UTOPIA
"de
optimo statu reipublicae deque nova insula Utopia"
Thomas
Morus
ÍNDICE
THOMAS
MORUS: o autor e a obra.
LIVRO
PRIMEIRO.
LIVRO
SEGUNDO.
Das
cidades da Utopia e particularmente da cidade
de Amaurota.
Dos
magistrados.
Das
artes e ofícios.
Das
relações mútuas entre os cidadãos.
Das
viagens dos utopianos.
Dos
escravos.
Da
guerra.
Das
religiões da Utopia.
Notas.
THOMAS
MORUS: o autor e a obra
Thomas
Morus, forma alatinada por que é literariamente
conhecido Thomas Moore, Grande Chanceler da Inglaterra,
nasceu em Londres em 1478 e foi aí decapitado
em 1535. Filho de um dos juizes do banco dos reis,
foi aos quinze anos colocado como pagem do Cardeal
Morton, Arcebispo de Cantuária. Em 1497 foi terminar
seus estudos em Oxford, onde conheceu Erasmo.
Fez durante três anos o curso de Legislação, ao
mesmo tempo que se preparava para exercer a advocacia.
Pouco depois da
ascensão de Henrique VII, foi referendário e membro
do Conselho Privado (1514). Acompanhou o rei da
Inglaterra ao campo de Drap d'or em 1520. Após
a queda do cardeal Wolsey foi nomeado Grande Chanceler
(1529).
Quando Henrique
VIII abjurou o catolicismo, Morus, então ligado
à Igreja Romana, pediu demissão do cargo (1532),
descontentando com esse gesto o Rei. No ano seguinte
ofendeu mortalmente Ana Bolena, recusando-se a
assistir à sua coroação e a prestar fidelidade
a seus descendentes. Foi condenado à prisão perpétua
e ao confisco de todos os seus bens. Pouco tempo
depois foi condenado à morte por crime de alta
traição e decapitado em Londres em 1535.
A "Utopia", sua
obra mais divulgada, e que lhe deu renome universal,
foi editada em Basiléia (Suíça) por Erasmo a quem
Morus estava ligado por fortes laços de amizade
e a quem revelava, em sua correspondência particular,
a repugnância que sentia pela vida parasitária
e faustosa da corte: "Não podes avaliar", escrevia-lhe,
"com que aversão me encontro envolvido nesses
negócios de príncipes; não há nada mais odioso
que esta embaixada"... Referia-se à embaixada
diplomática enviada pelo Rei da Inglaterra a Flandres
afim de resolver um dissídio surgido entre este
pais e o príncipe Carlos de Castela.
A "Utopia" representa
a primeira crítica fundamentada do regime burguês
e encerra uma análise profunda das particularidades
inerentes ao feudalismo em decadência. A forma
é muito simples; é uma conversação íntima durante
a qual Morus aborda ex-abrupto as questões mais
novas e mais difíceis. Sua palavra, às vezes satírica
e jovial, outras, de uma sensibilidade comovedora,
é sempre cheia de força.
A primeira parte
é o espelho fiel das injustiças e misérias da
sociedade feudal; é, em particular, o martirológio
do povo inglês sob o reinado de Henrique VII.
Entretanto, o povo inglês não era vítima unicamente
da avareza do rei; outras causas de opressão e
sofrimento o atormentavam. A nobreza e o clero
possuíam a maior parte do solo e das riquezas
públicas; estes bens permaneciam estéreis para
a grande massa de trabalhadores. Além disso, nessa
época, os grandes senhores mantinham uma multidão
de vassalos, seja por amor ao fausto, seja para
assegurar a impunidade de seus crimes ou ainda
para utilizá-los como instrumentos de violência
contra os vilões. Esta vassalagem era o terror
do camponês e do trabalhador.
De outro lado, o
comércio e a indústria da Inglaterra não tinham
muita expansão antes das descobertas de Vasco
da Gama e Colombo. E assim, as gerações se sucediam
sem finalidade, sem trabalho e sem pão. A agricultura
estava em ruínas desde que a nascente indústria
da lã, prometendo lucros espantosos, fez com que
terras imensas fossem transformadas em pastagens
para carneiros. Em conseqüência disto uma multidão
de camponeses viu-se reduzida à miséria, trazendo
uma multiplicação de mendicidade, vagabundagem,
roubos e assassínios. Por sua vez a lei inglesa
era de uma severidade inaudita, punindo com a
morte, indistintamente, o ladrão, o vagabundo
e o assassino.
Com semelhante panorama
social diante dos olhos, compreende-se a dureza
e amargura das críticas de Morus contra uma sociedade
tão profundamente desorganizada e injusta.
Thomas Morus, depois
de ter na "Utopia" feito uma sátira a todas as
instituições da época, edifica uma sociedade imaginária,
ideal, sem propriedade privada, com absoluta comunidade
de bens e do solo, sem antagonismos entre a cidade
e o campo, sem trabalho assalariado, sem gastos
supérfluos e luxos excessivos, com o Estado como
órgão administrador da produção, etc.
Embora o caráter
essencialmente imaginário e quimérico da "Utopia",
a obra de Morus fica na história do socialismo
como a primeira tentativa teórica da edificação
de uma sociedade baseada na comunidade dos bens.
E o seu nome ficou para sempre incorporado ao
vocabulário universal como o significado do todo
sonho generoso de renovação social...
A UTOPIA
DISCURSO
DO
MUITO EXCELENTE HOMEM
RAFAEL
HITLODEU
SOBRE
A MELHOR CONSTITUIÇÃO DE UMA REPÚBLICA
PELO
ILUSTRE
THOMAS
MORUS
VISCONDE
E CIDADÃO DE LONDRES
NOBRE
CIDADE DA INGLATERRA
LIVRO PRIMEIRO
O
invencível rei da Inglaterra, Henrique, oitavo
do nome, príncipe de um gênio raro e superior,
teve, não faz muito tempo, uma querela de certa
importância com o sereníssimo Carlos, príncipe
de Castela. Eu fui, então, enviado às Flandres,
como parlamentar, com a missão de tratar e resolver
essa questão.
Tinha
por companheiro e colega, o incomparável Cuthbert
Tunstall, a quem o rei confiara a chancela do
arcebispado de Cantuária, com os aplausos de todos.
Nada direi, aqui, em seu louvor. Não por temer
que se acuse a minha amizade de adulação; porém,
a sua doutrina e as suas virtudes estão acima
dos meus elogios, e sua reputação é tão brilhante
que celebrar o seu mérito seria, como diz o provérbio,
chover no molhado.
Encontramos em Bruges,
lugar fixado para a conferência, os delegados
do príncipe Carlos, todos personagens distintíssimos.
O governador de Bruges era o chefe e o cabeça
dessa deputação, e Jorge de Tomásia, preboste
de Mont-Cassel, era a boca e o coração. Este homem,
que deve sua eloqüência, menos ainda à arte que
à natureza, passava por um dos mais sábios jurisconsultos
em questões de Estado; e sua capacidade pessoal;
aliada a longa prática dos negócios, fazia dele
um habilíssimo diplomata.
A
conferência já realizara duas sessões e não pudera
ainda concordar sobre muitos artigos. Os enviados
de Espanha despediram-se, então de nós, para ir
a Bruxelas consultar o príncipe. Aproveitei esse
lazer e rendí-me a Antuérpia.
Durante
a minha estada nesta cidade conheci muita gente;
mas nenhuma relação me foi mais agradável que
a de Pedro Gil, antuerpiense de uma grande integridade.
Este moço, que desfruta de honrosa posição entre
os seus concidadãos, merece, realmente, uma das
mais elevadas, já pelos seus conhecimentos, já
por sua moralidade, pois, a erudição que possui
iguala à qualidade do caráter. Sua alma está aberta
a todos; mas nutre por seus amigos tanta benevolência,
amor, fidelidade e devotamento que poder-se-ia
qualificá-lo, muito justamente, como o perfeito
modelo da amizade. Modesto e sem fingimentos,
simples e prudente, sabe falar com espírito, e
seu gracejo não é nunca uma injúria. Em suma,
a intimidade que se estabeleceu entre nós foi
tão cheia de prazer e encanto, que suavizou em
mim a saudade da pátria, do lar, de minha mulher,
de meus filhos, e acalmou as inquietações de uma
ausência de mais de quatro meses.
Um dia, estava eu
na Notre-Dame, igreja da grande devoção do povo,
e uma das obras primas mais belas da arquitetura;
depois de ter assistido ao ofício divino, dispunha-me
a voltar para o hotel, quando, de repente, dou
de cara com Pedro Gil, que conversava com um estrangeiro
já idoso. A tez trigueira do desconhecido, sua
longa barba, a capa, quase a cair-lhe, negligentemente,
sua aparência e aspecto revelavam um patrão de
navio.
Logo que Pedro deu
comigo, aproximou-se, e, saudando-me, afastou-se
um pouco de seu interlocutor que iniciava uma
resposta, e, a propósito deste, me disse:
Vede
este homem, pois bem, ia levá-lo diretamente à
vossa casa.
- Meu amigo, respondi-lhe,
por vossa causa, ele seria benvindo.
- É mesmo por causa
dele, replicou Pedro, se o conhecêsseis. Não há
sobre a terra outro ser vivo que possa vos dar
detalhes tão completos e tão interessantes sobre
os homens e os países desconhecidos. Ora, eu sei
que sois excessivamente curioso por essa espécie
de notícias.
- Não tinha adivinhado
muito mal, disse eu, então, pois que, logo à primeira
vista, tomei o desconhecido por um patrão de navio.
- Enganai-vos estranhamente;
ele navegou, é certo; mas não como Palinuro. Navegou
como Ulisses, e até mesmo como Platão. Escutai
sua história:
Rafael
Hitiodeu (o primeiro destes nomes é o de sua família)
conhece bastante bem o latim e domina o grego
com perfeição. O estudo da filosofia ao qual se
devotou exclusivamente, fe-lo cultivar a língua
de Atenas de preferência à de Roma. E, por isso,
sobre assuntos de alguma importância, só vos citará
passagens de Sêneca e de Cícero. Portugal é o
seu país. Jovem ainda, abandonou seu cabedal aos
irmãos; e, devorado pela paixão de correr mundo,
amarrou-se à pessoa e à fortuna de Américo Vespúcio.
Não deixou por um só instante este grande navegador,
durante as três das quatro últimas viagens, cuja
narrativa se lê hoje em todo o mundo. Porém, não
voltou para a Europa com ele. Américo, cedendo
aos seus insistentes pedidos, lhe concedeu fazer
parte dos VINTE E QUATRO ficaram nos confins da
NOVA-CASTELA. Foi, então, conforme seu desejo,
largado nessa margem; pois, o nosso homem não
teme a morte em terra estrangeira; pouco se lhe
dá a honra de apodrecer numa sepultura; e gosta
de repetir este apotegma: O CADÁVER SEM SEPULTURA
TEM O CÉU POR MORTALHA; HÁ POR TODA A PARTE CAMINHO
PARA CHEGAR A DEUS. Este caráter aventureiro podia
ter-lhe sido fatal, se a Providência divina não
o tivesse protegido. Como quer que fosse, depois
da partida de Vespúcio ele percorreu, com cinco
castelhanos, uma multidão de países, desembarcou
em Taprobana, como por milagre, e. daí chegou
em Calicut, onde encontrou navios portugueses
que o reconduziram ao seu país, contra todas as
expectativas.
Assim
que Pedro acabou essa narrativa, agradeci-lhe
o empenho e solicitude em me fazer desfrutar conversação
com homem tão extraordinário; depois, abordei
Rafael, e, após as saudações e cortesias habituais
num primeiro encontro, levei-o à minha casa com
Pedro Gil. Aí, sentados no jardim, sobre um banco
de relva, a conversa começou.
Rafael
me contou como, após a partida de Vespúcio, ele
e seus companheiros, com afabilidade e bons serviços,
grangearam a amizade dos indígenas, e como viveram
com eles em paz e na melhor harmonia. Houve mesmo
um príncipe, cujo pais e nome me escapam, que
lhes deu proteção a mais afetuosa. Sua generosidade
os proveu de barcos, carros e tudo mais de que
necessitavam para continuar a viagem, Um guia
fiel teve ordem de acompanhá-los e apresentá-los
aos príncipes com excelentes recomendações.
Depois
de vários dias de marcha descobriram burgos e
cidades bem administradas, nações inúmeras e Estados
poderosos.
No Equador, acrescentava
Hitiodeu, de uma parte e de outra, no espaço compreendido
pela órbita do sol, não viram senão vastas solidões
eternamente devoradas por um céu de fogo. Ai,
tudo os aturdia de horror e espanto. A terra inculta
tinha apenas como habitantes os animais mais ferozes,
os reptis mais terríveis, ou homens mais selvagens
que os animais. Afastando-se do Equador, a natureza
se abrandava pouco a pouco; o calor é menos abrasador,
a terra se cobre de uma ridente verdura e os animais
são menos selvagens. Mais longe ainda, aparecem
povos, cidades, povoações, em que se faz um comércio
ativo por terra e por mar, não somente no interior
e com as fronteiras, mas entre nações muito distantes.
Estas
descobertas inflamavam o ardor de Rafael e de
seus companheiros. E o que alimentava essa paixão
pelas viagens era o fato de serem admitidos sem
dificuldade no primeiro navio a partir, qualquer
que fosse o seu destino.
As
primeiras embarcações que viram eram chatas, as
velas formadas de vimes entrelaçados ou de fo1has
de papiros, e algumas de couro. Em seguida, encontraram
embarcações terminadas em ponta, as velas feitas
de cánamo; e finalmente embarcações inteiramente
semelhantes às nossas, e hábeis nautas conhecendo
muito bem o céu e o mar, mas sem nenhuma idéia
da bússola.
Esses
bons homens ficaram pasmados de admiração e cheios
do mais vivo reconhecimento, quando nossos castelhanos
lhes mostraram uma agulha imantada. Antes, era
tremendo que se aventuravam ao mar, e, ainda assim,
atreviam-se a navegar apenas no verão. Hoje, bússola
em mão, arrostam os ventos e o inverno mais confiados
do que seguros; pois, se não tomam cuidado, essa
bela invenção que parecia dever trazer-lhes tantos
benefícios, poderá transformar-se, por sua imprudência,
em uma fonte de males.
Seria
muito extenso se elatasse, aqui, tudo o que Rafael
viu em suas viagens. Aliás, não é essa a finalidade
desta obra. Completarei talvez a sua narrativa
num outro livro em que darei detalhes, principalmente,
dos hábitos, costumes e sábias instituições dos
povos civilizados, que freqüentou Rafael.
Sobre
essas graves questões nós o importunamos com perguntas
intermináveis, e ele consentia, prazeirosamente,
em satisfazer a nossa curiosidade. Nós nada lhe
perguntamos sobre esses monstros famosos que já
perderam o mérito da novidade: Cila (1),
Celenos, Lestrigões, comedores de gente, e outras
hárpias da mesma espécie que existem em quase
toda parte. O que é raro, é uma sociedade sã e
sabiamente organizada.
Para dizer verdade,
Rafael notou entre esses novos povos instituições
tão ruins quanto as nossas, mas, observou também
um grande número de leis capazes de esclarecer,
de regenerar as cidades, nações e reinos da velha
Europa.
Todas
essas coisas, repito-o, serão objeto de uma outra
obra. Nesta, relatarei apenas o que Rafael nos
contou dos costumes e instituições do povo utopiano.
Antes, quero mostrar ao leitor de que maneira
a conversa foi levada para este terreno:
Rafael
entremeava a sua narrativa com as reflexões mais
profundas. Examinando cada forma de governo, analisava,
com uma sagacidade maravilhosa, o que há de bom
e verdadeiro numa, de mau e de falso noutra. Ao
ouvi-lo discorrer tão sabiamente sobre as instituições
e os costumes dos diferentes povos, era de pensar-se
que vivera toda a vida nos lugares por onde apenas
passara. Pedro não pode conter a sua admiração.
Na verdade, disse,
meu caro Rafael, espanto-me que não vos tivésseis
posto a serviço de algum rei. Certamente não haveria
um só que não encontrasse em vós utilidade e satisfação.
Encheríeis de encanto os seus lazeres com o vosso
conhecimento universal das coisas e dos homens,
e os incontáveis exemplos, que poderíeis citar,
proporcionar-lhe-iam um sólido ensinamento e conselhos
preciosos. Faríeis, ao mesmo tempo, uma brilhante
fortuna para vós e os vossos.
-
Eu pouco me inquieto com a sorte dos meus, retomou
Hitiodeu. Creio ter cumprido sofrivelmente os
meus deveres para com eles. Os outros homens só
abrem mão de seus bens já velhos e na agonia,
e é ainda chorando, que renunciam ao que suas
mãos desfalecentes não mais podem reter. Eu, cheio
de saúde e juventude, tudo dei aos meus parentes
e amigos.
- Eles
não se queixarão, espero, do meu egoísmo; não
exigirão que, para cumulá-los de ouro, eu me faça
escravo de um rei.
- Entendamo-nos,
disse Pedro, a minha intenção não foi a de que
servísseis um príncipe como lacaio e sim como
ministro.
-
Os príncipes, meu amigo, põem nisto pouca diferença;
e, entre estas duas palavras latinas servire e
inservire, vêm apenas uma sílaba a mais, ou a
menos.
-
Chamai a coisa como quiserdes, respondeu Pedro;
é o melhor meio de ser útil ao público, aos indivíduos,
e de tornar mais feliz a própria situação.
- Mais feliz, dizeis!
mas, como aquilo que repugna ao meu sentimento,
ao meu caráter, poderia fazer minha felicidade?
Presentemente sou livre, vivo como quero, e duvido
que muitos dos que vestem a púrpura possam dizer
o mesmo. Muita gente ambiciona os favores do trono;
os reis não sentirão falta, se eu e dois ou três
da minha têmpera não nos encontrarmos entre os
cortesãos.
Então
falei assim:
É
evidente, Rafael, que não procurais riquezas nem
poder, e não tenho menos admiração e estima por
um homem como vós, do que por aquele que está
à frente de um império. Parece-me, entretanto,
que seria digno de um espírito tão generoso, tão
filósofo, como o vosso, aplicar todos os seus
talentos na direção dos negócios públicos, embora
houvesse que comprometer o seu bem estar pessoal;
ora, a maneira de o fazer com mais proveito, é
ainda a de entrar para o conselho de algum grande
príncipe; estou certo de que a vossa boca não
se abrirá jamais, senão para a virtude e para
a verdade. Vós o sabeis, o príncipe é a fonte
de onde o bem e o mal jorram, como uma torrente,
sobre o povo; e possuís tanta ciência e tantos
talentos que, embora não tivésseis o hábito dos
negócios, daríeis, mesmo assim, um excelente ministro
para o rei mais ignorante.
-
Incidis num duplo erro, caro Morus, replicou Rafael;
e não só quanto ao fato em si como quanto à pessoa;
estou longe de ter a capacidade que me atribuis;
e mesmo que a tivesse cem vezes maior, o sacrifício
de meu sossego seria inútil à causa pública.
Em
primeiro lugar, os príncipes cuidam somente da
guerra (arte que me é desconhecida e que não tenho
nenhum desejo de conhecer). Eles desprezam as
artes benfazejas da paz. Trate-se de conquistar
novos reinados, e todos os meios lhes parecem
bons; o sagrado e o profano, o crime e o sangue,
não os detêm. Em compensação, ocupam-se muito
pouco de bem administrar os Estados submetidos
à sua dominação.
Quanto
aos conselhos dos reis, eis aproximadamente a
sua composição:
Uns se calam por
inépcia, e teriam mesmo grande necessidade de
ser aconselhados. Outros, são capazes, e sabem
que o são; mas partilham sempre do parecer do
preopinante, que está em melhores graças, e aplaudem,
com entusiasmo, as pobres imbecilidades que este
entende desembuchar; esses vis parasitas só têm
uma finalidade: ganhar, por uma baixa e criminosa
lisonja, a proteção do primeiro favorito. Os outros,
são escravos de seu amor próprio e escutam apenas
a própria opinião, o que não é de admirar, pois
a natureza insufla cada um a afagar com amor os
produtos de sua invenção. É assim que o corvo
sorri à sua ninhada, e o macaco aos seus filhotes.
Que
sucede então no seio desses conselhos onde reinam
a inveja, a vaidade e o interesse? Intenta, alguém,
apoiar uma opinião razoável na história dos tempos
passados, ou nos costumes dos outros países? Os
outros se mostram surpresos e transtornados; e
com o amor próprio alarmado como se fossem perder
a reputação de sábios e passar por imbecis. Eles
quebram a cabeça até encontrar um argumento contraditório,
e, se a memória e a lógica lhes minguam, entrincheiram-se
neste lugar comum: Nossos pais assim pensaram
e assim fizeram; ah! queira Deus que igualemos
a sabedoria de nossos pais! Depois se assentam,
pavoneando-se, como se acabassem de pronunciar
um oráculo. Dir-se-ia, ao ouvi-los, que a sociedade
vai perecer se surgir um homem mais sábio que
os seus antepassados. Enquanto isso, permaneçamos
indiferentes, deixando subsistir as boas instituições
que eles nos legaram; e quando surge um melhoramento
novo agarramo-nos à antigüidade para não acompanhar
o progresso. Vi, em quase toda a parte, desses
julgadores rabugentos, insensatos ou presunçosos.
Aconteceu-me uma vez na Inglaterra. -.
-
Perdão, disse eu, então, a Rafael, estivestes
também na Inglaterra?
- Sim, estive lá
alguns meses, pouco depois da guerra civil dos
ingleses ocidentais contra o rei que terminou
com uma horrorosa matança dos insurretos - Nessa
ocasião, recebi enormes obséquios do reverendíssimo
padre João Morton, cardeal-arcebispo de Cantuária
e chanceler da Inglaterra.
Era um homem (dirijo-me
unicamente a vós, meu caro Pedro, porque Morus
não necessita dessas informações), era um homem
ainda mais venerável por seu caráter e virtude
do que por suas altas dignidades. Sua estatura
mediana não se curvava ao peso da idade; sua fisionomia,
sem ser dura, impunha respeito; era de trato fácil,
mas severo e majestoso. Sentia prazer em experimentar
os solicitantes com apóstrofes por vezes um tanto
rudes, embora nunca ofensivas, mostrando-se encantado
se percebia neles presença de espírito e respostas
prontas, mas sem impertinência. Esta prova o ajudava
a inferir do mérito de cada qual e a classificá-lo,-
segundo a especialidade. Sua linguagem era pura
e enérgica; sua ciência do direito profunda, seu
julgamento seleto, sua memória prodigiosa. Essas
brilhantes disposições naturais, ele as tinha
ainda desenvolvido pelo exercício e pelo estudo.
O rei fazia grande caso de seus conselhos e o
considerava como um dos mais firmes esteios do
Estado - Levado muito jovem do colégio para a
corte, envolvido toda a vida nos acontecimentos
mais graves, tangido, sem descanso, pelo mar tempestuoso
do destino, adquirira, em meio de perigos sempre
renovados, uma consumada prudência, um conhecimento
tão profundo das coisas que, por assim dizer,
com ele próprio se identificava.
O
acaso me fez encontrar um dia, à mesa desse prelado,
um leigo reputado como douto legista - Este homem,
não sei a que propósito, se pôs a cumular de louvores
a rigorosa justiça exercida contra os ladrões.
Narrava gostosamente como eles eram enforcados,
aqui e ali, às vintenas, na mesma forca.
Apesar disso, acrescentava,
vejam que fatalidade! Mal escapam da forca dois
ou três desses bandidos, e, no entanto, na Inglaterra,
eles formigam por toda parte !
Com a liberdade
de palavra que gozava na casa do cardeal, disse
eu, então:
Nada disso devia
surpreender-vos. Neste caso a morte é uma pena
injusta e inútil; é bastante cruel para punir
o roubo, mas bastante fraca para impedi-lo. O
simples roubo não merece a forca, e o mais horrível
suplício não impedirá de roubar o que não dispõe
de outro meio para não morrer de fome. Nisto,
a justiça de Inglaterra e de muitos outros países
se assemelha aos mestres que espancam os alunos
em lugar de instruí-los. Fazeis sofrer aos ladrões
pavorosos tormentos; não seria melhor garantir
a existência a todos os membros da sociedade,
a fim de que ninguém se visse na necessidade de
roubar, primeiro, e de morrer, depois?
- A sociedade previu
o fenômeno, replicou o meu legista; a indústria,
a agricultura oferecem ao povo inúmeros meios
de existência; existem, porém, seres que preferem
o crime ao trabalho.
-
Era aí mesmo onde eu vos esperava, respondi. Não
falarei dos que voltam das guerras civis ou estrangeiras
com o corpo mutilado. Quantos soldados, entretanto,
na batalha de Cornualha, ou na campanha de França,
perderam um ou vários membros a serviço do rei
e da pátria! Esses infelizes tornaram-se fracos
demais para exercer o seu antigo ofício e velhos
demais para aprender um novo. Mas deixemos isso,
as guerras só se reacendem a longos intervalos.
Olhemos o que se passa cada dia ao redor de nós.
A principal causa da miséria pública reside no
número excessivo de nobres, zangões ociosos, que
se nutrem do suor e do trabalho de outrem e que,
para aumentar seus rendimentos, mandam cultivar
suas terras, escorchando os rendeiros até à carne
viva. Não conhecem outra economia. Mas, tratando-se,
ao contrário, de comprar um prazer, são pródigos,
então, até à loucura e à mendicidade. E não menos
funesto é o fato de arrastarem consigo uma turba
de lacaios e mandriões sem estado e incapazes
de ganhar a vida.
Caiam doentes esses
lacaios, ou venha o seu patrão a morrer, e são
jogados no olho da rua; porque é preferível nutri-los
para não fazer nada, do que alimentá-los enfermos;
muitas vezes o herdeiro do defunto não está em
condições de manter a domesticidade paterna.
Eis aí pessoas expostas
a morrer de fome se não têm o ânimo de roubar.
Terão eles,, na realidade, outras possibilidades?
Procurando emprego gastam a saúde e as roupas;
e quando se tornam descorados pelas moléstias
e cobertos de farrapos, os nobres lhes têm horror,
desprezando os seus serviços. Os camponeses mesmo
não os querem empregar. Os camponeses sabem que
um homem criado molemente na ociosidade e nos
prazeres, habituado a trazer a cimitarra e o broquel,
a olhar superiormente os vizinhos e a desprezar
todo mundo; os, camponeses sabem que um tal homem
não é apto a manejar a pá e a enxada, a trabalhar,
fielmente, por um salário insignificante e uma
parca alimentação, a serviço de um pobre lavrador.
Sobre esse ponto meu antagonista respondeu:
- É precisamente
essa espécie de gente que o Estado deve manter
e multiplicar com mais cuidado. Há neles mais
ânimo e nobreza da alma que no artesão e no trabalhador.
São maiores e mais robustos e constituem, portanto,
a força do exército na hora de combater.
- Seria o mesmo
que dizer, repliquei então, que se deve, para
a glória e o êxito dos vossos exércitos, multiplicar
os ladrões. Porque esses mandriões são uma sementeira
inesgotável para o exército. Com efeito, os ladrões
não são os piores soldados, como os soldados não
são os ladrões mais tímidos; há muita analogia
entre esses dois ofícios. Infelizmente, esta praga
social não é particular à Inglaterra; corrói quase
todas as nações.
A França está infestada
por uma peste ainda mais desastrosa. O seu solo
está inteiramente coberto e como que sitiado por
inúmeras tropas arregimentadas e pagas pelo Estado.
E isto em tempo de paz; se é que se pode chamar
de paz as tréguas de um momento. Este deplorável
sistema é justificado pelo mesmo motivo que vos
leva a sustentar miríades de lacaios ociosos.
Pareceu a esses políticos, timoratos e aflitos,
que a segurança. do Estado exigia um exército
numeroso, forte, permanentemente em armas, e composto
de veteranos. Não confiam nos conscritos. Dir-se-ia
mesmo que fazem guerras para ensinar o exercício
ao soldado a fim de que, como escreveu Salústio,
nesse grande matadouro humano, o coração ou a
mão não se lhes entorpeçam no repouso.
A
França aprende à sua custa o perigo de alimentar
essa espécie de animais carnívoros. No entanto,
bastar-lhe-ia olhar os romanos, os cartagineses
e muitos outros povos antigos. Que benefícios
tiraram, entretanto, de seus exércitos imensos
e sempre em pé de guerra? A devastação de suas
terras, a destruição de suas cidades, a ruína
de seu império. Se, ao menos, tivesse adiantado,
aos franceses, exercitar, por assim dizer, seus
soldados desde o berço! Mas os veteranos da França
já combateram contra os conscritos da Inglaterra,
e não estou certo se se podem gabar muitas vezes
de ter levado a melhor. Eu me calo sobre esse
capítulo; pareceria estar fazendo a corte aos
que me ouvem.
Voltemos aos nossos
soldados lacaios.
Têm
eles, dizeis, mais coragem e grandeza da alma
do que os artesãos e os trabalhadores. Eu, de
mim, não creio que um lacaio faça muito medo nem
a uns nem a outros, a não ser àqueles em que a
fraqueza do corpo paralisa o vigor da alma e cuja
energia foi aniquilada pela miséria. Os lacaios,
dizeis ainda, são maiores e mais robustos. Mas
não é uma lástima ver homens fortes e belos (porque
os nobres escolhem as vítimas de sua corrupção)
consumirem-se na inação, amolecerem-se em ocupações
de mulheres, quando fácil seria torná-los laboriosos
e úteis, dando-lhes um ofício honrado e habituando-os
a viver do trabalho de suas mãos.
De qualquer maneira
que se encare a questão, esta massa imensa de
gente ociosa parece-me inútil ao país, mesmo na
hipótese de uma guerra, que poderíeis, aliás,
evitar todas as vezes que o quisésseis. Ela é,
além do mais, o flagelo da paz; e a paz merece
que se trate dela, tanto quanto da guerra.
A
nobreza e a lacaiada não são as únicas causas
dos assaltos e roubos que vos deixam desolado;
há uma outra exclusivamente peculiar à vossa ilha.-
E qual é ela?, disse o cardeal.
-
Os inumeráveis rebanhos de carneiros que cobrem
hoje toda a Inglaterra. Estes animais, tão dóceis
e tão sóbrios em qualquer outra parte, são entre
vós de tal sorte vorazes e ferozes que devoram
mesmo os homens e despovoam os campos, as casas
e as aldeias.
De
fato, a todos os pontos do reino, onde se recolhe
a lã mais fina e mais preciosa, acorrem, em disputa
do terreno, os nobres, os ricos e até santos abades.
Essa pobre gente não se satisfaz com as rendas,
benefícios e rendimentos de suas terras; não está
satisfeita de viver no meio da ociosidade e dos
prazeres, às expensas do público e sem proveito
para o Estado. Eles subtraem vastos tratos de
terra à agricultura e os convertem em pastagens;
abatem as casas, as aldeias, deixando apenas o
templo para servir de estábulo para os carneiros.
Transformam em desertos os lugares mais povoados
e mais cultivados. Temem, sem dúvida, que não
haja bastantes parques e bosques e que o solo
venha a faltar para os animais selvagens.
Assim
um avarento faminto enfeixa, num cercado, milhares
de geiras; enquanto que honestos cultivadores
são expulsos de suas casas, uns pela fraude, outros
pela violência, os mais felizes por uma série
de vexações e de questiúnculas que os forçam a
vender suas propriedades. E estas famílias mais
numerosas do que ricas (porque a agricultura tem
necessidade de muitos braços), emigram campos
em fora, maridos e mulheres, viúvas e órfãos,
pais e mães com seus filhinhos. Os infelizes abandonam,
chorando, o teto que os viu nascer, o solo que
os alimentou, e não encontram abrigo onde refugiar-se.
Então vendem a baixo preço o que puderam carregar
de seus trastes, mercadoria cujo valor é já bem
insignificante. Esgotados esse fracos recursos,
o que lhes resta? O roubo, e, depois, o enforcamento
segundo as regras.
Preferem arrastar
sua miséria mendigando? Não tardam ser atirados
na prisão como vagabundos e gente sem eira nem
beira. No entanto, qual é o seu crime? É o de
não achar ninguém que queira aceitar os seus serviços,
ainda que eles os ofereçam com .o mais vivo empenho.
E aliás, como empregar esses homens? Eles só sabem
trabalhar a terra; não há então nada a fazer com
eles, onde não há mais nem semeaduras nem colheitas.
Um só pastor ou vaqueiro é suficiente, agora,
a fazer com que brote, de si mesma, a terra onde,
outrora, para seu cultivo, centenas de braços
eram necessários.
Outro efeito desse
fatal sistema é uma grande carestia de vida em
diversos lugares.
Mas não é tudo.
Após a multiplicação dos pastos, uma horrorosa
epizootia veio matar uma imensa quantidade de
carneiros. Parece que Deus queria punir a avareza
insaciável dos vossos açambarcadores com esta
medonha mortandade que talvez fosse mais justo
lançar sobre suas próprias cabeças. Então, o preço
das lãs subiu tão alto que os operários mais pobres
não as podem atualmente comprar. E eis aí de novo
uma multidão de gente sem trabalho. É verdade
que o número de carneiros cresce rapidamente todos
os dias; mas nem por isso o preço baixou; porque
se o comércio das lãs não é um monopólio legal,
está, na realidade, concentrado nas mãos de alguns
ricos açambarcadores que nada pode constrangê-los
a vender a não ser com altos lucros.
As outras espécies
de gado encareceram proporcionalmente pela mesma
causa e por uma causa mais forte ainda, porque
a reprodução destes animais está completamente
abandonada, desde a abolição das granjas e a ruína
da agricultura. Vossos grandes senhores não cuidam
da criação do gado, como da criação de seus carneiros.
Vão comprar, distante, animais magros, quase por
nada, engordam-nos nos seus campos e os revendem
a preços extraordinários.
Temo bastante que
a Inglaterra não tenha sofrido todos os efeitos
desses deploráveis abusos. Até agora os engordadores
de gado só provocaram a carestia nos lugares onde
vendem; mas à força de transportar o gado do lugar
onde compram, sem lhe dar tempo de reproduzir,
o seu número acabará por diminuir, insensivelmente,
e o país acabará por cair numa horrível penúria.
Assim, o que devia fazer a riqueza de vossa ilha
fará a miséria, devido à avareza de um punhado
de miseráveis.
A escassez geral
obriga todo o mundo a restringir sua despesa e
sua criadagem. E os que são despedidos, para onde
vão? Mendigar ou roubar, se têm coragem.
A estas causas de
miséria ajuntam-se ainda o luxo e as despesas
insensatas. Lacaios, operários, camponeses, todas
as classes da sociedade, ostentam um luxo inaudito
nas vestes e na alimentação. Que direi dos lugares
de prostituição, dos vergonhosos antros de embriaguez
e devassidão, das infames casas de tavolagem de
todos os jogos, do baralho, do dado, do jogo da
péla e da conca, que devoram o dinheiro de seus
freqüentadores, e os impelem diretamente ao roubo
para reparar as perdas?
Arrancai de vossa
ilha essas pestes públicas, esses germes do crime
e da miséria. Obrigai os vossos nobres demolidores
a reconstruir as quintas e burgos que destruíram,
ou a ceder os terrenos para os que quiserem reconstruir
sobre as ruínas. Colocai um freio ao avarento
egoísmo dos ricos; tirai-lhes o direito do açambarcamento
e monopólio. Que não haja mais ociosos entre vós.
Dai à agricultura um grande desenvolvimento; criai
a manufatura da lã e a de outros ramos de indústria,
para que venha a ser ocupada utilmente esta massa
de homens que a miséria transformou em ladrões,
vagabundos ou lacaios, o que é aproximadamente
a mesma coisa.
Se não remediardes
os males que vos assinalo, não vos vanglorieis
de vossa justiça; é ela uma mentira feroz e estúpida.
Abandonais milhões
de crianças aos estragos de uma educação viciosa
e imoral. A corrupção emurchece, à vossa vista,
essas jovens plantas que poderiam florescer para
a virtude, e, vós as matais, quando, tornadas
homens, cometem os crimes que germinavam desde
o berço em suas almas. E, no entanto, que é que
fabricais? Ladrões, para ter o prazer de enforcá-los.
Enquanto eu assim
falava, o meu adversário preparava a réplica.
Ele se dispunha a seguir a pomposa dialética desses
polemistas categóricos, que repetem mais do que
respondem e que fazem ponto de honra de uma discussão
os exercícios de memória.
Falastes muito bem,
disse-me ele, sobretudo vós que sois estrangeiro
e que não podeis conhecer estas matérias senão
de outiva. Eu vos darei melhores esclarecimentos.
Eis a ordem do meu discurso: antes de tudo, recapitularei
tudo o que vos disse; em. seguida realçarei os
erros a que vos induziu a ignorância dos fatos;
finalmente, refutarei os vossos argumentos e pulverizá-los-ei.
Começo, pois, como o prometi. Tendes, se não me
engano, enumerado quatro...
- Eu vos detenho
aí, interrompeu bruscamente o cardeal, o exórdio
me faz temer que o discurso seja um pouco longo.
Nós vos pouparemos hoje desta fadiga. Mas não
vos dou. por desembaraçado dessa arenga; guardai-a
integralmente para a próxima entrevista que tiverdes
com vosso adversário. Desejo que estejam ambos
aqui, amanhã, a menos que vós, ou Rafael, estejais
na impossibilidade de vir. Enquanto isso, meu
caro Rafael, far-me-íeis o obséquio de explicar
por que o roubo não merece a morte, e por que
outra pena a substituireis de forma a garantir
melhor a segurança pública. Como não pensais que
se deva tolerar o roubo, e se a forca não é hoje
uma barreira para o banditismo, que terror exercereis,
sobre os celerados quando eles tiverem a certeza
de não perder a vida? Que sanção bastante forte
dareis à lei? Uma pena mais branda não seria um
prêmio de incitamento ao crime?
Minha convicção
íntima, eminência, é que é injusto matar-se um
homem por ter tirado dinheiro de outrem, desde
que a sociedade humana não pode ser organizada
de modo a garantir para cada um uma igual porção
de bens.
Podem objetar-me,
sem dúvida, que a sociedade, tirando-lhe a vida,
vinga a justiça e as leis, e não pune somente
uma miserável subtração de dinheiro. Responderei
com este axioma: Summum jus, summa injuria, O
supremo direito é uma injustiça suprema. A vontade
do legislador não é tão infalível e absoluta que
seja necessário desembainhar a espada à menor
infração aos seus decretos. A lei não é tão rígida
e estóica que coloque, no mesmo nível, todos os
delitos e crimes, e não estabeleça nenhuma diferença
entre matar um homem e roubá-lo. Se a eqüidade
não é uma palavra cã, há entre essas duas ações
um abismo.
E como! Deus proibiu
o assassínio e nós, nós matamos tão facilmente
por causa do furto de algumas moedas!
Alguém dirá, talvez:
Deus, com esse mandamento, tirou o poder de matar
ao homem privado, mas não ao magistrado que condena
aplicando as leis da sociedade.
Mas se é assim,
quem impede os homens de fazer outras leis igualmente
contrárias aos preceitos divinos, e de legalizar
o estupro, o adultério e o perjúrio.? Como!...
Deus nos proibiu tirar a vida não somente ao nosso
próximo mas também a nós mesmos; e nós poderíamos
legitimamente convencionar em degolarmo-nos em
virtude de algumas sentenças jurídicas! E esta
convenção atroz colocaria juizes e carrascos por
cima da lei divina, dando-lhes o direito de mandar
à morte os que o código penal condena a morrer!
Resultaria disso
esta conseqüência monstruosa: a justiça divina
tem necessidade de ser legalizada e autorizada
pela justiça humana; e que, em todos os casos
possíveis, cabe ao homem determinar quando deve
obedecer ou não aos mandamentos de Deus.
A própria lei de
Moisés, lei de terror e vingança, feita para escravos
e homens embrutecidos, não punia de morte o simples
roubo. Evitemos pensar que, sob a lei cristã,
lei de perdão e caridade, em que Deus ordena como
pai, nós temos o direito de ser mais desumanos,
e de derramar, sob qualquer pretexto, o sangue
de nosso irmão.
Tais são os motivos
que me persuadem que é injusto aplicar ao ladrão
o mesmo castigo que ao assassino. Poucas palavras
vos farão compreender como esta penalidade é absurda
em si mesma e como é perigosa à segurança pública.
O celerado vê que
não há menos a temer furtando do que assassinando;
então, ele mata aquele a quem apenas despojara;
e mata-o para a sua própria segurança. Assim agindo,
ele se descarta do seu principal denunciador,
e tem maior probabilidade de esconder o crime.
Eis o belo efeito desta justiça implacável: aterrorizando
o ladrão com a expectativa da forca, fez dele
um assassino!
Chego, agora, à
solução deste problema tão controvertido: Qual
é o melhor sistema penitenciário?
Na minha opinião,
era mais fácil encontrar o melhor do que o pior.
Primeiramente, todos vós conheceis a penalidade
adotada pelos romanos, povo tão adiantado na ciência
de governar. Eles condenavam os grandes criminosos
à escravatura perpétua, aos trabalhos forçados
nas pedreiras ou nas minas. Esse modo de repressão
parece-me conciliar a justiça com a utilidade
pública. Entretanto, para vos dizer o meu modo
de pensar sobre esse ponto, não conheço nada de
comparável ao que ví nos polileritas, nação dependente
da Pérsia.
É aquele um país
bastante povoado, e `às suas instituições não
falta sabedoria. Além do tributo anual que pagam
ao rei da Pérsia, gozam de liberdade e se governam
por suas próprias leis. Longe do mar, cercados
de montanhas, se satisfazem com os produtos do
seu solo feliz e fértil; vão raramente a outros
lugares e raramente outros vêm ao seu país. Fiéis
aos princípios e costumes dos seus antepassados,
não procuram nunca estender as suas fronteiras,
e nada têm a temer de fora. Suas montanhas, e
o tributo que pagam, anualmente, ao monarca, põem-nos
ao abrigo de uma invasão. Vivem comodamente na
paz e na abundância, sem exército e sem nobreza,
ocupados com sua felicidade e despreocupados de
qualquer vã celebridade; pois, seu nome, desconhecido
no resto da terra, talvez o seja mesmo aos seus
vizinhos.
Quando ali um indivíduo
é apanhado em furto, obrigam-no, primeiro, a restituir
o objeto roubado ao proprietário e não ao príncipe,
como é de uso em outras partes. Os polileritas
julgam que o furto não destrói o direito de propriedade.
Se o objeto foi danificado ou perdido, o valor
dele é descontado dos bens do autor do furto,
deixando-se o que sobrar do desconto à sua mulher
e filhos. Ele é condenado aos trabalhos públicos;
e se o furto não é acompanhado de circunstâncias
agravantes, o seu autor não é jogado no calabouço
nem posto a ferros; trabalha, o corpo livre, e
sem entraves.
Para forçar os preguiçosos
e os rebeldes, empregam-se os castigos corporais
de preferência às correntes. Os que cumprem bem
o seu dever não sofrem nenhum mau trato. De tarde
se faz a chamada nominal dos condenados, encerrando-os
nas celas onde passam a noite. Aliás, a única
pena que podem vir a sofrer é a continuidade do
trabalho; porque lhes são fornecidas todas as
coisas necessárias à vida; uma vez que trabalham
para a sociedade, é a sociedade que os mantém.
Os costumes, nesse
ponto, variam segundo as localidades. Em certas
províncias, o produto das esmolas e das coletas
é reservado aos condenados; este recurso, precário
por si mesmo, é, na rea1idade, o mais fecundo
devido à humanidade dos habitantes. Em outros
países destina-se, para este fim, uma parte das
rendas públicas, ou então um tributo particular
e pessoal.
Há mesmo regiões
em que os condenados não são empregados nos trabalhos
públicos. Todo indivíduo que tem necessidade de
operários, ou de carregadores, vem alugá-los por
dia, pagando-lhes salário pouco menor que o de
um homem livre. A lei dá ao patrão o direito de
bater nos preguiçosos. Dessa forma, os condenados
não faltam nunca ao trabalho; ganham roupas e
alimentação cada dia contribuem com alguma coisa
para o Tesouro.
Eles são reconhecíveis
facilmente pela cor de seu uniforme, igual para
todos e só a eles reservado. A cabeça não é raspada,
exceto um pouco acima das orelhas, uma das quais
é mutilada. Os amigos podem lhes dar de beber,
comer, e uma roupa. Mas um presente em dinheiro
acarreta a morte tanto do que dá como do que recebe.
Um homem livre não pode, sob nenhum pretexto,
receber dinheiro de um escravo (é assim que são
chamados os condenados). O escravo não pode tocar
em armas. Estes dois últimos crimes são punidos
de morte.
Cada província marca
seus escravos com um sinal particular e característico.
Fazê-lo desaparecer é para eles um crime capital,
assim como transpor a fronteira e falar com os
escravos de uma outra província. O simples projeto
de fugir não é menos perigoso que a própria fuga.
Por ter-se envolvido em semelhante trama o escravo
perde a vida e o homem livre, a liberdade. Ainda
mais, a lei confere recompensas ao delator; dinheiro,
se este é livre; liberdade, se escravo; impunidade,
se cúmplice, a fim de que o malfeitor não se sinta
mais seguro perseverando num mau desígnio, do
que arrependendo-se.
Eis aí as, penalidades
correspondentes ao roubo entre os polileritas.
Não é difícil divisar nelas uma grande humanidade
aliada a um grande senso utilitário. Se a lei
castiga, é para matar o crime, conservando o homem.
Trata o condenado com tanta benignidade e justiça,
que o força a se tornar honesto e a reparar, durante
o resto de sua vida, todo o mal que fez à sociedade.
Também é extremamente
raro que os condenados voltem aos seus antigos
hábitos. Os cidadãos não têm nenhum medo deles,
e é mesmo comum, entre os que empreendem qualquer
viagem, escolher seus guias entre os escravos
que são trocados de uma província a outra. Na
verdade, o que Se pode temer? A lei tira ao escravo
a possibilidade, e até o pensamento, do roubo;
suas mãos estão desarmadas; o dinheiro é para
ele um crime capital; se aprisionado, a morte
é bem próxima e a fuga impossível. Como quereis
que um homem vestido diferentemente dos outros
possa dissimular a sua fuga? E se fugisse completamente
nu? Mas mesmo assim a sua orelha meio cortada
o trairia.
É impossível igualmente
que os escravos possam urdir uma conspiração contra
o Estado. A fim de assegurar à revolta alguma
probabilidade de êxito, os cabeças teriam necessidade
de incitar e arrastar para o seu lado os escravos
de diversas províncias. Ora, isto é impraticável.
Uma conspiração não é fácil a pessoas que, sob
pena de morte, não se podem reunir, se falar,
dar ou retribuir uma saudação. Ousariam mesmo
confiar seu projeto aos camaradas que conhecem
o perigo do silêncio e a enorme vantagem da denúncia?
Por outro lado, todos alimentam a esperança de
recobrar, um dia, a liberdade, mostrando-se submissos
e resignados, dando, por seu bom comportamento,
garantias para o futuro; aliás, não há um ano
sequer em que grande número deles, transformados
em boas pessoas, não seja reabitado e emancipado.
Por que, acrescentei
então não se estabeleceria na Inglaterra uma penalidade
semelhante? Isso valeria infinitamente mais do
que esta justiça que desperta tão exaltado entusiasmo
ao meu sábio antagonista.
- Um semelhante
estado de coisas, respondeu este, não poderia
jamais se estabelecer na Inglaterra, sem acarretar
a dissolução e a ruína do império.
Depois sacudiu a
cabeça, mordeu os lábios, e calou.
Todos os ouvintes
aplaudiram com arrebatamento esta magnífica sentença,
até que o cardeal fez a seguinte reflexão:
Não somos profetas
para saber, antes de experimentar, se a legislação
polilerita convém ou não ao nosso país. Todavia,
parece-me que depois do pronunciamento da sentença
de morte, o príncipe poderia decretar o sursis,
a fim de experimentar este novo sistema de repressão,
abolindo, ao mesmo tempo, os privilégios dos lugares
de asilo. Se a experiência desse bons resultados,
adotaríamos o sistema; se não, que os condenados
continuem a ser levados ao suplício. Essa maneira
de proceder apenas suspende o curso da justiça
e não oferece nenhum perigo no intervalo. Irei
mesmo além, creio que seria muito útil tomar medidas
igualmente moderadas e sábias para reprimir e
acabar com a vagabundagem. Temos acumulado leis
sobre leis contra este flagelo e o mal é hoje
pior do que nunca.
Apenas terminara
o cardeal, os louvores mais exagerados acolheram
as opiniões expendidas por Sua Eminência, as quais
não tinham encontrado senão desprezo e desdém
quando sozinho as sustentara. O incenso das louvaminhas
envolvia particularmente as idéias do prelado
referentes à vagabundagem.
Não sei se seria
preferível suprimir o resto da conversação; coisas
bem ridículas lá foram ditas. Entretanto, vou
relatá-las; não eram de todo ruins e se relacionam
com o assunto.
Havia na mesa um
desses parasitas, cuja honra provém do ofício
de fazer o louco. A esse respeito a semelhança
era tão perfeita, que poderia ser facilmente tomada
a sério. Seus gracejos eram tão estúpidos e insípidos
que o riso era provocado mais a miúdo pela própria
pessoa do que por suas graças. Mas, de vez em
quando escapavam-lhe algumas palavras bastante
razoáveis.
Um dos convivas
observou que eu procurava remediar a sorte dos
ladrões e o cardeal a dos vagabundos; mas que
existiam ainda duas classes de infelizes às quais
a sociedade devia assegurar a existência, porque
são incapazes de trabalhar para viver: os doentes
e os velhos.
Deixai-me falar,
disse o bufão, possuo a este respeito um plano
soberbo. Para falar francamente, grande é o meu
desejo de poupar-me ao espetáculo desses miseráveis
e enclausurá-los longe de todos os olhos. eles
me fatigam com as suas lamúrias, suspiros e lamentáveis
súplicas, embora deva convir que esta lúgubre
música ainda não conseguiu arrancar-me um cêntimo;
aliás, sempre acontece comigo uma destas duas
coisas: ou quando posso dar não o quero, ou quando
quero não o posso. Também agora já se mostram
bastante avisados: quando me vêm passar se calam
para não perder tempo. Sabem que de mim há tanto
a esperar quanto de um padre.
Eis então o decreto
que sugiro:
Todos os mendigos
velhos e doentes serão distribuídos e classificados
como se segue: os homens entrarão para os conventos
dos beneditinos na qualidade de irmãos leigos;
as mulheres tornar-se-ão religiosas. Tal é o meu
bom desejo.
O cardeal sorriu
desse repente, aprovou-o como um rasgo de espírito,
enquanto os demais ouvintes o tomaram como uma
sentença séria e grave. Causou particular bom
humor a um irmão teólogo que ali se achava. Este
reverendo, desfranzindo um pouco a carrancuda
fisionomia, riu-se maliciosamente, à custa dos
padres e frades, e depois, dirigindo-se ao bufo,
falou:
Não tereis suprimido
a mendicidade, se não provirdes à subsistência
de nós mesmos, frades mendicantes.
- Sua eminência,
o cardeal, proveu perfeitamente, quando disse
que se devia encerrar os vagabundos e faze-los
trabalhar. Ora, os freis mendicantes são os maiores
vagabundos do mundo.
A vivacidade da
resposta, todos os olhos se fixaram sobre o cardeal,
que, no entanto, não pareceu se formalizar; o
epigrama foi então ruidosamente aplaudido. Quanto
ao frei reverendo, ficou petrificado. O dardo
satírico que acabava de lhe ser lançado ao rosto,
acendeu subitamente a sua cólera; e, vermelho
como fogo, desatou numa torrente de injúrias,
tratando o engraçado de velhaco, caluniador, tagarela,
ameaçando-o de danação, tudo temperado com as
ameaças mais aterradoras da Santa Escritura.
Então o nosso bufão
gracejou com seriedade, e, levando a melhor, replicou:
Não nos zanguemos,
caríssimo irmão. Está escrito:
Com paciência dominareis
as vossas almas.
O teólogo recomeçou,
no mesmo instante, e foram estas as suas expressões:
Não me agasto, pícaro;
ou pelo menos não peco; porque o salmista diz:
-- Encolerizai-vos mas não pequeis.
O cardeal, numa
admoestação cheia de doçura, convida, então, o
frade a moderar os seus transportes.
Não, monsenhor,
exclamou, não, não posso Calar-me, não o devo.
É um zelo divino que me exalta, e os homens de
Deus tiveram destas santas cóleras. Está escrito:
O ZELO DE TUA CASA ME CONSOME. Não se ouve cantar
nas igrejas: AQUELES QUE ZOMBAVAM DE ELISEU ENQUANTO
ELE SUBIA PARA A CASA DE DEUS SOFRERAM A CÓLERA
DO CALVO? A mesma punição castigará talvez esse
gracejador, esse bufão, esse devasso.
- Sem dúvida, disse
o cardeal, a vossa intenção é boa. Mas. me parece
que procederíeis mais sabiamente, senão mais santamente,
evitando comprometer-vos com um louco numa querela
ridícula.
- Monsenhor, meu
comportamento não poderia ser mais sábio. Salomão,
o mais sábio dos homens, disse: RESPONDEI AO LOUCO
CONFORME A SUA LOUCURA. Pois bem, é isso o que
faço. Mostro-lhe o abismo onde vai se precipitar,
se não se cuida. Aqueles que riam de Eliseu eram
em grande número, e foram todos punidos por terem
zombado de um único calvo. Qual será, pois, o
castigo do único homem que ridiculariza um tão
grande número de frades, entre os quais há tantos
calvos? Mas o que deve, sobretudo, fazê-lo tremer
é que temos uma. bula do papa que excomunga aqueles
que escarnecem de nós.
O cardeal, vendo
que o caso não acabava, despediu, com um aceno,
o bufão parasita, e mudou prudentemente o curso
da conversação. Logo depois levantou-se da mesa
para dar audiência a seus vassalos, e despediu
todos os convivas.
Caro Morus, fatiguei-vos
com a narrativa de uma história bastante longa.
Estaria verdadeiramente envergonhado de tê-la
prolongado tanto se não fosse por ter cedido às
vossas instâncias, e se a atenção que prestastes
aos detalhes não me tivesse obrigado a não omitir
nenhum. Poderia ter abreviado, mas quis esclarecer-vos
sobre o espírito e o caráter dos convivas. Enquanto,
sozinho, desenvolvi minhas idéias, foi com o desprezo
geral que foram acolhidas as minhas palavras;
mas assim que o cardeal me trouxe o seu beneplácito
o elogio substituiu o desprezo. Suas cortesanices
iam ao ponto de achar judiciosas e sublimes as
bufonerias de um bobo, que o cardeal tolerava
como uma brincadeira frívola.
Julgai ainda que
as pessoas da corte levariam em grande consideração
minha pessoa e meus conselhos?.
Respondi a Rafael:
Vossa narrativa fez-me experimentar uma grande
alegria. Ela reunia o interesse e a atração a
uma profunda sabedoria. Escutando-vos, eu me acreditava
na Inglaterra; porque fui educado desde criança
no palácio desse bom cardeal, e sua lembrança
me reconduz aos primeiros anos da vida. Já vos
tinha dado a minha amizade, mas todo o bem que
dissestes à memória do piedoso arcebispo, torna-vos
ainda mais caro ao meu coração. De resto, persisto
na mesma opinião a vosso respeito, estando persuadido
de que vossos conselhos seriam de uma alta utilidade
pública, se quisésseis vencer o horror que vos
inspiram os reis e as cortes. E não é um dever
para vós, como para todo bom cidadão, sacrificar
ao interesse geral as suas ojerizas particulares?
Platão disse: A humanidade. será feliz um dia,
quando os filósofos forem reis, ou quando os reis
forem filósofos. Ai! Como está longe de nós esta
felicidade quando os filósofos nem ao menos se
dignam assistir os reis com seus conselhos!
Caluniais os sábios,
replicou-me Rafael; eles não são bastante egoístas
para esconder a verdade; muitos a têm revelado
em seus escritos; e se os senhores do mundo estivessem
preparados para receber a luz, poderiam ver e
compreender. Infelizmente cega-os uma venda fatal,
a venda dos preconceitos e dos falsos princípios,
em que se formaram e dos quais foram inficionados
já na infância. Platão não ignorava isso; sabia,
como nós, que os reis nunca seguiam os conselhos
dos filósofos, se eles próprios já não o eram
também. Platão teve disso a triste experiência
na corte de Diniz, o Tirano. (2).
Suponhamos pois
que eu seja ministro de um rei. Proponho-lhe os
decretos mais salutares; esforço-me por arrancar
de seu coração e de seu império todos os germes
do mal. Acreditais que não me expulsará da corte
ou que não me exporá ao riso dos cortesãos?
Suponhamos, por
exemplo, que eu seja ministro do rei de França.
Eis-me sentado à mesa do Conselho, ao passo que,
no fundo do palácio, o monarca preside, em pessoa,
as deliberações dos mais judiciosos políticos
do reino. Essas nobres e poderosas cabeças estão
procurando laboriosamente por quais maquinações
e intrigas, o rei, seu senhor, conservará o ducado
de Milanês, recobrará o reino de Nápoles, sempre
a fugir, e como, em seguida, destruirá a. república
de Veneza e submeterá a Itália toda; finalmente,
como reunirá à sua coroa a Flandres, o Brabante,
a Borgonha inteira, e outras nações que sua ambição
já invadiu e conquistou há muito tempo.
Este propõe concluir
com os venezianos um tratado que durará enquanto
não houver interesse em rompê-lo. Para melhor
dissipar suas desconfianças, acrescenta o mesmo,
comunicar-lhes-emos as primeiras palavras do enigma;
podemos mesmo deixar com eles uma parte do saque;
fácil nos será retomá-la depois da execução completa
do plano.
Aquele aconselha
aliciar alemães; um terceiro, que se atraiam os
suíços com dinheiro. Um outro pensa que se deve
tornar propício o deus imperial, sacrificando-lhe
ouro em expiação; aquele julga oportuno entrar
em entendimentos com o rei de Aragão, abandonando-lhe,
como garantia de paz, o reino da Navarra, que
não lhe pertence. Outro ainda quer engodar o príncipe
de Castela com a esperança de uma aliança, e manter,
em sua corte, algumas inteligências, pagando gordas
pensões a alguns grandes personagens.
Depois, vem a questão
difícil e insolúvel, a questão da Inglaterra,
verdadeiro nó górdio político. A fim de se prevenir
contra qualquer eventualidade, tomam-se as seguintes
resoluções:
Negociar com essa
potência as condições de paz, e apertar mais estreitamente
os laços de uma união sempre vacilante; dar-lhe,
publicamente, o nome de melhor amiga da França,
e, no fundo, dela desconfiar como de seu inimigo
mais poderoso.
Manter os escoceses
permanentemente de guarda, como sentinelas avançadas,
atentas a tudo, e, ao primeiro sintoma de movimento
na Inglaterra, lançá-los imediatamente como um
exército de vanguarda.
Manter secretamente
(por causa dos tratados que se opõem a uma proteção
aberta) algum grande personagem exilado, animando-o
a fazer valer os seus direitos à coroa da Inglaterra,
e, assim, pôr em cheque o príncipe reinante de
quem se receia os desígnios...
Então, se, no meio
dessa assembléia real onde se agitam tão vastos
interesses, na presença desses profundos homens
de Estado, a concluir, unânimes, pela guerra,
se eu, homem do nada, me levantasse para transtornar
suas combinações e cálculos, e dissesse:
Deixemos a Itália
em sossego e fiquemos na França; a França já é
grande demais para ser bem administrada por um
só homem e o rei não deve cuidar em aumentá-la.
Escutai, senhores, o que aconteceu aos acorianos
numa situação semelhante, e a decisão que então
tomaram:
Esta nação, situada
em frente à ilha da Utopia, nas margens do Euronston,
fez, outrora, a guerra, porque seu rei pretendia
a sucessão de um reinado vizinho, em virtude de
antiga aliança. O reino vizinho foi subjugado,
mas cedo se reconheceu que a conservação da conquista
era mais difícil e onerosa do que a própria conquista.
A todo momento havia
revoltas internas a reprimir, ou tropas a enviar
para o país conquistado; a cada instante era-se
forçado a combater pró ou contra os novos súditos.
Em conseqüência, o exército tinha que ser mantido
de pé, e os cidadãos eram esmagados pelos impostos;
o dinheiro fugia para fora; e, para lisonjear
a vaidade de um só homem, o sangue corria em borbotões.
Os curtos instantes de paz não eram menos desastrosos
do que a guerra. A dissolução das tropas lançara
a corrupção nos costumes; o soldado voltava ao
lar com o amor da pilhagem e a audácia do assassinato,
resultado adquirido no trato da violência nos
campos de batalha.
Essas desordens,
esse desprezo geral pelas leis, provinham de que
o príncipe, ao dividir sua atenção e cuidados
entre dois reinos, não podia bem administrar nem
um nem outro. Os acorianos quiseram pôr um termo
a tantos males; reuniram-se em conselho nacional,
e, polidamente, deram ao monarca a escolher entre
os dois Estados, declarando-lhe que não podia
mais carregar duas coroas, e que era absurdo que
um grande povo. fosse governado por uma metade
de rei, quando ninguém desejava um almocreve que
estivesse ao mesmo tempo a serviço de outro patrão.
Esse bom príncipe
resolveu-se: cedeu o novo reino a um dos seus
amigos, que foi expulso dali logo depois, e contentou-se
com seu antigo domínio.
Volto à minha hipótese.
Se fosse mais longe ainda; se, dirigindo-me ao
próprio monarca, o fizesse ver que essa paixão
de guerrear, que transtorna as nações, depois
de ter esgotado as finanças e arruinado o povo,
poderia ocasionar à França as conseqüências mais
fatais; se lhe dissesse:
Senhor, aproveitai
a paz que um feliz acaso vos concede, cultivai
o reino de vossos pais, fazei nele florescer a
felicidade, a riqueza e a força; amai vossos súditos,
e que o amor deles faça a vossa alegria; vivei
como pai no meio deles e não comandai nunca como
déspota; deixai em paz os outros reinos; aquele
que vos coube por herança é suficientemente grande
para vós.
Dizei-me, caro Morus,
com que espécie de bom ou mau humor seria acolhida
semelhante arenga?
- Com péssimo mau
humor, respondi.
- E não é tudo,
continuou Rafael; passamos em revista a política
exterior dos ministros de França; a glória era
então o de que necessitava o seu senhor ; agora
é o dinheiro. Vejamos um instante os seus novos
princípios de governo e justiça.
Este, propõe elevar
o valor da moeda quando se trate de reembolsar
um empréstimo, e de fazê-lo descer muito abaixo
do par quando se trate de tornar a encher o tesouro.
Com esse duplo expediente, o príncipe poderá cobrir
suas enormes dívidas, e, sem trabalho, fazer uma
grande colheita em recursos.
Aquele, aconselha
simular uma guerra próxima. Este pretexto legitimará
um novo imposto. Depois da arrecadação do tributo
extraordinário, o príncipe fará subitamente a
paz; ordenará a celebração desse feliz acontecimento
por meio de ações de graça nos templos e de todas
as pompas das cerimônias religiosas. A. nação
ficará deslumbrada, e o reconhecimento público
elevará até aos céus as virtudes de um rei tão
humanamente avaro do sangue de seus súditos.
Um outro vem, e
exuma velhas leis carcomidas pelas traças e caídas
em desuso pelo tempo. Como todo mundo ignora sua
existência, todo mundo as transgride. Restaurando,
assim, as multas pecuniárias contidas nessas leis,
criar-se-ia uma fonte de renda lucrativa e até
honrada, pois que se agiria em nome da justiça.
Um terceiro pensa
que não seria de menos proveito lançar, sob pena
de pesadas multas, uma, multidão de novas proibições,
a maioria delas em benefício do povo. O rei, mediante
soma considerável, dispensaria aqueles cujos interesses
privados fossem comprometidos por estas proibições.
Dessa maneira o rei ver-se-ia cumulado das bênçãos
do povo e faria dupla receita, recebendo, ao mesmo
tempo, dinheiro dos contraventores e dos privilegiados.
O melhor do negócio é que quanto mais exorbitante
fosse o preço das dispensas tanto mais Sua Majestade
ganharia em estima e consideração.
Vejam, diriam, como
este bom príncipe violenta seu coração ao vender
tão caro o direito de prejudicar o povo.
Outro ainda, enfim,
aconselha ao monarca ter à disposição juizes sempre
dispostos a sustentar, em todas as ocasiões, os
direitos. da coroa. Vossa Majestade, acrescenta
ele, deveria chamá-los à corte, e persuadi-los
a discutir, perante a vossa augusta pessoa, os
próprios negócios reais. Por pior que seja uma
causa, haverá sempre um juiz para julgá-la boa,
seja pela mania da contradição, seja por amor
da novidade e do paradoxo, seja para agradar o
soberano. Então, uma discussão se trava; a multiplicidade
e o conflito de opiniões embrulham uma coisa de
si mesma muito clara, e a verdade é posta em dúvida.
Vossa Majestade aproveita o momento para resolver
a dificuldade, interpretando o direito em proveito
próprio. Os dissidentes se submetem à opinião
real por timidez ou por temor, e o julgamento
é dado, segundo as formalidades, com franqueza
e sem escrúpulo. Faltarão jamais ao juiz, que
dá uma sentença a favor do príncipe, os necessários
consideranda? Não há o texto da lei, a liberdade
de interpretação, e, acima das leis, para um juiz
religioso e fiel, a prerrogativa real?
Ouvi os axiomas
de moral política proclamados unanimemente pelos
membros do nobre conselho:
O rei que sustenta
um exército nunca tem dinheiro bastante.
O rei não poderia
fazer o mal mesmo que o quisesse.
O rei é o proprietário
universal e absoluto dos bens e pessoas de todos
os seus súditos; nada possuem senão como usufrutuários
pelas boas graças do rei.
A pobreza do povo
é o baluarte da monarquia.
A riqueza e a liberdade
conduzem à insubordinação e ao desprezo da autoridade;
o homem livre e rico suporta com impaciência um
governo injusto e despótico.
A indigência e a
miséria degradam os caracteres, embrutecem as
almas, habituam-nas ao sofrimento e à escravidão,
comprimindo-as a ponto de lhes tirar a energia
necessária para sacudir o jugo.
Se outra vez me
erguesse, e falasse assim a esses poderosos senhores:
Vossos conselhos
são infames, vergonhosos para o rei, funestos
para o povo. A honra de vosso senhor e a sua felicidade
consistem na riqueza de seus súditos mais ainda
do que na sua própria. Os homens fizeram os reis
para os homens e não para os reis; colocaram chefes
à sua frente para que pudessem viver comodamente
ao abrigo das violências e dos ultrajes; o dever
mais sagrado do príncipe é velar pela felicidade
do povo antes de velar pela sua própria; como
um pastor fiel, deve dedicar-se a seu rebanho,
e conduzi-lo às pastagens mais férteis.
Sustentar que a
miséria pública é a melhor salvaguarda da monarquia,
é sustentar um erro grosseiro e evidente; onde
se vêm mais querelas e rixas do que entre os mendigos?
Qual o homem que
mais deseja uma revolução? Não será aquele cuja
existência atual é miserável? Qual o homem que
revelará maior audácia em subverter o Estado?
Não será aquele que com isso só pode ganhar por
nada ter a perder?
Um rei que provocasse
o ódio e o desprezo dos cidadãos e cujo governo
não pudesse se manter senão pelas vexações, pela
pilhagem, pelo confisco e pela miséria universal,
deveria descer do trono e depor o poder supremo.
Empregando estes meios tirânicos, talvez pudesse
conservar o nome de rei, mas de rei não teria
mais nem o ânimo nem a majestade. A dignidade
real não consiste em reinar sobre mendigos, mas
sobre homens ricos e felizes.
Fabricius, (3) esta grande alma, estava todo penetrado
desse sublime sentimento quando respondeu: Prefiro
governar ricos do que eu mesmo ser rico. E, de
fato, nadar em delícias, saciar-se de voluptuosidades
em meio às dores e gemidos de um povo, não é manter
um reino e sim uma cadeia.
O médico que só
sabe curar as moléstias de seus clientes dando-lhes
moléstias mais graves, passa por ignaro e imbecil;
confessai, pois, - ó vós que não sabeis governar
senão arrebatando aos cidadãos a subsistência
e as comodidades da vida! - confessai que sois
indignos e incapazes de dirigir homens livres!
Ou então corrigi vossa ignorância, vosso orgulho
e vossa preguiça: é isso o que excita o ódio e
o desprezo pelo soberano. Vivei de vosso patrimônio,
segundo a justiça; medi vossas despesas na proporção
de vossas rendas; detei as torrentes do vício;
criai instituições de benemerência, que previnam
o mal e o estiolem no germe, ao em vez de inventar
suplícios contra os infelizes que uma legislação
absurda e bárbara impele ao crime e à morte
Não ressusciteis
leis carunchosas caídas no olvido e no esquecimento,
lançando sobre os vossos súditos toda a sorte
de obstáculos. Não eleveis o preço de um delito
a uma taxa que o juiz condenaria, como injusta
e vergonhosa, entre simples particulares. Tende
sempre diante dos olhos este belo hábito dos macarianos.
Nesta nação, vizinha
da Utopia, no dia em que o rei toma posse do império,
oferece sacrifícios à divindade, comprometendo-se,
por um juramento sagrado, a não ter nunca em seus
cofres mais do que mil libras de ouro ou a soma
em dinheiro de valor equivalente. Este uso foi
introduzido por um príncipe que tinha mais desejo
de trabalhar pela prosperidade do Estado, do que
de acumular mi1bões. Quis desse modo pôr um freio
à avareza dos seus sucessores e impedi-los de
enriquecer pelo empobrecimento de seus súditos.
Mil libras de ouro lhe pareceram uma quantia suficiente
para um caso de guerra civil ou estrangeira, mas
demasiado fraca para apoderar-se da fortuna da
nação. Foi principalmente este último motivo que
o induziu a decretar esta lei; mas visava ele
ainda duas outras finalidades: em primeiro lugar,
ter em reserva, para os tempos de crise, a quantidade
de dinheiro necessária à circulação e às transações
quotidianas dos cidadãos; em segundo lugar, limitar
as cifras dos impostos e da lista civil no intuito
de impedir que o príncipe empregasse o excesso
da dotação legal em semear a corrupção e cometer
injustiças. Um rei como este é o terror dos maus
e a veneração das pessoas de bem.
Mas, dizei-me, caro
Morus, pregar uma tal moral a homens que por interesse
e por sistema se orientam por princípios diametralmente
opostos, não é contar histórias a surdos?
- E a surdos como
portas, respondí. Mas isto não me espanta., e,
para vos revelar o meu modo de pensar, é perfeitamente
inútil dar conselhos quando se tem a certeza de
que serão repelidos, quer na forma, quer no fundo.
Ora, os ministros e os políticos de hoje, estão
impregnados de erros e preconceitos; como quereis
bruscamente modificar suas crenças e fazer penetrar,
de chofre, em suas cabeças e em seu coração, a
verdade e a justiça? Esta filosofia escolástica
está no seu lugar em uma conversação familiar,
entre amigos; está fora de propósito nos conselhos
dos reis, onde grandes coisas são tratadas com
grande autoridade e em face do poder supremo.
- Era isto o que
vos dizia ainda agora, retrucou Rafael, a filosofia
não tem acesso na corte dos príncipes.
- Dizeis a verdade
se vos referis a esta filosofia de escola, que
ataca de frente, e cegamente, os tempos, os lugares,
e as pessoas. Mas, existe uma filosofia menos
selvagem; esta conhece o teatro em que atua, e,
na peça que deve representar, desempenha seu papel
com decência e harmonia. É esta a que deveis empregar.
Suponhamos que,
durante a representação de uma comédia de Plauto,
no momento em que os escravos estão de bom humor,
irrompeis em cena, em trajes de filósofo, declamando
a passagem de Otávio, em que Sêneca repreende
e prega moral a Nero; duvido muito que fôsseis
aplaudido. Certamente, teríeis agido com mais
acerto se vos tivésseis limitado ao papel de um
personagem mudo do que oferecer ao público este
drama tragicômico. Um monstruoso amálgama destes
estragaria todo o espetáculo, mesmo que a vossa
citação valesse cem vezes mais do que a peça.
Um bom ator pôe todo seu talento no papel que
vai representar, qualquer que ele seja; e não
perturba o conjunto, porque lhe ocorre à fantasia
declamar uma tirada magnífica e pomposa.
Da mesma maneira
convém agir quando se delibera acerca dos negócios
do Estado, no seio do conselho real; Se não se
pode desarraigar de uma só vez as máximas perversas,
nem abolir os costumes imorais, não é isto razão
para se abandonar a causa pública. O piloto não
abandona o navio diante da tempestade porque não
pode domar o vento.
Falais a homens
imbuídos de princípios contrários aos vossos;
que caso poderão fazer de vossas palavras, se
lhes atirais à face a contradita e o desmentido?
Segui o caminho oblíquo - ele vos conduzirá mais
seguramente à meta. Aprendei a dizer a verdade
com propriedade e a propósito; e, se vossos esforços
não puderem servir para efetuar o bem, que sirvam
ao menos para diminuir a intensidade do mal; porque
tudo só será bom e perfeito, quando os próprios
homens forem bons e perfeitos; e até lá, os séculos
passarão.
Rafael respondeu:
Quereis saber o
que me sucederia se assim procedesse? Ao querer
curar a loucura dos outros, acabaria demente também.
Mentiria, se falasse doutra maneira da que vos
falei. A mentira é talvez permitida a certos filósofos,
mas não está em minha natureza.. Sei que minha
linguagem parecerá dura e severa aos conselheiros
do rei; apesar disso, não vejo por que sua novidade
seja de tal modo estranha que toque ao absurdo.
Se me referisse às teorias da república de Platão,
ou aos usos atualmente em vigor entre os utopianos,
coisas melhores e infinitamente superiores às
nossas idéias e costumes, então, poder-se-ia crer
que eu vinha de outro mundo, porque aqui o direito
de possuir de seu pertence a cada um, enquanto
que lá todos os bens são comuns. Mas, o que disse
eu que não fosse conveniente e mesmo necessário
de se divulgar. Minha moral mostra o perigo e
dele salva o, homem. ponderado; não fere senão
o insensato que se atira de olhos fechados ao
abismo.
Há covardia ou má
fé em calar as verdades que condenam a perversidade
humana, sob o pretexto de que serão escarnecidas
como novidades absurdas ou quimeras impraticáveis.
De outra forma, seria necessário deitar um véu
sobre o Evangelho e dissimular aos cristãos a
doutrina de Jesus. Mas Jesus proibia a seus apóstolos
o silêncio e o mistério; repetia-lhes sempre:
O que vos digo em voz baixa e ao ouvido, pregai
pôr toda parte, em voz alta e às claras. Ora,
a moral de Cristo está muito mais em contradição
aos costumes deste mundo, do que os nossos discursos.
Os Pregadores, homens
sagazes, seguiram o caminho oblíquo de que me
falastes há pouco; vendo que repugnava aos homens
acomodar seus maus costumes à doutrina cristã,
torceram o Evangelho, como se fosse uma lei de
chumbo, para modelá-lo segundo os maus costumes
dos homens. Onde os conduziu esta hábil manobra?
A dar ao vício a calma e a segurança da virtude.
Quanto a mim, não
obteria melhor resultado nos conselhos dos príncipes,
porque, ou minha opinião é contrária à opinião
geral, e, nesse caso, não seria tomada em consideração,
ou coincide com a opinião geral, e então, deliro
também com os loucos, segundo a expressão de Micion,
a personagem de Terêncio. Assim, não vejo aonde
pode levar o vosso caminho retorcido. Dizeis:
Quando não se pode atingir a perfeição, deve-se,
ao menos, atenuar o mal. Mas aqui, a dissimulação
é impossível e a conivência um crime, pois se
trata de aprovar as propostas mais execráveis,
de votar decretos mais perigosos que a peste,
e, neste caso, aprovar perfidamente deliberações
infames como essas, seria comportar-se tal qual
um espião e um traidor.
Não há, pois, nenhuma
maneira de ser útil ao Estado nessas altas regiões.
O ar que aí se respira corrompe a própria virtude.
Os homens que vos cercam, longe de corrigir-se
com os vossos ensinamentos, vos depravam com seu
contato e pela inf1uência de sua perversão; e
se conservais vossa alma pura e incorruptível,
servireis de manto às suas imoralidades e loucuras.
Não há, pois, esperança de transformar o mal em
bem, trilhando o vosso caminho oblíquo, aplicando
os vossos meios indiretos.
Agora, caro Morus,
vou revelar-vos o fundo de minha alma, e dizer-vos,
os meus pensamentos mais íntimos. Em toda a parte
onde a propriedade for um direito individual,
onde todas as coisas se medirem pelo dinheiro,
não se poderá jamais organizar nem a justiça nem
a prosperidade. social, a menos que denomineis
justa a sociedade em que o que há de melhor é
a partilha dos piores, e que considereis perfeitamente
feliz o Estado no qual a fortuna pública é a presa
de um punhado de indivíduos insaciáveis de prazeres,
enquanto a massa é devorada pela miséria.
Também, quando comparo
as instituições utopianas com as dos outros países,
não me canso de admirar a sabedoria e a humanidade
de uma parte, e deplorar, da outra, o desvario
e a barbaria.
Na Utopia, as leis
são pouco numerosas; a administração distribui
indistintamente seus benefícios por todas as classes
de cidadãos. O mérito é ali recompensado; e, ao
mesmo tempo, a riqueza nacional é tão igualmente
repartida que cada um goza abundantemente de todas
as comodidades da vida.
Alhures, o princípio
do teu e do meu é consagrado por uma organização
cujo mecanismo é tão complicado quão vicioso.
Há milhares de leis, e que ainda não bastam, para
que um indivíduo possa adquirir uma propriedade,
defendê-la e distinguí-la da propriedade de outrem.
A prova é o número infinito de processos que surgem
todos os dias e não terminam nunca. Quando me
entrego a esses pensamentos, faço inteira justiça
a Platão e não me admiro mais que ele tenha desdenhado
legislar para os povos que não aceitam a comunidade
dos bens. Esse grande gênio previra facilmente
que o único meio de organizar a felicidade pública,
fora a aplicação do princípio da igualdade. Ora,
a igualdade é, creio, impossível num Estado em
que a posse é particular e absoluta; porque cada
um se apoia em diversos títulos e direitos para
atrair para si tudo quanto possa, e a riqueza
nacional, por maior que seja, acaba por cair na
posse de um reduzido número de indivíduos que
deixam aos outros apenas indigência e miséria.
Muitas vezes até
a sorte do rico deveria caber ao pobre. Não há
ricos avaros, imorais, inúteis, e pobres simples,
modestos, cujo engenho e trabalho trazem proveito
ao Estado mas não, o trazem a si mesmos?
Eis o que invencivelmente
me persuade que o único meio de distribuir os
bens com igualdade e justiça, e de fazer a felicidade
do gênero humano, é a abolição da propriedade.
Enquanto o direito de propriedade for o fundamento
do edifício social, a esse mais numerosa e mais
estimável não terá por quinhão senão miséria,
tormentos e desesperos.
Sei que existem
remédios que podem aliviar o mal; mas estes remédios
são impotentes para curá-lo. Por exemplo:
Decretar um máximo
de posse individual em terras e dinheiro
Premunir-se por
meio de severas leis contra, o despotismo e a
anarquia.
Denunciar e castigar
a ambição e a intriga. Não traficar as magistraturas.
Suprimir o fausto
e a representação nos altos cargos, a fim de que
o funcionário, para sustentar sua posição, não
se entregue à fraude e à rapina; ou, a fim de
que não seja obrigado a dar aos mais ricos os
cargos que deveriam caber aos mais capazes.
Estes meios, repito-o,
são excelentes paliativos que podem adormecer
a dor e aliviar as chagas do corpo social; mas
não espereis com isto devolver-lhe a força e a
saúde, enquanto cada um possuir solitariamente
e absolutamente seus bens; podeis cauterizar uma
úlcera, mas inflamareis todas as outras; curareis
um doente, e matareis um homem são; porque o que
acrescentais ao haver de um indivíduo tirais ao
de seu vizinho.
Disse eu, então,
a Rafael:
Longe de compartilhar
vossas convicções, penso, ao contrário, que o
país em que se estabelecesse a comunidade de bens
seria o mais miserável de todos os países. Com
efeito, como produzir para as necessidades do
consumo? Todo mundo fugiria do trabalho e descansaria
dos cuidados com sua existência sobre o trabalho
dos outros. E, mesmo que a miséria perseguisse
os preguiçosos, desde que a lei não mantém inviolavelmente,
para e contra todos, a propriedade de cada um
a rebelião rugiria, sem cessar, esfomeada e ameaçadora,
e a matança ensangüentaria vossa república.
Que barreira oporíeis
à anarquia? Vossos magistrados têm apenas uma
autoridade nominal; estão despidos, despojados
de tudo que impõe o temor e o respeito. Não chego
nem mesmo a conceber a possibilidade de governo
nesse povo de niveladores que repele toda espécie
de superioridade.
Não me espanto que
penseis assim, replicou Rafael. Vossa imaginação
não poderia fazer a. menor idéia de uma tal república,
ou dela tem apenas uma idéia falsa. Se tivésseis
estado na Utopia, se tivésseis assistido ao espetáculo
de suas instituições e de seus costumes, como
eu, que lá passei cinco anos de minha vida, e
que não me decidi a sair senão para revelar esse
novo mundo ao antigo, confessaríeis que em nenhuma
outra parte existe sociedade perfeitamente organizada.
Pedro Gil disse
então, dirigindo-se a Rafael:
- Não me persuadireis
jamais que haja nesse novo mundo povos melhor
constituídos do que neste. A natureza não produz
entre nós espíritos de têmpera inferior. Temos,
além disso, o exemplo de uma civilização mais
antiga, e uma série de descobertas, que o tempo
fez brotar, para as necessidades ou para o luxo
da vida. Não me refiro às invenções nascidas do
acaso, e que o gênio mais sutil não teria podido
imaginar.
- A questão da antigüidade,
respondeu Rafael, vós a discutiríeis com mais
solidez se tivésseis lido as histórias desse novo
mundo. Ora, segundo essas histórias, lá houve
cidades, antes que aqui houvesse homens. Pelo
que se refere às descobertas devidas ao gênio
ou ao acaso, elas podem igualmente surgir em todos
os continentes. Admito que tenhamos sobre esses
povos a superioridade da inteligência; em compensação,
eles nos deixam bem atrás em matéria de atividade
e engenho. Ides ter a prova:
Seus anais testemunham
que não tinham jamais ouvido falar de nosso mundo,
antes de nossa chegada; somente, há aproximadamente
mil e duzentos anos, um navio impelido pela tempestade
afundou em frente à ilha da Utopia. As ondas jogaram
à praia alguns egípcios e romanos, que, desde
então, só com vida, queriam deixar o país. Os
utopianos tiraram desse acontecimento um partido
enorme; na escola dos náufragos aprenderam tudo
que estes conheciam das ciências e artes espalhadas
no império romano. Mais tarde, esses primeiros
germes se desenvolveram, e o pouco que os utopianos
tinham aprendido, levou-os a descobrir o resto.
Assim, um único ponto de contato com o mundo antigo
bastou para transmitir-lhes a indústria e o gênio.
É possível que depois
desse naufrágio, a mesma sorte tenha levado alguns
dos nossos à Utopia; mas a lembrança disso está
completamente apagada. Talvez a posteridade também
esqueça a minha estadia nesta ilha afortunada,
estadia esta que foi infinitamente preciosa para
os seus habitantes, pois, por este meio, puderam
apropriar-se das mais belas invenções da Europa.
Mas para nós, quantos
séculos nos serão precisos para aprender deles
o que há de perfeito em suas instituições? Eis
o que lhes dá a superioridade do bem-estar material
e social, embora os igualemos em inteligência
e riqueza: essa atividade do espírito dirigida
incessantemente para a pesquisa, o aperfeiçoamento
e a aplicação, das coisas úteis.
- Pois então, disse
eu a Rafael, fazei-nos a descrição desta ilha
maravilhosa. Não suprimais nenhum detalhe, suplico-vos.
Descrevei-nos os campos, os rios, as cidades,
os homens, os costumes, as instituições, as leis,
tudo o que pensais que desejamos saber, e, acreditai-me,
esse desejo abarca tudo que ignoramos.
-
Com muito gosto, respondeu Rafael; essas coisas
estão sempre presentes à minha memória; mas a
narrativa exige tempo.
- Nesse caso, disse-lhe,
vamos então jantar, primeiro; teremos depois todo
o tempo necessário.
-
Perfeitamente, acrescentou Rafael. Entramos então
em casa para jantar, e depois voltamos ao jardim,
onde sentamo-nos no mesmo banco. Recomendei particularmente
aos criados afastar os importunos, pois havia
associado minhas instâncias às de Pedro, para
que Rafael cumprisse sua promessa. Sentindo a
nossa curiosidade, ávida e atenta, recolheu-se,
um instante, no silêncio e meditação, e começou
com estas palavras.
LIVRO SEGUNDO
O QUE
VOS DIGO
EM VOZ BAIXA
& AO OUVIDO,
PREGAI-O
EM VOZ ALTA &
ABERTAMENTE
A ilha da
Utopia tem duzentos mil passos em sua maior largura,
situada na parte média. Esta largura diminui gradual
e sistematicamente do centro para as duas extremidades,
de maneira que a ilha inteira se arredonda em
um semicírculo de quinhentas milhas de arco, apresentando
a forma de um crescente, cujos cornos estão afastados
onze mil passos aproximadamente.
O mar enche esta
imensa bacia; as terras adjacentes que se estendem
em anfiteatro quebram o furor dos ventos, mantendo
as águas calmas e pacificas, e dando a esta grande
massa líqüida a aparência de um lago tranqüilo.
Esta parte côncava da ilha é como um único e vasto
porto acessível aos navios em todos os pontos.
A entrada do golfo
é perigosa por causa dos bancos de areia de um
lado, e dos escolhos, do outro. No meio se levanta
um rochedo visível de muito longe, e que por isto
não oferece nenhum perigo, Os utopianos construíram
uma fortaleza, defendida por uma boa guarnição.
Outros rochedos ocultos pela água oferecem armadilhas
inevitáveis aos navegantes. Unicamente os nativos
conhecem as passagens navegáveis e por esse justo
motivo ninguém pode entrar no estreito sem ser
guiado por um piloto utopiano. Esta precaução
seria ainda insuficiente, se os faróis dispostos
pela costa não indicassem o rumo a seguir. A simples
transposição desses faróis seria suficiente para
destruir a frota mais numerosa, dando-lhe uma
falsa direção.
Na parte oposta
da ilha, encontram-se diversos portos, e a arte
e a natureza fortificaram de tal forma as costas,
que um punhado de homens poderia impedir o desembarque
de um grande exército.
Se se der crédito
às tradições, aliás plenamente justificadas pela
configuração do país, esta terra não foi sempre
uma ilha. Chamava-se antigamente Abraxa e se ligava
ao continente; Utopus apoderou-se dela, e deu-lhe
seu nome
Este conquistador
teve bastante gênio para humanizar uma população
grosseira e selvagem e para formar um povo que
ultrapassa hoje todos os outros em civilização.
Desde que a vitória o fez dono deste país, mandou
cortar um istmo de quinze mil passos que o ligava
ao continente; e a terra de Abraxa tornou-se,
assim, a ilha da Utopia. Utopus empregou, no acabamento
dessa obra gigantesca, os soldados do seu exército,
assim como os indígenas, a fim de que estes não
olhassem. o trabalho imposto pelo vencedor como
uma humilhação e um ultraje. Milhares de braços
foram então postos em movimento e o êxito, em
breve, coroava o empreendimento. Os povos vizinhos
que, antes, haviam taxado esta obra de vaidade
e loucura, tomaram-se de espanto e de terror.
A ilha da Utopia
tem cinqüenta e quatro cidades espaçosas e magníficas.
A linguagem, os hábitos, as instituições, as leis
são perfeitamente idênticas. As cinqüenta e quatro
cidades são edificadas sobre o mesmo plano e possuem
os mesmos estabelecimentos e edifícios públicos,
modificados segundo as exigências locais. A menor
distância entre essas cidades é de vinte e quatro
milhas, a maior é de uma jornada a pé.
Todos os anos, três
velhos experientes e capazes são nomeados deputados
por cada cidade e se congregam em Amaurota, a
fim de tratar dos negócios do país. Amaurota é
a capital da ilha; sua posição central transformou-a
em ponto de reunião mais conveniente para todos
os deputados.
Um mínimo de vinte
mil passos de terra é destinado em cada cidade
à produção dos artigos de consumo e à lavoura.
Em geral, a extensão do território é proporcional
ao afastamento das cidades. Estas felizes cidades
não procuram aumentar os limites fixados pela
lei. Os habitantes se olham mais como rendeiros
do que como proprietários do solo.
Há pelos campos
casas comodamente construídas, providas de toda
a espécie de instrumentos de agricultura, e que
servem de morada aos exércitos de trabalhadores
que a cidade envia periodicamente. ao campo.
A família agrícola
se compõe pelo menos de quarenta indivíduos, homens
e mulheres, e de dois escravos. Está sob a direção
de um pai e de uma mãe de família, pessoas graves
e prudentes.
Trinta famílias
são dirigidas por um filarca (4).
Todos os anos vinte
cultivadores de cada família regressam à cidade;
são os que terminaram seus dois anos de serviço
agrícola. São substituídos, então, por vinte indivíduos
que ainda não serviram. Os recém-chegados recebem
instrução dos que já trabalharam um ano no campo,
e, no ano seguinte, se tornam instrutores por
sua vez. Assim os cultivadores não são, nunca,
todos de uma vez, ignorantes e novatos, e a subsistência
pública não tem nada a temer da imperícia dos
cidadãos encarregados de mantê-la.
Esta renovação anual
tem ainda outra finalidade que é a de não consumir
por muito tempo a vida dos cidadãos nos trabalhos
materiais e penosos. Entretanto, alguns tomam
naturalmente gosto pela agricultura e obtêm autorização
de passar vários anos no campo.
Os agricultores
cultivam a terra, criam animais, juntam madeira
e transportam os aprovisionamentos para a cidade
vizinha, por água ou por terra. Eles usam de um
processo extremamente engenhoso para conseguir
grande quantidade de pintos: não deixam às galinhas
a tarefa de chocar os ovos, mas fazem-nos romper
a casca por meio de um calor artificial convenientemente
temperado. E, quando o pinto quebra a casca, é
o homem que lhe serve de mãe, que o guia e sabe
reconhecê-lo. Criam poucos cavalos, e somente
árdegos, destinados a corridas, e não têm outra
aplicação que a de exercitar a juventude na equitação.
Os bois são empregados
exclusivamente na lavoura e no transporte. O boi,
dizem os utopianos, não tem a vivacidade do cavalo,
mas o sobrepuja em paciência e força; é menos
sujeito a moléstias, custa menos para ser nutrido,
e quando não serve mais para o trabalho serve
ainda para a mesa.
Os utopianos convertem
em pão os cereais; bebem o suco da uva, da maçã,
da pêra; bebem também água pura ou fervida com
mel e alcaçuz, que possuem em abundância.
A quantidade de
víveres necessária ao consumo de cada cidade e
de seus territórios é determinada da maneira mais
precisa. Não obstante, os habitantes não deixam
de semear o grão e criar gado, muito além das
necessidades do consumo. O excedente é posto em
reserva, para os países vizinhos.
Quanto aos móveis,
utensílios domésticos, e outros objetos que não
podem ser encontrados no campo, os agricultores
vão procurá-los na cidade. Eles se dirigem aos
magistrados urbanos que lhes mandam entregar sem
remuneração nem atraso. Todos os meses se reúnem
para celebrar uma festa.
Quando chega o tempo
da colheita os filarcas das famílias agrícolas
comunicam aos magistrados das cidades quantos
braços auxiliares necessitam; e enxames de ceifadores
chegam no momento convencionado e, se o céu está
plácido, a colheita é feita quase num só dia.
-
Quem conhece uma cidade, conhece todas, porque
todas são exatamente semelhantes, tanto quanto
a natureza do lugar o permita. Poderia portanto
descrever-vos indiferentemente a primeira que
me ocorresse; mas escolherei de preferência a
cidade de Amaurota, porque é a sede do governo
e do senado, fato que lhe dá preeminência sobre
as demais. Além disso, é a cidade que melhor conheço,
pois habitei-a cinco anos inteiros.
Amaurota se estende
em doce declive sobre a vertente de uma colina.
Sua forma é de quase um quadrado. Começa a estender-se
um pouco acima do cume da colina, prolonga-se
cerca de dois mil passos sobre as margens do rio
Anidra, alargando-se à medida que vai margeando
o rio.
A nascente do Anidra
é pouco abundante; está situada a oitenta milhas
acima de Amaurota. A fraca corrente se engrossa
na sua marcha com o encontro de numerosos rios,
entre os quais se distinguem dois de grandeza
média. Ao chegar diante de Amaurota, o Anidra
mede quinhentos passos de largo. A partir daí,
segue se avolumando sempre até desembocar no mar,
após ter percorrido uma extensão de sessenta milhas.
Dentro de todo o
espaço compreendido entre a cidade e o mar, e
algumas milhas acima da cidade, o fluxo e o refluxo
da maré, que duram seis horas por dia, modificam
singularmente o curso do rio. À maré crescente,
o oceano invade o leito do Anidra numa extensão
de trinta milhas, rechaçando-o para a nascente.
Então a vaga salina comunica seu amargor ao rio;
mas este, pouco a pouco, se purifica, e leva à
cidade uma água doce e potável, e a reconduz inalterada
até perto de sua embocadura, quando a maré baixa.
As duas margens do Anidra estão ligadas por uma
ponte de pedra, construída em arcadas maravilhosamente
curvas. Esta ponte se encontra na extremidade
da cidade mais afastada do mar, a fim de que os
navios possam ancorar em todos os pontos da baía.
Um outro rio, pequeno
é verdade, mas belo e tranqüilo, corre também
no perímetro de Amaurota. Este ribeiro brota a
pouca distância da cidade, na montanha sobre que
está assentada; e, depois de a ter cortado ao
meio, vem unir suas águas às do Anidra. Os amaurotanos
cercaram a nascente de fortificações que a ligam
aos arrabaldes. Desta forma, no caso de cerco,
o inimigo não poderá envenenar o rio, nem barrar
ou desviar-lhe o curso. Do ponto mais elevado,
ramificam-se em todos os sentidos canos de barro
que conduzem a água aos quarteirões baixos da
cidade. Onde este meio é impraticável, vastas
cisternas recolhem as águas pluviais para os diversos
usos dos habitantes.
Uma cadeia de altas
e largas muralhas circunda a cidade e, a pequenas
distâncias, erguem-se torres e fortalezas. As
muralhas, dos três lados, estão cercadas de fossos
sempre secos, mas largos e profundos, atravancados
de sebes e espinheiros. O quarto lado tem por
fossa o próprio rio.
As ruas e as praças
são convenientemente dispostas, seja para o transporte,
seja para abrigar-se do vento. Os edifícios são
construídos confortavelmente; brilham de elegância
e de conforto e formam duas fileiras contíguas,
acompanhando de longo as ruas, cuja largura é
de vinte pés.
Atrás, e entre as
casas, abrem-se vastos jardins. Em cada casa há
uma porta que dá para a rua e outra para o jardim.
Estas duas portas se abrem facilmente com um ligeiro
toque, e deixam entrar o primeiro que chega.
Os habitantes da
Utopia aplicam aqui o princípio da posse comum.
Para abolir a idéia da propriedade individual
e absoluta, trocam de casa todos os dez anos e
tiram a sorte da que lhes deve caber na partilha.
Os habitantes das
cidades tratam de seus jardins com desvelo; cultivam
a vinha, os frutos, as flores. e toda a sorte
de plantas. Põem nessa cultura tanta ciência e
gosto que jamais vi em outra parte maior fertilidade
e abundância combinadas num conjunto mais gracioso.
Não é o prazer o único motivo que os incita à
arte da jardinagem; há emulação entre os diferentes
quarteirões da cidade, que lutam à porfia por
quem terá o jardim mais bom cultivado. Na verdade,
nada se pode conceber mais agradável, nem mais
útil aos cidadãos que esta ocupação. O fundador
do império bem o compreendeu, quando tantos esforços
envidou para encaminhar os espíritos nessa direção.
Os utopianos atribuem
a Utopus o plano. geral de suas cidades. Este
grande legislador não teve tempo de concluir as
construções e embelezamentos que tinha projetado;
isso demandava o trabalho de muitas gerações.
Assim, legou à posteridade o cuidado de continuar
e aperfeiçoar sua obra.
Lê-se nos anais
da Utopia, conservados religiosamente desde a
conquista da ilha e que abarcam a história de
mil setecentos e sessenta anos; lê-se que, no
começo. as casas eram muito baixas, não havia
senão choupanas, cabanas de madeira, com paredes
de barro e tetos de palha, terminados em ponta.
As casas, hoje, são elegantes edifícios de três
andares, com paredes externas de pedra ou de tijolo
e paredes internas de caliça. Os tetos são chatos,
recobertos de uma matéria moída e incombustível,
que não custa nada e protege melhor que o chumbo
dos danos do tempo. As janelas envidraçadas (faz-se
na ilha grande uso do vidro) abrigam do vento.
Algumas vezes substitui-se o vidro por um tecido
de uma finura extrema revestido de âmbar ou óleo
transparente, o que oferece ainda a vantagem de
deixar passar a luz e evitar o vento.
DOS
MAGISTRADOS
Trinta
famílias fazem, todos os anos, a eleição de um
magistrado, chamado sifogrante na antiga linguagem
do país e filarca na moderna.
Dez sifograntes
e suas trezentas famílias obedecem a um protofilarca,
antigamente denominado traníbora.
Finalmente os sifograntes,
em número de mil e duzentos, após o juramento
de dar os seus votos ao cidadão mais virtuoso
e mais capaz, escolhem por escrutínio secreto
e proclamam príncipe um dos quatro cidadãos propostos
pelo povo; porque a cidade sendo dividida em quatro
seções, cada quarteirão apresenta seu candidato
ao senado.
O principado é vitalício,
a menos que recaia sobre o príncipe a suspeita
de aspirar à tirania. Os traníboras são nomeados
todos os anos, mas só por graves motivos são eles
mudados. Os outros magistrados são renovados anualmente.
Todos os três dias,
e ainda mais freqüentemente se o caso exige, os
traníboras se reúnem em conselho com o príncipe
para deliberar sobre os negócios do pais e terminar
rapidamente os processos que surgem entre os particulares,
processos aliás excessivamente raros. Dois sifograntes
assistem a cada uma das sessões do senado, e esses
dois magistrados populares são alternados em cada
sessão.
A lei quer que as
moções de interesse geral sejam discutidas no
senado três dias antes de ir a votação e de ser
convertido em decreto o projeto.
Reunir-se fora do
senado e das assembléias do povo para deliberar
sobre os negócios públicos é um crime punido com
a morte.
Estas instituições
têm por finalidade impedir o príncipe e os traníboras
de conspirarem juntos contra a liberdade, de oprimir
o povo com leis tirânicas e de mudar a forma do
governo. A constituição é de tal modo vigilante
a este propósito que as questões de alta importância
são relatadas nos comícios dos sifograntes, que
as comunicam às suas famílias. O caso é então
examinado em assembléia popular; depois, os sifograntes,
após terem deliberado, transmitem ao senado seu
parecer e a vontade do povo. Algumas vezes mesmo
a opinião de toda a ilha é consultada.
Entre os regulamentos
do senado, o seguinte merece assinalado. Quando
uma proposta é feita, é proibido discuti-la no
mesmo dia; a discussão é transferida à sessão
seguinte.
Desta maneira ninguém
fica exposto a desembuchar levianamente as primeiras
coisas que lhe passem pela cabeça, e a defender,
em seguida, a sua opinião antes do que o bem geral;
pois não é freqüente acontecer que se recue diante
da vergonha de uma retratação e do reconhecimento
de um erro irrefletido? Então, sacrifica-se o
bem público para salvar a reputação. Este perigo
funesto da precipitação foi previsto, e aos senadores
é dado o tempo suficiente para refletir.
DAS
ARTES E OFÍCIOS
Há
uma arte comum a todos os utopianos, homens e
mulheres, e da qual ninguém tem o direito de isentar-se,
é a agricultura. As crianças aprendem a teoria
nas escolas e a prática nos campos vizinhos da
cidade aonde são levadas em passeios recreativos.
Aí assistem a trabalhar e trabalham também, e
este exercício traz ainda a vantagem de desenvolver
as suas forças físicas.
Além da agricultura,
que, repito-o, é um dever imposto a todos, ensina-se
a cada um um ofício especial. Uns tecem a lã ou
o linho; outros são pedreiros ou oleiros; outros
trabalham a madeira ou os metais. São esses os
principais ofícios.
As roupas têm a
mesma forma para todos os habitantes da ilha;
esta forma é invariável, e apenas distingue o
homem da mulher, o solteiro do casado. Estas vestes
reúnem a elegância à comodidade; facilitam todos
os movimentos do corpo, defendem-no contra os
calores do verão e do frio do inverno. Cada família
confecciona seus próprios vestidos.
Todos, homens e
mulheres, sem exceção, são obrigados a aprender
um dos ofícios mencionados acima. As mulheres,
sendo mais fracas, trabalham apenas a lã e o linho,
os homens são encarregados das coisas mais penosas.
Em geral, cada um
é adestrado na profissão de seus pais, porque
é habitualmente a natureza que inspira o gosto
desta profissão. Entretanto, se alguém sente mais
aptidão e é atraído por outra, passa a fazer parte,
por adoção, de uma das famílias que a exercem.
Seu pai, de acordo com o magistrado, trata de
colocá-lo a serviço de um pai de família honesto
e respeitável.
Se alguém, tendo
já uma profissão, quer aprender outra, pode aprendê-la
nas condições precedentes. Deixa-se-lhe a liberdade
de exercer a que melhor lhe convier, a menos que
a cidade não lhe designe uma por motivo de utilidade
pública.
A função principal
e quase única dos sifograntes é a de velar por
que ninguém se entregue à ociosidade e à preguiça
e todos exerçam com ânimo a sua profissão. Não
se deve crer que os utopianos se atrelem ao. trabalho
como bestas de carga desde a madrugada até à noite.
Esta vida embrutecedora para o espírito e para
o corpo, seria pior que a tortura e a escravidão.
E no entretanto, tal é, em outra qualquer parte,
a triste sorte do operário!
Os utopianos dividem
o intervalo de um dia e de uma noite em vinte
e quatro horas iguais. Seis horas são empregadas
nos trabalhos materiais; eis a sua distribuição.
Três horas de trabalho
antes do meio dia, depois almoçam. Depois de meio
dia, duas horas de repouso, três de trabalho,
em seguida jantam.
Contam uma hora
onde contamos meio dia, deitam-se às nove e reservam
nove horas para o sono.
O tempo compreendido
entre o trabalho, as refeições e o sono, cada
qual é livre de empregar à sua vontade. Longe
de abusar dessas horas de lazer, abandonando-se
à ociosidade e à preguiça, descansam variando
suas ocupações e trabalhos. Estão aptos a assim
fazer, graças a uma instituição verdadeiramente
admirável.
Todas as manhãs,
antes do sol se levantar, os cursos públicos são
abertos. Somente os indivíduos especialmente destinados
às letras, são obrigados a seguir esses cursos;
mas todo mundo tem direito a assisti-los, as mulheres
como os homens, quaisquer que sejam as suas profissões.
O povo acorre em massa; e cada um se apega ao
ramo de ensino que tem mais relação com sua indústria
e seus gostos.
Alguns, durante
as horas de liberdade, entregam-se de preferência
ao exercício de sua profissão. São os homens cujo
espírito não tem o gosto das especulações abstratas.
Longe de serem contrariados nessa preferência,
são, ao contrário, aplaudidos, pois se tornam,
assim, constantemente úteis a seus concidadãos.
A noite, depois
da ceia, os utopianos se entregam, durante uma
hora, aos divertimentos; no verão, pelos jardins,
e no inverno, nas salas comuns onde fazem suas
refeições. Fazem música ou se distraem conversando.
Desconhecem os dados, o baralho e todos os outros
jogos de azar, tão estúpidos como perigosos. Praticam
entretanto duas espécies de jogos, que têm. muita
semelhança com o nosso xadrez; um é a batalha
aritmética, na qual o número pilha o número; o
outro é o combate das vícios e das virtudes. Este
último mostra, com destaque, a anarquia dos vícios
entre si, o ódio que os divide e, contudo, seu
perfeito acordo quando se trata de atacar as virtudes.
Faz ver ainda quais são os vícios opostos a cada
uma das virtudes, como aqueles atacam a estas
pela violência e a descoberto, ou pela astúcia
e meios sinuosos; como a virtude repele os assaltos
do vício, derruba-o e aniquila seus esforços;
e como, finalmente, a vitória se decide por um
ou outro lado.
Aqui espero uma
séria objeção e apresso-me em rebatê-la.
Dir-se-á talvez:
Seis horas de trabalho por dia não são suficientes
para as necessidades do consumo público, e a Utopia
deve ser um país muito miserável.
Mas não é este realmente
o caso. Ao contrário, as seis horas de trabalho
produzem abundantemente para todas as necessidades
e comodidades da vida, e ainda um supérfluo bem
superior às exigências do consumo.
Compreendereis facilmente
se refletirdes no grande número de pessoas ociosas
existentes nas outras nações. Antes de tudo, são
essas quase todas as mulheres, que em si já constituem
a metade da população, e a maioria dos homens,
ali onde as mulheres trabalham. Em seguida, esta
imensa multidão de padres e religiosos vagabundos.
Somai ainda todos esses ricos proprietários vulgarmente
chamados nobres e senhores; acrescentai também
as nuvens de lacaios e outro tanto de malandros
de libré; e o dilúvio de mendigos robustos e válidos
que escondem sua preguiça sob o disfarce de enfermidades.
E achareis, em resumo, que o número dos que, por
seu trabalho, provêm ao gênero humano de todas
as necessidades é bem menor do que imaginais.
Considerai também
como são poucos aqueles que a trabalhar estão
empregados em coisas verdadeiramente necessárias.
Porque, neste século de dinheiro, onde o dinheiro
é o deus e a medida universal, grande é o número
das artes frívolas e vãs que se exercem unicamente
a serviço do luxo e do desregramento. Mas se a
massa atual dos trabalhadores estivesse repartida
pelas diversas profissões úteis, de maneira a
produzir mesmo com abundância tudo o que exige
o consumo, o preço da mão de obra baixaria a um
ponto que o operário não poderia mais viver de
seu salário.
Suponde, pois, que
se faça trabalhar utilmente aqueles que não produzem
senão objetos de luxo e os que nada produzem,
embora comam o trabalho e o quinhão de dois bons
operários; então, concebereis, sem dificuldade,
que disporão de mais tempo do que necessitam para
prover às necessidades e mesmo aos prazeres da
vida, quero dizer, os que se fundam na natureza
e na verdade.
Ora, o que afirmo
aqui, na Utopia está provado pelos fatos. Em toda
a extensão de uma cidade utopiana, inclusive seu
território, não mais de quinhentos indivíduos,
compreendidos os homens e mulheres na idade e
força de trabalhar, existem isentos por lei. Neste
número estão os sifograntes; mas mesmo esses magistrados
trabalham como os outros cidadãos a fim de estimulá-los
pelo exemplo. Este privilégio se estende também
aos jovens que o povo destina às ciências e às
artes, por recomendação dos padres e conforme
os sufrágios secretos dos sifograntes. Se um desses
eleitos ilude a esperança pública, é transferido
para a classe dos operários. Se, ao contrário,
e o caso é freqüente, um operário consegue adquirir
uma instrução suficiente consagrando suas horas
de lazer aos estudos intelectuais, fica isento
do trabalho mecânico e sobe à classe dos letrados.
É entre os letrados
que se escolhem os embaixadores, os padres, os
traníboras e o príncipe, chamado antigamente barzame
e hoje ádemo. O resto da população continuamente
ativa não exerce senão profissões úteis e produz,
em pouco tempo, uma massa considerável de trabalhos
perfeitamente executados.
O que contribui
ainda para abreviar o trabalho é que, tudo sendo
bem estabelecido e conservado, há muito menos
o que fazer na Utopia do que entre nós.
Nas outras partes,
a construção e a reparação dos edifícios exigem
trabalhos contínuos. A razão disto é que o pai,
após ter edificado a sua casa com grandes sacrifícios,
deixa seus bens a um filho negligente e dissipador,
em cujas mãos tudo se deteriora pouco a pouco;
o resultado é que o herdeiro deste último não
pode empreender reparações sem fazer despesas
enormes. Freqüentemente acontece mesmo que um
mais requintado no luxo desdenha as construções
paternas, e se põe a construir, com maiores despesas
ainda, noutro terreno, enquanto a casa de seu
pai cai em ruínas.
Na Utopia, tudo
está tão bem previsto e organizado que raro é-se
obrigado a construir em novos terrenos. Os estragos
são consertados no momento em que aparecem, e
os que estão iminentes são prevenidos. Assim,
as construções se conservam com pouco gasto e
trabalho. A maior parte do tempo, os operários
permanecem em casa para, desbastando os materiais,
talhar a madeira e a pedra. Quando há uma construção
a fazer, os materiais estão todos prontos e a
obra é rapidamente terminada.
Ides ver como dispendem
pouco os utopianos para se vestirem.
No trabalho, vestem
de couro ou de pele; este trajo pode durar sete
anos. Em público, cobrem-se de um casaco ou sobretudo
que tapa a roupa grosseira do trabalho. O casaco
é de cor natural, e igual para todos. Desta sorte
usam muito menos casemira do que em qualquer outra
parte, e a lã lhes vem por menor preço. O linho
é de uso muito difundido, porque exige menos trabalho.
Eles não dão preço senão à brancura do linho,
à nitidez e à limpeza da lã, sem considerar a
fineza ou delicadeza da fiação. Um só trajo dura
de ordinário dois anos; enquanto que alhures,
cada pessoa carece de quatro a cinco roupas de
diferentes cores, outras tantas vestimentas de
seda e os mais elegantes não se satisfazem com
uma dezena. Os utopianos não vêm motivo para possuir
um tão grande número; não se sentiriam por isso
nem mais cômoda nem mais elegantemente vestidos.
Assim, todo mundo,
na Utopia, vive ocupado em. artes e ofícios realmente
úteis. O trabalho material é de curta duração
e mesmo assim produz a abundância e o supérfluo.
Quando há acúmulo de produtos, os trabalhos diários
são suspensos e a população é transportada em
massa para reparar as estradas esburacadas e estragadas.
Na falta de obras comuns ou extraordinárias a
realizar, um decreto autoriza uma diminuição nas
horas de trabalho, porque o governo não procura
fatigar seus cidadãos em labores inúteis.
•O fim das instituições
sociais na Utopia é de prover antes de tudo às
necessidades do consumo público e individual;
e deixar a cada um o maior tempo possível para
libertar-se da servidão do corpo, cultivar livremente
o espírito, desenvolvendo suas faculdades intelectuais
pelo estudo das ciências e das letras. É neste
desenvolvimento completo que eles põem a verdadeira.
felicidade.
DAS
RELAÇÕES MÚTUAS ENTRE OS CIDADÃOS
Agora
passo a expor as relações dos cidadãos entre si,
seu comércio e a lei da distribuição das coisas
necessárias à vida.
A cidade se compõe
de famílias, na sua maioria unidas pelos laços
de parentesco.
Desde que uma moça
é núbil, é-lhe dado um marido, e ela vai morar
com ele.
Os varões, filhos
e netos, não deixam as suas famílias. O membro
mais antigo de uma família é o chefe, e se os
anos enfraqueceram sua inteligência, é substituído
por aquele que mais se aproxima de sua idade.
As seguintes disposições
mantêm o equilíbrio da população, impedindo-a
de tornar-se muito rara em certos pontos, muito
densa em outros.
Cada cidade deve
ser constituída de seis mil famílias. Cada família
,não pode conter senão de dez a dezesseis mancebos
na idade da puberdade. O número de crianças impúberes
é ilimitado.
Quando uma família
cresce além da medida, o excedente é colocado
entre as famílias menos numerosas.
Quando há numa cidade
mais gente do que deve conter, o excedente vai
preencher os claros das cidades menos povoadas.
Finalmente, se a
ilha inteira se visse sobrecarregada de habitantes,
seria decretada a emigração geral. Os emigrantes
iriam fundar uma colônia no continente mais próximo,
onde os indígenas dispõem de mais terreno do que
cultivam.
A colônia se governa
segundo as leis utopianas, e chama a si os nativos
que queiram partilhar de seus trabalhos e gênero
de vida.
Se os colonos encontram
um povo que aceita suas instituições e costumes,
formam com ele uma mesma comunidade social, e
esta união é benéfica a todos. Pois, a viver todos,
assim, à utopiana, uma terra que, outrora, era
ingrata e estéril para um único povo, toma-se
produtiva e fecunda para dois povos ao mesmo tempo.
Mas se os colonos
encontram uma nação que repele as leis da Utopia,
eles expulsam esta nação da região do país que
querem colonizar, e, se preciso, empregam, para
tal, a força das armas. Segundo os seus princípios,
a guerra mais justa é aquela que se faz a um povo
que possui imensos territórios incultos e que
os conserva desertos e estéreis, notadamente quando
este mesmo povo interdiz a sua posse e o seu uso
aos que vêm para cultivá-los e deles se nutrir,
conforme a lei imprescritível da natureza.
Se acontecesse (e
este foi o caso, por duas vezes, em conseqüência
de pestes horríveis) que a população do lugar
diminuísse a ponto de não poder ser restabelecida
sem romper o equilíbrio e a constituição das outras
partes da ilha, os colonos regressariam à Utopia.
Nossos insulares prefeririam deixar que as colônias
perecessem a permitir que decrescesse uma única
cidade da mãe-pátria.
Mas voltemos às
relações mútuas entre os cidadãos.
O mais idoso, como
já o disse, preside a família. As mulheres servem
a seus maridos; as crianças, a seus pais e mães;
os mais jovens, aos mais velhos.
A cidade inteira
se divide em quatro quarteirões iguais. No centro
de cada quarteirão, encontra-se o mercado das
coisas necessárias à vida. São depositados aí
os diferentes produtos do trabalho de todas as
famílias. Esses produtos, depositados primeiramente
nos entrepostos, são em seguida classificados
nas lojas de acordo com sua espécie.
Cada pai de família
vai procurar no mercado aquilo de que tem necessidade
para si e os seus. Tira o que precisa sem que
seja exigido dele nem dinheiro nem troca. Jamais
se recusa alguma coisa aos pais de família. A
abundância sendo extrema, em todas as coisas,
não se teme que alguém tire além de sua necessidade.
De fato, aquele que tem a certeza de que nada
faltará jamais, não procurará possuir mais do
que é preciso. O que torna, em geral, os animais
cúpidos e rapaces, é o temor das privações no
futuro. No homem em particular, existe uma outra
causa de avareza - o orgulho, que o excita a ultrapassar
em opulência os seus iguais e a deslumbrá-los
pelo aparato de um luxo supérfluo. Mas as instituições
utopianas tornam este vício impossível.
Os mercados de que
acabo de falar estão juntos dos mercados de comestíveis,
onde se depositam os legumes, as frutas, o pão,
o peixe, as aves domésticas e as partes de se
comer dos animais quadrúpedes.
Fora da cidade,
existem os matadouros onde se abatem os animais
destinados ao consumo. Esses matadouros são mantidos
sempre limpos graças a correntes de água que arrastam
•o sangue e as imundícies dos animais. É daí que
é levada ao mercado a carne limpa e retalhada
pelas mãos dos escravos: pois a lei proíbe aos
cidadãos o ofício de carniceiro, temerosa que
o hábito da matança destrua pouco a pouco o sentimento
de humanidade, o sentimento mais nobre do coração
do homem. Esses açougues são situados fora da
cidade no intuito de evitar também aos cidadãos
um espetáculo hediondo, ao mesmo tempo que desembaraça
a cidade das sujeiras e matérias animais cuja
putrefação poderia provocar moléstias.
Em cada rua amplos
palácios estão dispostos a igual distância, distinguindo-se
uns dos outros por nomes particulares. É aí que
moram os sifograntes; suas trinta famílias estão
alojadas nos dois lados, quinze à direita e quinze
à esquerda; é no palácio do sifogrante que elas
vão fazer as refeições em comum.
Os provedores se
reúnem no mercado a uma hora fixa e requerem uma
quantidade de víveres proporcional ao número de
bocas que têm de nutrir. Começa-se sempre por
servir os doentes, que são alojados em enfermarias
públicas.
Em torno da cidade
e um pouco além de seus muros estão situados quatro
hospitais de tal forma espaçosos, que poderiam
ser tomados por quatro burgos consideráveis. Evita-se
assim a acumulação e o atravancamento dos doentes,
inconvenientes que retardam a cura; além disto,
quando um homem é atingido por uma moléstia contagiosa,
pode-se isolá-lo completamente. Esses hospitais
possuem com abundância todos os remédios e todas
as coisas necessárias ao restabelecimento da saúde.
Os doentes são aí tratados com um cuidado afetuoso
e assíduo, sob a direção dos mais hábeis médicos.
Ninguém é obrigado a ir para lá; entretanto, não
há quem, em caso de doença, não prefira tratar-se
no hospital do que em sua casa.
Depois que os provedores
dos hospitais recebem o que pediram, segundo as
prescrições dos médicos, o que há de melhor no
mercado é distribuído, sem distinção, entre todos
os refeitórios, proporcionalmente ao número dos
comedores. Serve-se, ao mesmo tempo, o príncipe,
o pontífice, os traníboras, os embaixadores, os
estrangeiros, se os há, o que é muito raro. Estes
últimos, ao chegarem à cidade, encontram os seus
alojamentos já preparados e providos de todas
as coisas de que podem necessitar.
Uma trombeta marca
a hora das refeições. Então toda a sifograntia
encaminha-se para o refeitório comum, com exceção
dos indivíduos acamados em casa ou no hospital.
É permitido ir ao mercado à procura de víveres
para o consumo particular, mas só depois que as
mesas públicas estiverem completamente providas.
Os utopianos, porém, não se utilizam jamais desse
direito, a não ser por graves motivos: se cada
qual é livre de comer em sua casa, ninguém encontra
prazer em fazê-lo. Ademais, seria loucura dar-se
ao trabalho de preparar um mau jantar, quando
se pode ter um bem melhor a alguns passos.
Os escravos são
encarregados dos trabalhos de cozinha mais sujos
e penosos. As mulheres cozinham os alimentos,
temperam os guisados e servem e tiram as mesas.
Revezam-se nestes misteres, família por família.
Preparam-se três
mesas ou mais, de acordo com o número de convivas.
Os homens assentam-se do lado da parede; as mulheres
ficam dispostas em frente, a fim de que, se alguma
for acometida de uma indisposição súbita, o que
acontece freqüentemente às mulheres grávidas,
possam se retirar sem incomodar ninguém, e ir
para os aposentos das amas.
As amas se sentam
a parte com as crianças de peito, em salas particulares,
sempre aquecidas e providas de água limpa e berços;
desta maneira elas podem deitar as criancinhas,
desenfaixá-las e fazê-las brincar próximo do fogo.
Cada mãe aleita
seu filho, exceto em caso de morte ou de doença.
Nestes dois casos, as mulheres dos sifograntes
procuram imediatamente uma ama, o que não é difícil
encontrar. As mulheres em situação de prestar
este serviço são as primeiras a se oferecer. Aliás,
esta função é uma das mais honrosas, e a criança
pertence tanto à sua ama de leite como à sua mãe.
Na sala das amas
vivem também as crianças que não têm ainda cinco
anos completos. Os meninos e as meninas, da idade
da puberdade até a do casamento servem a mesa.
Os mais jovens e que não têm força para servir,
conservam-se de pé e em silêncio; comem o que
lhes é dado pelos que estão à mesa, e não têm
outro momento para fazer suas refeições.
O sifogrante e sua
mulher são colocados no centro da primeira mesa.
Esta mesa ocupa a extremidade do fundo da sala
e de lá se descortina, num golpe de vista, toda
a assembléia. Dois velhos, escolhidos entre os
mais velhos e mais respeitáveis, assentam-se com
o sifogrante, e, assim, todos os convivas são
servidos e comem quatro a quatro. Se há um templo
na sifograntia, o sacerdote e sua mulher substituem
os dois velhos, presidindo a refeição.
Dos dois lados da
sala estão enfileirados alternativamente dois
jovens e dois indivíduos mais idosos. Esta disposição
aproxima os iguais e mistura, ao mesmo tempo,
todas as idades; e além disso preenche uma finalidade
moral. Como nada se pode dizer ou fazer que não
seja percebido pelos vizinhos, assim a gravidade
da velhice, o respeito que ela inspira, contém
a petulância dos jovens, impedindo-os sair da
medida tanto nas palavras como nos gestos.
A mesa do sifogrante
é servida em primeiro lugar; em seguida as outras,
segundo sua posição. Os melhores pedaços são dados
aos velhos das famílias que ocupam lugares fixos
e de destaque. Todos os demais são servidos com
uma igualdade perfeita. As porções desses bons
velhos não lhes são bastante grandes para dar
a todo o mundo; mas eles as repartem, como entendem,
com os vizinhos mais próximos. Assim, rende-se
à velhice a honra que lhe é devida, e esta homenagem
volve ao bem de todos.
Os almoços e os
jantares começam pela leitura de um livro de moral;
esta leitura é breve para que não aborreça. Quando
terminada, os mais idosos encetam conversações
honestas, mas cheias de jovialidade e alegria.
Longe de falar exclusivamente, eles gostam de
escutar os jovens; provocam mesmo seus repentes,
a fim de apreciar-lhes a natureza do caráter e
do espírito. Ao calor e liberdade reinantes nas
horas de refeição, essa natureza facilmente se
trai.
O almoço é rápido;
a ceia é demorada; porque ao almoço seguem-se
os trabalhos, enquanto que depois da ceia, vêm
o sono e o repouso da noite. Ora, os utopianos
acreditam que o sono da noite é mais favorável
do que o trabalho a uma boa digestão. A ceia não
se realiza sem música e sem uma sobremesa copiosa
e delicada. Os perfumes, as essências mais recendentes,
nada é poupado para o bem estar e o gozo dos convivas.
Poder-se-á, talvez, por isto, acusar os utopianos
de uma tendência excessiva ao prazer? Eles têm
por princípio que a volúpia que não engendra nenhum
mal é perfeitamente legítima.
É assim que vivem
entre si os utopianos das cidades. Aqueles que
trabalham no campo estão muito apartados uns dos
outros para comer em comum; tomam suas refeições
em casa, individualmente. De resto, as famílias
agrícolas têm assegurada uma alimentação abundante
e variada. Nada lhes falta: não são elas as provedoras,
as mães nutrizes das cidades?
Quando
um cidadão deseja ir ver um amigo que mora noutra
cidade, ou quer simplesmente ter o prazer de uma
viagem, os sifograntes e os traníboras consentem
de boa vontade em sua partida se não houver impedimento
razoável.
Os viajantes Se
reúnem para partir em conjunto; munem-se de uma
carta do príncipe que é um certificado de licença
e que fixa o dia de regresso. Fornecem-lhes uma
carruagem e um escravo para guiar a carruagem
e cuidar dos animais. Mas habitualmente, a menos
que levem mulheres em sua companhia, os viajantes
dispensam o carro como um obstáculo. Não se provêm
de nada durante o percurso; porque nada lhes pode
faltar e em qualquer lugar estão em sua casa.
Se um viajante passa
mais de um dia numa localidade, tem que trabalhar
no seu ofício e recebe o mais carinhoso acolhimento
dos operários de sua profissão.
Aquele que por sua
própria vontade se permite franquear os limites
de sua província, é tratado como criminoso; apanhado
sem a licença do príncipe, é reconduzido como
desertor e severamente punido Em caso de reincidência,
perde a liberdade.
Se algum cidadão
deseja fazer excursão nos campos que dependem
de sua cidade, pode fazê-lo com o consentimento
de sua mulher e do pai de família. Mas é necessário
que compre e pague o seu sustento trabalhando
antes do almoço e da ceia tanto quanto os que
aí moram. Sob esta condição, cada indivíduo tem
o direito de sair da cidade e percorrer o território
adjacente, porque ele é tão útil ali como aqui.
Vede que na Utopia a ociosidade e a preguiça são
impossíveis. Não se vêm nem tabernas, nem lugares
de prostituição, nem oportunidade para deboches,
nem antros ocultos, nem assembléias secretas.
Cada um, continuamente exposto ao olhar de todos,
se sente na feliz contingência de trabalhar e
de repousar, conforme as leis e os costumes do
país. A abundância de todas as coisas é o fruto
desta vida pura e ativa. O bem estar se reparte
igualmente por todos os membros desta admirável
sociedade; a mendicidade e a miséria são aí monstros
desconhecidos.
Já disse que cada
cidade da Utopia enviava três deputados ao senado
de Amaurota. As primeiras sessões do senado são
consagradas a levantar a estatística econômica
das diversas partes da ilha. Desde que se verifica
os pontos onde há demais e os pontos onde não
há bastante, o equilíbrio é restabelecido enchendo-se
a carência das cidades infelizes com a superabundância
das cidades mais favorecidas. Esta compensação
é gratuita. A cidade que dá nada recebe em troca
da parte que entrega; e, reciprocamente, recebe
de graça de uma outra cidade à qual nada deu.
Assim, toda a república
utopiana é como uma única e mesma família.
A ilha é sempre
abastecida por dois anos, na incerteza de uma
boa ou má colheita para o ano seguinte. Exportam-se
para fora da ilha os gêneros supérfluos, tais
como trigo, mel, lã, linho, madeiras, matérias
para tinturas, peles, cera, sebo, animais. A sétima
parte dessas mercadorias é distribuída aos pobres
do país para onde se exporta; o resto é vendido
a um preço moderado. Este comércio permite à Utopia
importar não somente objetos de necessidade, o
ferro, por exemplo, como, também, uma massa considerável
de ouro e prata.
Desde que os utopianos
praticam este negócio que acumularam uma quantidade
incrível de riquezas. É por isso que lhes é indiferente,
hoje, vender a vista ou a prazo. Habitualmente,
recebem vales em pagamento; mas não se fiam em
assinaturas individuais. Os vales devem estar
revestidos das formas legais e garantidos à fé
e selo da cidade que os aceita. No dia do vencimento,
a cidade signatária exige o reembolso aos devedores
particulares; o dinheiro é depositado no tesouro
público e o seu valor é garantido até que os credores
utopianos o reclamem.
Estes não reclamam
quase nunca o pagamento da dívida inteira; acreditariam
cometer uma injustiça, tirando a um outro uma
coisa que lhe é necessária e que para ele é inútil.
Entretanto, há casos em que retiram toda a soma
que lhes é devida; isto acontece quando querem
se servir desta para emprestar a uma nação vizinha
ou para empreender uma guerra. Neste último caso,
juntam todas suas riquezas para fazer como que
uma trincheira de metal contra os perigos urgentes
e imprevistos. Estas riquezas são destinadas a
engajar e a pagar copiosamente as tropas estrangeiras;
porque o governo da Utopia prefere expor à morte
os estrangeiros que os seus cidadãos. Ele sabe
também que o inimigo mais encarniçado se vende
algumas vezes, se o preço da venda está à altura
de sua cobiça; sabe que, em geral, o dinheiro
é o nervo da guerra, quer para comprar traições,
quer para combater abertamente.
Para tais fins,
os utopianos têm sempre à sua disposição imensos
tesouros; mas, longe de conservá-los com uma espécie
de culto religioso, como fazem outros povos, eles
os empregam em coisas que mal ouso dizer-vos.
Temo que não acrediteis, pois eu mesmo, confesso-vos
francamente, se não tivesse visto a coisa não
acreditaria sobre palavra. Isto é muito natural;
quanto mais os costumes estrangeiros são opostos
aos nossos, menos estamos dispostos a acreditar
neles. Contudo, o homem sábio que julga judiciosamente,
ao saber que os utopianos pensam e agem de modo
exatamente contrário aos outros povos, não se
surpreenderá que eles empreguem o ouro e a prata
de modo inteiramente diverso de nós. Na Utopia
não se utiliza jamais dinheiro em moeda nas transações
mútuas; são elas reservadas para os acontecimentos
críticos sempre possíveis, ainda que incertos.
O ouro e a prata
não têm, nesse país, mais valor do que lhes deu
a natureza. Esses dois metais são ali considerados
bem abaixo do ferro, o qual é tão necessário ao
homem quanto a água e o fogo. Com efeito, o ouro
e a prata não têm nenhuma virtude, nenhum uso,
nenhuma propriedade cuja privação acarrete um
inconveniente natural e verdadeiro. Foi a loucura
humana que pôs tanto valor em sua raridade.
A natureza, esta
excelente mãe, escondeu-os em grandes profundidades,
como produtos inúteis e vãos, enquanto que expõe
a descoberto a água, o ar, a terra, e tudo o que
há de bom e realmente útil.
Os utopianos não
escondem seus tesouros nas torres, ou em outros
lugares fortificados e inacessíveis. O vulgo,
numa extravagante malícia, poderia suspeitar que
o príncipe e o senado enganassem o povo, enriquecendo-se
e pilhando a fortuna pública. Com o ouro e a prata
não se fabricam nem vasos, nem obras artisticamente
trabalhadas. Porque, se houvesse necessidade de
um dia fundi-los, para pagar o exército em caso
de guerra, os que tivessem posto sua afeição e
suas delícias nesses objetos de arte e de luxo,
sentiriam, ao perdê-los, uma dor amarga.
A fim de prevenir
esses inconvenientes, os utopianos imaginaram
um uso perfeitamente em harmonia com o restante
de suas instituições, mas em completo desacordo
com as do nosso continente, onde o ouro é adorado
como um Deus, procurado como o bem supremo. Eles
comem e bebem em louça de barro ou vidro, que
se é elegante na forma, é, no entanto, despida
do menor valor; o ouro e a prata são destinados
aos usos mais vis, tanto nas residências comuns,
como nas casas particulares; são feitos com eles
até os vasos noturnos. Forjam-se cadeias e correntes
para os escravos, e marcas de opróbrio para os
condenados que cometeram crimes infames. Estes
últimos levam anéis de ouro nos dedos e nas orelhas,
um colar de ouro no pescoço, um freio de ouro
na cabeça.
Assim, tudo concorre
para manter o ouro e a prata na ignominia. Entre
outros povos a perda da fortuna é um sofrimento
tão cruel como um dilaceramento de entranhas;
mas quando se arrancasse à nação utopiana todas
suas imensas riquezas ninguém pareceria ter perdido
um cêntimo.
Os utopianos recolhem
pérolas na sua costa, diamantes e pedras preciosas
em certos rochedos. Sem ir à cata desses objetos
raros, eles gostam de polir os que a sorte os
presenteia, a fim de adornar os seus filhinhos,
que ficam todo orgulhosos de trazer esses ornamentos.
Mas, à medida que crescem, percebem logo que estas
frivolidades não convêm senão às crianças pequenas.
Então, não esperam pela observação dos pais; espontaneamente
e por amor próprio livram-se desses enfeites.
É como entre nós, quando as crianças que vão crescendo,
abandonam as bolas e as bonecas.
Estas instituições,
tão diferentes das dos outros povos, gravam no
coração do utopiano sentimentos e idéias inteiramente
contrárias às nossas. Fiquei singularmente chocado
com esta diferença por ocasião de uma embaixada
anemoliana. Os enviados de Anemólia vieram a Amaurota
quando eu lá estava, e como deviam tratar de negócios
de alta importância, o senado esteve reunido na
capital. Até então, os embaixadores das nações
limítrofes que tinham vindo à Utopia, aí levaram
a vida mais simples e modesta, porque estavam
já ao par dos costumes utopianos. Sabiam que o
luxo de seus atavios não tem lá nenhum valor,
a seda é desprezada e o ouro uma coisa infame.
Mas, os anemolianos,
muito mais afastados da ilha, tinham tido muito
poucas relações com ela. Ao saberem que os seus
habitantes vestiam-se de modo grosseiro e uniforme,
imaginaram que esta extrema simplicidade era causada
pela miséria, e, mais vaidosos do que sagazes,
resolveram apresentar-se com a magnificência digna
de enviados celestes e ofuscar esses miseráveis
insulares com o brilho de um fausto deslumbrante.
Os três ministros,
que eram grandes senhores de Anemólia, ao entrar
em Amaurota, faziam-se seguidos de cem pessoas,
vestidas de trapos de seda de diversas cores.
Os próprios embaixadores traziam uma vestimenta
rica e suntuosa; trajavam uma roupa de lã tecida
com ouro, traziam colares e brincos de ouro nas
orelhas, anéis de ouro nos dedos e os seus chapéus
resplandeciam de pedrarias. Enfim, estavam cobertos
do que na Utopia constitui o suplício do escravo,
a marca vergonhosa da infâmia, o brinquedo da
criança.
Era divertido ver
a orgulhosa satisfação dos embaixadores e das
pessoas do seu séquito, que, comparavam o luxo
de seus paramentos às vestes simples e negligentes
do povo utopiano, espalhado em massa à sua passagem.
De outro lado, não era menos curioso observar
a atitude da população, e como esses estrangeiros
se enganavam em sua expectativa, e como estavam
longe de despertar a estima e as honras que tinham
imaginado.
A parte um pequeno
número de utopianos, que tinha viajado no exterior
por graves motivos, todos os outros olhavam com
piedade todo este aparato suntuoso; os utopianos
saudavam os mais ínfimos lacaios do cortejo, tomando-os
por embaixadores, e deixavam passar os embaixadores,
sem lhes dar mais atenção do que aos lacaios,
porque os viam carregados de cadeias de ouro como
seus escravos.
As crianças que
já tinham abandonado os diamantes e as pérolas
e que as viam nos chapéus dos embaixadores, puxavam
suas mães, gritando:
Veja este grandalhão
que ainda traz pedrarias como se fosse pequenino.
E as mães respondiam
gravemente:
Calai-vos, meu filho,
é, eu penso, um dos bufões da embaixada.
Muitos criticavam
a forma dessas correntes de ouro.
Elas são, diziam,
muito finas, e poderiam ser quebradas facilmente;
além disso, não estão bem fechadas e apertadas,
e o escravo poderia se desembaraçar delas, se
quisesse, e fugir.
Dois dias depois
de sua entrada em Amaurota, 08 embaixadores compreenderam
que os utopianos desprezavam o ouro tanto quanto
ele era venerado no seu país. Tiveram ocasião
de observar no corpo de um escravo mais ouro e
prata do que o que trazia toda a sua escolta.
Então, humilhados em sua vaidade e envergonhados
da mistificação de que tinham sido vítimas, despojaram-se
apressadamente do fausto que tão orgulhosamente
tinham exposto. As relações íntimas que entretiveram
na Utopia, ensinaram-lhes quais eram os princípios
e os costumes de seus habitantes.
Os utopianos admiram-se
de que seres razoáveis possam se deleitar com
a luz incerta e duvidosa de uma pedra ou de uma
pérola, quando têm os astros e o sol com que encher
os olhos. Encaram como louco aquele que se acredita
mais nobre e mais estimável só porque está coberto
de uma lã mais fina, lã tirada das costas de um
carneiro, e que foi usada primeiro por este animal.
Admiram-se que o ouro, inútil por sua própria
natureza, tenha adquirido um valor fictício tão
considerável que seja muito mais estimado do que
o homem; ainda que somente o homem lhe tenha dado
este valor e dele se utilize, conforme seus caprichos.
Espantam-se também
que um rico, de inteligência de chumbo, estúpido
como uma acha de lenha, tão tolo quanto imoral,
mantenha em sua dependência uma multidão de homens
sábios e virtuosos, apenas porque a sorte lhe
deixou algumas pilhas de escudos.
Mas, dizem, a fortuna
pode traí-lo e a lei (que tanto quanto a sorte
precipita freqüentemente o homem do pináculo ao
lodo) pode arrancar-lhe o dinheiro, fazendo-o
passar às mãos do mais ignóbil de seus lacaios.
Então, este mesmo rico se sentirá feliz em passar
também, na companhia de seu dinheiro, a serviço
de seu antigo criado.
Há uma outra loucura
que os utopianos detestam ainda mais, e que dificilmente
concebem, é a loucura dos que rendem homenagens
quase divinas a um homem porque é rico, sem serem,
entretanto, nem seus devedores nem seus súditos.
Os insensatos sabem, não obstante, como é sórdida
a avareza desses Cresos egoístas; sabem, perfeitamente,
que nunca terão um vintém de todos os tesouros
destes últimos.
Nossos insulares
adquirem semelhantes sentimentos, parte no estudo
das letras, parte na educação que recebem no seio
de uma república cujas instituições são formalmente
opostas a todas as nossas espécies e gêneros de
extravagância. É verdade que um número muito pequeno
é dispensado dos trabalhos materiais, entregando-se
exclusivamente à cultura do espírito. São, como
já disse, aqueles que, desde a infância, demonstraram
aptidões raras, um gênio penetrante, vocação científica.
Mas nem por isso se deixa de dar uma educação
liberal a todas as crianças; e a grande massa
dos cidadãos - homens e mulheres - consagra, cada
dia, seus momentos de repouso e liberdade aos
trabalhos intelectuais.
Os utopianos aprendem
as ciências em sua própria língua, rica e harmoniosa,
intérprete fiel do pensamento; ela é difundida,
mais ou menos alterada, sobre uma grande extensão
do globo.
Antes de nossa chegada,
os utopianos nunca tinham ouvido falar nesses
filósofos tão famosos no nosso mundo; entretanto,
fizeram as mesmas descobertas que nós, no terreno
da música, da aritmética, da dialética, da geometria.
Se igualam em quase tudo os nossos antigos, são
bastante inferiores aos dialéticos modernos, porque
ainda não inventaram nenhuma dessas regras sutis
de restrição, amplificação, suposição, que se
ensinam à juventude nas escolas de lógica. Ainda
não aprofundaram as idéias segundas; e, quanto
ao homem em geral, ou universal, segundo a gíria
metafísica, este colosso, o maior dos gigantes,
que nos mostram aqui, ninguém na Utopia pode ainda
percebê-lo.
Em compensação,
conhecem de uma maneira precisa o curso dos astros
e o movimento dos corpos celestes. Imaginaram
máquinas que representam com grande exatidão os
movimentos e as posições respectivas do sol e
da lua e dos astros visíveis acima do seu horizonte.
Quanto aos ódios e às amizades dos planetas e
às demais imposturas de adivinhação pelo céu,
nem mesmo em sonhos disso se ocupam. Sabem prever,
por indícios confirmados por uma longa experiência,
a chuva, o vento e as outras revoluções do ar.
Fazem apenas conjecturas sobre as causas desses
fenômenos, sobre o fluxo e o refluxo do mar, sobre
a composição salina dessa imensa massa líqüida,
a origem e a natureza do céu e do mundo. Seus
sistemas coincidem em certos pontos com os dos
nossos antigos filósofos; e em outros, se afastam.
Mas, nas novas teorias que imaginaram, há dissidências
entre eles, como entre nós.
Em filosofia moral,
agitam as mesmas questões que os nossos doutores.
Procuram na alma do homem, no seu corpo e nos
objetos exteriores, o que pode contribuir para
sua felicidade; perguntam, procuram saber se o
nome de Bem convém indiferentemente a todos os
elementos da felicidade material e intelectual,
ou só ao desenvolvimento das faculdades do espírito.
Dissertam sobre a virtude e o prazer; mas a primeira
e principal de suas controvérsias tem por fito
determinar a condição única, ou as diversas condições
da felicidade do homem.
Talvez possais acusá-los
de propender demais para o epicurismo, porque,
se a volúpia não é, para eles, o único elemento
da felicidade, é um dos mais essenciais. E, fato
singular, invocam em apoio dessa moral voluptuosa
a religião tão grave e severa, tão triste e rígida.
Têm por princípio não discutir jamais sobre o
bem e o mal, sem partir dos axiomas da religião
e da filosofia; de outra maneira, temeriam raciocinar
em bases falhas e edificar falsas teorias.
Eis
aqui seu catecismo religioso:
A alma é imortal:
Deus que é bom, criou-a para ser feliz. Depois
da morte, as recompensas coroam a virtude, suplícios
atormentam o crime.
Embora esses dogmas
pertençam à religião, os utopianos pensam que
a razão pode induzir a crer neles e aceitá-los
Não hesitam em declarar que, na ausência desses
princípios, fora preciso ser estúpido para não
procurar o prazer por todos os meios possíveis,
criminosos ou legítimos. A virtude consistiria,
então, em escolher, entre duas volúpias, a mais
deliciosa, a mais picante; e em fugir dos prazeres
a que se seguissem dores mais vivas do que o gozo
que tivessem proporcionado.
Mas praticar virtudes
severas e difíceis, renunciar aos prazeres da
vida, sofrer voluntariamente a dor e nada esperar
depois da morte em recompensa às mortificações
da terra, é, aos olhos dos nossos insulares, o
cúmulo da loucura.
A felicidade, dizem,
não está em toda espécie de voluptuosidade; está
unicamente nos prazeres bons e honestos. É para
esses prazeres que tudo, até a própria virtude,
arrasta irresistivelmente a nossa natureza; são
eles que constituem a felicidade.
Os utopianos definem
a virtude: viver segundo a natureza. Deus, criando
o homem, não lhe deu outro destino.
O homem que segue
o impulso da natureza, é aquele que obedece à
voz da razão, em seus ódios e seus apetites. Ora,
a razão inspira, em primeiro lugar, a todos os
mortais o amor e a adoração da majestade divina,
à qual nós devemos o ser e o bem estar. Em segundo
lugar, ela nos ensina e nos instiga a viver alegremente
e sem lamentações, e a proporcionar aos nossos
semelhantes, que são nossos irmãos, os mesmos
benefícios.
De fato, o mais
enfadonho e o mais fanático zelador da virtude,
o inimigo mais odiento do prazer, ao vos propor
imitar seus trabalhos, suas vigílias e mortificações,
ordena-vos, também, mitigar, com todas as vossas
forças, a miséria e as aflições dos outros. Esse
moralista severo cumula de elogios, em nome da
humanidade, o homem que consola e que salva o
homem; e crê, assim, que a virtude mais nobre
e mais humana, em qualquer terreno, consiste em
suavizar os sofrimentos do próximo, arrancá-lo
ao desespero e à tristeza, restituir-lhe as alegrias
da vida, ou, em outros termos, fazê-lo ter parte
também na volúpia.
E por que a natureza
não induziria cada um de nós a se fazer, a si
mesmo, o mesmo bem que aos outros? Pois, das duas
uma: ou uma existência agradável, isto é, a volúpia,
é um bem ou um mal. Se é um mal, não somente não
se deve ajudar seus semelhantes a fruí-la, mas
ainda deve-se arrancá-la como coisa perigosa e
condenável. Se é um bem, pode-se e deve-se procurá-la
para si próprio como para os outros. Por que iríamos
ter menos compaixão de nós do que dos outros?
A natureza, que inspira em nós a caridade por
nossos irmãos, não ordena que sejamos cruéis conosco
mesmos.
Eis o que leva os
utopianos a afirmarem que uma vida honestamente
agradável quer dizer que a volúpia é o fim de
todas as nossas ações; que tal é a vontade da
natureza e que obedecer a esta vontade é ser virtuoso.
A natureza, dizem
eles, convida todos os homens a se ajudarem mutuamente
e a partilharem em comum do alegre festim da vida.
Este preceito é justo e razoável, pois não há
indivíduo tão altamente colocado acima do gênero
humano que somente a Providência deva cuidar dele.
A natureza deu a mesma forma a todos; aqueceu-os
todos com o mesmo calor, envolve todos com o mesmo
amor; o que ela reprova, é aumentar o próprio
bem estar agravando a infelicidade de outrem.
É por isto que os
utopianos pensam que é necessário observar não
só as convenções privadas entre simples cidadãos,
mas ainda as leis públicas, que regulam a distribuição
das comodidades da vida, em outros termos, que
distribuem a matéria do prazer, quando estas leis
foram justamente promulgadas por um bom príncipe,
ou sancionadas pelo consentimento geral de um
povo, nem oprimido pela tirania, nem embaído pelo
artifício.
A sabedoria reside
em procurar a felicidade sem violar as leis. A
religião é trabalhar pelo bem geral. Calcar aos
pés a felicidade de outrem, em busca da sua, é
uma ação injusta.
Ao contrário, privar-se
de algum prazer, para comunicá-lo a outrem, é
indício de um coração nobre e humano, e que, aliás,
torna a achá-lo muito superior ao prazer sacrificado.
Primeiro que tudo, esta boa ação é recompensada
pela reciprocidade dos serviços; em seguida, o
testemunho da consciência, a lembrança e o reconhecimento
dos que foram obsequiados causam à alma delícia
maior que não poderia ter dado ao corpo o objeto
de que se foi privado. Finalmente, o homem que
tem fé nas verdades religiosas, deve estar firmemente
persuadido de que Deus recompensa a privação voluntária
de um prazer efêmero e passageiro, com alegrias
inefáveis e eternas
Assim, em última
análise, os utopianos reduzem todas as ações e
mesmo todas as virtudes ao prazer, como finalidade.
Eles chamam volúpia
todo o estado ou todo movimento da alma e do corpo,
nos quais o homem experimenta uma deleitação natural.
Não é sem razão que eles acrescentam a palavra
natural, porque não é semente a sensualidade,
é também a razão que nos atrai para as coisas
naturalmente deleitáveis; e por isto devemos compreender
os bens que se podem procurar sem injustiça, os
gozos que não privem de um prazer mais vivo, e
que não arrastem consigo nenhum mal.
Há coisas fora da
natureza, que os homens, por uma convenção absurda,
intitulam prazeres (como se tivessem o poder de
transformar a essência tão facilmente como modificam
as palavras). Essas coisas, longe de contribuir
para a felicidade, são outros tantos obstáculos
em seu caminho; aos que seduzem, elas impedem
gozarem satisfações puras e verdadeiras; viciam
o espírito, preocupando-o com a idéia de um prazer
imaginário. Há, com efeito, uma quantidade de
coisas, às quais a natureza não juntou nenhuma
doçura, as quais ela chegou até a misturar de
amargura e que, no entanto, os homens olham como
altas volúpias de algum modo necessárias à vida,
apesar de, na sua maioria, serem essencialmente
más e só estimular as paixões perversas.
Os utopianos classificam
nessa espécie de prazeres bastardos, a vaidade
daqueles de que já falei, que se crêem melhores
porque usam uma roupa mais bonita. A vaidade desses
tolos é duplamente ridícula.
Em primeiro lugar,
consideram suas roupas acima de suas pessoas;
pois, quanto ao que é de uso, em que, vos pergunto,
uma lã mais fina prevalece sobre uma lã mais grossa?
Entretanto, os insensatos, como se se distinguissem
da multidão pela excelência de sua natureza, e
não pela loucura de seu comportamento, erguem
orgulhosamente a cabeça, imaginando valer um grande
preço. Exigem, em virtude da rica elegância de
suas vestes, honras que não ousariam esperar com
um traje simples e comum; mostram-se indignados
quando se olha a sua roupa com um olhar de indiferença.
Em segundo lugar,
esses mesmos homens não são menos estúpidos por
se alimentarem de honras sem realidade e sem proveitos.
É natural e verdadeiro o prazer que se sente em
frente de um adulador que tira o chapéu e dobra
humildemente o joelho? Uma genuflexão cura alguém
da febre ou da gota?
Entre aqueles que
ainda seduz uma falsa imagem do prazer, estão
os nobres que se comprazem com orgulho e amor
no pensamento de sua nobreza. E de que se gabam?
Do acaso que os fez nascer em uma longa série
de ricos antepassados, e, sobretudo, de ricos
proprietários (porque a nobreza de hoje é a riqueza).
Todavia, se esses insensatos nada tivessem herdado
de seus pais, ou tivessem devorado todo seu patrimônio,
ainda assim não se sentiriam, por isso, diminuídos
na sua nobreza de um só cabelo.
Os utopianos classificam
os amadores de pedrarias na categoria dos maníacos
de nobreza. Os homens que têm essa paixão, julgam-se
uns pequenos deuses, quando encontram uma pedra
bela e rara, particularmente apreciada na sua
época e no seu país, pois. a mesma pedra não conserva
sempre e por toda a parte o mesmo valor. O amador
de pedras as compra nuas e sem ouro; leva mesmo
a precaução a ponto de exigir do vendedor uma
caução e até o juramento que o diamante, o rubi,
o topázio são de bom quilate, de tal modo teme
que um falso brilhante impressione os seus olhos!
Que prazer há, pois, em olhar uma pedra natural
de preferência a uma artificial, desde que o olho
não apreende a diferença? Tanto uma como outra
não têm realmente mais valor para um que enxerga
do que para um cego.
Que dizer dos avarentos
que acumulam dinheiro e mais dinheiro, não para
seu uso, mas para se consumir na contemplação
de uma enorme quantidade de metal? O prazer desses
ricos miseráveis não é pura quimera? Será mais
feliz aquele que, por uma extravagância mais estúpida
ainda, enterra os seus escudos? Este último nem
ao menos vê o seu tesouro, e o medo de perdê-lo
faz que o perca de fato. Mas enterrar ouro não
é o mesmo que roubar a si próprio e aos outros?
No entanto, o avarento sente-se tranqüilo, salta
de alegria quando enterrou bem suas riquezas.
Agora, suponhamos que alguém se apodere desse
depósito confiado à terra, e que o nosso Harpagão
sobreviva dez anos à sua ruína, sem o saber; eu
vos pergunto, que lhe importou nesse intervalo,
ter conservado ou perdido o tesouro? Enterrado
ou roubado, ele lhe deu exatamente a mesma serventia.
Os utopianos encaram
também como imaginários os prazeres da caça e
dos jogos de azar. Dos últimos não conhecem os
desatinos senão de nome, não os praticando jamais.
Que divertimento podereis encontrar, dizem eles,
em jogar um dado sobre a mesa? E supondo que houvesse
nisso qualquer prazer, vós já vos fartastes tantas
vezes dele que deve ter-se tornado enfadonho e
insípido
Não é mais fatigante
do que agradável ouvir os cães ladrarem e ganirem?
Em que é mais divertido ver correr um cão atrás
de uma lebre do que vê-lo atrás de outro cachorro?
Entretanto, se é a corrida que faz o prazer, a
corrida existe nos dois casos. Mas não é antes
a expectativa da morte ou a espera da carniceria
o que apaixonam os homens pela caça? E como não
abrir a alma à piedade, como não ter horror a
esta matança, em que o cão forte, cruel e audaz,
dilacera a lebre fraca, tímida e fugitiva?
É por isso que os
nossos insulares proíbem a caça aos homens livres,
como um exercício indigno deles; ela só é permitida
aos magarefes, que são todos escravos. E mesmo
na opinião deles, a caça é a parte mal vil da
arte de matar os animais; as outras partes desse
ofício são muito mais consideradas, porque trazem
maior lucro e porque nelas só matam os animais
por necessidade, enquanto que o caçador procura
no sangue e na morte um divertimento estéril.
Os utopianos desprezam
todas essas alegrias, e muitas outras semelhantes
em número quase infinito, e que o vulgo considera
como bens supremos, mas cuja suavidade aparente
não se encontra na natureza. Mesmo que esses prazeres
enchessem os sentidos da mais deliciosa embriaguez
(o que parece ser o efeito natural da volúpia)
os utopianos sustentam que os mesmos nada têm
de comum com a verdadeira voluptuosidade; porque,
dizem, esse prazer sensual não vem da própria
natureza do objeto, é o fruto de hábitos depravados
que fazem achar doce o que é amargo. É assim que
as mulheres grávidas, cujo gosto está corrompido,
acham a resina e o sebo mais doces que o mel.
Os utopianos distinguem
diversas espécies de prazeres verdadeiros: uns
se relacionam com o corpo, outros com a alma.
Os prazeres da alma
estão no desenvolvimento da inteligência e nas
puras delícias que acompanham a contemplação da
verdade. Nossos insulares acrescentam ainda o
testemunho de uma vida irreprochável e a esperança
certa de uma imortalidade bem-aventurada.
Eles dividem em
duas espécies as voluptuosidades do corpo:
A primeira espécie
compreende todas volúpias que exercem sobre os
sentidos uma impressão atual, manifesta, e cuja
causa é o restabelecimento dos órgãos consumidos
pelo calor interno. Essa impressão nasce de um
lado, da ação de beber e comer que devolve as
forças perdidas; de outro lado, das funções animais
que expelem do corpo as matérias supérfluas. Tais
são as secreções intestinais, o coito, e o alívio
de uma comichão qualquer, ao esfregar-se ou ao
coçar-se.
Algumas vezes o
prazer dos sentidos não provém das funções animais
que reparam os órgãos esgotados, ou os aliviam
de uma exuberância penosa; mas pelo efeito de
uma força interior e indefinível que comove, encanta
e seduz; tal é o prazer que nasce da música.
A segunda espécie
de volúpia sensual consiste no equilíbrio estável
e perfeito de todas as partes do corpo, isto é,
numa saúde isenta de mal estar. Com efeito, o
homem que não é afetado pela dor, experimenta
em si um certo sentimento de bem estar, mesmo
que nenhum objeto exterior agite agradavelmente
os seus órgãos. É verdade que esta espécie de
volúpia não afeta nem atordoa os sentidos, como
por exemplo os prazeres da mesa; apesar disso,
muitos a colocam em primeiro lugar; e quase todos
os utopianos declaram que ela é a base e o fundamento
da verdadeira felicidade. Porque, dizem, só uma
saúde perfeita torna a condição da vida humana
tranqüila e apetecível; sem saúde, não há voluptuosidade
possível; sem ela, a própria ausência da dor não
é um bem, é a insensibilidade do cadáver.
Uma viva disputa
travou-se outrora na Utopia a este respeito. Alguns
pretendiam que não se devia contar no número dos
prazeres uma saúde estável e tranqüila, porque
esta não dá a perceber um gozo atual e diferente,
como as sensações que nos vêem de fora. Mas hoje,
todos, com pequeníssima exceção, concordam em
proclamar a saúde como uma volúpia essencial.
Com efeito, para eles, é a dor que, na moléstia,
é a inimiga implacável do prazer; ora, a moléstia
é igualmente inimiga da saúde; por que então não
haveria prazer na saúde, da mesma forma que há
dor na moléstia? Pouco importa que a doença seja
a dor ou que a dor seja inerente à moléstia, desde
que os resultados são de todo semelhantes. Ainda
que se considere a saúde como a própria voluptuosidade,
ou como a causa que a produz necessariamente,
assim como o fogo produz necessariamente o calor,
o homem de saúde inalterável deve nos dois casos
experimentar um certo prazer. Quando comemos,
perguntam os utopianos, não é a saúde que, começando
a desfalecer, luta contra a fome com a ajuda dos
alimentos? Estes avançam, repelindo o seu inimigo
cruel e dão ao homem a alegria que acompanha o
retorno do seu vigor normal. Mas a saúde que lutara
com tanto gosto, não teria o direito de rejubilar-se
após a vitória? O que ela procurava na luta era
a sua força primitiva; e obtido este resultado,
é admissível que venha a cair num entorpecimento
estúpido, sem conhecer e apreciar a própria felicidade?
Em conseqüência
disto, os utopianos rejeitam completamente a opinião
de que o homem sadio não tem consciência de seu
estado. Segundo eles, é necessário estar-se doente
ou adormecido para não sentir que se está são;
seria preciso ser-se de pedra, ou estar-se atacado
de letargia, para não se comprazer de uma saúde
perfeita, e nisso sentir encanto. Ora, este encanto,
esta satisfação, que outra coisa é senão a voluptuosidade?
Eles se entregam
acima de tudo aos prazeres do espírito, que encaram
como o principal e mais essencial de todos os
prazeres; colocam no plano dos mais puros e mais
desejáveis, a prática da virtude e a consciência
de uma vida sem mancha. Entre as volúpias corporais
dão preferência à saúde porque não se deve procurar
a boa mesa e os outros prazeres da vida animal,
senão visando a conservação da saúde, visto que
essas coisas não são deleitáveis em si mesmas,
mas unicamente em virtude de se oporem à invasão
secreta da moléstia.
O homem prudente
previne o mal, de preferência a empregar os remédios;
evita a dor antes de recorrer aos alívios. De
conformidade com essas normas, os utopianos usam
de todos os prazeres corporais, para cuja privação
fosse preciso o emprego de meios curativos. Mas
não depositam toda sua felicidade nesses prazeres;
do contrário, o cúmulo da felicidade humana seria
a fome e a sede permanentes, pois que seria preciso
então comer e beber sem cessar. Certamente semelhante
vida seria tão miserável quão ignóbil.
Os prazeres animais
são os mais vis, os menos puros, e sempre uma
dor os acompanha. Não está presa a fome ao prazer
de comer, e isto em proporções desiguais? Com
efeito, a sensação da fome é a mais violenta;
ela é também a mais durável pois nasce antes do
prazer e não morre senão com ele.
Os utopianos, formados
nesses princípios, pensam que se não deve dar
importância às volúpias carnais senão na medida
em que são úteis. Todavia, eles se entregam alegremente
a elas, agradecidos à natureza, que, ao cuidar
do homem, tem a ternura de uma mãe e mistura impressões
tão doces e suaves com as funções indispensáveis
da vida.
Que
triste destino seria o nosso, se nos fosse preciso
expulsar, à força de venenos e drogas amargas,
a fome e a sede de cada dia, como expulsamos as
moléstias que nos assaltam de longe em longe!
Eles mantêm e cultivam
de boa vontade a beleza, o vigor, a agilidade
do corpo, os dons mais agradáveis e felizes da
natureza. Admitem também os prazeres que a natureza
criou exclusivamente para o homem e que fazem
a graça e o encanto da vida. Porque o animal não
demora a olhar sobre a magnificência da criação,
sobre a ordem e o arranjo do universo. Sente o
odor para distinguir a alimentação, mas não saboreia
a delícia dos perfumes; não conhece as relações
dos sons, e não aprecia a dissonância nem a harmonia.
Finalmente, em toda
espécie de satisfações sensuais, os utopianos
não esquecem jamais esta regra prática:
Fugir à volúpia
que impede gozar uma; volúpia maior ou que é seguida
de qualquer dor. Ora, a dor é, a seus olhos, a
conseqüência inevitável de toda volúpia desonesta.
Eis ainda um de
seus princípios:
Desprezar a beleza
do corpo, enfraquecer suas forças, converter sua
agilidade em entorpecimento, esgotar seu temperamento
pelo jejum e pela abstinência, arruinar a saúde,
em uma palavra, repelir todos os favores da natureza,
no intuito de devotar-se mais eficazmente à felicidade
humana, na esperança de que Deus venha recompensar
essas penas de um dia por êxtases de alegria eterna,
é dar mostra de religião sublime. Mas crucificar
a carne, sacrificar-se por um vão fantasma de
virtude, ou para habituar-se antecipadamente a
misérias que talvez não aconteçam nunca, é dar
mostra de loucura, de uma covarde crueldade para
consigo mesmo, de orgulhosa ingratidão para com
a natureza. É pisar aos pés os benefícios do Criador,
como desdenhando ser-lhe obrigado em alguma coisa.
Tal é a teoria utopiana
no que se refere à virtude, e ao prazer. A menos
que uma revelação descida do céu inspire ao homem
qualquer coisa de mais santo, eles crêem que a
razão humana não pode conceber nada de mais verdadeiro.
Esta moral é boa,
é má? É o que não discutirei; não tenho tempo
para tanto e não é, aliás, necessário ao meu objetivo;
faço apenas história e não uma apologia. O que
é certo para mim, é que o povo da Utopia, graças
às suas instituições, é o primeiro de todos os
povos, e que não existe em parte alguma república
mais feliz.
O utopiano é ágil
e nervoso; sem ser de pequeno talhe, é mais vigoroso
do que parece exteriormente. A ilha não é de igual
fertilidade em todos os lugares; o ar não é em
toda a parte igualmente puro e salubre. Os habitantes
combatem pela temperança as influências funestas
da atmosfera; corrigem o solo por meio de uma
excelente cultura; de modo que em nenhuma outra
parte vi jamais gado tão robusto, nem mais abundantes
colheitas. Em pais nenhum a vida do homem é mais
longa e as moléstias menos numerosas.
Não somente os cidadãos
agricultores executam com grande perfeição os
trabalhos que fertilizam uma terra naturalmente
ingrata; mas o povo em massa é empregado algumas
vezes em extirpar florestas mal situadas para
a comodidade de transporte, e plantar novas perto
do mar, dos rios ou das cidades; porque de todos
os produtos do solo, a madeira é o mais difícil
de transportar por terra.
O povo utopiano
é espiritual, amável, engenhoso, ama o lazer,
é paciente no trabalho, quando o trabalho é necessário;
sua paixão favorita é o exercício e o desenvolvimento
do espírito. Durante a nossa estada na ilha tivemos
a ocasião de dizer algo aos seus habitantes das
letras e ciências da Grécia. Era verdadeiramente
curioso ver o ardor com que esses bons insulares
nos suplicavam interpretar-lhes os autores gregos;
não lhes falamos dos latinos, pensando que não
apreciariam desses últimos senão os historiadores
e poetas. Afinal foi forçoso ceder às suas súplicas;
e, confessar-vos-ei, foi de nossa parte um ato
de pura complacência de que não esperávamos tirar
grande proveito. Mas, depois de algumas lições,
tínhamos razão em nos felicitar pelo êxito do
empreendimento. Ficamos maravilhados da facilidade
com que os meus discípulos copiavam a forma das
letras, da nitidez de sua pronúncia, da presteza
de sua memória e da fidelidade de suas traduções.
É verdade que a maior parte dos que se tinham
entregue a esse estudo, a princípio, espontaneamente,
com tão belo ardor, depois foi obrigada a fazê-lo
por um decreto do senado; eram eles os sábios
mais notáveis da classe dos letrados, e homens
de idade madura. Em menos de três anos não havia
nada nas obras dos bons autores que não compreendessem
perfeitamente à simples leitura, exceto as dificuldades
provenientes de erros tipográficos.
Sou de opinião que
a grande facilidade com que aprenderam o grego
prova que esta língua não lhes era inteiramente
desconhecida. Creio que são gregos de origem e
ainda que o seu idioma se aproxime muito do persa,
nos nomes das suas cidades e magistraturas encontram-se
alguns traços da língua grega.
Quando
de minha quarta viagem à Utopia, em lugar de mercadorias,
embarquei com um lindíssimo pacote de livros,
resolvido que estava de só regressar à Europa
depois de longo tempo. Ao deixar os utopianos,
leguei-lhes minha biblioteca; ficaram assim, por
meu intermédio, com quase todas as obras de Platão,
um grande número das de Aristóteles, o livro de
Teofrasto sobre as Plantas, que estava rasgado
em várias passagens, o que lastimo infinitamente.
Durante a travessia
descuidei-me dele e por infelicidade um macaco
deu com o livro, e pôs-se a divertir-se arrancando-lhe
as folhas ao acaso. Dentre os gramáticos, só pude
dar aos nossos insulares o Lascarias, por não
ter trazido o grande Teodoro; em matéria de dicionários
dei-lhes o Hesichius e o Dioscórido.
Plutarco é o autor
favorito deles; a jovialidade, a sedução de Luciano
os encantam. Entre os poetas possuem Aristófanes,
Homero, Eurípedes e Sófocles. Como historiadores,
deixei-lhes Tucídides, Heródoto e Herodiano.
De medicina, têm
algumas obras de Hipócrates e o Microtecné, de
Galeno, que meu companheiro .de viagem, Tricius
Apinas, levara consigo. Os dois últimos livros
são muito apreciados entre eles porque se não
há país algum onde a medicina seja menos necessária
do que na Utopia, em compensação em parte alguma
é mais respeitada. Os utopianos a situam entre
as partes mais úteis e mais nobres da filosofia
natural. O médico, costumam dizer, que se aplica
em penetrar os mistérios da vida, não somente
tira deste estudo admiráveis prazeres, como ainda
se torna agradável ao divino obreiro, autor da
vida. Nas idéias utopianas, o Criador, assim como
os operários da terra, expõe sua máquina do mundo
aos olhos do homem, único ser capaz de compreender
esta bela imensidade. Deus olha com amor aquele
que admira essa grande obra e procura descobrir
suas molas e leis; olha com piedade o que permanece
frio e estúpido perante esse maravilhoso espetáculo,
como um animal sem alma.
É fácil compreender
agora por que os utopianos, cujo espírito é cultivado
incessantemente pelo estudo das ciências e das
letras, são tão dotados para as artes e invenções
úteis ao bem estar da vida. Devem a nós a imprensa
e a fabricação do papel; mas nisto seu próprio
gênio lhes serviu tanto quanto as nossas lições,
pois não conhecíamos bem a fundo nenhuma dessas
duas artes. Não fizemos senão mostrar as invenções
tipográficas dos Aldos e falar-lhes em termos
vagos da matéria empregada na fabricação do papel,
e demais processos de impressão. Logo adivinharam
o que apenas havíamos indicado.
Antes escreviam
em peles, cascas, folhas de papiros; ensaiaram
logo depois fabricar papel e imprimir. Estas primeiras
tentativas foram estéreis, mas à força de experiências
mil vezes repetidas chegaram a obter um êxito
completo; e se tivessem à mão todos os manuscritos
gregos poderiam tirar numerosas edições. Eles
não possuem hoje outros livros além dos deixados
por mim; mas estes livros já foram multiplicados
por milhares de exemplares.
O estrangeiro que
aporta à Utopia é bem recebido, se se recomenda
por um mérito real, ou se longas viagens lhe deram
uma ciência exata dos homens e das coisas.
Foi por este último
título que fomos recebidos de braços abertos ali,
onde enorme é a curiosidade de conhecer-se o que
se passa no estrangeiro. O comércio com a ilha
atrai pouca gente; porque, à exceção do ferro,
o que se pode levar a Utopia? Ouro? Prata? Mas
quem o fizesse certamente seria obrigado a voltar
com um e outro. Quanto ao comércio de exportação,
são os próprios utopianos que o fazem; e ao fazê-lo
têm em vista dois objetivos: primeiro, pôr-se
ao corrente de tudo que se passa no exterior;
e depois, manter e aperfeiçoar sua navegação.
DOS
ESCRAVOS
Nem
todos os prisioneiros de guerra são indistintamente
entregues à escravidão; mas unicamente os indivíduos
pegados de armas na mão.
Os filhos de escravos
não são escravos. O escravo estrangeiro torna-se
livre ao tocar na terra da Utopia.
A servidão recai
particularmente sobre os cidadãos culpáveis de
grandes crimes e sobre os condenados à morte pertencentes
ao estrangeiro. Estes são muito numerosos na Utopia;
os utopianos vão mesmo procurá-los no exterior
onde os compram a vil preço; algumas vezes obtêm-nos
até de graça.
Todos os escravos
são submetidos a um trabalho contínuo, e trazem
correntes. Os que são tratados, porém, com mais
rigor, são os indígenas, que são tidos como os
mais miseráveis dos celerados, dignos de servir
de exemplo aos outros por uma pior degradação.
Com efeito, eles receberam todos os germes da
virtude; aprenderam a ser felizes e bons, e, no
entanto, abraçaram o crime.
Há ainda uma outra
espécie de escravos, os trabalhadores pobres das
regiões vizinhas que vêm se oferecer voluntariamente
para trabalhar. São em tudo tratados como cidadãos;
apenas são obrigados a trabalhar um pouco mais,
uma vez que têm o hábito de fadiga maior. São
livres de partir quando querem e nunca são devolvidos
de mãos vazias.
Já disse dos cuidados
afetuosos que têm os utopianos pelos enfermos;
nada é poupado que possa contribuir para sua cura,
quer em remédios, quer em alimentos.
Os infelizes afetados
de males incuráveis recebem todos os consolos,
todas as atenções, todos os alívios morais e físicos,
capazes de lhes tornar a vida mais suportável.
Mas quando a esses males incuráveis se juntam
sofrimentos atrozes, que ninguém pode suprimir
ou suavizar, os padres e magistrados se apresentam
ao paciente e lhe levam a exortação suprema.
Mostram-lhe que
ele está despojado dos bens e das funções da vida;
que não faz senão sobreviver à própria morte,
tornando-se assim um peso para si e os outros.
Persuadem-no, então, a não alimentar mais o mal
que o devora, e a morrer com resolução, uma vez
que a existência não é para ele senão uma horrenda
tortura.
Confiai - dizem-lhe
- quebrai as cadeias que vos amarram, e desprendei-vos,
por vossas próprias mãos, da masmorra da vida;
ou pelo menos consenti que outros dela vos libertem.
Vossa morte não é uma ímpia repulsa aos benesses
da existência, mas o termo de um cruel suplício.
Obedecer, neste
caso, à voz dos padres, intérpretes da divina
vontade, é fazer obra religiosa e santa.
Os que se deixam
persuadir põem fim a seus dias pela abstinência
voluntária ou são adormecidos por meio de um narcótico
mortal, e morrem sem se aperceber. Os que não
querem a morte, nem por isso passam a receber
menos atenções e cuidados; quando cessam de viver
a opinião pública honra sua memória.
O homem que se mata
sem motivo reconhecido pelo magistrado e pelo
padre, é julgado indigno da terra e do fogo; seu
corpo é privado de sepultura e atirado ignominiosamente
nos pântanos.
As raparigas não
se podem casar antes dos dezoito anos; os rapazes,
antes dos vinte e dois.
Os indivíduos de
um e doutro sexo, convictos de se terem entregue
ao prazer antes do casamento, são passíveis de
uma censura severa; e o casamento lhes é completamente
interdito, a menos que o príncipe releve a falta.
O pai e a mãe de família, em cuja casa foi o delito
praticado, ficam desonrados por não terem velado
com bastante cuidado pelo comportamento de seus
filhos.
Esta lei parece-vos,
talvez, rígida em excesso; porém, na Utopia, pensa-se
que o amor conjugal não tardaria a extinguir-se
entre dois seres condenados a viver eternamente
um em face do outro, e a sofrer os mil inconvenientes
desse comércio íntimo, se amores vagabundos e
efêmeros fossem tolerados e impunes
Aliás, os utopianos
não se casam às cegas; e para melhor se escolherem,
seguem um uso que, à primeira vista, nos pareceu
eminentemente ridículo, mas que praticam com um
sangue frio e uma seriedade verdadeiramente notáveis.
Uma dama honesta
e grave mostra ao prometido sua noiva, donzela
ou viúva, em estado de completa nudez; e reciprocamente,
um homem de probidade comprovada, mestra à rapariga
seu noivo nu.
Este costume singular
fez-nos rir muito e o consideramos mesmo sofrivelmente
estúpido; mas, a todos os nossos epigramas, os
utopianos respondiam que nunca se cansariam de
admirar a loucura da gente dos países estranhos.
Quando, diziam eles,
comprais um poldro, negócio de alguns escudos,
tomais precauções infinitas. O animal está quase
nu, e entretanto, tirai-lhe a sela ou o arnez,
temendo que esses fracos invólucros escondam alguma
úlcera. E, quando se trata de escolher uma mulher,
escolha que influi sobre todo o resto da vida,
e que pode fazer desta uma delícia ou uma tortura,
procedeis com a maior incúria! Como?! Prendei-vos
indissoluvelmente a um corpo todo oculto em vestes
que o envolvem; julgais a mulher inteira por um
pedaço de sua pessoa, tão grande quanto a mão,
pois só o rosto está à vista! E não temeis de
encontrar depois disto alguma deformidade secreta,
que vos leve a maldizer esta união arriscada!
Os utopianos tinham
alguma razão em falar assim, porque todos os homens
não são bastante filósofos para estimar uma mulher
apenas por seu espírito e coração, e os próprios
filósofos não se aborreceriam por encontrar refluídas
a beleza do corpo e as qualidades da alma. É certo
que o mais belo ornato pode encobrir a mais repugnante
deformidade; então, o coração e os sentidos do
infortunado marido repelirão para bem longe a
mulher da qual não poderá jamais se separar fisicamente;
pois se a mistificação não se deu senão após a
consumação do enlace, não destrói a sua indissolubilidade,
e ao marido, não lhe resta mais do que guardar
consigo a sua desventura.
É
pois necessário que as leis forneçam meios infalíveis
de não se cair na armadilha, sobretudo na Utopia
onde a poligamia é severamente proscrita e onde
o casamento não se dissolve, na maioria das vezes,
senão pela morte, excetuando-se o caso de adultério
e de costumes absolutamente dissolutos.
Nos dois casos o
senado dá ao cônjuge ofendido o direito de se
casar novamente; o outro é condenado a viver perpetuamente
na infâmia e no celibato.
Não é permitido,
sob nenhum pretexto, repudiar uma mulher de comportamento
irrepreensível, sob o fundamento de alguma enfermidade
corporal que haja adquirido. Abandonar assim uma
esposa, no momento em que tem maior necessidade
de socorros, é, aos olhos dos utopianos, uma cruel
covardia; é ainda tirar à velhice toda esperança
no futuro, pois não é a velhice a mãe de todos
os achaques, e não é ela, já em si, uma doença?
Acontece algumas
vezes na Utopia que o marido e a mulher não podendo
conviver juntos por incompatibilidade de gênios,
procuram novas metades, que lhes prometam uma
vida mais feliz e mais doce. A demanda de separação
deve ser levada aos membros do senado que, após
terem escrupulosamente examinado a questão, juntamente
com suas mulheres, rejeitam ou autorizam o divórcio.
Neste último caso, as duas partes queixosas separam-se
com mútuo consentimento e casam-se em segundas
núpcias.
O divórcio é raramente
permitido; os utopianos sabem que dar a esperança
de poder casar novamente com facilidade, não é
o melhor meio de estreitar os laços do amor conjugal.
O adultério é punido
com a mais dura escravidão.
Se os dois culpados
eram casados, os esposos ultrajados têm, cada
qual, o direito de repúdio respectivo, e podem
casar-se entre si ou com quem bem lhes pareça.
Entretanto, se o
cônjuge, homem ou mulher, que sofreu a injúria,
ama ainda o esposo ou esposa indigna, o casamento
não é rompido, com a condição, entretanto, de
que o inocente siga o culpado aonde ele foi condenado
a trabalhar.
A reincidência no
adultério é punida com a morte. As penas dos outros
crimes não são invariavelmente determinadas pela
lei. O senado proporciona a pena conforme a enormidade
do delito.
Os maridos castigam
suas mulheres; os pais, seus filhos; a menos que
a gravidade do delito exija uma reparação pública.
A pena ordinária,
mesmo para os maiores crimes, é a escravidão.
Os utopianos crêem que a escravidão não é menos
terrível para os celerados do que a morte, sendo,
além disso, mais vantajosa para o Estado.
Um homem que trabalha,
afirmam, é mais útil que um cadáver; e o exemplo
de um suplício perpétuo inspira um terror muito
mais duradouro do que uma matança legal, que faz
o culpado desaparecer num instante.
Quando os condenados
escravos se revoltam, são mortos como animais
ferozes e indomáveis que a cadeia e a prisão não
puderam conter.
Mas os que suportam
pacientemente sua sorte, não perdem de todo a
esperança. Vêm-se infelizes que, domados pelo
tempo e pelo rigor dos sofrimentos, testemunham
verdadeiro arrependimento, mostrando que o crime
lhes pesa com mais força do que o castigo. Então,
a prerrogativa do príncipe, ou a voz do povo,
concede-lhes a liberdade.
A simples solicitação
ao deboche é passível da mesma pena que o estupro
cometido. Em toda matéria criminal, a tentativa
bem definida é reputada igual ao fato. Os obstáculos
que impedem a execução de uma má intenção não
justificam aquele que a concebeu, e que, por certo,
teria cometido o mal se tivesse podido.
Os bufões da Utopia
fazem as delícias dos habitantes; maltratá-los
é coisa vergonhosa. Assim, o prazer que se tira
da loucura de outrem não é proibido. Os utopianos
não confiam os bobos a esses homens tristes e
severos que as palavras e as ações mais cômicas
não conseguem desanuviar. Temem que tão sérias
personagens não possuam a indulgência precisa
para aturar e cuidar de um pobre louco que não
serve para nada e que nem ao menos os consegue
fazer rir, único talento com que a natureza o
dotou.
É
igualmente vergonhoso insultar a fealdade ou a
mutilação; o que reprocha a um infeliz os defeitos
físicos, que não estava em si evitar, passa por
insensato.
Menosprezar o zelo
pela beleza natural é dar prova de uma preguiça
ignóbil; mas chamar em seu auxílio o artifício
e o enfeite é infame impertinência. Os nossos
insulares sabem, de experiência própria, que as
graças do corpo recomendam menos uma mulher ao
amor de seu marido, do que a probidade dos costumes,
a doçura e o respeito. Muitos se deixam seduzir.
pela beleza; mas nem um só é constante e fiel,
se não encontra com a beleza, a bondade e a virtude.
Os utopianos não
somente afastam o crime pelas leis penais, como
incitam à virtude com honrarias e recompensas.
Estátuas são erguidas nas praças públicas aos
homens de gênio e àqueles que prestaram à república
serviços relevantes. Assim, a memória das grandes
ações se perpetua e a glória dos antepassados
é um aguilhão a estimular a conquista da posteridade
e o incitamento ao bem.
Aquele que afronta
um só magistrado perde toda esperança de exercer
algum dia qualquer magistratura.
Os utopianos vivem
em família. Os magistrados não se mostram nem
orgulhosos nem terríveis; são chamados pais, e,
realmente, destes têm a justiça e a bondade. Recebem
com simplicidade as honras que às suas funções
lhes são rendidas voluntariamente; essas provas
de deferência não constituem obrigação para ninguém.
O próprio príncipe não se distingue da massa,
nem pela púrpura nem pelo diadema, mas apenas
por um feixe de trigo que traz à mão. As insígnias
do pontífice reduzem-se a um círio que é levado
à sua frente.
As leis são em muito
pequeno número e não obstante bastam às instituições.
O que os utopianos desaprovam especialmente nos
outros povos é a quantidade
- infinita de volumes,
leis e comentários, que, apesar de tudo, não são
suficientes para garantir a ordem pública. Consideram
como injustiça suprema enlear os homens numa infinidade
de leis, tão numerosas que se torna impossível
conhecê-las todas, ou tão obscuras que é impossível
compreendê-las.
Não há advogados
na Utopia. Os demandistas de profissão, que se
esforçam por torcer a lei, e decidir uma questão
com a maior astúcia, foram dali excluídos. Os
utopianos pensam que é preferível que cada um
defenda sua causa e confie diretamente ao juiz
o que teria a dizer a um advogado. Desta maneira
há menos ambigüidade e rodeio e a verdade se descobre
mais facilmente. As partes expõem seu negócio
simplesmente, pois não há advogados para ensinar-lhes
as mil artimanhas da chicana.
O juiz examina e
pesa as razões de cada um com bom senso e boa
fé; defende a ingenuidade do homem simples contra
as calúnias do velhaco.
Seria bem difícil
praticar semelhante justiça nos outros países,
enterrados num montão de leis, tão embrulhadas
e tão equivocas. De resto, todo o mundo na Utopia
é doutor em direito; porque, repito-o, as leis
são em muito pequeno número e a interpretação
mais grosseira e mais material é admitida como
a mais razoável e mais justa.
As leis são promulgadas,
dizem os utopianos, com a única finalidade de
que cada qual seja advertido de seus direitos
e deveres. Ora, as sutilezas de vossos comentários
são acessíveis a pouca gente e esclarecem apenas
um punhado de sábios; ao passo que uma lei claramente
formulada, cujo sentido não é equívoco e se apresenta
naturalmente ao espírito, está ao alcance de todos.
Que importa à massa,
isto é, à classe mais numerosa e a que mais importa
ter normas se não há leis ou que as leis estabelecidas
sejam de tal maneira embrulhadas que para obter-se
sua significação verdadeira se faça necessário
um gênio superior, ou longas discussões e longos
estudos? O julgamento do vulgo não é bastante
metafísico para penetrar essas profundidades;
aliás toda uma existência ocupada incessantemente
em ganhar o pão de cada dia, não deixaria tempo
suficiente para tal mister.
Os povos vizinhos
invejam o governo desta ilha afortunada; sentem-se
fortemente atraídos pela sabedoria de suas instituições
e pelas virtudes de seus habitantes. As nações
livres e que se governam por si mesmas (muitas
dentre elas foram outrora libertadas da tirania
pelos utopianos) vão pedir na Utopia magistrados
para um ou cinco anos. Na expiração do prazo de
suas funções, esses magistrados de empréstimo
são reconduzidos ao seu país com as honras que
merecem, enquanto outros partem a fim de substitui-los.
É certo que os povos
que assim agem resolvem favoravelmente seus interesses.
A salvação ou a perda de um império dependem dos
costumes dos que o administram. Ora, nossos insulares
oferecem à escolha dos que os requerem para chefes
as melhores garantias de probidade política. O
utopiano não se deixará corromper pelos atrativos
da riqueza, por mais brilhante que ela possa ser,
porque dentro de pouco já lhe não serviria para
nada: quando tivesse de retornar à pátria dentro
de poucos anos ou meses. Tão pouco o utopiano
deixar-se-ia levar pelo amor ou pelo ódio, pois
é completamente desconhecido dos seus administrados.
Infeliz do país
onde a avareza e as afeições privadas sentam-se
no banco do magistrado! Adeus justiça! a mola
mais firme dos Estados!
A república utopiana
reconhece como aliados os povos que lhe vêm pedir
chefes, e por amigos os que lhe devem um benefício.
Quanto aos tratados que as outras nações assinam
tão freqüentemente para rompê-los e renová-los
em seguida, ela nunca os assina.
Para que servem
os tratados? interrogam os utopianos. Não uniu
a natureza o homem ao homem por laços bastante
indissolúveis? Aquele que despreza esta aliança
íntima e sagrada terá escrúpulo em violar um protocolo?
Consolida-os nesta
opinião o fato de que nas terras desse novo mundo
é raro que as convenções entre príncipes sejam
observadas de boa fé
Na Europa, e principalmente
nas regiões onde reinam a fé e a religião do Cristo,
a majestade dos tratados é santa e inviolável.
Isso decorre em parte da justiça e da bondade
dos monarcas, em parte do temor e do respeito
que lhes inspiram os soberanos pontífices. Os
papas em nada se comprometem que não executem
religiosamente; por isso obrigam os outros soberanos
a cumprirem exatamente as suas promessas, empregando
o interdito pastoral e a severidade canônica para
forçar os que tergiversam. Os papas crêem com
razão que seria vergonhoso para a cristandade
ver aqueles que se glorificam acima de tudo do
nome de Fiéis, se mostrarem infiéis As suas próprias
convenções.
Mas, nesse novo
mundo separado do nosso, menos ainda pelo círculo
equatorial do que pelos usos e costumes, não se
presta nenhuma confiança aos tratados. Uma repentina
ruptura segue de ordinário os juramentos de paz
mais solenes e que receberam a consagração das
mais santas cerimônias. É muito fácil descobrir
matéria para chicana no texto de uma aliança;
os negociadores insinuam de má fé, nos textos,
manhosas escapatórias, a fim de que o príncipe
não fique jamais indissoluvelmente preso, e possa
encontrar sempre uma saída secreta para seus compromissos.
E, entretanto, este
mesmo ministro que se vangloria de falsificar
assim as negociações, por conta do rei, seu senhor,
se percebesse que semelhantes embustes, ou melhor,
velhacarias, eram introduzidas num contrato entre
simples particulares, este mesmo diplomata, franzindo
o sobrolho do alto de sua probidade, condenaria
a fraude como um sacrilégio digno da forca.
Por este exemplo,
dir-se-ia que a justiça é uma virtude plebéia
e de baixo nível, a rastejar muito abaixo dos
tronos dos reis. A menos que se distingam duas
espécies de justiças: uma boa para o povo, que
anda a pé e de cabeça baixa, encerrada numa estreita
muralha que não pode transpor; outra, para uso
dos reis, infinitamente mais augusta e mais elevada,
infinitamente mais livre, e a qual só está inibida
de fazer o que não quer.
Sou levado a pensar
que a deslealdade dos príncipes nesses países
longínquos é a causa que determina os utopianos
a não assinar nenhuma espécie de convenção diplomática.
Mudariam talvez de opinião se morassem na Europa.
Contudo, em tese,
encaram como um mal a introdução de tratados entre
os povos, mesmo que fossem observados religiosamente.
Este uso habitua os homens a se considerarem mutuamente
inimigos, nascidos para se guerrearem sempre e
para legitimamente se entredevorarem, na falta
de um tratado de paz; como se não houvesse mais
uma sociedade natural entre duas nações só porque
uma colina ou. um rio as separa.
Ainda se as alianças
garantissem a amizade dos confederados, mas, na
realidade, nunca eliminam elas todos os pretextos
de rompimento, e por conseguinte, de saque e de
guerra, dada a leviandade dos diplomatas que redigem
os artigos. É raro que os plenipotenciários possam
abarcar todos os casos possíveis de proibições
e compromissos, ou que os formulem de uma forma
perfeitamente clara e precisa.
Os utopianos têm
por princípio que não se deve ter por inimigo
senão aquele que se torna culpado de injustiça
ou violência. A comunhão na mesma natureza parece-lhes
um laço mais indissolúvel do que todos os tratados.
O homem, afirmam,
está unido ao homem de uma maneira mais íntima
e mais forte pelo coração e pela caridade do que
pelas palavras e protocolos.
DA
GUERRA
Os
utopianos abominam a guerra como uma coisa puramente
animal e que o homem, no entanto, pratica mais
freqüentemente do que qualquer espécie de animal
feroz. Contrariamente aos costumes de quase todas
as nações, nada existe de tão vergonhoso na Utopia
como procurar a glória nos campos de batalha.
Não se quer dizer com isto que eles não se exercitem
com muita assiduidade na disciplina militar; as
próprias mulheres são a isto obrigadas tanto quanto
os homens; certos dias são fixados para os exercícios,
a fim de que ninguém fique sem habilitação para
o combate quando chegar o momento de combater.
Mas os utopianos
não fazem a guerra sem graves motivos. Só a empreendem
para defender suas fronteiras ou repelir uma invasão
inimiga nas terras de seus aliados, ou ainda para
libertar da escravidão e do jugo de um tirano
um povo oprimido. Neste caso, não consultam os
seus interesses; vêm apenas o bem da humanidade.
A república da Utopia
presta gratuitamente socorros a seus amigos, não
só no caso de agressão armada, mas também para
vingar e obter reparação de uma injúria. Entretanto,
no caso, ela só age assim quando foi consultada
antes da declaração de guerra; examina então conscienciosamente
a justiça da causa, e se o povo que cometeu o
dano não o quer reparar, é, então, declarado o
único autor e o único responsável pelos males
da guerra.
Os utopianos tomam
esta deliberação extrema todas as vezes que se
dá um saque em conseqüência de uma invasão armada.
Mas a sua cólera nunca é tão terrível como quando
os negociantes de uma nação amiga, sob o pretexto
de algumas leis iníquas, ou de conformidade com
uma interpretação pérfida de leis justas, sofreram
no estrangeiro vexações injustas em nome da justiça.
Tal foi a origem
da guerra que empreenderam pouco antes da atual
geração contra os alaopólitas e a favor dos nefelógitas.
Os alaopólitas, no dizer dos nefelógitas, causaram
a alguns de seus comerciantes prejuízos consideráveis,
sob um pretexto legal qualquer. Fosse ou não a
queixa fundamentada, o fato é que resultou uma
guerra atroz. Aos ódios e às forças dos dois inimigos
principais, juntaram-se as paixões e os socorros
dos países vizinhos. Nações poderosas foram violentamente
sacudidas, outras derrocadas. Esta deplorável
sucessão de males só terminou com a derrota completa
e a escravidão dos alaopólitas. Estes últimos
foram submetidos à dominação dos nefelógitas,
dado que a guerra não envolvia interesse direto
dos utopianos. Entretanto, os nefelógitas estavam
longe da situação florescente dos primeiros.
É com tamanho vigor
que os nossos insulares vingam o ultraje feito
a seus amigos, mesmo que esteja em jogo apenas
o dinheiro destes últimos. São menos ciosos quanto
a seus próprios negócios. E se acontece que alguns
de seus cidadãos são despojados de seus bens no
estrangeiro, vítimas de alguma trapaça, vingam-se
do povo que cometeu o ultraje cessando todo comércio
com ele, a menos que tenha havido atentado contra
as pessoas.
Não é que tenham
menos apego aos interesses de seus concidadãos
do que aos de seus aliados; porém suportam com
menos paciência as trapaças praticadas em prejuízo
desses últimos, porque o negociante que não é
utopiano perde então uma parte de sua fortuna
privada, e esta perda representa para ele uma
pura desgraça, ao passo que o utopiano não perde
senão para a fortuna pública, ou. melhor, para
a abundância e o supérfluo de seu país; e, então,
a exportação é proibida. É por isso que as perdas
em dinheiro só debilmente afetam na Utopia os
indivíduos. Eles julgam, e com razão, que seria
demasiado cruel vingar, com a morte de um grande
número de pessoas, um dano que não pode afetar
nem a vida, nem o bem estar de seus concidadãos.
Aliás, caso um utopiano
seja maltratado ou morto injustamente, em conseqüência
de deliberação pública ou premeditação privada,
a república encarrega seus embaixadores de verificarem
o fato; pede que lhe sejam entregues os culpados
e, no caso de recusa, somente a imediata declaração
de guerra pode apaziguá-la. No caso contrário,
os autores do crime são punidos com a morte ou
com a escravidão.
Os utopianos choram
amargamente sobre os louros de uma vitória sangrenta;
envergonham-se mesmo, considerando absurdo comprar
as mais brilhantes vantagens ao preço do sangue
humano. Para eles, o mais belo título de glória
é o de ter vencido o inimigo à força de habilidade
e artifício. É então quando celebram os triunfos
públicos e erguem os troféu; como após uma ação
heróica; é então quando se vangloriam de ter agido
como homens e como heróis, uma vez que venceram
unicamente pela força da razão, coisa de que não
é capaz nenhum animal, exceto o homem. Os leões,
dizem, os ursos, os javalis, os lobos, os cães
e outros animais ferozes não sabem empregar no
combate senão as forças corporais; a maioria deles
nos sobrepuja em audácia e vigor, mas todos, no
entretanto, se dobram ao império da inteligência
e da razão
Fazendo a guerra,
os utopianos não têm outra finalidade senão obter
o que lhes teria evitado declará-la, caso suas
reclamações fossem satisfeitas antes da ruptura
da paz. Quando toda satisfação é impossível, vingam-se
sobre os provocadores, de forma a impedir, no
futuro, pelo terror, os que ousassem tentar repetir
semelhantes acometimentos. Tal é o fito dos utopianos
na execução dos seus projetos, fito que se esforçam
por atingir com presteza, procurando antes evitar
o perigo que colher uma fama inútil.
Uma vez declarada
a guerra, eles tratam de mandar pregar, secretamente,
no mesmo dia, nos lugares mais visíveis do país
inimigo, proclamações revestidas com o selo do
Estado. Essas proclamações prometem magníficas
recompensas ao assassino do príncipe inimigo;
outras recompensas menos consideráveis, ainda
que bastante sedutoras, pelas cabeças de um certo
número de indivíduos, cujos nomes são escritos
nessas fatais proclamações. Os utopianos proscrevem,
desta maneira, os conselheiros ou os ministros,
que são, depois do príncipe, os principais autores
da ofensa.
O preço prometido
pelo homicídio é dobrado para quem entregar vivo
um dos proscritos. Mesmo aqueles cujas cabeças
foram postas a prêmio são convidados a trair seus
partidários por oferecimento de iguais recompensas
e pela promessa de impunidade.
Esta medida tem
por efeito colocar imediatamente os chefes do
partido adverso em estado de suspeição mútua.
Não há mais confiança entre eles, e não se sentem
mais seguros; temem uns aos outros e este temor
não é quimérico. Não é raro acontecer que muitos
têm sido traídos, sobretudo o príncipe, por aqueles
em que depositavam mais confiança. Tal é o poder
que tem o ouro para arrastar ao crime! Também,
os utopianos não poupam dinheiro nessa circunstância.
Recompensam com a gratidão mais generosa àqueles
que impelem aos perigos da traição; eles têm o
cuidado de fazer com que a grandeza do perigo
seja largamente compensada pela magnificência
do prêmio.
É por isso que prometem
aos traidores não só imensas somas em dinheiro,
mas ainda a propriedade perpétua de terras de
grande rendimento situadas em lugar seguro no
país aliado. E cumprem fielmente a palavra.
O uso de negociar
os seus próprios inimigos, pondo suas cabeças
a prêmio, é reprovado nos outros países como uma
infâmia digna unicamente de almas degradadas.
Os utopianos, porém, se gabam disso como de uma
ação de alta sabedoria que termina sem combate
as guerras mais terríveis. Honram-se disso como
de uma ação humanitária e misericordiosa, que
resgata, ao preço da morte de um punhado de culpados,
a vida de vários milhares de inocentes, de um
como de outro lado, destinados a morrer nos campos
de batalha. A piedade dos utopianos também se
estende aos soldados de todas as bandeiras; sabem
que o soldado não vai por sua própria vontade
à guerra, mas é arrastado pelas ordens e pelos
furores dos príncipes.
Se os meios precedentes
não dão resultados, os nossos insulares semeiam
e alimentam a discórdia, dando ao irmão do príncipe
ou a alguma outra personagem a esperança de se
apoderar do trono. Se as facções internas definham
amortecidas então eles instigam as nações vizinhas
do inimigo, jogando-as contra ele, exumando mesmo
alguns desses velhos títulos que nunca faltam
aos reis; ao mesmo tempo, prometem socorros aos
novos aliados, dando-lhes dinheiro em caudal,
mas os seus cidadãos não lhes entregam senão muito
poucos.
Os cidadãos são
para a república da Utopia o tesouro mais caro
e mais precioso: a consideração que os habitantes
da ilha têm uns pelos outros é de tal modo elevada
que não consentiriam de bom grado em trocar qualquer
dos seus por um príncipe inimigo. Prodigalizam
ouro sem pena porque este não é empregado senão
para os usos já referidos e porque nenhum deles
seria exposto a viver menos comodamente, mesmo
que lhes fosse necessário gastar o último escudo.
Aliás, além das
riquezas guardadas na ilha, são os utopianos ainda,
creio já vos tê-lo dito, credores para muitos
Estados de imensos capitais. É com parte deste
dinheiro que eles alugam soldados de todos os
países e principalmente do país dos zapoletas,
situado a leste da Utopia, numa distância de quinhentos
mil passos.
O zapoleta, povo
bárbaro, feroz e selvagem, não sabe viver senão
no meio das florestas e rochedos em que foi nutrido.
Calejado na fadiga, suporta pacientemente o frio,
o calor, o trabalho. As delícias da vida lhe são
desconhecidas; menospreza a agricultura, a arte
de bem morar e de bem vestir. Não possui outra
indústria que a criação dos rebanhos, e, as mais
das vezes, não conhece outros meios de vida além
da caça e da pilhagem.
Nascidos exclusivamente
para a guerra, os zapoletas procuram avidamente
e não perdem nenhuma oportunidade de fazê-la;
então descem aos milhares das montanhas e vendem
a baixo preço seus serviços à primeira nação que
deles necessita. O único ofício que sabem exercer
é o que dá a morte; batem-se com bravura e incorruptível
fidelidade a serviço dos que os contratam. Nunca
se alistam por tempo determinado; e sempre sob
a condição de passar no dia seguinte para o inimigo
se lhe oferecer melhor paga, ou voltar à primeira
bandeira se aí lhes concedem ligeiro aumento no
soldo.
É raro haver uma
guerra nessas regiões sem que haja zapoletas nos
dois campos. É também comum ver-se parentes muito
próximos, amigos estreitamente ligados, enquanto
serviam a mesma causa, combatendo-se com o mais
vivo encarniçamento, desde que a sorte os dispersou
pelas fileiras das duas partes contrárias. Eles
esquecem família, amizade e se matam furiosamente
só pelo fato de dois soberanos inimigos pagarem
alguns patacos por seu sangue e seu furor. A paixão
do dinheiro é entre eles tão forte que um vintém
a mais no soldo diário basta para fazê-los mudar
de campo. Esta paixão degenerou numa avareza desenfreada,
mas inútil; porque o que o zapoleta ganha pelo
sangue derramado, gasta-o na devassidão.
Este povo faz a
guerra pelos utopianos, contra todo o mundo, porque
em parte alguma encontra melhor pagamento. De
seu lado, os utopianos, que tratam a gente séria
convenientemente, ajustam com muito gosto essa
infame soldadesca para enganá-la e destruí-la.
Quando precisam dos zapoletas começam por seduzi-los
com brilhantes promessas; depois expõem-nos sempre
nos postos mais perigosos. A maior parte perece
e não volta para reclamar o que se lhes prometera;
os que sobrevivem recebem exatamente o preço convencionado
e esta rígida boa fé anima-os a afrontar outra
vez o perigo com a mesma audácia. Aos utopianos
pouco se lhes dá perder grande número desses mercenários,
pois estão persuadidos de que terão bem merecido
do gênero humano se puderem um dia expurgar a
terra desta raça impura de bandidos.
Além dos zapoletas,
os utopianos empregam ainda, em tempo de guerra,
as tropas dos Estados de que tomam a defesa, e
mais as legiões auxiliares de seus outros aliados;
só depois, por último, recorrem a seus próprios
concidadãos, entre os quais escolhem um homem
de talento .e coragem para colocar à frente de
todo o exército
Este general-chefe
tem sob suas ordens dois lugares-tenentes que
não possuem nenhum poder enquanto ele pode comandar.
Assim que o general é morto ou aprisionado, um
dos seus dois lugares-tenentes lhe sucede como
por direito de herança; este último é, por sua
vez substituído por um terceiro. Resulta disto
que os perigos a que está exposto pessoalmente
o general, sujeito como qualquer um aos azares
da guerra, não poderão jamais comprometer a sorte
do exército.
Cada cidade recruta
e exercita suas tropas formadas pelos que se alistam
voluntariamente. Ninguém é alistado contra a vontade
para as expedições longínquas, pois um soldado
naturalmente medroso, em lugar de se comportar
valorosamente, não pode senão infundir em seus
camaradas a própria covardia. Entretanto, em caso
de invasão, em caso de guerra no interior, todos
os poltrões robustos e válidos são utilizados;
enquanto uns são postos entre os melhores soldados,
a bordo dos navios do Estado, os outros são disseminados
pelas praças fortes. Aí, não há possibilidade
de retirada; o inimigo está a dois passos, a fuga
é impossível, e os camaradas os observam. Esta
posição extrema sufoca o temor da morte; e muitas
vezes o excesso do perigo faz leão o mais covarde
dos homens.
Se a lei não obriga
ninguém a marchar contra sua vontade para a fronteira,
permite às mulheres que o queiram, acompanhar
seus maridos no exército. Longe de serem impedidas,
são, ao contrário, estimuladas a seguir, constituindo
tal gesto para elas brilhante título de honra.
Durante o combate, os esposos são colocados no
mesmo posto, cercados de seus filhos, de seus
aliados e parentes, a fim de que se prestem um
mútuo e rápido socorro, os que a natureza impele
a se protegerem entre si com maior afinco.
A desonra e a infâmia
esperam o esposo que volta sem a mulher e o filho
sem o pai. Também quando os utopianos são forçados
a passar às vias de fato e o inimigo resiste,
uma longa e lúgubre refrega precipita a carnificina
e a morte. Lançam mão de todos os meios para não
se expor pessoalmente ao combate e terminar a
guerra apenas por meio dos auxiliares que mantêm
às suas custas. Mas se surge a necessidade imperiosa
de entrar realmente em combate, sua intrepidez,
na ação, não é menor do que a prudência despendida
quando era possível.
Não põem todo o
entusiasmo no primeiro choque. A resistência e
a duração de uma batalha reforçam pouco a pouco
o seu valor, exaltando-os a ponto de tornar-se
mais fácil matá-los que fazê-los recuar.
O que lhes inspira
este valor sublime, esse desprezo pela morte e
pela vitória é a certeza de ter, sempre, em sua
terra, de que viver perfeitamente, sem carecer
inquietar-se sobre a sorte da família, inquietação
essa que, em todos os outros lugares, alquebra
as almas mais generosas. O que ainda lhes aumenta
a confiança é a habilidade extrema na tática militar;
é enfim, acima de tudo, a excelente educação que
recebem, desde a infância, nas escolas e instituições
da república. Desde cedo aprendem a não desdenhar
tanto a vida, para esbanjá-la estouvadamente;
mas também a não amá-la tanto para guardá-la com
vergonhosa avareza, quando a honra exige que seja
arriscada.
No mais forte da
peleja, um troço seleto de jovens, conjurados
e devotados até à morte, tem por objetivo perseguir
a todo o transe o chefe do exército inimigo. Ataca-o
de surpresa ou a descoberto, de perto ou de longe.
Esta pequena tropa disposta em triângulo não faz
alto nem conhece repouso. É continuamente renovada
com novos recrutas perfeitamente descansados que
substituem os soldados fatigados; é raro que não
consiga o seu fim, isto é, matar o general inimigo
ou aprisioná-lo, a menos que este não escape pela
fuga.
Os utopianos, uma
vez vitoriosos, não matam inutilmente os vencidos.
Preferem prender a matar os fugitivos, e nunca
os perseguem sem ter ao mesmo tempo um corpo de
reserva disposto em ordem de batalha e preparado.
Salvo no caso em que, desbaratadas as suas primeiras
linhas, a retaguarda arrebate a vitória, os utopianos
preferem deixar escapar todos os inimigos a ter
que correr atrás deles e a habituar, com isso,
os soldados a romperem as próprias filas, desordenadamente.
Não se esquecem que muitas vezes deveram sua salvação
a esta tática.
Realmente, muitas
vezes o inimigo, depois de ter derrotado completamente
o grosso do exército utopiano, tem-se arremessado,
sem ordem, embriagado pelo triunfo, no encalço
dos fugitivos. Nesse momento uma pequena reserva,
atenta às oportunidades, pode mudar rapidamente
a face do combate, atacando os vencedores de improviso,
quando estes, dispersos aqui e ali, se esquecem
de toda a precaução por excesso de confiança.
Desta forma, a vitória mais segura tem sido algumas
vezes arrebatada das mãos que a detinham e, por
seu turno, os vencidos batem os vencedores
É
difícil afirmar-se se os utopianos são mais hábeis
em armar emboscadas do que prudentes em evitá-las
Acreditaríeis que preparam uma fuga quando preparam
justamente o contrário; e, reciprocamente, se
tinham intenção de fugir não o poderíeis adivinhar.
Quando se sentem bastante inferiores em posição
ou em número, levantam o acampamento de noite,
em profundo silêncio, ou, então, contornam o perigo
com qualquer outro estratagema. Algumas vezes
retiram-se em pleno dia mas em tão boa ordem que
não é menos perigoso atacá-los durante a retirada
do que quando oferecem batalha.
Têm o maior cuidado
em defender o próprio campo com fossas grandes
e profundas; os entulhos são jogados no interior
do campo. Estas construções não são entregues
a operários mas aos próprios soldados; todo o
exército trabalha, excetuando-se os sentinelas
que velam armados em redor do campo, prontos a
fazer abortar qualquer surpresa. Por esse meio,
poderosas fortificações são erguidas prontamente,
abrangendo uma imensa extensão de terreno.
As armas defensivas
dos utopianos são muito sólidas, e, entretanto,
prestam-se tão bem a toda espécie de movimentos
e gestos que não embaraçam nem mesmo o soldado
a nado. Um dos primeiros exercícios militares
ensinados aos soldados da Utopia, é o de nadar
armado. Combatem de longe com a azagaia, que lançam
com vigor e segurança, tanto cavaleiros como infantes.
De perto, em lugar de espadas, combatem com machados,
cujo corte ou peso ocasionam inevitavelmente a
morte, qualquer que seja a direção do golpe. São
extremamente engenhosos em inventar máquinas de
guerra, e as novas máquinas ficam cuidadosamente
secretas até o momento de ser postas em uso, por
temor de que, sendo conhecidas anteriormente,
se tornem mais um brinquedo ridículo do que um
objeto de real utilidade. O que mais procuram,
ao fabricá-las, é a facilidade de transporte e
a aptidão a girar em todos os sentidos.
Os utopianos observam
tão religiosamente as tréguas concluídas com o
inimigo, que não as violam mesmo em caso de provocação
Não devastam as terras do país conquistado; não
queimam suas colheitas; vão até a impedir, tanto
quanto possível, que elas sejam esmagadas sob
os pés dos homens e dos cavalos, na previsão de
que venham a necessitar delas um dia.
Nunca maltratam
um homem sem armas, a menos que seja espião. Conservam
as cidades que se rendem e não abandonam à pilhagem
as que tomam de assalto. Apenas, matam os principais
chefes que puserem obstáculos à rendição da praça,e
condenam à escravidão o resto dos que sustentaram
o sítio. Quanto à massa indiferente e pacífica,
deixam-na em paz. Se sabem que um ou mais sitiados
haviam aconselhado a capitulação, dão-lhes uma
parte dos bens dos condenados; a outra parte é
para as tropas auxiliares. Não tocam no despojo.
Com a terminação
da guerra, não são os aliados em favor dos quais
foi a guerra empreendida que suportam os seus
gastos; são os vencidos. Em virtude desse princípio,
os utopianos exigem dos últimos, primeiramente
dinheiro, que empregam para os fins que já conheceis,
em caso de guerra futura; em segundo lugar, a
concessão de vastos domínios situados no território
conquistado, domínios que trazem à república pingues
rendas.
Atualmente, esta
república conta em vários países do estrangeiro
com imensas rendas desta espécie; oriundas de
diversas causas, foram pouco a pouco se acumulando
e dão hoje mais de setecentos mil ducados. O Estado
envia para essas propriedades cidadãos com o título
de questores que vivem magnificamente, possuem
grande séquito e fornecem ainda fortes somas ao
tesouro. Muitas vezes, também, os utopianos cedem
o produto dessas propriedades ao povo do país
onde elas se acham, enquanto não sentem necessidade
dele. É raro que reclamem o reembolso total. Uma
parte desses domínios é reservada aos que, cedendo
à sedução, afrontam os perigos de que já vos falei.
Assim que um príncipe
pegou em armas contra a Utopia e se prepara para
invadir uma das terras de seu domínio, os utopianos
reúnem imediatamente um exército formidável e
o expedem para atacar o inimigo fora das suas
fronteiras. Só em medida extrema fazem nossos
insulares a guerra em sua terra; e não há necessidade
no mundo que os force a deixar entrar na ilha
um socorro de tropas estrangeiras.
DAS
RELIGIÓES DA UTOPIA
As
religiões, na Utopia, variam não unicamente de
uma província para outra, mas ainda dentro dos
muros de cada cidade; estes adoram o sol, aqueles
divinizam a lua ou outro qualquer planeta. Alguns
veneram como Deus supremo um homem cuja glória
e virtude brilharam outrora de um vivo brilho
Não obstante, a
maior parte dos habitantes, que é também a mais
sábia, repele estas idolatrias e reconhece um
Deus único, eterno, imenso, desconhecido, inexplicável,
acima das percepções do espírito humano, enchendo
o mundo inteiro com sua onipotência e não com
sua vastidão corpórea. Este Deus é chamado Pai;
é a ele que atribuem as origens, o crescimento,
o progresso, as revoluções e o fim de todas as
coisas. É a ele unicamente que rendem homenagens
divinas.
De resto, apesar
da diversidade de suas crenças, todos os utopianos
concordam numa coisa: que existe um ser supremo,
ao mesmo tempo Criador e Providência. Este ser
é designado, na língua do país, sob o nome comum
de Mitra. A dissidência consiste em que Mitra
não é o mesmo para todos. Mas qualquer que seja
a forma pela qual cada um represente seu Deus,
cada um adora, sob esta forma, a natureza majestosa
e potente, a quem somente pertence o soberano
império de todas as coisas, por consentimento
geral dos povos.
Esta variedade de
superstições tende, dia a dia, a desaparecer e
a converter-se numa única religião, a qual parece
muito mais razoável. É mesmo provável que a fusão
já se teria operado, sem os infortúnios imprevistos
e pessoais que impedem a conversão de um grande
número. Muitos, em lugar de atribuir ao acaso
acidentes desse jaez, metem-se a interpretá-los,
sob o terror supersticioso que sentem, como uma
vingança do Deus que estavam prestes a abandonar.
Temem que este Deus se vingue de sua apostasia.
Entretanto, quando
aprenderam conosco o nome do Cristo, sua doutrina,
sua vida, seus milagres, a admirável constância
de tantos mártires, cujo sangue voluntariamente
vertido submeteu à lei do Evangelho a maioria
das nações da terra, não podeis imaginar com que
afetuosa inclinação ouviram esta revelação. Talvez
que Deus agisse secretamente em suas almas; talvez
o cristianismo lhes pareceu em todos os pontos
conforme à seita que entre eles goza de maior
prestígio.
O que na minha opinião
contribuiu sobretudo para inspirar-lhes estas
felizes disposições foi a narração da vida em
comum dos primeiros apóstolos, tão cara a Jesus
Cristo, e atualmente ainda em uso nas sociedades
dos verdadeiros e perfeitos cristãos.
Como quer que seja,
muitos dentre os utopianos abraçaram nossa religião
e foram purificados pelas águas sagradas do batismo;
infelizmente, de nós quatro (a morte de outros
dois companheiros nos tinha reduzido a este número),
nenhum era padre. Eles não puderam, portanto,
ainda que já iniciados nos outros mistérios, receber
os sacramentos que, entre nós, unicamente os padres
têm o poder de conferir; não obstante, têm uma
idéia perfeitamente exata desses sacramentos e
de tal modo os desejam que ouvi-os discutir acaloradamente
a questão de saber se um cidadão, escolhido por
eles, não poderia adquirir o caráter de padre.
A minha partida, não tinham ainda eleito ninguém,
mas pareciam resolvidos a fazê-lo.
Os habitantes da
ilha que não crêem no cristianismo, não se opõem
à sua propagação e não maltratam de nenhuma maneira
os neo-convertidos. Apenas um dos nossos neófitos
foi preso em minha presença. Recém-batizado, pregava
em público, não obstante os meus conselhos, com
mais zelo que prudência. Arrebatado por seu ardente
fervor, não se contentava em elevar ao primeiro
plano o cristianismo; e condenava todas as outras
religiões, vociferando contra seus mistérios,
que classificava como profanos, contra seus sectários,
que qualificava de ímpios e sacrílegos, dignos
do inferno. Este neófito, depois de ter deblaterado
neste tom durante muito tempo, foi preso, não
sob prevenção de ultraje ao culto, mas por ter
provocado tumulto entre o povo. Foi a julgamento
e condenado ao exílio.
Os utopianos incluem
no número de suas mais antigas instituições a
que proíbe prejudicar uma pessoa por sua religião.
Utopus, na época da fundação do império, apurou
que, antes de sua chegada, os indígenas viviam
em guerras contínuas por motivos religiosos. Notara
também que tal situação lhe facilitara a conquista
do país, porque as seitas dissidentes em vez de
se reunirem em massa, combatiam isoladamente e
a parte. Assim que se viu vitorioso e senhor do
país, apressou-se em decretar a liberdade de religião.
Entretanto, não proscreveu o proselitismo, que
propaga a fé pelo raciocínio, com doçura e modéstia;
que não procura destruir pela força bruta a religião
contrária, quando não consegue persuadir; que,
finalmente, não emprega a violência nem a injúria.
Utopus, decretando
a liberdade religiosa, não tinha unicamente em
vista a manutenção da paz outrora perturbada por
combates contínuos e ódios implacáveis; pensava
ainda que o próprio interesse da religião exigia
tal medida. Nunca ousou ele estatuir temerariamente
qualquer coisa, em matéria de fé, na incerteza
de que o próprio Deus não tenha inspirado aos
homens as diversas crenças no intuito de experimentar,
por assim dizer, esta grande variedade de cultos.
Quanto ao emprego da violência e de ameaças para
constranger alguém a adotar a mesma crença que
outrem, pareceu-lhe tirânico e absurdo. Previa
que se todas as religiões fossem falsas, à exceção
de uma, tempo viria em que, com o auxílio da doçura
e da razão, a verdade se desprenderia espontaneamente,
luminosa e triunfante, da noite do erro
Ao contrário, quando
a controvérsia se faz pelo tumulto e de armas
na mão, dado que os piores homens são os mais
teimosos, sucede que a melhor e mais santa das
religiões acabaria sepultada sob uma multidão
de vãs superstições, como uma bela seara coberta
pelo mato e os espinhos.
Foi por isto que
Utopus deixou a cada um inteira liberdade de consciência
e de fé
Não obstante, castigou
severamente, em nome da moral, o homem que degrada
a dignidade de sua natureza a ponto de pensar
que a alma morre com o corpo ou que o mundo marcha
ao léu sem que exista alguma providência
Os utopianos crêem,
pois, numa vida futura, onde castigos são preparados
para os crimes e recompensas para as virtudes.
Não dão o nome de homem àquele que nega estas
verdades e que rebaixa a natureza sublime de sua
alma à vil condição de um corpo de animal; com
mais forte razão, não o honram com o título de
cidadão, persuadidos de que, se o tal não estivesse
amarrado pelo temor, calcaria aos pés como flocos
de neve os hábitos e as instituições sociais.
Quem pode duvidar, com efeito, que um indivíduo
que não tem outro freio senão o código penal,
outra esperança que a matéria e o nada, não encontra
prazer em iludir, astuciosa e secretamente, as
leis de seu país, ou violá-las pela força, desde
que satisfaça a sua paixão e o seu egoísmo?
A esses materialistas
não se rendem homenagens, não se confiam magistraturas
ou cargos públicos. São desprezados como seres
de natureza inerte e impotente. Entretanto, não
são condenados a pena, na convicção generalizada
de que não está no poder de ninguém sentir segundo
sua fantasia. Não se fazem ameaças para obrigá-los
a dissimular a própria opinião. A dissimulação
é proscrita na Utopia e a mentira é detestada
tanto quanto a trapaça. Unicamente não têm o direito
de sustentar seus princípios em público perante
o vulgo; podendo fazê-lo, entretanto, em particular,
junto aos padres e outras graves personagens.
São mesmo insistentemente convidados para essas
conferências, na esperança de que seu delírio
ceda enfim à razão.
Grande número de
utopianos professa um sistema diametralmente oposto
ao materialismo; e como suas idéias não são perigosas
nem totalmente desprovidas de bom senso, a propaganda
não lhes é proibida. Estes últimos, caindo no
extremo oposto, pretendem que as almas dos animais
são imortais como as nossas, ainda que muito inferiores
quanto ao quinhão da dignidade e da felicidade
que lhes são destinadas.
Todos os utopianos,
a parte pequena minoria, alimentam a convicção
íntima de que uma felicidade imensa aguarda o
homem além túmulo. É por isto que choram pelos
doentes e jamais pelos mortos, excetuado o caso
em que o moribundo deixa a vida inquieto ou a
contragosto. O temor da morte é para eles um mau
augúrio; parece-lhes que este temor não existe
senão nas almas sem esperança e cujas consciências
intranqüilas tremem diante da eternidade, como
se sentissem já o aproximar do suplício. Além
disso acreditam que Deus não recebe com prazer
o homem que não acorre de bom grado ao seu chamado,
mas é pela morte arrastado à sua presença entre
rebelde e aflito.
Aqueles que vêm
alguém morrer assim tomam-se de horror; levam
o defunto, tristes e silenciosos; e após suplicar
à divina clemência perdão às suas fraquezas, enterram-no.
Ninguém,
ao contrário, lamenta um cidadão que sabe morrer
alegremente, cheio de esperança. Cânticos de alegria
acompanham seus funerais. Recomenda-se com fervor
sua alma a Deus, e queima-se-lhe o corpo com respeito,
mas sem lamentações. Sobre o lugar da sepultura,
levanta-se uma coluna em que são gravados os títulos
do morto. Seus amigos, reunidos, conversam sobre
seus hábitos e ações; e o que mais freqüentemente
lhes agrada relatar a história de sua morte gloriosa.
Estas
homenagens dedicadas à memória das pessoas de
bem são, aos olhos de nossos insulares, um incitamento
eficaz à virtude e um nobre culto aos mortos.
Porque os mortos, segundo os preconceitos da maioria
dos utopianos, assistem às conversações dos vivos,
ainda que invisíveis ao pequeno alcance dos olhos
dos mortais. Não conviria à sorte dos bem-aventurados
não serem livres de se transportar aonde bem lhes
parecesse; e poder-se-ia justamente acusá-los
de ingratidão, se se mostrassem indiferentes ao
desejo de rever os amigos a que na terra estavam
presos pelos laços do amor e da caridade. Mas
tal não poderia dar-se visto que o amor e a caridade,
longe de se extinguirem após a morte no coração
dos eleitos, devem provavelmente crescer, como
todas as outras perfeições. Por conseguinte, segundo
as idéias utopianas, os mortos se misturam à sociedade
dos vivos e são testemunhas de suas ações e de
suas palavras. A crença na presença dos antepassados
inspira a este povo uma confiança extrema nas
suas ações, porque lhes assegura a proteção e
o apoio de poderosos defensores; além disso, impede
uma enorme quantidade de crimes ocultos.
Quanto
aos augúrios e outros meios supersticiosos de
adivinhação, tão freqüentes em outros países,
os nossos insulares rejeitam-nos e deles se riem
Veneram
os milagres que surgem sem o concurso das leis
da natureza, considerando-os como fatos que atestam
a presença da divindade. Afirmam mesmo que muitos
milagres têm-se verificado em seu país, e que
não raro em meio a terríveis calamidades as preces
públicas e uma grande fé logram obter prodígios
capazes de salvar o império.
Crêem
que contemplar o universo, louvar o autor das
maravilhas da criação é um culto agradável a Deus.
Entretanto,
encontra-se entre eles uma classe numerosa de
cidadãos que, por espírito religioso preconcebido,
abandonam a ciência, desdenham aplicar-se ao conhecimento
das coisas, renunciam, enfim, a toda espécie de
contemplação e lazer. Estes homens procuram merecer
o céu unicamente pela vida ativa e pelos bons
serviços prestados ao próximo. Uns cuidam dos
doentes; outros consertam as estradas e as pontes,
limpam os canais, nivelam os terrenos, tiram dos
caminhos as pedras e os obstáculos, abatem e cortam
as árvores; transportam, para as cidades, em carros
puxados a cavalo, a madeira, o grão, os frutos
e os outros produtos do campo.
Não
só trabalham para o público, mas se põem ainda
a serviço dos particulares, como simples domésticos,
mais diligentes e submissos que escravos. Encarregam-se
com alegria dos trabalhos mais rudes e mais difíceis,
dos serviços mais repugnantes, para cuja realização
as penas, o desespero e o nojo afugentam a maioria
dos homens. Entregam-se, sem descanso, ao trabalho
e à fadiga, a fim de obter para o próximo o trabalho
e o repouso. Não exigem para tanto nenhum agradecimento.
Não censuram a vida dos outros e não se vangloriam
de todo o bem que fazem. Quanto mais, por devotamento,
se rebaixam ao nível do escravo, tanto mais se
elevam na estima pública.
Esta
classe de homens devotados divide-se em duas seitas:
Uns
renunciam ao matrimônio. Não só se abstêm do comércio
com as mulheres, mas ainda rejeitam o uso de qualquer
carne. Privam-se de todos os prazeres da vida,
como coisas perigosas; não aspiram senão a merecer
as delícias da vida futura a força de vigílias
e suores. A esperança de cedo gozar dessas delicias
torna-os alegres e sãos.
Os
outros, não menos ávidos de trabalhos, preferem
o estado de casado, do qual apreciam as obrigações
e as doçuras. Julgam que têm obrigações para com
a Natureza e que devem filhos à pátria. Não fogem.
dos prazeres, contanto que estes não os distraiam
do trabalho. Comem carne dos quadrúpedes, a fim
de se tornarem mais robustos e mais capazes de
suportar as fadigas.
Os
utopianos crêem os últimos mais sábios e os primeiros
mais santos. Se, não obstante, aqueles que preferem
o celibato ao casamento, as fadigas ao repouso,
fundamentassem tal comportamento no bom senso
da razão, os utopianos se ririam deles com piedade.
Mas professam por estes homens uma viva admiração,
porque a religião é o móvel de seu devotamento
e na Utopia todo mundo evita, escrupulosamente,
tomar qualquer decisão a respeito de religião.
Estes rígidos sectários se chamam na língua do
país butrescos; denominação que corresponde entre
nós a religiosos.
Os
padres da Utopia são de uma santidade perfeita,
e, por conseqüência, em número muito restrito;
para cada cidade não há senão treze a serviço
de igual número de templos. Entretanto, em caso
de guerra, sete padres devem acompanhar o exército,
e neste caso é forçoso nomear outros sete em lugar
dos que partem. Os titulares retomam suas funções
assim que regressam. Os suplentes sucedem por
ordem aos antigos, à proporção e à medida que
estes morrem; como suplentes, assistem o pontífice.
Em
cada cidade há um pontífice acima dos outros padres.
Os
padres, da mesma forma que os outros magistrados,
são eleitos pelo povo em escrutínio secreto, a
fim de evitar a intriga; o colégio sacerdotal
da cidade consagra os novos eleitos. Presidem
as coisas divinas, velam sobre a religião e são,
de algum modo, os censores dos costumes. Ê vergonhoso
ser citado a comparecer perante eles e receber
suas reprimendas; é esse um indício de vida pouco
regular. De resto, se têm o direito de aconselhar
e de repreender, somente ao príncipe e aos magistrados
cabe o direito de prender e processar criminalmente
os culpados. O poder dos padres se limita a interditar
os sagrados mistérios aos homens reconhecidamente
pervertidos. Não existe suplício nenhum que faça
mais horror, na Utopia, que esta excomunhão; ela
os marca de infâmia, causa à consciência mil temores
religiosos e não deixa, a quem fere, tranqüilidade
quanto à própria segurança pessoal; pois se os
reprovados não se apressam em dar mostra de arrependimento
verdadeiro perante os padres, o senado manda prendê-los
e lhes é aplicada a penalidade dos ímpios.
A
educação da infância e da juventude é confiada
ao sacerdote, para quem os primeiros cuidados
são para o ensino da moral e da virtude de preferência
ao das ciências e das letras. O mestre, na Utopia,
emprega toda a sua experiência e talento em imprimir,
na alma ainda tenra e impressionável da criança,
os bons princípios que são a salvaguarda da república.
A criança que recebeu o germe desses princípios
guarda-os em sua carreira de homem, tornando-se
mais tarde um elemento útil à conservação do Estado.
É o vício que destrói os impérios, e o vício é
engendrado pelas más opiniões.
Os
padres escolhem suas mulheres na fina flor da
população. A próprias mulheres não são excluídas
do sacerdócio, contanto que sejam viúvas e de
idade avançada.
Não
há magistratura mais honrada que o sacerdócio.
A veneração que se dedica aos padres é de tal
modo profunda que, se algum deles comete uma infâmia,
não comparece em juízo mas é abandonado a Deus
e à sua própria consciência. Os utopianos não
julgam permitido tocar-se com mão mortal naquele
que foi consagrado a Deus, como uma oferenda santa,
como uma coisa inviolável e a parte.
Esta
lei é tanto mais fácil de praticar quanto é pequeno
o número dos padres e quão grandes as precauções
postas a elegê-los. Assim, deve ser extremamente
raro que um homem elevado a um tão alto grau de
dignidade, em conseqüência mesmo de suas virtudes
e de ser o melhor entre os bons, venha a cair
no vício e na depravação. E se tamanho escândalo
viesse a dar-se (pois a natureza humana é fraca
e inconstante), a segurança do Estado não se sentiria
gravemente comprometida por uma classe tão pouco
numerosa e que possui somente brilhantes honras,
sem influência e poder.
Os
utopianos, ao limitar a tão pequeno número a quantidade
de padres, procuram não baratear a dignidade de
uma ordem que goza atualmente da mais alta consideração,
transmitindo esta dignidade a muitos indivíduos.
A razão principal é que lhes parece difícil encontrar
muitos homens dignos de preencher uma função cujo
exercício exige uma perfeição invulgar.
Os
padres da Utopia não são menos estimados nas nações
estrangeiras que entre seus concidadãos. Eis a
explicação para o fato:
Durante
os combates, os padres, retirados a um lado, mas
não muito longe dos campos de batalha, rezam de
joe1hos, as mãos erguidas ao céu e paramentados
com os hábitos sagrados. Imploram a paz acima
de tudo, e só em segundo lugar a vitória do seu
país, e, ainda assim, uma vitória que não seja
sangrenta para nenhum dos dois lados. Se são os
seus concidadãos os vencedores, atiram-se no mais
forte da refrega e evitam a matança dos vencidos.
O infeliz que deles se aproxima, os vê ou os chama,
tem sua vida poupada; aquele que consegue tocar
suas vestimentas sagradas, longas e flutuantes,
conserva com a vida, a fortuna.
Esta
bela atitude fez ressaltar tanto a real majestade
de seu caráter, e inspira aos povos vizinhos tanta
veneração, que muitas vezes a intervenção dos
padres não tem sido menos salutar aos próprios
utopianos do que aos exércitos inimigos. De fato,
há acontecido às tropas utopianas se submeterem
e fugirem depois de perdidas todas as esperanças;
mas, no momento em que o inimigo se entregava
ao saque e ao assassínio a mediação dos padres
suspende a carnificina, separa os contendores
e consegue que se conclua a paz sob condições
razoáveis. Nunca, naquelas plagas, houve povo
bastante bárbaro, ou bastante feroz e cruel, para
não respeitar os padres da Utopia como um corpo
sagrado e inviolável.
Os
utopianos celebram uma festa nos primeiros e últimos
dias do mês e do ano. Dividem o ano em meses lunares
e o medem pela revolução solar. Esses primeiros
e últimos dias se chamam cinemerne e trapemerne
segundo a língua utopiana, nomes que pouco mais
ou menos significam festa inicial e festa final.
Podem-se
ver na Utopia templos magníficos, de rica estrutura
e de extensão capaz de conter uma imensa multidão,
necessária em vista do pequeno número existente.
Uma semi-obscuridade coa a claridade do dia; esta
disposição não é motivada pela ignorância dos
arquitetos; foi adotada de propósito e a conselho
dos padres. A razão disto é que uma luz excessiva
dispersa as idéias, enquanto que uma luz fraca
e dúbia recolhe os espíritos, desenvolve e exalta
o sentimento religioso.
Se
bem que os utopianos não professem a mesma religião,
entretanto todos os cultos desse país, em suas
múltiplas variedades, convergem por diversos caminhos
para o mesmo fim que é a adoração da natureza
divina; É por isto que não se vê e não se encontra
nada nos templos que não sirva a todas às crenças
em conjunto. Cada um celebra em sua casa, em família,
os mistérios particulares à sua fé. O culto público
é organizado de maneira a não contradizer em nada
o culto doméstico e privado. Não se encontra nos
templos nenhuma imagem de deuses, a fim de que
fique cada um livre de conceber a Divindade sob
a forma que corresponda à sua crença. Não se invoca
jamais Deus sob outro nome que o de Mitra, termo
que exprime em geral a essência da majestade divina,
qualquer que seja esta essência. Não se faz ali
nenhuma prece que todos não possam repetir sem
ferir sua consciência religiosa.
Nos
dias de trapemerne o povo se reúne nos templos
à tarde e ainda em jejum. Aí, agradecem a Deus
as graças alcançadas durante o ano ou mês de que
a festa é o ú1timo dia. No dia seguinte, dia de
cinemerne, o povo enche os templos já pela manhã,
implorando aos céus um futuro feliz durante o
ano ou mês que esta solenidade inaugura.
Nos
dias de trapemerne, antes de ir ao templo, as
mulheres se atiram aos pés de seus maridos, as
crianças aos pés de seus pais. Assim prosternados,
confessam seus pecados por atos ou negligência
no cumprimento dos deveres, e depois pedem perdão
de seus erros. No meio desta confissão em família,
desta satisfação piedosa, as nuvens, de ódio que
obscureciam a paz doméstica são rapidamente dissipadas
e todo mundo pode, então, assistir aos sacrifícios
com a alma tranqüila e pura, pois os utopianos
teriam escrúpulos se a eles assistissem com o
ódio e a perturbação no coração. Se sua consciência
estivesse carregada de cólera ou ressentimento,
não ousariam jamais participar da celebração dos
mistérios antes de se terem reconciliado e purificado
seus sentimentos. Temem que Deus exerça qualquer
vingança terrível por essa impiedade.
Dentro
do templo, os homens ficam à direita e as mulheres
à esquerda, separados. Os lugares são distribuídos
de forma que os indivíduos de cada um dos dois
sexos estejam respectivamente sentados em frente
do pai e da mãe da família. Isto é assim ordenado
a fim de que os chefes de família possam observar
o comportamento exterior daqueles que eles instruem
e governam na intimidade. Tem-se o cuidado de
distribuir os mais jovens entre os mais velhos,
a fim de que as crianças, não estando muito aglomeradas,
não percam, em tolices pueris, o tempo que devem
empregar em impregnar-se da crença religiosa nos
deuses, crença que é, nessa idade, o incentivo
mais urgente e talvez mais capaz de estimulá-las
à virtude.
Os
utopianos não imolam animais nos seus sacrifícios.
Pensam que a clemência divina, que deu a vida
aos seres animados para que vivam, não pode se
alegrar com a visão do sangue e da morte. Queimam
incenso e outros perfumes, e velas em grande número.
Sabem muito bem que a natureza divina não tem
necessidade dessas coisas nem das preces dos homens;
mas gostam de render a Deus este culto de paz.
Aliás, não sei como, sob a influência dessas luzes,
desses perfumes, dessas cerimônias, o homem sente
sua alma elevar-se e, com fervor, entrega-se à
adoração do Todo Poderoso.
O
povo, no templo, veste-se de branco; o padre leva
uma vestimenta de diversas cores, admirável de
confecção e de forma, ainda que a fazenda não
seja muito preciosa. A vestimenta do padre não
é nem brochada de ouro nem presa por pedrarias;
é um tecido de penas de pássaros, dispostas com
tanta arte e gosto que o mais rico paramento ficaria
abaixo desse maravilhoso trabalho. Além disso,
a ordem com que são distribuídas as penas e plumas
obedece a símbolos que encerram mistérios secretos.
Os sacrificadores conservam e comunicam fielmente
a interpretação desses símbolos, cuja vista recorda
perenemente aos utopianos os benefícios que Deus
lhes prodigaliza, o reconhecimento que devem,
em retribuição, e os deveres que têm a cumprir
uns para com os outros.
Desde
que o padre revestido de seus paramentos se apresenta
à entrada do santuário, todo mundo se prosterna,
com um respeito e silêncio tão profundos que este
espetáculo fere a alma de uma espécie de terror
como se um Deus aparecesse no templo. Após alguns
instantes, a um sinal do padre todos se erguem.
Então os assistentes começam a cantar louvores
a Deus, interrompidos, a intervalos, pela música
instrumental.
Os
instrumentos da música utopiana têm formas, em
grande parte, diferentes das que vemos entre nós.
Na sua maioria são mais harmoniosos que os nossos,
e alguns não lhes podem mesmo ser comparados.
Mas o que dá à música utopiana, seja instrumental,
seja vocal, uma superioridade incontestável, é
que ela imita e exprime todos os sentimentos da
natureza com rara perfeição. Os utopianos acordam
tão bem o som, a expressão, pintam tão vivamente
as súplicas da prece, a alegria e a piedade, a
inquietação, o pesar, a cólera, a forma de sua
melodia, numa palavra, representa com tal verdade
os sentimentos mais íntimos, que a alma de quem
escuta fica maravilhosamente comovida, embevecida
e inflamada.
No
fim do ofício divino, o povo e o padre rezam juntos
rezas solenes, formuladas em termos determinados
por lei, e de maneira a cada um reportar a si
mesmo o que todos recitam em comum.
Nessas
preces, os ouvintes reconhecem Deus como autor
da criação e da conservação de todos os bens;
rendem-lhe graças pelos numerosos benefícios recebidos
Agradecem a Deus, em particular, tê-los feito
nascer, por insigne favor, no seio da república
mais feliz e da religião que lhes parece ser a
verdadeira. Entretanto, se esta crença for um
erro, se existir um governo e um culto melhores,
mais propícios ao Eterno, suplicam sua divina
bondade de lhes trazer revelação, declarando-se
prontos a obedecer, em tudo, a sua vontade. Mas,
ao contrário, se o culto e o governo da Utopia
são os mais perfeitos, pedem então a Deus que
lhes conceda o favor de perseverar, e que conduza
o resto dos homens às mesmas instituições religiosas
e sociais; a não ser que, nos seus desígnios impenetráveis,
tenha por bom esta grande diversidade de religiões.
Finalmente suplicam à misericórdia divina recebê-los
em paz, depois de uma boa morte. Não ousam pedir
ao céu prolongar ou abreviar a duração da própria
vida; mas o que dizem a Deus, sem temer ofender
bua majestade, é que prefiririam chegar a ele
pela morte mais penosa do que ficar muito tempo
privados de sua presença na vida mais venturosa.
Terminada
esta prece, todo mundo se prosterna de novo e
se ergue momentos depois para ir jantar. O resto
do dia é empregado em jogos e exercícios militares...
Tenho
tentado, continuou Rafael, descrever-vos a forma
desta república, que julgo ser, não somente a
melhor, como a única que pode se arrogar, com
boa justiça, do nome de república. Porque, em
qualquer outra parte, aqueles que falam de interesse
geral não cuidam senão de seu interesse pessoal;
enquanto que lá, onde não se possui nada em particular,
todo mundo se ocupa seriamente da causa pública,
pois o bem particular realmente se confunde com
o bem geral. Qual o homem que, em outro lugar,
não sabe que se abandonar os seus próprios negócios,
por mais florescente que esteja a república, não
deixará, por isso, de morrer de fome? Daí a necessidade
com que pensam em si antes de pensar em seu país,
isto é, no seu próximo.
Na
Utopia, ao contrário, onde tudo pertence a todos,
não pode faltar nada a ninguém, desde que os celeiros
públicos estão cheios. A fortuna do Estado nunca
é injustamente distribuída naquele país; não se
vêm nem pobres nem mendigos, e ainda que ninguém
tenha nada de seu, no entretanto todo mundo é
rico. Existe, na realidade, mais bela riqueza
do que viver alegre e tranqüilo, sem inquietações
nem cuidados? Existe sorte mais feliz do que não
tremer pela existência, não ser azoinado pelos
pedidos e queixas da esposa, não temer a pobreza
para seu filho, não apoquentar-se pelo dote da
filha; mas estar sempre seguro e certo da existência
e do bem estar, seu e dos seus, mulher, filhos,
netos, bisnetos, até à mais longínqua posteridade
de que poderia orgulhar-se um fidalgo?
A
república utopiana garante essas vantagens aos
que, inválidos hoje, outrora trabalharam tão bem
quanto os cidadãos ativos aptos a trabalhar.
Gostaria
de ver alguém, aqui, que ousasse comparar esta
justiça à justiça das outras nações. Eu, de mim,
estou pronto a morrer se me mostrarem nas outras
nações o menor sinal de eqüidade e justiça.
É
justo que um nobre, um ourives, um usurário, um
homem que não produz senão objetos de luxo, inúteis
ao Estado, é justo que tais indivíduos levem uma
vida caprichosa e esplêndida por entre a ociosidade
e ocupações frívolas, enquanto que um trabalhador,
um carreteiro, um artesão, um lavrador vivem uma
negra miséria, mal podendo alimentar-se? E, no
entanto, os últimos estão amarrados a um trabalho
tão pesado e tão penoso que as bestas de carga
mal suportariam; tão necessário que nenhuma sociedade
poderia subsistir um ano sem ele. Na verdade,
a condição de uma besta de carga parece mil vezes
preferível; esta trabalha menos tempo, sua alimentação
não chega a ser pior, e é mesmo mais conforme
aos seus gostos. E depois, o animal não teme o
futuro.
Mas
qual é o destino do operário? Um trabalho infrutífero,
estéril a esmagá-lo agora e a expectativa de uma
velhice miserável no futuro; o seu salário diário
não chega para todas as necessidades quotidianas;
como, então, poderá ele aumentar sua fortuna e
reservar dia a dia um pouco do supérfluo para
as necessidades da velhice?
Não
é iníqua e ingrata a sociedade que prodigaliza
tantos bens aos que se intitulam nobres, aos joalheiros,
aos ociosos ou a esses artesãos de luxo que só
sabem lisonjear e servir a frívolas volúpias;
quando, de outra parte, não tem nem coração nem
cuidados para o lavrador, o carvoeiro, o carregador,
o operário, sem os quais não existiria sociedade?
Em seu cruel egoísmo, ela abusa do vigor da juventude
dessa gente para tirar dela maior proveito; e
logo que fraquejam esses pobres homens, sob o
peso da idade e da doença, justamente quando tudo
lhes falta, é que ela esquece das suas canseiras
infindas, dos seus numerosos serviços, e os recompensa
deixando-os morrer a fome.
E
não é tudo. Os ricos diminuem cada dia alguma
coisa no salário dos pobres, não só por meio de
manobras fraudulentas, mas ainda decretando leis
com tal fim. Recompensar tão mal aqueles que mais
merecem da república, parece-nos à primeira vista
uma evidente injustiça; mas os ricos fazem desta
monstruosidade um direito, sancionando-o em leis.
É
por isto que, quando considero e observo as repúblicas
mais florescentes hoje, não vejo, Deus me perdoe,
senão uma conspiração de ricos a gerir do melhor
modo os seus negócios sob o rótulo e o título
pomposos de república. Os conjurados procuram
por todas as manhas e meios possíveis atingir
um duplo fim:
Primeiramente,
assegurar a posse certa e indefinida de uma fortuna
mais ou menos mal adquirida; em segundo lugar,
abusar da miséria dos pobres, abusar de suas pessoas,
e comprar pelo preço mais baixo suas habilidades
e labores.
E
essas maquinações decretadas pelos ricos em nome
do Estado, e, por conseguinte, em nome dos pobres
também, são transformadas em leis.
Entretanto,
embora tenham esses homens perversos partilhado
entre si, com insaciável cobiça, bens suficientes
à felicidade de todo um povo, longe ainda estariam
da felicidade que gozam os utopianos.
Na
Utopia a avareza é impossível, porque o dinheiro
ali não é de uso algum, e por isso mesmo que abundante
fonte de males não estancou ela? Que enorme seara
de crimes não cortou pela raiz? Quem não sabe,
com efeito, que as fraudes, os roubos, as rapinas,
as rixas, os tumultos, as querelas, as sedições,
os assassínios, as traições, os envenenamentos;
quem não sabe, digo, que todos esses crimes dos
quais se vinga a sociedade com suplícios permanentes,
sem, entretanto, poder preveni-los, seriam suprimidos
no dia em que o dinheiro desaparecesse? Então,
desapareceriam também o temor, a inquietude, os
cuidados, as fadigas e as canseiras. A. própria
pobreza, que parece ser a única a carecer de dinheiro,
diminuiria no instante mesmo, caso o dinheiro
fosse completamente abolido.
E
veja-se esta prova evidente:
Suponde
que vem um ano mau e estéril, durante o qual uma
horrível fome rouba muitos milhares de vidas.
Sustento que, ao fim da calamidade, se fossem
pesquisados os celeiros dos ricos, neles se encontrariam
imensas provisões de grãos. De sorte que, se essas
provisões tivessem sido distribuídas em tempo,
nenhum dos infelizes que morreram de fraqueza
e debilidade teria sido tocado pela inclemência
do céu e a avareza da terra. Vedes pois, que,
sem o dinheiro, a existência teria podido e poderá
ser assegurada a todos; e que a chave de ouro,
esta bem-aventurada invenção que nos devia abrir
as portas da felicidade, no-las fecha impiedosamente.
Os
próprios ricos, não o duvido, compreendem estas
verdades. Sabem que é infinitamente preferível
não lhes faltar jamais o necessário a ter em abundância
quantidades de coisas supérfluas; que mais vale
verem-se livres de males inúmeros do que se cercarem
de grandes riquezas. Creio mesmo que de há muito
teria o gênero humano abraçado as leis da república
utopiano, seja em interesse próprio, seja em obediência
às leis do Cristo, pois a sabedoria do Salvador
não poderia ignorar o que há de mais útil aos
homens, e sua bondade divina certamente já soube
recomendar-lhes o que sabia ser bom e perfeito.
Mas
o orgulho, paixão feroz, rainha e mãe de todas
as pragas sociais, opõe uma resistência invencível
a essa conversão dos povos. O orgulho não mede
a felicidade de acordo com o bem estar pessoal,
mas de acordo com a infelicidade alheia. O orgulho
recusaria mesmo ser Deus, se não lhe restassem
mais infelizes a insultar e a tratar como escravos,
se o luxo de sua felicidade não fosse mais exaltado
peias angústias da miséria e se a ostentação de
suas riquezas não torturasse mais a indigência
e acendesse o seu desespero. O orgulho é uma serpente
do inferno, que se introduziu no coração dos homens,
que os cega com seu veneno e os afasta da senda
de uma vida melhor. Este reptil agarra-se tão
fortemente à carne que se torna difícil arrancá-lo.
Desejo,
do fundo da alma, a todos os países, uma república
semelhante à que vos acabo de descrever. Alegra-me,
ao menos, saber que os utopianos a encontraram
e fundaram o seu império sobre instituições que
lhes asseguram não somente a prosperidade mais
brilhante como, tanto quanto pode conjeturar a
previsão humana, uma duração eterna.
Porque
nela todos os germes da ambição, do facciosismo,
foram extirpados com os demais vícios. Desde então,
o Estado não teme as discórdias civis que aniquilavam
a potência e a riqueza de tantas cidades. A união
dos cidadãos sendo assim fortemente consolidada
no interior, a excelência e a solidez das instituições
defendem a república contra os perigos de fora.
A inveja reunida de todos os reis vizinhos seria
impotente para abalar e perturbar o império; já
o experimentaram, muitas vezes e todas as vezes
viram seus projetos desmoronar.
Assim
que Rafael terminou sua narrativa, veio-me à mente
quantidade de coisas que me pareceram absurdas
nas leis e costumes utopianos, tais como seu sistema
de fazer a guerra, o culto, a religião e várias
outras instituições. O que sobretudo transtornava
todas as minhas idéias era o alicerce sobre que
foi erguida esta estranha república, quero dizer,
a comunidade de vida e de bens, sem tráfico de
dinheiro. Ora, esta comunidade destrói radicalmente
toda nobreza e magnificência, todo esplendor e
majestade — coisas que, aos olhos da opinião pública,
fazem a honra e o verdadeiro ornamento de um Estado.
Não apresentei, entretanto, a Rafael, nenhuma
objeção, porque o sabia fatigado da longa narrativa.
Por outro lado, não estava certo de que suportasse
pacientemente a contradição Lembrava-me te-lo
visto censurar com vivacidade a certos contraditores,
repreendendo-lhes temerem passar por imbecis,
se nada encontravam a objetar às invenções dos
outros.
Pus-me,
então,. a louvar as instituições utopianas e a
narrativa feita. Depois tomei pela mão o narrador,
a fim de levá-lo a cear, e prometi que, de outra
feita, teríamos ocasião de meditar mais profundamente
sobre essas matérias, e de juntos conversar mais
demoradamente.
Praza
a Deus que isto aconteça algum dia!
Porque,
se de um lado não posso concordar com tudo o que
disse este homem, aliás incontestavelmente muito
sábio e muito hábil nos negócios humanos, de outro
lado confesso sem dificuldade que há entre os
utopianos uma quantidade de coisas que eu aspiro
ver estabelecidas em nossas cidades.
Aspiro,
mais do que espero.
NOTAS
(1)
- Cila: perigoso
penhasco no mar de Messina, vizinho a uma voragem
não menos perigosa chamada pelos antigos de Caribdis.
Os poetas antigos contavam que ali morava um monstro
— Cila — devorador dos navegantes.
Celenos: outros seres legendários que enchiam
a imaginação dos antigos. Provavelmente o autor
queria referir-se a algum derivado dos Selenitas,
supostos habitantes da lua
Lesfrigões: gigantes antropófagos, habitantes
da Sicília, que comeram vários companheiros de
Ulisses, segundo a mitologia homérica.
(2)
- Tirano de Siracusa
(405-368 A.C.) Platão, em conseqüência de intrigas,
foi preso por este da primeira vez que esteve
naquela cidade. Da segunda vez que ali esteve
o fez como conselheiro do filho do tirano (368-343
A.C.) que sucedeu ao pai no trono. Também desta
vez Platão não se deu bem na corte e teve que
abandonar as suas funções e voltar à Grécia.
(3)
- Fabricius, general
romano, cônsul em 282-275 A. C. Morreu tão pobre
que o Estado foi forçado a fazer-lhe os funerais.
(4)
- De Philarca, de
phil ou philo (amigo), prefixo grego significando
que ama.
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