os mesmos que haviam me seqüestrado
em plena via pública. (...) Após uma hora e meia ou duas horas
de viagem, percebi, pela ausência de trafego e por rodarmos em
estrada não pavimentada, que saíramos da estrada principal. Logo
o carro parou. Desceram-me e fui conduzido para uma casa que julgo
localizada em lugar distante de local habitado. (...) Imediatamente
guiaram-me por uma escada abaixo e ao chegarmos a uma sala de chão
de cimento áspero começam a espancar-me selvagemente. (...) Logo
depois guiaram-me para subir a escada, através de um corredor
chegamos a um pequeno quarto. Colocaram-me uma argola de ferro
em um pulso e outro no tornozelo, que através de correntes
prendiam-me no estrado de uma cama, com colchão de palha sem
lençol. (...) Para se ter uma idéia do meu estado, a minha
primeira impressão era que eu estava escutando meus próprios
gritos. Mas, logo voltando à realidade, percebi que outras
pessoas, tal como eu, eram vítimas daquele autêntico inferno.
(...)
Já
o advogado Affonso Celso Nogueira Monteiro, ex-vereador e
ex-deputado, em carta anexada aos autos e datada de 26 de outubro
de 1975, redigida na terceira pessoa, indica que passou pelo local
descrito acima, após sofrer suplícios numa propriedade rural
sofisticada:
(...)
foi iniciada viagem que durou, ao que supõe, perto de uma hora,
das quais uns dez minutos em zona urbana, meia hora em estrada de
intenso tráfego e vinte minutos em estrada ascendente não
pavimentada, de solo irregular, cheia de curvas e que atravessa
uma linha férrea, fato este indicado pela coincidência da
passagem, na ocasião, de um trem a velocidade bem reduzida.
Chegando ao destino, foi retirado do carro por alguém que,
chamando-o pelo nome, disse estar em poder do “braço
clandestino da repressão do governo”, do qual ninguém poderia
tirá-lo e que havia chegado a sua hora. Em seguida, é conduzido
por um gramado até uma calçada cimentada, transposta a qual
segue-se uma escada que desce uns quatro lances em ângulo reto,
até um recinto que denominam de “buraco”, onde o colocam
voltado para um canto da parede. (...) sente que o chão de
cimento é lamacento e escorregadio e que as paredes são úmidas,
com o reboco em decomposição, caindo aos pedaços ao nele se
apoiar. Supõe, por isso, tratar-se de ambiente subterrâneo.
(...) foi levado para um quarto de piso de tacos, tendo passado de
novo pela calçada e pelo gramado, entrando em um prédio, subindo
nova escada e atravessado corredores que dobram em ângulo reto. ~
é mais uma vez levado à tortura, agora ao ar livre, sem
pau-de-arara, mas com novo método que consiste em pendurar a vítima
pelos pés, mantendo os braços suspensos, (...) Descido do novo
instrumento de martírio, perguntaram-lhe se sabe nadar e
informaram-no de que tomaria um banho de cachoeira e a seguir de
rio, O primeiro banho consiste em ser deitado e mantido nessa posição
no leito pedregoso de um regato pouco profundo, cujas águas
repentinamente crescem de volume e ímpeto, determinando desequilíbrio
e revolvimento de seu corpo nas pedras, aumentando os ferimentos
e as dores. No banho do rio, a vítima é amarrada pela cintura,
empurrada para um poço ou pequena piscina cimentada, com fundo
limoso, onde vários homens se divertem com risadas e comentários
“espirituosos” impondo-lhes sucessivos afogamentos, até o
presumido limite de resistência. (...) Após permanecer onde se
encontrava por tempo que, na ocasião, nas condições de
isolamentos e de falta de informações usuais, não pode
precisar, é informado que ia ser transferido para outro local, o
que foi feito, vendado e algemado, em viagem de cerca de uma
hora. Chegado ao novo local, puseram-no em um quarto de cimento,
iluminado à luz elétrica, sem ventilação direta, uma vez que
o pequeno basculante existente no alto da parede dos fundos, de
cerca de 30/30 cm, estava constantemente fechado. (...) No
entanto, para que sua condição de prisioneiro não fosse esquecida,
“grilhões” prendiam permanentemente uma de suas pernas à
cama onde se encontrava e, em um dos ângulos do quarto, existiam
dois blocos cúbicos de cimento com argolas, (...) A partir das
novas condições, foi-lhe possível reestruturar-se em relação
a espaço e tempo. Deduziu, então, que o local onde estivera era
de natureza rural, situado em meio à mata, onde se ouviam pássaros
e, ocasionalmente, ruído de chuva ou vento em árvores, e cuja única
referência com cidade era a periódica chegada de carros, quase
sempre seguida dos gritos dos torturados. No local atual, lhe era
evidente estar em zona de subúrbio, ouvindo, com regularidade,
passagem de carros, inclusive ônibus. (...) Quanto às características
dos imóveis, o anterior, rural, supõe ser sítio ou fazenda de
bom nível de construção e tratamento, com ajardinado e instalação
de lazer (piscina ou poço), amplo e com mais de um bloco de
construção. Já o imóvel da nova estadia era evidentemente
urbano (suburbano em relação a 5. Paulo, possivelmente), de
tamanho médio, comprido, de laje, de acabamento tosco, com
corredor de ladrilhos e vários quartos ao longo do corredor.
Dispunha de geladeira, chuveiro elétrico no banheiro e lhe
pareceu ser o único prisioneiro na oportunidade (... ).
Posteriormente,
a imprensa descobriu que aquela propriedade rural era um pequeno sítio
no bairro de Embura, em Parelheiros, na região da Grande São
Paulo, em cuja entrada havia uma indicação: “Fazenda 31 de
Março”.
|