O PRÍNCIPE
APRESENTAÇÃO
Nicolaus Maclavellus, ou
Nicoló Macchiavelli foi um gênio. Ou alguém conhece escritor
dos anos 1500 que seja tão atual quanto ele? Um ex-ministro,
poderosíssimo, deste país confessou, publicamente, que
"O Príncipe" era seu livro de cabeceira. Falo
sobre Delfim Netto. O Fernando Henrique, habituado a dizer
bobagens, nunca confessou, mas basta ver suas atirudes
e decisões para verificar que "O Príncipe "
é mais que um livro de cabeceira, é Bíblia. As pessoas,
neste país não lêem, ou o fazem mal. "O príncipe"
deve ser analisado com cuidado. De forma indireta, é um
libelo pela democracia e libertarismo. Prestem atenção,
aprenderão muito e quem sabe, encontrarão o caminho da
liberdade. Infelizmente nossos políticos não entenderam,
ou não querem.
O PRÍNCIPE
Maquiavel
AO MAGNÍFICO LORENZO DE MEDICI
NICOLÓ MACHIAVELLI
ÍNDICE
DOS PRINCIPADOS
Capítulo II. Dos principados
hereditários
Capítulo III. Dos principados
mistos
Capítulo IV. Por que o reino de
Dario, ocupado por Alexandre, não se rebelou contra seus
sucessores após a morte deste
Capítulo V. De que modo se devam
governar as cidades ou principados que, antes de serem ocupados,
viviam com as suas próprias leis
Capítulo VI. Dos principados
novos que se conquistam com as armas próprias e virtuosamente
Capítulo VII. Dos principados
novos que se conquistam com as armas e fortuna dos outros
Capítulo VIII. Dos que chegaram
ao principado por meio de crimes
Capítulo IX. Do principado civil
Capítulo X. Como se devem medir
as forças de todos os principados
Capítulo XI. Dos principados
eclesiásticos
Capítulo XII. De quantas espécies
são as milícias, e dos soldados mercenários
Capítulo XIII. Dos soldados
auxiliares, mistos e próprios
Capítulo XIV. O que compete a um
príncipe acerca da milícia(tropa)
Capítulo XV. Daquelas coisas
pelas quais os homens, e especialmente os príncipes, são
louvados ou vituperados .
Capítulo XVI. Da liberalidade e
da parcimônia
Capítulo XVII. Da crueldade e da
piedade; se é melhor ser amado que temido, ou antes temido que
amado
Capítulo XVIII. De que modo os príncipes
devem manter a fé da palavra dada
Capítulo XIX. De como se deva
evitar o ser desprezado e odiado
Capítulo XX. Se as fortalezas e
muitas outras coisas que a cada dia são feitas pelos príncipes são
úteis ou não
Capítulo XXI. O que convém a um
príncipe para ser estimado
Capítulo XXII. Dos secretários
que os príncipes têm junto de si
Capítulo XXIII. Como se afastam
os aduladores
Capítulo XXIV. Por que os príncipes
da Itália perderam seus estados
Capítulo XXV. De quanto pode a
fortuna nas coisas humanas e de que modo se lhe deva resistir
Capítulo XXVI. Exortação para
procurar tomar a Itália e libertá-la das mãos dos bárbaros
Carta de Machiavelli a Francesco
Vettori, em Roma
O PRÍNCIPE
Costumam, o mais das vezes, aqueles
que desejam conquistar as graças de um Príncipe, trazer-lhe
aquelas coisas que consideram mais caras ou nas quais o vejam
encontrar deleite, donde se vê amiúde serem a ele oferecidos
cavalos, armas, tecidos de ouro, pedras preciosas e outros
ornamentos semelhantes, dignos de sua grandeza. Desejando eu,
portanto, oferecer-me a Vossa Magnificência com um testemunho
qualquer de minha submissão, não encontrei entre os meus
cabedais coisa a mim mais cara ou que tanto estime, quanto o
conhecimento das ações dos grandes homens apreendido através de
uma longa experiência das coisas modernas e uma contínua lição
das antigas as quais tendo, com grande diligência, longamente
perscrutado e examinado e, agora, reduzido a um pequeno volume,
envio a Vossa Magnificência.
E se bem julgue esta obra indigna
da presença de Vossa Magnificência, não menos confio que deva
ela ser aceita, considerado que de minha parte não lhe possa ser
feito maior oferecimento senão o dar-lhe a faculdade de poder, em
tempo assaz breve, compreender tudo aquilo que eu, em tantos anos
e com tantos incômodos e perigos, vim a conhecer. Não ornei este
trabalho, nem o enchi de períodos sonoros ou de palavras pomposas
e magníficas, ou de qualquer outra figura de retórica ou
ornamento extrínseco, com os quais muitos costumam desenvolver e
enfeitar suas obras; e isto porque não quero que outra coisa o
valorize, a não ser a variedade da matéria e a gravidade do
assunto a tornarem-no agradável. Nem desejo se considere presunção
se um homem de baixa e ínfima condição ousa discorrer e
estabelecer regras a respeito do governo dos príncipes: assim
como aqueles que desenham a paisagem se colocam nas baixadas para
considerar a natureza dos montes e das altitudes e, para observar
aquelas, se situam em posição elevada sobre os montes, também,
para bem conhecer o caráter do povo, é preciso ser príncipe e,
para bem entender o do príncipe, é preciso ser do povo. Receba,
pois, Vossa Magnificência este pequeno presente com aquele
intuito com que o mando; nele, se diligentemente considerado e
lido, encontrará o meu extremo desejo de que lhe advenha aquela
grandeza que a fortuna e as outras suas qualidades lhe prometem. E
se Vossa Magnificência, das culminâncias em que se encontra,
alguma vez volver os olhos para baixo, notará quão
imerecidamente suporto um grande e contínuo infortúnio.
CAPÍTULO I
DE QUANTAS ESPÉCIES SÃO OS
PRINCIPADOS E DE QUE MODOS SE ADQUIREM
(QUOT SINT GENERA PRINCIPATUUM ET
QUIBUS MODIS ACQUIRANTUR)
Todos os Estados, todos os governos
que tiveram e têm autoridade sobre os homens, foram e são ou repúblicas
ou principados. Os principados são: ou hereditários, quando seu
sangue senhorial é nobre há já longo tempo, ou novos. Os novos
podem ser totalmente novos, como foi Milão com Francisco Sforza,
ou o são como membros acrescidos ao Estado hereditário do príncipe
que os adquire, como é o reino de Nápoles em relação ao rei da
Espanha. Estes domínios assim obtidos estão acostumados, ou a
viver submetidos a um príncipe, ou a ser livres, sendo adquiridos
com tropas de outrem ou com as próprias, bem como pela fortuna ou
por virtude.
DOS PRINCIPADOS
(De Principatibus)
CAPÍTULO II
DOS PRINCIPADOS HEREDITÁRIOS
(DE PRINCIPATIBUS HEREDITARIIS)
Não cogitarei aqui das repúblicas
porque delas tratei longamente em outra oportunidade. Voltarei
minha atenção somente para os principados, irei delineando os
princípios descritos e discutirei como devem ser eles governados
e mantidos. Digo, pois, que para a preservação dos Estados
hereditários e afeiçoados à linhagem de seu príncipe, as
dificuldades são assaz menores que nos novos, pois é bastante não
preterir os costumes dos antepassados e, depois, contemporizar com
os acontecimentos fortuitos, de forma que, se tal príncipe for
dotado de ordinária capacidade sempre se manterá no poder, a
menos que uma extraordinária e excessiva força dele venha a privá-lo;
e, uma vez dele destituído, ainda que temível seja o usurpador,
volta a conquistá-lo.
Nós temos na Itália, como
exemplo, o Duque de Ferrara que não cedeu aos assaltos dos
venezianos em 1484 nem aos do Papa Júlio em 1510, apenas por ser
antigo naquele domínio. Na verdade, o príncipe natural tem
menores razões e menos necessidade de ofender: donde se conclui
dever ser mais amado e, se não se faz odiar por desbragados vícios,
é lógico e natural seja benquisto de todos. E na antigüidade e
continuação do exercício do poder, apagam-se as lembranças e
as causas das inovações, porque uma mudança sempre deixa lançada
a base para a ereção de outra.
CAPÍTULO III
DOS PRINCIPADOS MISTOS
(DE PRINCIPATIBUS MIXTIS)
Mas é nos principados novos que
residem as dificuldades. Em primeiro lugar, se não é totalmente
novo mas sim como membro anexado a um Estado hereditário (que, em
seu conjunto, pode chamar-se "quase misto"), as suas
variações resultam principalmente de uma natural dificuldade
inerente a todos os principados novos: é que os homens, com
satisfação, mudam de senhor pensando melhorar e esta crença faz
com que lancem mão de armas contra o senhor atual, no que se
enganam porque, pela própria experiência, percebem mais tarde
ter piorado a situação. Isso depende de uma outra necessidade
natural e ordinária, a qual faz com que o novo príncipe sempre
precise ofender os novos súditos com seus soldados e com outras
infinitas injúrias que se lançam sobre a recente conquista;
dessa forma, tens como inimigos todos aqueles que ofendeste com a
ocupação daquele principado e não podes manter como amigos os
que te puseram ali, por não poderes satisfazê-los pela forma por
que tinham imaginado, nem aplicar-lhes corretivos violentos uma
vez que estás a eles obrigado; porque sempre, mesmo que fortíssimo
em exércitos, tem-se necessidade do apoio dos habitantes para
penetrar numa província. Foi por essas razões que Luís XII, rei
de França, ocupou Milão rapidamente e logo depois o perdeu, para
tanto bastando inicialmente as forças de Ludovico, porque aquelas
populações que lhe haviam aberto as portas, reconhecendo o erro
de seu pensar anterior e descrentes daquele bem-estar futuro que
haviam imaginado, não mais podiam suportar os dissabores
ocasionados pelo novo príncipe.
Ë bem verdade que, reconquistando
posteriormente as regiões rebeladas, mais dificilmente se as
perdem, eis que o senhor, em razão da rebelião, é menos
vacilante em assegurar-se da punição daqueles que lhe faltaram
com a lealdade, em investigar os suspeitos e em reparar os pontos
mais fracos. Assim sendo, se para que a França viesse a perder
Milão pela primeira vez foi suficiente um Duque Ludovico que
fizesse motins nos seus limites, já para perdê-lo pela segunda
vez foi preciso que tivesse contra si o mundo todo e que seus exércitos
fossem desbaratados ou expulsos da Itália, o que resultou das razões
logo acima apontadas. Não obstante, tanto na primeira como na
segunda vez, Milão foi-lhe tomado.
As razões gerais da primeira foram
expostas; resta agora falar sobre as da segunda vez e ver de que
remédios dispunha a França e de que meios poderá valer-se quem
venha a encontrar-se em circunstâncias tais, para poder manter-se
na posse da conquista melhor do que o fez esse país.
Digo, consequentemente, que estes
Estados conquistados e anexados a um Estado antigo, ou são da
mesma província e da mesma língua, ou não o são: Quando o
sejam, é sumamente fácil mantê-los sujeitos, máxime quando não
estejam habituados a viver em liberdade, e para dominá-los
seguramente será bastante ter-se extinguido a estirpe do príncipe
que os governava, porque nas outras coisas, conservando-se suas
velhas condições e não existindo alteração de costumes, os
homens passam a viver tranqüilamente, como se viu ter ocorrido
com a Borgonha, a Bretanha, a Gasconha e a Normandia que por tanto
tempo estiveram com a França, isto a despeito da relativa
diversidade de línguas, mas graças à semelhança de costumes
facilmente se acomodaram entre eles. E quem conquista, querendo
conservá-los, deve adotar duas medidas: a primeira, fazer com que
a linhagem do antigo príncipe seja extinta; a outra, aquela de não
alterar nem as suas leis nem os impostos; por tal forma, dentro de
mui curto lapso de tempo, o território conquistado passa a
constituir um corpo todo com o principado antigo.
Mas, quando se conquistam territórios
numa província com língua, costumes e leis diferentes, aqui
surgem as dificuldades e é necessário haver muito boa sorte e
habilidade para mantê-los. E um dos maiores e mais eficientes remédios
seria aquele do conquistador ir habitá-los. Isto tornaria mais
segura e mais duradoura a posse adquirida, como ocorreu com o
Turco da Grécia, que a despeito de ter observado todas as leis
locais, não teria conservado esse território se para aí não
tivesse se transferido. Isso porque, estando no local, pode-se ver
nascerem as desordens e, rapidamente, podem ser elas reprimidas; aí
não estando, delas somente se tem notícia quando já alastradas
e não mais passíveis de solução. Além disso, a província
conquistada não é saqueada pelos lugar-tenentes; os súditos
ficam satisfeitos porque o recurso ao príncipe se torna mais fácil,
donde têm mais razões para amá-lo, querendo ser bons, e para
temê-lo, caso queiram agir por forma diversa. Quem do exterior
desejar assaltar aquele Estado, por ele terá maior respeito;
donde, habitando-o, o príncipe somente com muita dificuldade
poderá vir a perdê-lo.
Outro remédio eficaz é instalar
colônias num ou dois pontos, que sejam como grilhões postos àquele
Estado, eis que é necessário ou fazer tal ou aí manter muita
tropa. Com as colônias não se despende muito e, sem grande
custo, podem ser instaladas e mantidas, sendo que sua criação
prejudica somente àqueles de quem se tomam os campos e as casas
para cedê-los aos novos habitantes, os quais constituem uma
parcela mínima do Estado conquistado. Ainda, os assim
prejudicados, ficando dispersos e pobres, não podem causar dano
algum, enquanto que os não lesados ficam à parte, amedrontados,
devendo aquietar-se ao pensamento de que não poderão errar para
que a eles não ocorra o mesmo que aconteceu àqueles que foram
espoliados. Concluo dizendo que estas colônias não são
onerosas, são mais fiéis, ofendem menos e os prejudicados não
podem causar mal, tornados pobres e dispersos como já foi dito.
Por onde se depreende que os homens devem ser acarinhados ou
eliminados, pois se se vingam das pequenas ofensas, das graves não
podem fazê-lo; daí decorre que a ofensa que se faz ao homem deve
ser tal que não se possa temer vingança. Mas mantendo, em lugar
de colônias, forças militares, gasta-se muito mais, absorvida
toda a arrecadação daquele Estado na guarda aí destacada; dessa
forma, a conquista transforma-se em perda e ofende muito mais por
que danifica todo aquele país com as mudanças do alojamento do
exército, incômodo esse que todos sentem e que transforma cada
habitante em inimigo: e são inimigos que podem causar dano ao
conquistador, pois, vencidos, ficam em sua própria casa. Sob
qualquer ponto de vista essa guarda armada é inútil, ao passo
que a criação de colônias é útil.
Deve, ainda, quem se encontre à
frente de uma província diferente, como foi dito, tornar-se chefe
e defensor dos menos fortes, tratando de enfraquecer os poderosos
e cuidando que em hipótese alguma aí penetre um forasteiro tão
forte quanto ele. E sempre surgirá quem seja chamado por aqueles
que na província se sintam descontentes, seja por excessiva ambição,
seja por medo, como viu-se terem os etólios introduzido na Grécia
os romanos que, aliás, em todas as outras províncias que
conquistaram, fizeram-no auxiliados pelos respectivos habitantes.
E a ordem das coisas é que, tão logo um estrangeiro poderoso
penetre numa província, todos aqueles que nela são mais fracos a
ele dêem adesão, movidos pela inveja contra quem se tornou
poderoso sobre eles; tanto assim é que em relação a estes não
se torna necessário grande trabalho para obter seu apoio, pois
logo todos eles, voluntariamente, formam bloco com o seu Estado
conquistado. Apenas deve haver o cuidado de não permitir adquiram
eles muito poder e muita autoridade, podendo o conquistador,
facilmente, com suas forças e com o apoio dos mesmos, abater
aqueles que ainda estejam fortes, para tornar-se senhor absoluto
daquela província. E quem não encaminhar satisfatoriamente esta
parte, cedo perderá a sua conquista e, enquanto puder conservá-la,
terá infinitos aborrecimentos e dificuldades.
Os romanos, nas províncias de que
se assenhorearam, observaram bem estes pontos: fundaram colônias,
conquistaram a amizade dos menos prestigiosos, sem lhes aumentar o
poder, abateram os mais fortes e não deixaram que os estrangeiros
poderosos adquirissem conceito. Quero tomar como exemplo apenas a
província da Grécia. Os aqueus e os etólios tornaram-se amigos
dos romanos; foi abatido o reino dos macedônios e daí foi
expulso Antíoco; mas nem os méritos dos aqueus e dos etólios
lhes asseguraram permissão para conquistar algum Estado, nem a
persuasão de Felipe logrou fazer com que os romanos se tornassem
seus amigos e não o diminuíssem, nem o poder de Antíoco
conseguiu fazer com que os mesmos o autorizassem a manter seu domínio
naquela província. Isso tudo ocorreu porque os romanos fizeram
nesses casos aquilo que todo príncipe inteligente deve fazer: não
somente vigiar e ter cuidado com as desordens presentes, como também
com as futuras, evitando-as com toda a cautela porque, previstas a
tempo, facilmente se lhes pode opor corretivo; mas, esperando que
se avizinhem, o remédio não chega a tempo, e o mal já então se
tornou incurável. Ocorre aqui como no caso do tuberculoso,
segundo os médicos: no princípio é fácil a cura e difícil o
diagnóstico, mas com o decorrer do tempo, se a enfermidade não
foi conhecida nem tratada, torna-se fácil o diagnóstico e difícil
a cura. Assim também ocorre nos assuntos do Estado porque,
conhecendo com antecedência os males que o atingem (o que não é
dado senão a um homem prudente), a cura é rápida; mas quando,
por não se os ter conhecido logo, vêm eles a crescer de modo a
se tornarem do conhecimento de todos, não mais existe remédio.
Contudo, os romanos, prevendo as
perturbações, sempre as tolheram e jamais, para fugir à guerra,
permitiram que as mesmas seguissem seu curso, pois sabiam que a
guerra não se evita mas apenas se adia em benefício dos outros;
por isso mesmo, promoveram a guerra contra Felipe e Antíoco na Grécia,
para evitar terem de fazê-la na Itália e, no entanto, podiam ter
evitado a luta naquele momento, se o quisessem. Nem em momento
algum lhes agradou aquilo que todos os dias está nos lábios dos
entendidos de nosso tempo, o desejo de gozar do benefício da
contemporização, mas sim apenas aquilo que resultava de sua própria
virtude e prudência: na verdade o tempo lança à frente todas as
coisas e pode transformar o bem em mal e o mal em bem.
Mas voltemos à França e
examinemos se ela fez alguma das coisas que expomos, falando eu de
Luís e não de Carlos porque foi daquele que, por ter mantido
mais prolongado domínio na Itália, melhor se viram os
progressos: e vereis como ele fez o contrário que se deve fazer
para conservar um Estado numa província diferente.
O Rei Luís foi conduzido à Itália
pela ambição dos venezianos que, por tal meio, quiseram ganhar o
Estado da Lombardia, Não desejo censurar o partido tomado pelo
rei; porque, querendo começar a pôr um pé na Itália e não
tendo amigos nesta província, sendo-lhe, ao contrário, fechadas
todas as portas em razão do comportamento do Rei Carlos, foi
obrigado a servir-se daquelas amizades com que podia contar: e
ter-lhe-ia resultado bem escolhido esse partido, se nos outros
manejos não tivesse cometido erro algum. Conquistada, pois, a
Lombardia, o rei readquiriu prontamente aquela reputação que
Carlos perdera: Gênova cedeu; os florentinos tornaram-se seus
amigos; o marquês de Mantua, o duque de Ferrara, Bentivoglio, a
senhora de Forli, o senhor de Faenza, de Pesaro, de Rimini, de
Camerino, de Piombino, os Luqueses, os Pisanos e os Sieneses,
todos foram ao seu encontro para tornarem-se seus amigos. Os
venezianos puderam considerar então a temeridade da resolução
que haviam adotado, pois que, para conquistar dois tratos de terra
na Lombardia, fizeram o rei tornar-se senhor de dois terços da Itália.
Considere-se agora com quanta
facilidade podia o rei manter a sua reputação na Itália se,
observadas as normas já referidas, tivesse conservado seguros e
defendidos todos aqueles seus amigos que, por serem em grande número,
fracos e medrosos uns em relação à Igreja os outros face aos
venezianos, precisavam sempre estar com ele; por meio deles
poderia, facilmente, ter-se assegurado contra os que ainda se
conservavam fortes.
Mas ele, apenas chegado a Milão,
fez o contrário, dando auxilio ao papa Alexandre para que
ocupasse a Romanha. Nem percebeu que com essa deliberação
enfraquecia a si próprio, afastando os amigos e aqueles que se
lhe tinham lançado aos braços, enquanto engrandecia a Igreja
acrescentando ao poder espiritual, que lhe dá tanta autoridade,
tamanha força temporal. Cometido um primeiro erro, foi compelido
a seguir praticando outros até que, para pôr fim à ambição de
Alexandre e evitar que este se tornasse senhor da Toscana, teve de
vir pessoalmente à Itália. Não lhe bastou ter tornado grande a
Igreja e perder os amigos; por querer o reino de Nápoles,
dividiu-o com o rei da Espanha; sendo primeiro o árbitro da Itália,
aí colocou um companheiro para que os ambiciosos daquela província
e os descontentes com ele mesmo tivessem onde recorrer e, em vez
de deixar naquele reino um soberano a ele sujeito, tirou-o para,
em seu lugar, colocar um outro que pudesse expulsá-lo dali.
É coisa muito natural e comum o
desejo de conquistar e, sempre, quando os homens podem fazê-lo,
serão louvados ou, pelo menos, não serão censurados; mas quando
não têm possibilidade e querem fazê-lo de qualquer maneira,
aqui está o erro e, consequentemente, a censura. Se a França,
pois, podia assaltar Nápoles com suas forças, devia fazê-lo; se
não podia, não devia dividir esse reino. E se a divisão que fez
com os venezianas sobre a Lombardia mereceu desculpa por ter com
ela firmado pé na Itália, aquela merece censura em razão de não
ser justificada por essa necessidade.
Tinha, pois, Luís, cometido estes
cinco erros: eliminou os menos fortes; aumentou na Itália o prestígio
de um poderoso; aí colocou um estrangeiro poderosíssimo; não
veio habitar no país; não instalou colônias.
Estes erros, contudo, poderiam não
ter causado dano enquanto vivo ele fosse, se não houvesse sido
cometido o sexto erro, tomar os territórios aos venezianos. Na
verdade, se não tivesse tornado grande a Igreja nem introduzido a
Espanha na Itália, seria bem razoável e necessário enfraquecê-los;
mas, tomados que foram aqueles partidos, nunca deveriam consentir
na ruína dos mesmos, pois, sendo poderosos, teriam sempre mantido
aquelas à distância da Lombardia, e isso porque os venezianos
jamais iriam consentir em qualquer manobra contra esse Estado, a
menos que eles se tornassem os senhores, da mesma forma que os
outros não iriam querer tomá-lo à França para dá-lo aos
venezianos, ao mesmo tempo que lhes faltava coragem para entrar em
luta com estes e com a França. E se alguém dissesse: o Rei Luís
cedeu a Romanha a Alexandre e o Reino à Espanha para fugir a uma
guerra - respondo com as razões já anteriormente expostas de que
- nunca se deve deixar prosseguir uma crise para escapar a uma
guerra, mesmo porque dela não se foge mas apenas se adia para
desvantagem própria. E se alguns outros alegassem a palavra que o
rei havia dado ao Papa, qual a de realizar para ele aquela
conquista em troca da dissolução de seu casamento e do chapéu
cardinalício para o arcebispo de Ruão - respondo com o que mais
adiante se dirá acerca da palavra dos príncipes e de como se a
deve respeitar.
Perdeu, pois, o Rei Luís a
Lombardia por não ter respeitado nenhum dos princípios
observados por outros que dominaram províncias e quiseram conservá-las.
Não há aqui milagre algum, mas é sim muito comum e razoável. E
deste assunto falei em Nantes ao arcebispo de Ruão, quando
Valentino, assim popularmente chamado César Bórgia, filho do
Papa Alexandre, ocupava a Romanha: porque, dizendo-me o cardeal de
Ruão que os italianos não entendiam de guerra, retruquei-lhe que
os franceses não entendiam do Estado, pois que, se de tal
compreendessem, não teriam deixado que a Igreja alcançasse tanta
grandeza. E por experiência viu-se que a grandeza da Igreja e da
Espanha na Itália foi causada pela França, e a ruína desta foi
acarretada por aquelas.
Disso se extrai uma regra geral que
nunca ou raramente falha: quem é causa do poderio de alguém
arruina-se, por que esse poder resulta ou da astúcia ou da força
e ambas são suspeitas para aquele que se tornou poderoso.
CAPÍTULO IV
POR QUE O REINO DE DARIO, OCUPADO
POR ALEXANDRE, NÃO SE REBELOU CONTRA SEUS SUCESSORES APÓS A
MORTE DESTE
(CUR DARII REGNUM QUOD ALEXANDER
OCCUPAVERAT A SUCCESSORIBUS SUIS POST ALEXANDRI MORTEM NON DEFECIT)
Consideradas as dificuldades que
devem ser enfrentadas para a conservação de um Estado recém-conquistado,
alguém poderia ficar pasmo ante o fato de que, tendo se tornado
senhor da Ásia em poucos anos, não apenas havia terminado sua
ocupação Alexandre Magno veio a morrer e, a despeito de parecer
razoável que todo aquele Estado devesse rebelar-se, seus
sucessores o conservaram e para tanto não encontraram outra
dificuldade senão aquela que, por ambição pessoal, nasceu entre
eles mesmos. - Argumento: os principados de que se conserva memória,
têm sido governados de duas formas diversas: ou por um príncipe,
sendo todos os demais servos que, como ministros por graça e
concessão sua, ajudam a governar o Estado, ou por um príncipe e
por barões, os quais, não por graça do senhor mas por antigüidade
de sangue, têm aquele grau de ministros. Estes barões têm
Estados e súditos próprios que os reconhecem por senhores e a
eles dedicam natural afeição. Os Estados que são governados por
um príncipe e servos, têm aquele com maior autoridade, porque em
toda a sua província não existe alguém reconhecido como chefe
senão ele, e se os súditos obedecem a algum outro, fazem-no em
razão de sua posição de ministro e oficial, não lhe dedicando
o menor amor.
Os exemplos dessas duas espécies
de governo são, nos nossos tempos, o Turco e o rei de França.
Toda a monarquia do Turco é dirigida por um senhor: os outros são
seus servos; dividindo o seu reino em sandjaks, para aí manda
diversos administradores e os muda e varia de acordo com sua própria
vontade. Mas o rei de França está em meio a uma multidão de
antigos senhores que, nessa qualidade, são reconhecidos pelos
seus súditos e por eles amados: têm as suas preeminências e não
pode o rei privá-los das mesmas sem perigo para si próprio. Quem
tiver em mira, pois, um e outro desses governos, encontrará
dificuldades para conquistar o Estado Turco, mas, vencido que seja
este, encontrará grande facilidade para conservá-lo, Ao contrário,
encontrar-se-á em todos os sentidos maior facilidade para ocupar
o Estado de França, mas grande dificuldade para mantê-lo.
As razões da dificuldade em ocupar
o reino do Turco decorrem de não poder o atacante ser chamado por
príncipes daquele reino, nem esperar, com a rebelião dos que
rodeiam o soberano, poder ter facilitada a sua empresa: é o que
resulta das razões referidas. Porque, sendo todos escravos e
obrigados, são mais dificilmente corruptíveis e, quando fossem
subornados, pouco de útil poder-se-ia esperar, visto não serem
eles capazes de arrastar o povo atrás de si, pelos motivos já
mencionados. Logo, se alguém assaltar o Estado Turco, deve pensar
que irá encontrá-lo todo unido, convindo contar mais com suas próprias
forças que com as desordens dos outros. Mas, vencido que seja e
uma vez desbaratado em batalha campal de modo que não possa
refazer os exércitos, não se deve recear outra coisa senão a
dinastia do príncipe; uma vez extinta esta, ninguém mais resta
que deva ser temido, já que os demais não gozam de prestígio
junto ao povo; e como o vencedor deste nada podia esperar antes da
vitória, depois dela não deve receá-lo.
O contrário ocorre nos reinos como
o de França, por que com facilidade podes invadi-lo em obtendo o
apoio de algum barão do reino, pois que sempre se encontram
descontentes e os que desejam fazer inovações. Estes, pelas razões
referidas, podem abrir o acesso àquele Estado e facilitar a vitória.
Esta, depois, se desejares manter-te, arrasta atrás de si
infinitas dificuldades, seja com aqueles que te ajudaram, seja com
os que oprimiste. Não é bastante extinguir a estirpe do príncipe,
pois permanecem aqueles senhores que se tornam chefes das novas
revoluções e, não podendo nem contentá-los nem exterminá-los,
perde aquele Estado tão logo surja a oportunidade.
Ora, se for considerado de que
natureza era o governo de Dario, se o encontrará semelhante ao
reino do Turco. Para Alexandre foi necessário primeiro encurralá-lo
e desbaratá-lo em batalha campal sendo que, depois da vitória,
estando morto Dario, aquele Estado tornou-se seguro para Alexandre
pelas razões acima expostas. Seus sucessores, se tivessem sido
unidos, poderiam tê-lo gozado tranqüilamente, pois ali não
surgiram outros tumultos que não os por eles próprios
provocados. Mas quanto aos Estados organizados como o da França,
é impossível possuí-los com tanta tranqüilidade. Dessa
circunstância é que nasceram as freqüentes rebeliões da
Espanha, da França e da Grécia contra os romanos; em decorrência
do grande número de principados que havia naqueles Estados e por
todo o tempo em que perdurou a sua memória, os romanos estiveram
inseguros na posse daqueles domínios. Mas extinta a lembrança
dos principados, com o poder e a constância de sua autoridade, os
romanos tornaram-se dominadores seguros. Puderam eles, também,
combatendo mais tarde em lutas internas, arrastar cada facção,
para o seu lado, parte daquelas províncias, segundo a autoridade
que havia adquirido junto a elas; e essas províncias, por não
mais existir o sangue de seus antigos senhores, não reconheciam
senão a soberania dos romanos. Consideradas, pois, todas estas
coisas, ninguém se maravilhará da facilidade que Alexandre
encontrou para conservar o Estado da Ásia, e das dificuldades que
foram arrostadas pelos outros para manterem o conquistado, como
Pirro e muitos outros. Isso não resultou da muita ou da pouca
virtude do vencedor, mas sim da diversidade de forma do objeto da
conquista.
CAPÍTULO V
DE QUE MODO SE DEVAM GOVERNAR AS
CIDADES OU PRINCIPADOS QUE, ANTES DE SEREM OCUPADOS, VIVIAM COM AS
SUAS PRÓPRIAS LEIS
(QUOMODO ADMINISTRANDAE SUNT
CIVITATES VEL PRINCIPATUS, QUI ANTEQUAM OCCUPARENTUR, SUIS LEGIBUS
VIVEBANT)
Quando aqueles Estados que se
conquistam, como foi dito, estão habituados a viver com suas próprias
leis e em liberdade, existem três modos de conservá-los: o
primeiro, arruiná-los; o outro, ir habitá-los pessoalmente; o
terceiro, deixá-los viver com suas leis, arrecadando um tributo e
criando em seu interior um governo de poucos, que se conservam
amigos, porque, sendo esse governo criado por aquele príncipe,
sabe que não pode permanecer sem sua amizade e seu poder, e há
que fazer tudo por conservá-los. Querendo preservar uma cidade
habituada a viver livre, mais facilmente que por qualquer outro
modo se a conserva por intermédio de seus cidadãos.
Como exemplos, existem os
espartanos e os romanos. Os espartanos conservaram Atenas e Tebas,
nelas criando um governo de poucos; todavia, perderam-nas. Os
romanos, para manterem Cápua, Cartago e Numância, destruíram-nas
e não as perderam; quiseram conservar a Grécia quase como o
fizeram os espartanos, tornando-a livre e deixando-lhe suas próprias
leis e não o conseguiram: em razão disso, para conservá-la,
foram obrigados a destruir muitas cidades daquela província.
É que, em verdade, não existe
modo seguro para conservar tais conquistas, senão a destruição.
E quem se torne senhor de uma cidade acostumada a viver livre e não
a destrua, espere ser destruído por ela, porque a mesma sempre
encontra, para apoio de sua rebelião, o nome da liberdade e o de
suas antigas instituições, jamais esquecidas seja pelo decurso
do tempo, seja por benefícios recebidos. Por quanto se faça e se
proveja, se não se dissolvem ou desagregam os habitantes, eles não
esquecem aquele nome nem aquelas instituições, e logo, a cada
incidente, a eles recorrem como fez Pisa cem anos após estar
submetida aos florentinos.
Mas quando as cidades ou as províncias
estão acostumadas a viver sob um príncipe, extinta a dinastia,
sendo de um lado afeitas a obedecer e de outro não tendo o príncipe
antigo, dificilmente chegam a acordo para escolha de um outro príncipe,
não sabem, enfim, viver em liberdade: dessa forma, são mais
lerdas para tomar das armas e, com maior facilidade, pode um príncipe
vencê-las e delas apoderar-se. Contudo, nas repúblicas há mais
vida, mais ódio, mais desejo de vingança; não deixam nem podem
deixar esmaecer a lembrança da antiga liberdade: assim, o caminho
mais seguro é destruí-las ou habitá-las pessoalmente.
CAPÍTULO VI
DOS PRINCIPADOS NOVOS QUE SE
CONQUISTAM COM AS ARMAS PRÓPRIAS E VIRTUOSAMENTE
(DE PRINCIPATIBUS NOVIS QUI ARMIS
PROPRIIS ET VIRTUTE ACQUIRUNTUR)
Não se admire alguém se, na
exposição que irei fazer a respeito dos principados
completamente novos de príncipe e de Estado, apontar exemplos de
grandes personagens; por que, palmilhando os homens, quase sempre,
as estradas batidas pelos outros, procedendo nas suas ações por
imitações, não sendo possível seguir fielmente as trilhas
alheias nem alcançar a virtude do que se imita, deve um homem
prudente seguir sempre pelas sendas percorridas pelos que se
tornaram grandes e imitar aqueles que foram excelentes, isto para
que, não sendo possível chegar à virtude destes, pelo menos daí
venha a auferir algum proveito; deve fazer como os arqueiros hábeis
que, considerando muito distante o ponto que desejam atingir e
sabendo até onde vai a capacidade de seu arco, fazem mira bem
mais alto que o local visado, não para alcançar com sua flecha
tanta altura, mas para poder com o auxílio de tão elevada mira
atingir o seu alvo.
Digo, pois, que no principado
completamente novo, onde exista um novo príncipe, encontra-se
menor ou maior dificuldade para mantê-lo, segundo seja mais ou
menos virtuoso quem o conquiste. E porque o elevar-se de
particular a príncipe pressupõe ou virtude ou boa sorte, parece
que uma ou outra dessas duas razões mitigue em parte muitas
dificuldades; não obstante, tem-se observado, aquele que menos se
apoiou na sorte reteve o poder mais seguramente. Gera ainda
facilidade o fato de, por não possuir outros Estados, ser o príncipe
obrigado a vir habitá-lo pessoalmente.
Para reportar-me àqueles que pela
sua própria virtude e não pela sorte se tornarem príncipes,
digo que os maiores são Moisés, Ciro, Rômulo, Teseu e outros
tais. Se bem que de Moisés não se deva cogitar por ter sido ele
mero executor daquilo que lhe era ordenado por Deus, contudo deve
ser admirado somente por aquela graça que o tornava digno de
conversar com o Senhor. Mas consideremos Ciro e os outros que
conquistaram ou fundaram reinos: achareis a todos admiráveis. E
se forem consideradas suas ações e ordens particulares, estas
parecerão não discrepantes daquelas de Moisés que teve tão
grande preceptor. E, examinando as ações e a vida dos mesmos, não
se vê que eles tivessem algo de sorte senão a ocasião, que lhes
forneceu meios para poder adaptar as coisas da forma que melhor
lhes aprouve; e, sem aquela oportunidade, o seu valor pessoal
ter-se-ia apagado e sem essa virtude a ocasião teria surgido em vão.
Era necessário, pois, a Moisés,
encontrar o povo de Israel no Egito, escravizado e oprimido pelos
egípcios, a fim de que aquele, para libertar-se da escravidão,
se dispusesse a segui-lo. Convinha que Rômulo não pudesse ser
mantido em Alba, fosse exposto ao nascer, para que se tornasse rei
de Roma e fundador daquela pátria. Era preciso que Ciro
encontrasse os persas descontentes do império dos medas, e estes
estivessem amolecidos e efeminados pela prolongada paz. Não
poderia Teseu demonstrar sua virtude se não encontrasse os
atenienses dispersos. Essas oportunidades por tanto, fizeram esses
homens felizes, e sua excelente capacidade fez com que aquela
ocasião fosse conhecida de cada um: em conseqüência, sua pátria
foi nobilitada e tornou-se felicíssima.
Os que, por suas virtudes,
semelhantes às que aqueles tiveram, tornam-se príncipes,
conquistam o principado com dificuldade, mas com facilidade o
conservam; e os obstáculos que se lhes apresentam no conquistar o
principado, em parte nascem das novas disposições e sistemas de
governo que são forçados a introduzir para fundar o seu Estado e
estabelecer a sua segurança. Deve-se considerar não haver coisa
mais difícil para cuidar, nem mais duvidosa a conseguir, nem mais
perigosa de manejar, que tornar-se chefe e introduzir novas
ordens. Isso porque o introdutor tem por inimigos todos aqueles
que obtinham vantagens com as velhas instituições e encontra
fracos defensores naqueles que das novas ordens se beneficiam.
Esta fraqueza nasce, parte por medo dos adversários que ainda têm
as leis conformes a seus interesses, parte pela incredulidade dos
homens: estes, em verdade, não crêem nas inovações se não as
vêem resultar de uma firme experiência. Donde decorre que a
qualquer momento em que os inimigos tenham oportunidade de atacar,
o fazem com calor de sectários, enquanto os outros defendem
fracamente, de forma que ao lado deles se corre sério perigo.
É necessário, pois, querendo bem
expor esta parte, examinar se esses inovadores se baseiam sobre
forças suas próprias ou se dependem de outros, isto é, se para
levar avante sua obra é preciso que roguem, ou se em realidade
podem forçar. No primeiro caso, sempre acabam mal e não realizam
coisa alguma; mas, quando dependem de si mesmos e podem forçar,
então é que raras vezes perigam. Daí resulta que todos os
profetas armados venceram e os desarmados fracassaram. Porque, além
dos fatos apontados, a natureza dos povos é vária, sendo fácil
persuadi-los de urna coisa, mas difícil firmá-los nessa persuasão.
Convém, assim, estar preparado para que, quando não acreditarem
mais, se possa fazê-los crer pela força.
Moisés, Ciro, Teseu e Rômulo não
teriam conseguido fazer observar por longo tempo as suas constituições
se tivessem estado desarmados; como ocorreu nos nossos tempos a
Frei Girolamo Savonarola que fracassou nas suas reformas quando a
multidão começou a nele não mais acreditar, e ele não dispunha
de meios para manter firmes aqueles que haviam crido, nem para
fazer com que os descrentes passassem a crer. Por isso, têm
grandes dificuldades no conduzir-se e todos os perigos estão no
seu caminho, convindo que os superem com o valor pessoal; mas
superado que os tenham, quando começam a ser venerados, extintos
aqueles que tinham inveja de sua condição, ficam poderosos,
seguros, honrados, felizes.
A tão altos exemplos, quero
acrescentar um menor, mas que bem terá alguma relação com
aqueles e que julgo suficiente para todos os outros semelhantes:
é Hierão de Siracusa. Este, de particular, tornou-se príncipe
de Siracusa; também ele, da sorte somente conheceu a ocasião
porque, sendo os siracusanos oprimidos, o elegeram para seu capitão,
donde mereceu ser feito príncipe. E foi de tanta virtude, mesmo
na vida privada, que quem escreveu a seu respeito, disse:quod
nihil illi deerat ad regnandum praeter regnum.
Extinguiu a velha milícia,
organizou a nova, abandonou as antigas amizades, conquistou novas;
e, como teve amizades e soldados seus, pode, sobre tais
fundamentos, erigir as obras que desejou: tanto que custou-lhe
muita fadiga para conquistar e pouca para manter.
CAPÍTULO VII
DOS PRINCIPADOS NOVOS QUE SE
CONQUISTAM COM AS ARMAS E FORTUNA DOS OUTROS
(DE PRINCIPATIBUS NOVIS QUI
ALIENIS ARMIS ET FORTUNA ACQUIRUNTUR)
Aqueles que somente por fortuna se
tornam de privados em príncipes, com pouca fadiga assim se
transformam, mas só com muito esforço assim se mantêm: não
encontram nenhuma dificuldade pelo caminho porque atingem o posto
a vôo; mas toda sorte de dificuldades nasce depois que aí estão.
São aqueles aos quais é concedido um Estado, seja por dinheiro,
seja por graça do concedente: como ocorreu a muitos na Grécia,
nas cidades da Jônia e do Helesponto, onde foram feitos príncipes
por Dario, a fim de que as conservassem para sua segurança e glória;
como eram feitos, ainda, aqueles imperadores que, por corrupção
dos soldados, de privados alcançavam o domínio do Império.
Estes estão simplesmente
submetidos à vontade e à fortuna de quem lhes concedeu o Estado,
que são duas coisas grandemente volúveis e instáveis: e não
sabem e não podem manter a sua posição. Não sabem, porque, se
não são homens de grande engenho e virtude, não é razoável
que, tendo vivido sempre em ambiente privado, saibam comandar; não
podem, porque não têm forças que lhes possam ser amigas e fiéis.
Ainda, os Estados que surgem rapidamente, como todas as demais
coisas da natureza que nascem e crescem depressa, não podem ter
raízes e estruturação perfeitas, de forma que a primeira
adversidade os extingue; salvo se aqueles que, como foi dito,
assim repentinamente se tornaram príncipes, forem de tanta
virtude que saibam desde logo preparar-se para conservar aquilo
que a fortuna lhes pôs no regaço, formando posteriormente as
bases que os outros estabeleceram antes de se tornar príncipes.
Destes dois citados modos de vir a
ser príncipe, por virtude ou por fortuna, quero apontar dois
exemplos ocorridos nos dias de nossa memória: estes são
Francisco Sforza e César Bórgia. Francisco, pelos meios devidos
e com grande virtude, de privado tornou-se duque de Milão; e
aquilo que com mil esforços tinha conquistado, com pouco trabalho
manteve. Por outro lado, César Bórgia, pelo povo chamado Duque
Valentino, adquiriu o Estado com a fortuna do pai e, juntamente
com aquela, o perdeu; isso não obstante fossem por ele utilizados
todos os meios e feito tudo aquilo que devia ser efetivado por um
homem prudente e virtuoso, para lançar raízes naqueles Estados
que as armas e a fortuna de outrem lhe tinham concedido. Porque,
como se disse acima, quem não lança os alicerces primeiro, com
uma grande virtude poderá estabelecê-los depois, ainda que se façam
com aborrecimentos para o construtor e perigo para o edifício.
Se, pois, se considerarem todos os progressos do duque, ver-se-á
ter ele estabelecido grandes alicerces para o futuro poderio, os
quais não julgo supérfluo descrever, pois não saberia que
melhores preceitos do que o exemplo de suas ações poderia
indicar a um príncipe novo; e se as suas disposições não lhe
aproveitaram, não foi por culpa sua, mas sim em resultado de uma
extraordinária e extrema má sorte.
Tinha Alexandre VI, ao querer
tornar grande o duque seu filho, muitas dificuldades presentes e
futuras. Primeiro, não via meio de poder fazê-lo senhor de algum
Estado que não fosse Estado da Igreja; voltando-se para tomar um
destes, sabia que o duque de Milão e os venezianos não lho
permitiriam, porque Faenza e Rimini estavam já sob a proteção
dos venezianos. Via além disto as armas da Itália, e em especial
aquelas de que poderia servir-se, encontrarem-se nas mãos
daqueles que deviam temer a grandeza do Papa; não podia fiar-se,
assim, pertencendo todas elas aos Orsíni e Colonna e seus partidários.
Era, pois, necessário que se perturbasse aquela organização dos
Estados italianos e fossem desarticulados os pertencentes àqueles,
para poder assenhorear-se seguramente de parte dos mesmos. Isso
foi-lhe fácil, eis que encontrou os venezianos que, levados por
outras causas, tinham se posto a fazer com que os franceses
retornassem à Itália, ao que não somente não se opôs, como
também tornou mais fácil com a dissolução do primeiro matrimônio
do Rei Luís. Passou, portanto, o rei à Itália com a ajuda dos
venezianos e consentimento de Alexandre: nem bem era chegado a Milão,
já o Papa dele obteve tropas para a conquista da Romanha, a qual
tornou-se possível em razão da reputação do rei. Tendo ocupado
a Romanha e batido os partidários dos Colonna, o duque, querendo
manter a conquista e avançar mais à frente, tinha duas coisas
que tal lhe impediam: uma, as suas tropas que não lhe pareciam fiéis,
a outra, a vontade da França; isto é, temia o duque que lhe
falhassem as tropas dos Orsíni, das quais se valera, não só
impedindo-o de conquistar, como também tomando-lhe o conquistado,
bem como receava que o rei não deixasse de fazer-lhe o mesmo. Dos
Orsíni teve prova quando, depois da tomada de Faenza, assaltando
Bolonha, os viu irem friamente a esse assalto; acerca do rei,
conheceu sua disposição quando, tomado o ducado de Urbino,
atacou a Toscana; o rei fê-lo desistir dessa campanha. Em conseqüência
de tal, o duque deliberou não mais depender das armas e fortuna
dos outros. Inicialmente, enfraqueceu as facções dos Orsíni e
dos Colonna em Roma; para tanto, atraiu para junto de si todos os
adeptos dos mesmos, que fossem gentis-homens, fazendo-os seus
gentis-homens, dando-lhes grandes estipêndios e os honrando.
Segundo suas qualidades, com comandos e governos; de forma que, em
poucos meses, a afeição que mantinham pelas facções foi
extinta e voltou-se toda ela para o duque. Depois, esperou a ocasião
de eliminar os Orsíni, dispersos que já estavam os da casa
Colonna, ocasião que lhe surgiu bem e que ele melhor aproveitou;
porque, tendo percebido os Orsíni, tarde porém, que a grandeza
do duque e da Igreja era a sua ruína, organizaram uma conferência
em Magione, no Perugino. Dessa reunião nasceram a rebelião de
Urbino, os tumultos da Romanha e infinitos perigos para o duque, o
qual a todos superou com o auxílio dos franceses.
E, readquirida a reputação, não
confiando na França nem nas outras tropas estrangeiras, para não
as ter fortalecidas, socorreu-se da astúcia. E tão bem soube
dissimular seus sentimentos, que os Orsíni, por intermédio do
Senhor Paulo, reconciliaram-se com ele: para assegurar-se melhor
deste intermediário, o duque não deixou de dispensar-lhe
cortesia de toda natureza, dando-lhe dinheiro, roupas e cavalos;
tanto assim que a simplicidade dos Orsíni levou-os a Sinigalia,
às mãos do duque. Eliminados, pois, estes chefes, transformados
os partidários dos mesmos em amigos seus, tinha o duque lançado
muito boas bases para o seu poderio, possuindo toda a Romanha com
o ducado de Urbino, parecendo-lhe, ainda, ter tornado amiga a
Romanha e ganho para si todas aquelas populações que começavam
a experimentar o seu bem-estar.
E, porque esta parte é digna de
ser conhecida e imitada pelos outros, não desejo omiti-la. Tomada
que foi a Romanha, encontrando-a dirigida por senhores impotentes,
os quais mais depressa haviam espoliado os seus súditos do que os
tinham governado, dando-lhes motivo de desunião ao invés de união,
tanto que aquela província era toda ela cheia de latrocínios, de
brigas e de tantas outras causas de insolência, o duque julgou
necessário, para torná-la pacífica e obediente ao poder real,
dar-lhe bom governo. Por isso, aí colocou Ramiro de Orco, homem
cruel e solícito, ao qual deu os mais amplos poderes. Este, em
pouco tempo, tornou-a pacífica e unida, com mui grande reputação.
Depois, entendeu o duque não ser necessária tão excessiva
autoridade, e isso porque não duvidava pudesse vir a mesma a
tornar-se odiosa; instalou um juízo civil no centro da província,
com um presidente excelentíssimo, onde cada cidade tinha o seu
advogado. E porque sabia que os rigorismos passados tinham dado
origem a algum ódio, para limpar os espíritos daquelas populações
e conquistá-los completamente, quis mostrar que, se alguma
crueldade havia ocorrido, não nascera dele, mas sim da triste e
cruel natureza do ministro. E, servindo-se da oportunidade, fez
colocarem-no uma manhã, na praça pública de Casena, cortado em
dois pedaços, com um pau e uma faca ensangüentada ao lado. A
ferocidade desse espetáculo fez com que a população ficasse ao
mesmo tempo satisfeita e pasmada.
Mas voltemos ao ponto de partida.
Digo que, encontrando-se o duque bastante forte e relativamente
garantido contra os perigos presentes, por ter-se armado a seu
modo e ter em boa parte dissolvido aquelas tropas que, próximas,
poderiam molestá-lo, restava-lhe, querendo prosseguir com as
conquistas, o temor ao rei de França, porque sabia como tal
proceder não seria suportado pelo mesmo que, tarde, havia se
apercebido de seu erro. Começou, por isso, a procurar novas
amizades e a tergiversar com a França na incursão que os
franceses fizeram no reino de Nápoles, contra os espanhóis que
assediavam Gaeta. A sua intenção era garantir-se contra eles, o
que ter-lhe-ia surtido pronto efeito se Alexandre tivesse
continuado vivo.
Esta foi a sua política quanto às
coisas presentes.
Mas, quanto às futuras, ele tinha
a temer, inicialmente, que um novo sucessor ao governo da Igreja não
fosse seu amigo e procurasse tomar-lhe aquilo que Alexandre lhe
dera; e pensou proceder por quatro modos: primeiro, extinguir as
famílias daqueles senhores que ele tinha espoliado, para tolher
ao Papa aquela oportunidade; segundo, conquistar todos os
gentis-homens de Roma, como foi dito, para poder com eles manter o
Papa tolhido; terceiro, tornar o Colégio mais seu o quanto possível;
quarto, conquistar tanto poder antes que o pai morresse, que
pudesse por si mesmo resistir a um primeiro impacto. Destas quatro
coisas, à morte de Alexandre ele havia realizado três, estando a
quarta quase terminada: porque dos senhores despojados ele matou
quantos pode alcançar e pouquíssimos se salvaram; tinha
conseguido o apoio dos gentis-homens romanos e no Colégio possuía
mui grande parte; e, quanto à nova conquista, resolvera tornar-se
senhor da Toscana, possuía já Perúgia e Piombino e havia tomado
a proteção de Pisa.
Como não mais precisasse ter
respeito à França (que o desmerecera por estarem já os
franceses despojados do Reino pelos espanhóis, de forma que cada
um deles necessitava comprar a sua amizade), saltaria sobre Pisa.
Depois disso, Lucca e Ciena cederiam prontamente, parte por inveja
dos florentinos, parte por medo; os florentinos não teriam remédio:
o que, se tivesse acontecido (deveria ocorrer no mesmo ano em que
Alexandre morreu), conferir-lhe-ia tantas forças e tanta reputação
que ele ter-se-ia mantido por si mesmo, não mais dependendo da
fortuna e das forças dos outros, mas sim de sua própria potência
e virtude. Mas Alexandre morreu cinco anos depois que ele começara
a desembainhar a espada. Deixou-o apenas com o Estado da Romanha
consolidado, com todos os outros no ar, em meio a dois fortíssimos
exércitos inimigos e doente de morte.
Havia no duque tanta bravura indômita
e tanta virtude, conhecia tão bem como se conquistam ou se perdem
os homens e talmente sólidos eram os alicerces que assim em tão
pouco tempo havia lançado, que, se não tivesse tido aqueles exércitos
sobre si, ou se estivesse são, teria vencido qualquer
dificuldade. E que os seus alicerces fossem bons, viu-se: por que
a Romanha esperou-o mais de um mês; em Roma, ainda que apenas
meio vivo, esteve em segurança e, se bem os Baglioni, Vitelli e
Orsíni viessem a Roma, nada puderam fazer contra ele; se não
pode fazer papa quem queria, pelo menos evitou que o fosse quem
ele não queria. Mas, se por ocasião da morte de Alexandre ele
tivesse estado são, tudo lhe teria sido fácil. Disse-me ele, no
dia em que foi eleito Júlio que havia cogitado de tudo aquilo que
podia acontecer morrendo o pai e para tudo encontrara remédio,
mas jamais havia pensado, além da morte de seu pai, que ele
mesmo, também, pudesse estar para morrer.
Relatadas, assim, todas as ações
do duque, eu não saberia repreendê-lo; antes penso que, como o
fiz, deva ser proposto à imitação de todos aqueles que por
fortuna e com as armas dos outros subiram ao poder. Porque, tendo
grande ânimo e alta intenção, ele não podia portar-se de outra
for ma; aos seus desígnios, somente se opuseram a brevidade da
vida de Alexandre e a sua enfermidade, Quem, pois, julgar necessário,
no seu principado novo, assegurar-se contra os inimigos, adquirir
amigos, vencer ou pela força ou pela fraude, fazer-se amar e
temer pelo povo, seguir e reverenciar pelos soldados, eliminar
aqueles que podem ou têm razões para ofender, ordenar por novos
modos as instituições antigas, ser severo e grato, magnânimo e
liberal, extinguir a milícia infiel, criar uma nova, manter a
amizade dos reis e dos príncipes, de modo que beneficiem de boa
vontade ou ofendam com temor, não poderá encontrar exemplos mais
recentes que as ações do duque.
Somente se pode acusá-lo na criação
de Júlio pontífice, onde má foi a eleição; porque, como foi
dito, não podendo fazer um papa de acordo com seu desejo, ele
podia impedir fosse feito quem não quisesse; e não devia jamais
consentir no papado daqueles cardeais que tivessem sido por ele
ofendidos, ou que, tornados papas, viessem a temê-lo. Na verdade,
os homens ofendem ou por medo ou por ódio. Os que ele ofendera
eram, entre outros, San Piero ad Vincula, Colonna, San Giorgio,
Ascânio; todos os outros, tornados papas, tinham por que temê-lo,
exceto o de Ruão e os espanhóis; estes, por afinidade e por
obrigações, aquele pelo poder e por ter ao seu lado o reino da
França. Conseqüentemente, o duque, antes de tudo, devia criar
para um espanhol e, não podendo, devia consentir que fosse eleito
o cardeal de Ruão e não o de San Piero ad Vincula. E quem
acreditar que nas grandes personagens os novos benefícios façam
esquecer as velhas injúrias, engana-se. Errou, pois, o duque
nessa eleição, tornando-se ele mesmo a causa de sua ruína
final.
CAPÍTULO VIII
DOS QUE CHEGARAM AO PRINCIPADO POR
MEIO DE CRIMES
(DE HIS QUI PER SCELERA AD
PRINCIPATUM PERVENERE)
Mas, porque pode-se tornar príncipe
ainda por dois modos que não podem ser atribuídos totalmente à
fortuna ou à virtude, não me parece acertado pô-los de parte,
ainda que de um deles se possa mais amplamente cogitar em falando
das repúblicas. Estes são, ou quando por qualquer meio criminoso
e nefário se ascende ao principado, ou quando um cidadão privado
torna-se príncipe de sua pátria pelo favor de seus concidadãos.
E, falando do primeiro modo, apontarei dois exemplos, um antigo e
outro atual, sem entrar, contudo, no mérito desta parte, pois
penso seja suficiente, a quem de tal necessitar, apenas imitá-los.
Agátocles siciliano, não só de
privada mas também de ínfima e abjeta condição, tornou-se rei
de Siracusa. Filho de um oleiro, teve sempre, no decorrer de sua
juventude, vida celerada; todavia, acompanhou seus atos delituosos
de tanto vigor de ânimo e de corpo que, tendo ingressado na milícia,
em razão de atos de maldade, chegou a ser pretor de Siracusa. Uma
vez investido nesse posto, tendo deliberado tornar-se príncipe e
manter pela violência e sem favor dos outros aquilo que por
acordo de todos lhe tinha sido concedido, depois de acerca desse
seu desejo ter estabelecido acordo com Amilcar cartaginês, que se
encontrava em ação com os seus exércitos na Sicilia, reuniu
certa manhã o povo e o senado de Siracusa como se tivesse de
deliberar sobre assuntos pertinentes à República e, a um sinal
combinado, fez que seus soldados matassem todos os senadores e os
mais ricos da cidade; mortos estes, ocupou e manteve o principado
daquela cidade sem qualquer controvérsia civil. E, se bem por
duas vezes os cartagineses tivessem com ele rompido e estabelecido
assédio, não só pode defender a sua cidade como ainda, tendo
deixado parte de sua gente na defesa contra o cerco, com o
restante assaltou a África e em breve tempo libertou Siracusa do
sítio levando os cartagineses a extrema dificuldade: tiveram de
com ele estabelecer acordo e contentar-se com as possessões da África,
deixando a Sicília para Agátocles.
Quem considere, pois, as ações e
a vida desse príncipe, não encontrará coisa, ou pouca achará,
que possa atribuir à fortuna: suas ações resultaram, como acima
se disse, não do favor de alguém mas de sua ascensão na milícia,
obtida com mil aborrecimentos e perigos, que lhe permitiu alcançar
o principado e, depois, mantê-lo com tantas decisões corajosas e
arriscadas. Não se pode, ainda, chamar virtude o matar os seus
concidadãos, trair os amigos, ser sem fé, sem piedade, sem
religião; tais modos podem fazer conquistar poder, mas não glória.
Ademais, se se considerar a virtude de Agátocles no entrar e no
sair dos perigos e a grandeza de seu ânimo no suportar e superar
as adversidades, não se achará por que deva ser ele julgado
inferior a qualquer dos mais excelentes capitães; contudo, sua
exacerbada crueldade e desumanidade, com infinitas perversidades,
não permitem seja ele celebrado entre os homens mais ilustres. Não
se pode, assim, atribuir à fortuna ou à virtude aquilo que sem
uma e outra foi por ele conseguido.
Nos nossos tempos, reinando
Alexandre VI, Oliverotto de Fermo, tendo anos antes ficado órfão
de pai, foi criado por um tio materno de nome Giovanni Fogliani;
nos primeiros anos de sua juventude, foi encaminhado à vida
militar sob o comando de Paulo Vitelli, a fim de que, tomado
daquela disciplina, atingisse algum excelente posto da milícia.
Morto Paulo, militou sob Vitellozzo, irmão daquele, e em muito
pouco tempo, por ser engenhoso, de físico e ânimo fortes,
tornou-se o primeiro homem de sua milícia. Mas, parecendo-lhe
coisa servil o estar sob as ordens de outrem, com a ajuda de
alguns cidadãos de Fermo, aos quais era mais cara a servidão que
a liberdade de sua pátria, e com o favor de Vitellozzo, pensou
ocupar Fermo. E escreveu a Giovanni Fogliani dizendo que, por ter
estado muitos anos fora de casa, desejava ir visitá-lo e à sua
cidade e conhecer o seu patrimônio; e, como não tinha trabalhado
senão para conquistar honras, para que seus concidadãos vissem
como não tinha gasto o tempo em vão, queria chegar com pompa e
acompanhado de cem cavalos de amigos e servidores seus; pedia-lhe,
pois, se servisse ordenar fosse ele recebido pelos cidadãos de
Fermo com todas as honras, o que não somente o dignificaria, mas
também a Fogliani, dado haver sido seu discípulo.
Não deixou Giovanni de despender
esforços em favor de seu sobrinho: tendo feito com que os
moradores de Fermo o recebessem com honrarias, alojou-o em suas
casas. Aí, passados alguns dias e pronto para ordenar
secretamente aquilo que era necessário à sua futura perfídia,
Oliverotto promoveu soleníssimo banquete para o qual convidou
Giovanni Fogliani e todos os principais homens de Fermo.
Consumadas que foram as iguarias e após todos os demais
entretenimentos usuais em semelhantes ocasiões, Oliverotto, com
habilidade, abordou certos assuntos graves, falando da grandeza do
Papa Alexandre, de seu filho César e dos empreendimentos dos
mesmos. Tendo Giovanni e os demais respondido a tais considerações,
ele, repentinamente, ergueu-se dizendo ser aquilo assunto para
falar-se em lugar mais secreto, retirando-se para um cômodo onde
Giovanni e todos os outros foram ter com ele. Nem ainda tinham se
assentado, de lugares ocultos saíram soldados que mataram
Giovanni e a todos os demais.
Depois desse homicídio, Oliverotto
montou a cavalo, correu a cidade acompanhado de seus homens e
assediou em seu palácio o supremo magistrado; em conseqüência,
por medo, foram obrigados a obedecê-lo e formar um governo do
qual ele se fez príncipe. E, mortos todos aqueles que, por
descontentes, poderiam ofendê-lo, fortaleceu-se com novas ordens
civis e militares de forma que, no período de um ano em que
reteve o principado, não somente esteve forte na cidade de Fermo,
como também se tornou causa de pavor para todas as populações
vizinhas. Teria sido difícil a sua destruição, como difícil
foi a de Agátocles, se não tivesse sido enganado por César Bórgia
quando este, em Sinigalia, como já se disse, aprisionou os Orsíni
e os Vitelli. Ai, preso também ele, foi estrangulado juntamente
com Vitellozzo, mestre de suas virtudes e suas perfídias, um ano
após haver cometido o parricídio.
Poderia alguém ficar em dúvida
sobre a razão por que Agátocles e algum outro a ele semelhante,
após tantas traições e crueldades, puderam viver longamente,
sem perigo, dentro de sua pátria e, ainda, defender-se dos
inimigos externos sem que os seus concidadãos contra eles
tivessem conspirado, tanto mais notando-se que muitos outros não
conseguiram manter o Estado, mediante a crueldade, nos tempos pacíficos
e, muito menos, nos duvidosos tempos de guerra. Penso que isto
resulte das crueldades serem mal ou bem usadas. Bem usadas pode-se
dizer serem aquelas (se do mal for lícito falar bem) que se fazem
instantaneamente pela necessidade do firmar-se e, depois, nelas não
se insiste mas sim se as transforma no máximo possível de
utilidade para os súditos; mal usadas são aquelas que, mesmo
poucas a princípio, com o decorrer do tempo aumentam ao invés de
se extinguirem. Aqueles que observam o primeiro modo de agir,
podem remediar sua situação com apoio de Deus e dos homens, como
ocorreu com Agátocles; aos outros torna-se impossível a
continuidade no poder.
Por isso é de notar-se que, ao
ocupar um Estado, deve o conquistador exercer todas aquelas
ofensas que se lhe tornem necessárias, fazendo-as todas a um
tempo só para não precisar renová-las a cada dia e poder,
assim, dar segurança aos homens e conquistá-los com benefícios,
Quem age diversamente, ou por timidez ou por mau conselho, tem
sempre necessidade de conservar a faca na mão, não podendo nunca
confiar em seus súditos, pois que estes nele também não podem
ter confiança diante das novas e contínuas injúrias. Portanto,
as ofensas devem ser feitas todas de uma só vez, a fim de que,
pouco degustadas, ofendam menos, ao passo que os benefícios devem
ser feitos aos poucos, para que sejam melhor apreciados. Acima de
tudo, um príncipe deve viver com seus súditos de modo que nenhum
acidente, bom ou mau, o faça variar: porque, surgindo pelos
tempos adversos a necessidade, não estarás em tempo de fazer o
mal, e o bem que tu fizeres não te será útil eis que, julgado
forçado, não trará gratidão.
CAPÍTULO IX
DO PRINCIPADO CIVIL
(DE PRINCIPATU CIVILI)
Mas passando a outra parte, quando
um cidadão privado, não por perfídia ou outra intolerável violência,
porém com o favor de seus concidadãos, torna-se príncipe de sua
pátria, o que se pode chamar principado civil (para tal se
tornar, não é necessária muita virtude ou muita fortuna, mas
antes uma astúcia afortunada) digo que se ascende a esse
principado ou com o favor do povo ou com aquele dos grandes.
Porque em toda cidade se encontram estas duas tendências diversas
e isso resulta do fato de que o povo não quer ser mandado nem
oprimido pelos poderosos e estes desejam governar e oprimir o
povo: é destes dois anseios diversos que nasce nas cidades um dos
três efeitos: ou principado, ou liberdade, ou desordem.
O principado é constituído ou
pelo povo ou pelos grandes, conforme uma ou outra destas partes
tenha oportunidade: vendo os grandes não lhes ser possível
resistir ao povo, começam a emprestar prestígio a um dentre eles
e o fazem príncipe para poderem, sob sua sombra, dar expansão ao
seu apetite; o povo, também, vendo não poder resistir aos
poderosos, volta a estima a um cidadão e o faz príncipe para
estar defendido com a autoridade do mesmo. O que chega ao
principado com a ajuda dos grandes se mantém com mais dificuldade
daquele que ascende ao posto com o apoio do povo, pois se encontra
príncipe com muitos ao redor a lhe parecerem seus iguais e, por
isso, não pode nem governar nem manobrar como entender.
Mas aquele que chega ao principado
com o favor popular, aí se encontra só e ao seu derredor não
tem ninguém ou são pouquíssimos que não estejam preparados
para obedecer. Além disso, sem injúria aos outros, não se pode
honestamente satisfazer os grandes, mas sim pode-se fazer bem ao
povo, eis que o objetivo deste é mais honesto daquele dos
poderosos, querendo estes oprimir enquanto aquele apenas quer não
ser oprimido. Contra a inimizade do povo um príncipe jamais pode
estar garantido, por serem muitos; dos grandes, porém, pode se
assegurar porque são poucos. O pior que pode um príncipe esperar
do povo hostil é ser por ele abandonado; mas dos poderosos
inimigos não só deve temer ser abandonado, como também deve
recear que os mesmos se lhe voltem contra, pois que, havendo neles
mais visão e maior astúcia, contam sempre com tempo para
salvar-se e procuram adquirir prestígio junto àquele que esperam
venha a vencer. Ainda, o príncipe tem de viver, necessariamente,
sempre com o mesmo povo, ao passo que pode bem viver sem aqueles
mesmos poderosos, uma vez que pode fazer e desfazer a cada dia
esse seu poderio, dando-lhes ou tirando-lhes reputação, a seu
alvedrio.
E, para melhor esclarecer esta
parte, digo que os grandes devem ser considerados em dois grupos
principais: ou procedem por forma a se obrigarem totalmente à tua
fortuna, ou não. Os que se obrigam e não são rapaces, devem ser
considerados e amados. Os que não se obrigam devem ser encarados
de dois modos: se fazem isso por pusilanimidade ou por natural
defeito de espírito, deverás servir-te deles, máxime que são
bons conselheiros, porque na prosperidade isso te honrará e na
adversidade não precisarás temê-los. Mas quando eles,
ardilosamente, não se obrigam por ambição, é sinal que pensam
mais em si próprios do que em ti: desses deve o príncipe
guardar-se temendo-os como se fossem inimigos declarados, porque
sempre, na adversidade, ajudarão a arruiná-lo.
Deve, pois, alguém que se torne príncipe
mediante o favor do povo, conservá-lo amigo, o que se lhe torna fácil,
uma vez que não pede ele senão não ser oprimido. Mas quem se
torne príncipe pelo favor dos grandes, contra o povo, deve antes
de mais nada procurar ganhar este para si, o que se lhe torna fácil
quando assume a proteção do mesmo. E, por que os homens, quando
recebem o bem de quem esperavam somente o mal, se obrigam mais ao
seu benfeitor, torna-se o povo desde logo mais seu amigo do que se
tivesse sido por ele levado ao principado. O príncipe pode ganhar
o povo por muitas maneiras que, por variarem de acordo com as
circunstâncias, delas não se pode estabelecer regra certa, razão
pela qual das mesmas não cogitaremos.
Concluirei apenas que a um príncipe
é necessário ter o povo como amigo, pois, de outro modo, não
terá possibilidades na adversidade. Nabis, príncipe dos
espartanos, suportou o assédio de toda a Grécia e de um exército
romano coberto de vitórias, contra eles defendendo sua pátria e
seu Estado; bastou-lhe apenas, sobrevindo o perigo, garantir-se
contra poucos, o que não seria suficiente se tivesse o povo como
inimigo. E não surja alguém para refutar esta minha opinião com
aquele provérbio bastante conhecido de que, quem se apoia no povo
firma-se na lama, porque o mesmo é verdadeiro somente quando um
cidadão privado estabelece bases sobre o povo e imagina que o
mesmo vá libertá-lo quando oprimido pelos inimigos ou pelos
magistrados; neste caso seria possível sentir-se freqüentemente
enganado, como os Gracos em Roma e Messer Giórgio Scali em
Florença. Mas sendo um príncipe quem se apoie no povo, que possa
mandar e seja um homem de coragem, que não esmoreça nas
adversidades, não careça de armas e mantenha com seu valor e
suas determinações alentado o povo todo, jamais se sentirá por
ele enganado e constatará ter estabelecido bons fundamentos.
Amiúde esses principados
periclitam quando estão para passar da ordem civil para um
governo absoluto, porque esses príncipes ou governam por si
mesmos ou por intermédio dos magistrados. Neste último caso a
situação dos mesmos é mais fraca e perigosa, porque dependem
completamente da vontade dos cidadãos prepostos à magistratura,
os quais, principalmente nos tempos adversos, podem tomar-lhes o
Estado com grande facilidade, ou contrariando suas ordens ou não
lhes prestando obediência. E o príncipe não pode, nas ocasiões
de perigo, assumir em tempo a autoridade absoluta, porque os cidadãos
e os súditos, acostumados a receber as ordens dos magistrados, não
estão, naquelas conjunturas, para obedecer às suas determinações,
havendo sempre, ainda, nos tempos duvidosos, carência de pessoas
nas quais ele possa confiar. Tal príncipe não pode fundar-se
naquilo que observa nas épocas de paz, quando os cidadãos
precisam do Estado, porque então todos correm, todos prometem e
cada um quer morrer por ele enquanto a morte está longe; mas na
adversidade, no momento em que o Estado tem necessidade dos cidadãos,
então poucos são encontrados. E tanto mais é perigosa esta
experiência, quanto não se a pode fazer senão uma vez. Contudo,
um príncipe hábil deve pensar na maneira pela qual possa fazer
com que os seus cidadãos sempre e em qualquer circunstância
tenham necessidade do Estado e dele mesmo, e estes, então, sempre
lhe serão fiéis.
CAPÍTULO X
COMO SE DEVEM MEDIR AS FORÇAS DE
TODOS OS PRINCIPADOS
(QUOMODO OMNIUM PRINCIPATUUM VIRES
PERPENDI DEBEANT)
Ao examinar as qualidades destes
Estados, convém fazer uma outra consideração, isto é, se um príncipe
tem Estado tão grande e forte que possa, precisando, manter-se
por si mesmo, ou então se tem sempre necessidade da defesa de
outrem. Para esclarecer melhor esta parte, digo julgar como
podendo manter-se por si mesmos aqueles que podem, por abundância
de homens e de dinheiro, organizar um exército à altura do
perigo a enfrentar e fazer face a uma batalha contra quem venha
assaltá-lo, assim como julgo necessitados da defesa de outrem os
que não podem defrontar o inimigo em campo aberto, mas são
obrigados a refugiar-se atrás dos muros da cidade,
guarnecendo-os. Quanto ao primeiro caso já foi falado e,
futuramente, diremos o que for necessário; relativamente ao
segundo, não se pode aduzir algo mais do que exortar tais príncipes
a fortificarem e a proverem sua cidade, não se preocupando com o
território que a contorna. E quem tiver bem fortificada sua
cidade e, acerca dos outros assuntos, se tenha conduzido para com
os súditos como acima foi dito e abaixo se esclarecerá, será
sempre assaltado com grande temor, porque os homens são sempre
inimigos dos empreendimentos onde vejam dificuldades, e não se
pode encontrar facilidade para atacar quem tenha sua cidade forte
e não seja odiado pelo povo.
As cidades da Alemanha gozam de
grande liberdade, têm pouco território e obedecem ao imperador
quando assim querem, não temendo nem a este nem a outro poderoso
que lhes esteja ao derredor porque são de tal forma fortificadas
que todos pensam dever ser enfadonha e difícil sua expugnação.
Na verdade, todas têm fossos e muros adequados, possuem
artilharia suficiente, conservam sempre nos armazéns públicos o
necessário para beber, comer e arder por um ano; além disso,
para manter a plebe alimentada sem prejuízo do povo, têm sempre,
em comum, por um ano, meios para lhe dar trabalho naquelas
atividades que sejam o nervo e a vida daquelas cidades e das indústrias
das quais a plebe se alimente. Têm em grande conceito os exercícios
militares, a respeito dos quais têm muitas leis de regulamentação.
Um príncipe, pois, que tenha uma
cidade forte e não se faça odiar, não pode ser atacado e,
existindo alguém que o assaltasse, retirar-se-ia com vergonha,
eis que as coisas do mundo são assim tão variadas que é quase
impossível alguém pudesse ficar com os exércitos ociosos por um
ano, a assediá-lo. A quem replicasse que, tendo as suas
propriedades fora da cidade e vendo-as a arder, o povo não terá
paciência e o longo assédio e a piedade de si mesmo o farão
esquecer o príncipe, eu responderia que um príncipe poderoso e
afoito superará sempre aquelas dificuldades, ora dando aos súditos
esperança de que o mal não será longo, ora incutindo temor da
crueldade do inimigo, ora assegurando-se com destreza daqueles que
lhe pareçam muito temerários. Além disso, é razoável que o
inimigo deva queimar o país apenas chegado, nos tempos em que o
ânimo dos homens está ainda ardente e voluntarioso na defesa;
por isso, o príncipe deve ter pouca dúvida porque, depois de
alguns dias, quando os ânimos estão mais frios, os danos já
foram causados, os males já foram sofridos e não há mais remédio;
então, os súditos vêm se unir ainda mais ao semi príncipe,
parecendo-lhes que este lhes deva obrigação, uma vez que suas
casas foram incendiadas e suas propriedades arruinadas para a
defesa do mesmo. E a natureza dos homens é aquela de obrigar-se
tanto pelos benefícios que são feitos como por aqueles que se
recebem. Donde, em se considerando tudo bem, não será difícil a
um príncipe prudente conservar firmes, antes e depois do cerco,
os ânimos de seus cidadãos, desde que não faltem víveres nem
meios de defesa.
CAPÍTULO XI
DOS PRINCIPADOS ECLESIÁSTICOS
(DE PRINCIPATIBUS ECLESIASTICIS)
Resta-nos somente, agora, falar dos
principados eclesiásticos, nos quais todas as dificuldades
existem antes que se os possuam, eis que são adquiridos ou pela
virtude ou pela fortuna, e sem uma e outra se conservam, porque são
sustentados pelas ordens de há muito estabelecidas na religião;
estas tornam-se tão fortes e de tal natureza que mantêm os seus
príncipes sempre no poder, seja qual for o modo por que procedam
e vivam. Só estes possuem Estados e não os defendem; súditos, e
não os governam; os Estados, por serem indefesos, não lhes são
tomados; os súditos, por não serem governados, não se
preocupam, não pensam e nem podem separar-se deles. Somente estes
principados, pois, são seguros e felizes. Mas, sendo eles
dirigidos por razão superior, à qual a mente humana não atinge,
deixarei de falar a seu respeito,mesmo porque, sendo engrandecidos
e mantidos por Deus, seria obra de homem presunçoso e temerário
dissertar a seu respeito. Contudo, se alguém me perguntar donde
provém que a Igreja, no poder temporal, tenha chegado a tanta
grandeza, pois que antes de Alexandre os potentados italianos, e não
apenas aqueles que eram ditos "potentados" mas qualquer
barão e senhor, mesmo que sem importância, pouco valor davam ao
poder temporal da Igreja, e agora um rei de França treme, ela
pode expulsá-lo da Itália e ainda logra arruinar os venezianos,
apontarei fatos que, a despeito de conhecidos, não me parece supérfluo
reavivar em parte na memória.
Antes que Carlos, rei da França,
invadisse a Itália, esta província encontrava-se sob o domínio
do Papa, dos venezianos, do rei de Nápoles, do duque de Milão e
dos florentinos. Estes potentados tinham de se haver com dois
cuidados principais: um, que nenhum estrangeiro entrasse na Itália
com tropas; o outro, que nenhum deles ocupasse mais Estado.
Aqueles dos quais se tinha mais receio eram o Papa e os
venezianos. Para conter os venezianos tornou-se necessária a união
de todos os demais, como ocorreu na defesa de Ferrara; para deter
o Papa, serviam-se dos barões de Roma, eis que. estando divididos
em duas facções, Orsíni e Colonna, sempre existia motivo de
discórdia entre eles e, estando de arma em punho sob os olhos do
pontífice, mantinham o pontificado fraco e inseguro. Se bem
surgisse, vez por outra, um Papa animoso, como foi Xisto, nem a
sua fortuna nem o seu saber puderam livrá-lo desses
inconvenientes. A brevidade da vida dos pontífices era a causa
dessa situação, porque, nos dez anos que, em média, vivia um
Papa, somente com muita dificuldade podia ele enfraquecer uma das
facções; se, por exemplo, um deles tivesse quase extinguindo os
collonessi surgia um outro, inimigo dos Orsíni, que os fazia
ressurgir sem que tivesse tempo de liquidar os Orsíni. Isto
tornava o poder temporal do Papa pouco considerado na Itália.
Surgiu depois Alexandre VI que, de
todos os pontífices que já existiram, foi o que mostrou o quanto
um Papa podia, com o dinheiro e as tropas, para adquirir maior
poder; e fez, com o uso do Duque Valentino como instrumento e com
a oportunidade da invasão dos franceses, todas aquelas coisas que
relatei acima com relação às ações do duque. Se bem seu
intento não fosse o de tornar grande a Igreja mas sim o duque, não
obstante, tudo o que fez reverteu em favor da grandeza da Igreja,
a qual, após a sua morte, extinto o duque, se tornou herdeira de
sua obra. Veio depois o Papa Júlio e encontrou a Igreja grande,
possuindo toda a Romanha, reduzidos à impotência os barões de
Roma e, pelas perseguições de Alexandre, anuladas aquelas facções;
encontrou, ainda, o caminho aberto para acumular dinheiro, o que
jamais havia sido feito antes de Alexandre.
Júlio não só seguiu tais práticas,
como as ampliou; pensou em conquistar Bolonha, extinguir os
venezianos e expulsar os franceses da Itália: todos esses
empreendimentos lhe saíram bem, e com tanto maior louvor quanto
realizou tudo isso para engrandecer a Igreja e não para favorecer
algum cidadão particular. Conservou, ainda, os partidos dos Orsíni
e dos Colonna nas mesmas condições em que os encontrara e, se
bem entre eles houvesse algum chefe capaz de fazer mudar a situação,
duas coisas os mantiveram quietos: uma, a grandeza da Igreja, que
os atemorizava; a outra, não terem eles cardeais, os quais são
os causadores dos tumultos entre as facções. Nem em tempo algum
ficarão quietas essas partes, desde que possuam cardeais, pois
estes sustentam os partidos dentro e fora de Roma e os barões são
forçados a defendê-los; assim, da ambição dos prelados, nascem
as discórdias e os tumultos entre os barões. Sua Santidade, o
Papa Leão, encontrou o pontificado potentíssimo e, espera-se, se
aqueles que referimos o fizeram grande pelas armas, este o fará
ainda maior e mais venerado pela bondade e suas outras infinitas
virtudes.
CAPÍTULO XII
DE QUANTAS ESPÉCIES SÃO AS MILÍCIAS,
E DOS SOLDADOS MERCENÁRIOS
(QUOT SINT GENERA MILITIAE ET DE
MERCENARIIS MILITIBUS)
Tendo falado detalhadamente de
todas as espécies de principados, dos quais já no início me
propus comentar, e consideradas, em alguns pontos, as causas do
bem-estar e do mal-estar dos mesmos, mostrados que foram os modos
pelos quais muitos procuraram adquiri-los e conservá-los,
resta-me agora falar de forma genérica dos meios ofensivos e
defensivos que em cada um dos citados principados possam ocorrer,
Dissemos acima como é necessário a um príncipe ter bons
fundamentos; do contrário, necessariamente, cairá em ruína. Os
principais fundamentos que os Estados têm, tanto os novos como os
velhos ou os mistos, são as boas leis e as boas armas. E, como não
pode haver boas leis onde não existam boas armas e onde existam
boas armas convém que haja boas leis, deixarei de falar das leis
e me reportarei apenas às armas.
Digo, pois, que as armas com as
quais um príncipe defende o seu Estado, ou são suas próprias ou
são mercenárias, ou auxiliares ou mistas. As mercenárias e as
auxiliares são inúteis e perigosas e, se alguém tem o seu
Estado apoiado nas tropas mercenárias, jamais estará firme e
seguro, porque elas são desunidas, ambiciosas, indisciplinadas,
infiéis; galhardas entre os amigos, vis entre os inimigos; não têm
temor a Deus e não têm fé nos homens, e tanto se adia a ruína,
quanto se transfere o assalto; na paz se é espoliado por elas, na
guerra, pelos inimigos. A razão disto é que elas não têm outro
amor nem outra razão que as mantenha em campo, a não ser um
pouco de soldo, o qual não é suficiente para fazer com que
queiram morrer por ti. Querem muito ser teus soldados enquanto não
estás em guerra, mas, quando esta surge, querem fugir ou ir
embora.
Para persuadir de tais coisas não
me é necessária muita fadiga, eis que a atual ruína da Itália
não foi causada por outro fator senão o de ter, por espaço de
muitos anos, repousado sobre as armas mercenárias. Elas já
fizeram algo em favor de alguns e pareciam galhardas nas lutas
entre si; mas, quando surgiu o estrangeiro, mostraram-lhe o que
eram. Por isso foi possível a Carlos, rei de França, tomar a Itália
com o giz; e quem disse que a causa disso foram os nossos pecados,
dizia a verdade, se bem que esses pecados não fossem aqueles que
ele julgava, mas sim esses que eu narrei, e como eram pecados de
príncipes, estes sofreram o castigo.
Quero demonstrar melhor a infeliz
qualidade destas tropas. Os capitães mercenários ou são homens
excelentes, ou não: se o forem, não podes confiar, porque sempre
aspirarão à própria grandeza, abatendo a ti que és o seu patrão,
ou oprimindo os outros contra a tua vontade; mas se não forem
grandes chefes, certamente te levarão à ruína. E, se for
respondido que qualquer um que detenha as forças nas mãos fará
isso, mercenário ou não, responderei dizendo como as armas devem
ser usadas por um príncipe ou por uma República. O príncipe
deve ir pessoalmente com as tropas e exercer as atribuições do
capitão: a República deve mandar seus cidadãos e, quando enviar
um que não se revele valente, deve substitui-lo, quando animoso
deve detê-lo com as leis para que não avance além do limite.
Por experiência se vêem príncipes sós e repúblicas armadas
fazerem grandes progressos, enquanto se vêem tropas mercenárias
não causarem mais do que danos. Ainda, uma República armada de
tropas próprias se submete ao domínio de um seu cidadão com
muito maior dificuldade do que aquela que esteja protegida por
tropas mercenárias ou auxiliares.
Roma e Esparta foram durante muitos
séculos armadas e livres, Os suíços são armadíssimos e libérrimos,
Das armas mercenárias antigas, podemos citar como exemplo os
cartagineses, os quais quase foram oprimidos por seus soldados
mercenários, ao fim da primeira guerra com os romanos, a despeito
de terem por chefes os próprios cidadãos de Cartago. Felipe da
Macedônia foi pelos tebanos feito capitão de sua gente, depois
da morte de Epaminondas, e após a vitória lhes tolheu a
liberdade, Os milaneses, morto o Duque Felipe, assalariaram
Francisco Sforza para combater os venezianos e o mesmo, vencidos
os inimigos em Caravaggio, a estes se uniu para oprimir os
milaneses, seus patrões. Sforza, seu pai, estando a serviço da
Rainha Joana de Nápoles, deixou-a repentinamente desarmada; por
isso ela, para não perder o reino, foi obrigada a lançar-se aos
braços do Rei de Aragão.
E se venezianos e florentinos, ao
contrário, tiveram aumentado o seu domínio com essas tropas, e
os seus capitães se fizeram príncipes mas os defenderam, esclareço
que os florentinos, neste caso, foram favorecidos pela sorte,
porque dos capitães de valor, aos quais podiam temer, alguns não
venceram ou tiveram de lutar contra antagonistas, outros voltaram
sua ambição para paragens diversas. Quem não venceu foi
Giovanni Aucut, por isso mesmo não se podendo conhecer de sua
fidelidade, mas todos estarão concordes que, tivesse vencido, os
florentinos estariam à sua mercê. Sforza sempre teve os Braccio
contra si, vigiando-se uns aos outros. Francisco voltou sua ambição
para a Lombardia, Braccio contra a Igreja e o reino de Nápoles.
Mas, vejamos o que ocorreu há pouco tempo. Os florentinos fizeram
Paulo Vitelli seu capitão, homem de muita prudência e que, de
vida privada, havia alcançado mui grande reputação. Se ele
conquistasse Pisa, não haveria quem negasse convir aos
florentinos estar sob suas ordens, mesmo porque, se ele tivesse
ficado como soldado de seus inimigos, não teriam remédio e,
tendo-o ao seu lado, deveriam obedecer-lhe.
Os venezianos, se se considerar os
seus progressos, ver-se-á terem operado segura e gloriosamente
enquanto fizeram a guerra sozinhos (o que foi antes de voltarem
suas vistas para a terra) sendo que, com o apoio dos gentis-homens
e com a plebe armada, operaram mui galhardamente; mas, como eles
começaram a combater em terra, abandonaram essa prudência e
seguiram os costumes de guerra da Itália. No princípio de sua
expansão terrestre, por não possuírem muito Estado e por usufruírem
alta reputação, não precisavam temer muito seus capitães; mas,
quando ampliaram suas conquistas, o que ocorreu sob o Carmignola,
tiveram a prova desse erro. Por tanto, tendo visto seu valor
quando sob seu comando bateram o duque de Milão e sentindo, de
outra parte, quanto ele esfriara no conduzir a guerra, julgaram não
mais ser possível com ele vencer dada a sua má vontade; e não
podendo licenciá-lo para não perder aquilo que tinham adquirido,
para se garantirem viram-se na contingência de matá-lo, Tiveram
depois por seus capitães Bartolomeu e Bergamo, Roberto de São
Severino, Conde de Pitigliano e outros parecidos, com os quais
deviam temer as derrotas e não suas conquistas, como ocorreu
depois em Vailá, onde, num dia, perderam tudo aquilo que, em
oitocentos anos, com tanta fadiga, tinham conquistado. Na verdade,
destas tropas resultam apenas lentas, tardias e fracas conquistas,
mas rápidas e miraculosas perdas. E, como apresentei estes
exemplos da Itália que tem sido por muitos anos dominada por
armas mercenárias, quero analisar essas tropas por forma mais genérica,
a fim de que, vendo a origem e o desenvolvimento das mesmas, se
possa melhor corrigir o erro de seu emprego.
Deveis, pois, saber como, logo que
nestes últimos anos o império começou a ser repelido da Itália
e o Papa passou a ter reputação no poder temporal, a Itália
dividiu-se em vários Estados. Na verdade, muitas das maiores
cidades tomaram das armas contra seus nobres, os quais, antes
favorecidos pelo imperador, as mantinham oprimidas, e a Igreja,
para obter reputação em seu poder temporal, as favorecia em tal;
de muitas outras, os seus cidadãos se tornaram príncipes.
Daí resultar que, tendo a Itália
quase toda, chegado a cair nas mãos da Igreja e de algumas repúblicas,
não estando aqueles padres e aqueles outros cidadãos habituados
ao uso das armas, começaram a aliciar mercenários estrangeiros.
O primeiro que deu fama a essa milícia foi Alberico da Conio,
natural da Romanha, sendo que de sua escola de armas vieram,
dentre outros, Braccio e Sforza, nos seus dias os árbitros da Itália.
Depois destes vieram todos os outros que até nossos tempos têm
chefiado essas tropas, e o fim do valor das mesmas foi que a Itália
viu-se percorrida por Carlos, saqueada por Luís, violentada por
Fernando e desonrada pelos suíços.
A ordem que eles observaram
inicialmente foi, para dar reputação a si próprios, tirar o
conceito da infantaria, Fizeram isso porque, sendo eles sem Estado
e vivendo da indústria das armas, poucos infantes não lhes
dariam fama e, sendo muitos, não poderiam alimentá-los; assim,
limitaram-se à cavalaria onde, com número suportável, as tropas
podiam ser nutridas e eles honrados. E, afinal, a situação
tornou-se tal que, em um exército de vinte mil soldados, não se
encontravam dois mil infantes. Tinham, além disso, usado todos os
meios para afastar de si e de seus soldados o cansaço e o medo, não
se matando nos combates, fazendo-se prisioneiros uns aos outros e
libertando-se depois sem resgate. Não atacavam as cidades muradas
e os das cidades não assaltavam os acampamentos; não faziam nem
estacadas nem fossos, não saíam a campo no inverno. Todas estas
coisas eram permitidas nas suas regras militares, por eles
encontradas para fugir, como foi dito, à fadiga e aos perigos;
foi por isso que arrastaram a Itália à escravidão e à desonra.
CAPÍTULO XIII
DOS SOLDADOS AUXILIARES, MISTOS E PRÓPRIOS
(DE MILITIBUS AUXILIARIIS, MIXTIS ET PROPRIIS)
As tropas auxiliares, que são as outras forças
inúteis, são aquelas que se apresentam quando chamas um poderoso para que, com
seus exércitos, te venha ajudar e defender, como fez em tempos recentes o Papa
Júlio que, tendo visto na campanha de Ferrara a triste figura de suas tropas
mercenárias, voltou-se para as auxiliares e entrou em acordo com Fernando, rei
da Espanha, no sentido de que este, com sua gente e armas, viesse ajudá-lo.
Estas tropas auxiliares podem ser úteis e boas para si mesmas, mas, para quem
as chame, são quase sempre danosas, eis que perdendo ficas liquidado, vencendo
ficas seu prisioneiro.
E, ainda que destes exemplos estejam cheias as
antigas histórias, não quero abandonar esta recente lição de Júlio II, cuja
deliberação de entregar-se inteiramente às mãos de um estrangeiro, por
querer Ferrara, não podia ter sido mais insensata. Mas a boa sorte fez surgir
uma terceira circunstância, a fim de que não viesse ele a colher o resultado
de sua má decisão; sendo os seus auxiliares derrotados em Ravenna e surgindo
os suíços que, contra a expectativa de Júlio e de outros, expulsaram os
vencedores, o Papa não se tornou prisioneiro nem dos vencedores, que fugiram,
nem de suas tropas auxiliares, por ter vencido com outras armas que não as
delas. Os florentinos, estando completamente desarmados, levaram dez mil
franceses a Pisa para atacá-la, resolução essa em razão da qual passaram por
maior perigo do que em qualquer tempo de seus próprios trabalhos. O imperador
de Constantinopla, para opor-se a seus vizinhos, concentrou na Grécia dez mil
turcos que, terminada a guerra, não quiseram abandonar o país, o que constitui
o início da sujeição da Grécia aos infiéis.
Assim, aquele que queira não poder vencer,
valha-se destas tropas muito mais perigosas do que as mercenárias, eis que com
estas a ruína é certa, dado que são todas unidas, todas voltadas à obediência
a outrem. As mercenárias, para te prejudicarem após a vitória, contrariamente
ao que ocorre com as mistas, precisam de mais tempo e maior oportunidade, não só
por não constituírem um todo, como também por terem sido organizadas e pagas
por ti; ainda, um terceiro que nelas tornes chefe, não pode desde logo assumir
tanta autoridade que te cause dano. Enfim, enquanto nas tropas mercenárias o
mais perigoso é a covardia, nas auxiliares é o valor.
Um príncipe prudente, portanto, sempre tem
fugido a essas tropas para voltar-se às suas próprias forças, preferindo
perder com as suas a vencer com aquelas, eis que, em verdade, não representaria
vitória aquela que fosse conquistada com as armas alheias. Jamais vacilarei em
citar como exemplo César Bórgia e suas ações. Este duque entrou na Romanha
com tropas auxiliares, para aí conduzindo as forças francesas, com elas
tomando Imola e Forli. Mas, depois, não mais lhe parecendo seguras tais armas,
voltou-se para as mercenárias, julgando nelas encontrar menor perigo; e tomou a
seu serviço os Orsini e os Viteili. Posteriormente, manejando essas forças e
achando-as dúbias, infiéis e perigosas, extinguiu-as e voltou-se para as suas
próprias tropas. Pode-se ver facilmente a diferença que existe entre umas e
outras dessas armas, considerando a modificação da reputação do duque entre
quando tinha apenas os franceses e depois os Orsíni e Vitelli, e quando ele
ficou com soldados seus e sob seu próprio comando: sempre se a encontrará
acrescida, e nem foi suficientemente amado senão quando todos viram que ele era
o senhor absoluto de suas tropas.
Eu não queria abandonar os exemplos italianos e
mais recentes; contudo, não desejo esquecer Hierão de Siracusa, um dos acima
indicados por mim. Este, como já disse, tornado pelos siracusanos chefe dos exércitos,
logo reconheceu não ser útil a tropa mercenária, por serem seus chefes idênticos
aos nossos italianos; parecendo-lhe não poder conservá-los nem dispensá-los,
fez cortar todos eles em pedaços, passando depois a fazer guerra com tropas
suas e não com as de outrem, Quero, ainda, trazer à lembrança uma alegoria do
Velho Testamento feita a este propósito. Oferecendo-se David a Saul para lutar
com Golias, provocador filisteu, Saul, para encorajá-lo, revestiu-o com suas próprias
armaduras, as quais, uma vez envergadas por David, foram por ele recusadas: com
elas não poderia bem se valer de si mesmo, preferindo enfrentar o inimigo
apenas com sua funda e sua faca. Enfim, as armas de outrem, ou te caem de cima,
ou te pesam ou te constrangem.
Carlos VII, pai de Luís XI, tendo com sua
fortuna e sua virtude libertado a França dos ingleses, conheceu essa
necessidade de armar-se com forças próprias, e organizou em seu reino, por
forma regular, as armas de cavalaria e de infantaria. Mais tarde, o Rei Luís,
seu filho, extinguiu a infantaria e começou a aliciar os suíços, erro esse
que, seguido de outros, tornou-se, como realmente agora se vê, a razão dos
perigos daquele reino, Na verdade, dando reputação aos suíços, Luis aviltou
todas as suas tropas, já que extinguiu as forças de infantaria e subordinou
sua cavalaria às milícias de outrem, e a esta, acostumada a militar com os suíços,
pareceu não ser possível vencer sem eles. Daí decorre que não bastam os
franceses contra os suíços e, sem os suíços, não tentam a luta contra os
outros. Os exércitos de França, pois, têm sido mistos, parte de mercenários
e parte de tropas próprias, forças essas que, juntas, são muitos melhores que
as simples auxiliares ou as meramente mercenárias e muito inferiores ao exército
próprio. Basta o exemplo citado, pois o reino de França seria invencível, se
a organização militar de Carlos tivesse sido desenvolvida ou conservada. Mas a
pouca prudência dos homens muitas vezes começa uma coisa que lhe parece boa,
sem se aperceber do veneno que ela encobre, como já disse acima a respeito das
febres éticas.
Portanto, aquele que num principado não conhece
os males logo no início, não é verdadeiramente sábio, o que é dado a
poucos. E, se se considerar o início da ruína do Império Romano, ver-se-á
ter ela resultado do simples começo de aliciamento dos godos, eis que foi dai
que começaram a declinar as forças do Império Romano e todo aquele valor que
se lhe tirava era atribuído a eles. Concluo, pois, que, sem ter armas próprias,
nenhum principado está seguro; ao contrário, fica ele totalmente sujeito à
sorte, não havendo virtude que o defenda na adversidade. Foi sempre opinião e
sentença dos homens sábios, quod nihíl sit tam infirmum aut instabile,
quam fama potentiae non sua vi nixa. As forças próprias são aquelas que
se constituem de súditos, de cidadãos ou de criaturas tuas; todas as outras são
ou mercenárias ou auxiliares. O modo de organizar as tropas próprias será fácil
de encontrar, se se analisar a organização dos quatro por mim mencionados, e
se se considerar como Felipe, pai de Alexandre Magno, e muitas repúblicas e
principados, se armaram e organizaram; a essas organizações eu me reporto
inteiramente.
CAPÍTULO XIV
O QUE COMPETE A UM PRÍNCIPE ACERCA DA MILÍCIA
(TROPA)
(QUOD PRINCIPEM DECEAT CIRCA MILITIAM)
Deve, pois, um príncipe não ter outro objetivo
nem outro pensamento, nem tomar qualquer outra coisa por fazer, senão a guerra
e a sua organização e disciplina, pois que é essa a única arte que compete a
quem comanda. E é ela de tanta virtude, que não só mantém aqueles que
nasceram príncipes, como também muitas vezes faz os homens de condição
privada subirem àquele posto; ao contrário, vê-se que, quando os príncipes
pensam mais nas delicadezas do que nas armas, perdem o seu Estado. A primeira
causa que te faz perder o governo é negligenciar dessa arte, enquanto que a razão
que te permite conquistá-lo é o ser professo da mesma.
Francisco Sforza, por estar armado, de cidadão
privado que era, tornou-se duque de Milão; os filhos, para fugir às fadigas
das armas, de duques passaram a simples cidadãos privados. Em verdade, entre
outros males que te acarreta o estares desarmado, ele te torna vil, o que
constitui uma daquelas infâmias de que o príncipe se deve guardar, como abaixo
será exposto. Realmente, entre um príncipe armado e um desarmado, não existe
proporção alguma, e não é razoável que quem esteja armado obedeça com
gosto ao que seja desprovido de armas, nem que o desarmado se sinta seguro entre
servidores armados, eis que, existindo desdém de parte de um e suspeita do lado
do outro, não é possível ajam bem, estando juntos. Ainda, um príncipe que não
entende de tropas, além dos outros prejuízos referidos, sofre aquele de não
poder ser estimado pelos seus soldados e nem poder neles confiar.
Deve o príncipe, portanto, não desviar um
momento sequer o seu pensamento do exercício da guerra, o que pode fazer por
dois modos: um com a ação, o outro com a mente, Quanto à ação, além de
manter bem organizadas e exercitadas as suas tropas, deve estar sempre em caçadas
para acostumar o corpo às fadigas e, em parte, para conhecer a natureza dos
lugares e saber como surgem os montes, como embocam os vales, como se estendem
as planícies, e aprender a natureza dos rios e dos pântanos, pondo muita atenção
em tudo isso. Esses conhecimentos são úteis por duas razões: primeiro,
aprende-se a conhecer o próprio país e pode-se melhor identificar as defesas
que ele oferece; depois, em decorrência do conhecimento e prática daqueles sítios,
com facilidade poderá entender qualquer outra região que venha a ter de
observar, eis que as colinas, os vales, as planícies, os rios e os pântanos
que existem, por exemplo, na Toscana, têm certa semelhança com os das outras
províncias, de forma que, do conhecimento do terreno de uma província, se pode
passar facilmente ao de outras. O príncipe que seja falto dessa perícia, está
desprovido do elemento principal de que necessita um capitão, pois ela ensina a
encontrar o inimigo, estabelecer os acampamentos, conduzir os exércitos,
ordenar as jornadas, fazer incursões pelas terras com vantagem sobre o inimigo.
Filopémenes, príncipe dos Aqueus, dentre os
louvores que lhe foram endereçados pelos escritores, mereceu também aquele de
que, nos tempos de paz, em outra coisa não pensava senão em torno de guerra e,
quando excursionando pelos campos com os amigos, freqüentemente parava e com
eles argumentava: - Se os inimigos estivessem sobre aquela colina e nós nos
encontrássemos aqui com nosso exército, qual de nós teria vantagem? Como se
poderia atacá-los, mantendo a formação da tropa? Se quiséssemos nos retirar,
como deveríamos proceder? Se eles se retirassem, como faríamos para
persegui-los? - E propunha-lhes, andando, todos os casos que possam ocorrer em
um exército; ouvia a opinião dos mesmos, dava a sua corroborando-a com
argumentos, de maneira tal que, em razão dessas contínuas cogitações, jamais
poderia, comandando os exércitos, encontrar pela frente algum imprevisto para o
qual não tivesse solução.
Mas, quanto ao exercício da mente, deve o príncipe
ler as histórias e nelas observar as ações dos grandes homens, ver como se
conduziram nas guerras, examinar as causas de suas vitórias e de suas derrotas,
para poder fugir às responsáveis por estas e imitar as causadoras daquelas;
deve fazer, sobretudo, como, em tempos idos, fizeram alguns grandes homens que
imitaram todo aquele que antes deles foi louvado e glorificado, e sempre tiveram
em si os gestos e as ações do mesmo, como se diz que Alexandre Magno imitava a
Aquiles, César a Alexandre, Cipião a Ciro. Quem lê a vida de Ciro escrita por
Xenofonte percebe, depois, na vida de Cipião, o quanto lhe valeu para a glória
aquela imitação, bem como o quanto na castidade, afabilidade, humanidade e
liberalidade, Cipião se assemelhava àquilo que Xenofonte escreveu de Ciro. Um
príncipe inteligente deve observar essa semelhança de proceder, nunca ficando
ocioso nos tempos de paz, mas sim, com habilidade, procurar formar cabedal para
poder utilizá-lo na adversidade, a fim de que, quando mudar a fortuna, se
encontre preparado para resistir.
CAPÍTULO XV
DAQUELAS COISAS PELAS QUAIS OS HOMENS, E
ESPECIALMENTE OS PRÍNCIPES, SÃO LOUVADOS OU VITUPERADOS
(DE HIS REBUS QUIBUS HOMINES, ET PRAESERTIM
PRINCIPES, LAUDANTUR AUT VITUPERANTUR)
Resta ver agora quais devam ser os modos e o
proceder de um príncipe para com os súditos e os amigos e, por que sei que
muitos já escreveram a respeito, duvido não ser considerado presunçoso
escrevendo ainda sobre o mesmo assunto, máxime quando irei disputar essa matéria
à orientação já por outros dada aos príncipes. Mas, sendo minha intenção
escrever algo de útil para quem por tal se interesse, pareceu-me mais
conveniente ir em busca da verdade extraída dos fatos e não à imaginação
dos mesmos, pois muitos conceberam repúblicas e principados jamais vistos ou
conhecidos como tendo realmente existido. Em verdade, há tanta diferença de
como se vive e como se deveria viver, que aquele que abandone o que se faz por
aquilo que se deveria fazer, aprenderá antes o caminho de sua ruína do que o
de sua preservação, eis que um homem que queira em todas as suas palavras
fazer profissão de bondade, perder-se-á em meio a tantos que não são bons.
Donde é necessário, a um príncipe que queira se manter, aprender a poder não
ser bom e usar ou não da bondade, segundo a necessidade.
Deixando de parte, assim, os assuntos relativos a
um príncipe imaginário e falando daqueles que são verdadeiros, digo que todos
os homens, máxime os príncipes por situados em posição mais preeminente,
quando analisados, se fazem notar por alguns daqueles atributos que lhes
acarretam ou reprovação ou louvor. Assim é que alguns são havidos como
liberais, alguns miseráveis (usando um termo toscano, porque "avaro"
em nossa língua é ainda aquele que deseja possuir por rapina, enquanto
"miserável" chamamos aquele que se abstém em excesso de usar o que
possui); alguns são tidos como pródigos, alguns rapaces; alguns cruéis,
alguns piedosos; um fedífrago, o outro fiel; um efeminado e pusilânime, o
outro feroz e animoso; um humano, o outro soberbo; um lascivo, o outro casto; um
simples, o outro astuto; um duro, o outro fácil; um grave, o outro leviano; um
religioso, o outro incrédulo, e assim por diante.
Sei que cada um confessará que seria sumamente
louvável encontrarem-se em um príncipe, de todos os atributos acima referidos,
apenas aqueles que são considerados bons; mas, desde que não os podem possuir
nem inteiramente observá-los em razão das contingências humanas não o
permitirem, é necessário seja o príncipe tão prudente que saiba fugir à infâmia
daqueles vícios que o fariam perder o poder, cuidando evitar até mesmo aqueles
que não chegariam a pôr em risco o seu posto; mas, não podendo evitar, é
possível tolerá-los, se bem que com quebra do respeito devido. Ainda, não
evite o príncipe de incorrer na má faina daqueles vícios que, sem eles, difícil
se lhe torne salvar o Estado; pois, se bem considerado for tudo, sempre se
encontrará alguma coisa que, parecendo virtude, praticada acarretará ruína, e
alguma outra que, com aparência de vício, seguida dará origem à segurança e
ao bem-estar.
CAPÍTULO XVI
DA LIBERALIDADE E DA PARCIMÔNIA
(DE LIBERALITATE ET PARSIMONIA)
Começando, pois, com os primeiros dos já
referidos atributos, digo que seria um bem o ser havido como liberal. Contudo, a
liberalidade, usada por forma que se torne conhecida de todos, te prejudica,
porque, se usada virtuosamente e como se a deve usar, ela não se torna
conhecida e não conseguirás tirar de cima de ti a má fama do seu contrário;
porém, querendo manter entre os homens o nome de liberal, é preciso não
esquecer nenhuma espécie de suntuosidade, de forma tal que um príncipe assim
procedendo consumirá em ostentação todas as suas finanças e terá
necessidade de, ao final, se quiser manter o conceito de liberal, gravar
extraordinariamente o povo de impostos, ser duro no fisco e fazer tudo aquilo de
que possa se utilizar para obter dinheiro. Isso começará a torná-lo odioso
perante o povo e, empobrecendo-o, fá-lo-á pouco estimado de todos; de forma
que, tendo ofendido a muitos e premiado a poucos com essa sua liberalidade,
sente mais intensamente qualquer revés inicial e periclita face ao primeiro
perigo. Percebendo isso e querendo recuar, o príncipe incorre desde logo na má
fama de miserável.
Um príncipe, pois, não podendo usar essa
qualidade de liberal sem sofrer dano, tornando-a conhecida, deve ser prudente,
deve não se preocupar com a pecha de miserável, eis que, com o decorrer do
tempo, será considerado sempre mais liberal, uma vez vendo o povo que com sua
parcimônia a receita lhe basta, pode defender-se de quem lhe mova guerra e tem
possibilidade de realizar empreendimentos sem gravar o povo; assim agindo, vem a
usar liberalidade para com todos aqueles dos quais nada tira, que são
numerosos, e a empregar miséria para com todos os outros a quem não dá, que são
poucos. Nos nossos tempos não temos visto grandes realizações senão daqueles
que foram havidos por miseráveis, enquanto vimos os outros serem extintos. O
Papa Júlio II, como utilizou a fama de liberal para atingir ao papado, não
pensou depois em conservá-la, para poder fazer guerra; o atual rei de França
fez tantas guerras sem lançar um tributo extraordinário sobre seus súditos,
somente porque sobrepôs sua parcimônia às despesas supérfluas. O presente
rei de Espanha, se havido como liberal, não teria realizado nem vencido em
tantos empreendimentos.
Portanto, um príncipe deve gastar pouco para não
precisar roubar seus súditos, para poder defender-se, para não ficar pobre e
desprezado, para não ser forçado a tornar-se rapace, não se importando de
incorrer na fama de miserável, porque esse é um daqueles defeitos que o fazem
reinar. E se alguém dissesse que César alcançou o Império pela liberalidade,
sem contar muitos outros que têm sido ou são considerados liberais e atingiram
altíssimos postos, eu responderia: ou tu já és príncipe ou estás em via de
o ser. No primeiro caso, essa liberalidade é prejudicial, no segundo é bem
necessário ser considerado liberal; e César era um daqueles que queriam
ascender ao principado de Roma, mas se, depois que o alcançou, tivesse vivido e
não tivesse usado comedimento nas despesas, teria destruído o Império. E se
alguém replicasse que houve muitos príncipes, tidos como extremamente
liberais, que realizaram grandes feitos com seus exércitos, responderia: ou o
príncipe gasta do seu, ou de seus súditos, ou de outrem; no primeiro caso,
deve ser parcimonioso; nos outros, não deve deixar de praticar nenhuma
liberalidade.
E aquele príncipe que vai com os exércitos, que
se mantém de rapinagem, de saques e de resgates, maneja bens de outros, tem
necessidade dessa liberalidade porque, do contrário, não será seguido pelos
soldados. E, daquilo que não é teu nem de súditos teus, podes ser o mais
generoso doador, como o foram Ciro, César e Alexandre, eis que o despender
aquilo que é dos outros não te tira reputação, ao contrário, a aumenta;
somente o gastar o teu é que te prejudica. E não há coisa que tanto se
destrua a si mesma como a liberalidade, pois, enquanto tu a usas, perdes a
faculdade de utilizá-la, tornando-te pobre e desprezado ou, para fugir à
pobreza, rapace e odioso. Dentre todas as coisas de que um príncipe se deve
guardar está o ser desprezado e odiado, e a liberalidade te conduz a uma e a
outra dessas coisas. Portanto, é mais sabedoria ter a fama de miserável, que dá
origem a uma infâmia sem ódio, do que, por querer o conceito de liberal,
ver-se na necessidade de incorrer no julgamento de rapace, que cria uma má fama
com ódio.
CAPÍTULO XVII
DA CRUELDADE E DA PIEDADE; SE É MELHOR SER
AMADO QUE TEMIDO, OU ANTES TEMIDO QUE AMADO
(DE CRUDELITATE ET PIETATE; ET AN SIT MELIUS
AMARI QUAM TIMERI, VEL E CONTRA)
Reportando-me às outras qualidades já
referidas, digo que cada príncipe deve desejar ser tido como piedoso e não
como cruel: não obstante isso, deve ter o cuidado de não usar mal essa
piedade. César Bórgia era considerado cruel; entretanto, essa sua crueldade
tinha recuperado a Romanha, logrando uní-la e pô-la em paz e em lealdade. O
que, se bem considerado for, mostrará ter sido ele muito mais piedoso do que o
povo florentino, o qual, para fugir à pecha de cruel, deixou que Pistóia fosse
destruída. Um príncipe não deve, pois, temer a má fama de cruel, desde que
por ela mantenha seus súditos unidos e leais, pois que, com mui poucos
exemplos, ele será mais piedoso do que aqueles que, por excessiva piedade,
deixam acontecer as desordens das quais resultam assassínios ou rapinagens:
porque estes costumam prejudicar a comunidade inteira, enquanto aquelas execuções
que emanam do príncipe atingem apenas um indivíduo. E, dentre todos os príncipes,
é ao novo que se torna impossível fugir à pecha de cruel, visto serem os
Estados novos cheios de perigos. Diz Virgílio, pela boca de Dido:
Res dura,et regni novitas me talia cogunt
moliri, et late fines custode tueri.
O príncipe, contudo, deve ser lento no crer
e no agir, não se alarmar por si mesmo e proceder por forma equilibrada, com
prudência e humanidade, buscando evitar que a excessiva confiança o torne
incauto e a demasiada desconfiança o faça intolerável.
Nasce daí uma questão: se é melhor ser amado
que temido ou o contrário. A resposta é de que seria necessário ser uma coisa
e outra; mas, como é difícil reuni-las, em tendo que faltar uma das duas é
muito mais seguro ser temido do que amado. Isso porque dos homens pode-se dizer,
geralmente, que são ingratos, volúveis, simuladores, tementes do perigo,
ambiciosos de ganho; e, enquanto lhes fizeres bem, são todos teus, oferecem-te
o próprio sangue, os bens, a vida, os filhos, desde que, como se disse acima, a
necessidade esteja longe de ti; quando esta se avizinha, porém, revoltam-se. E
o príncipe que confiou inteiramente em suas palavras, encontrando-se destituído
de outros meios de defesa, está perdido: as amizades que se adquirem por
dinheiro, e não pela grandeza e nobreza de alma, são compradas mas com elas não
se pode contar e, no momento oportuno, não se torna possível utilizá-las. E
os homens têm menos escrúpulo em ofender a alguém que se faça amar do que a
quem se faça temer, posto que a amizade é mantida por um vínculo de obrigação
que, por serem os homens maus, é quebrado em cada oportunidade que a eles
convenha; mas o temor é mantido pelo receio de castigo que jamais se abandona.
Deve o príncipe, não obstante, fazer-se temer
de forma que, se não conquistar o amor, fuja ao ódio, mesmo porque podem muito
bem coexistir o ser temido e o não ser odiado: isso conseguirá sempre que se
abstenha de tomar os bens e as mulheres de seus cidadãos e de seus súditos e,
em se lhe tornando necessário derramar o sangue de alguém, faça-o quando
existir conveniente justificativa e causa manifesta. Deve, sobretudo, abster-se
dos bens alheios, posto que os homens esquecem mais rapidamente a morte do pai
do que a perda do patrimônio. Além disso, nunca faltam motivos para justificar
as expropriações, e aquele que começa a viver de rapinagem sempre encontra
razões para apossar-se dos bens alheios, ao passo que as razões para o
derramamento de sangue são mais raras e esgotam-se mais depressa.
Mas quando o príncipe está à frente de seus exércitos
e tem sob seu comando uma multidão de soldados, então é de todo necessário não
se importar com a fama de cruel, eis que, sem ela, jamais se conservará exército
unido e disposto a alguma empresa. Dentre as admiráveis ações de Aníbal,
menciona-se esta: tendo um exército imenso, constituído de homens de inúmeras
raças, conduzido a batalhar em terras alheias, nunca surgiu qualquer dissensão
entre eles ou contra o príncipe, tanto na má como na boa fortuna. Isso não
pode resultar de outra coisa senão daquela sua desumana crueldade que, aliada
às suas infinitas virtudes, o tornou sempre venerado e terrível no conceito de
seus soldados; sem aquela crueldade, as virtudes não lhe teriam bastado para
surtir tal efeito e, todavia, escritores nisto pouco ponderados, admiram, de um
lado, essa sua atuação e, de outro, condenam a principal causa da mesma.
Para prova de que, realmente, as outras suas
virtudes não seriam bastantes, pode-se considerar o caso de Cipião, homem dos
mais notáveis não somente nos seus tempos mas também na memória de todos os
fatos conhecidos, cujos exércitos se revoltaram na Espanha em conseqüência de
sua excessiva piedade, pois que havia concedido aos seus soldados mais
liberdades do que convinha à disciplina militar. Tal fato foi-lhe censurado no
Senado por Fábio Máximo, o qual chamou-o de corruptor da milícia romana. Os
locrenses, tendo sido arruinados e abatidos por um legado de Cipião, não foram
por ele vingados, nem a insolência daquele legado foi reprimida, resultando
tudo isso de sua natureza fácil; tanto assim que, querendo alguém desculpá-lo
perante o Senado, disse haver muitos homens que melhor sabiam não errar do que
corrigir os erros. Essa sua natureza teria com o tempo sacrificado a fama e a glória
de Cipião, tivesse ele perseverado no comando; mas, vivendo sob o governo do
Senado, esta sua prejudicial qualidade não só desapareceu, como lhe resultou
em glória.
Concluo, pois, voltando à questão de ser temido
e amado, que um príncipe sábio, amando os homens como a eles agrada e sendo
por eles temido como deseja, deve apoiar-se naquilo que é seu e não no que é
dos outros; deve apenas empenhar-se em fugir ao ódio, como foi dito.
CAPÍTULO XVIII
DE QUE MODO OS PRÍNCIPES DEVEM MANTER A FÉ DA
PALAVRA DADA
(QUOMODO FIDES A PRINCIPIBUS SIT SERVANDA)
Quando seja louvável em um príncipe o manter a
fé (da palavra dada) e viver com integridade, e não com astúcia, todos
compreendem; contudo, vê-se nos nossos tempos, pela experiência, alguns príncipes
terem realizado grandes coisas a despeito de terem tido em pouca conta a fé da
palavra dada, sabendo pela astúcia transtornar a inteligência dos homens; no
final, conseguiram superar aqueles que se firmaram sobre a lealdade.
Deveis saber, então, que existem dois modos de
combater: um com as leis, o outro com a força. O primeiro é próprio do homem,
o segundo, dos animais; mas, como o primeiro modo muitas vezes não é
suficiente, convém recorrer ao segundo. Portanto, a um príncipe torna-se
necessário saber bem empregar o animal e o homem. Esta matéria, aliás, foi
ensinada aos príncipes, veladamente, pelos antigos escritores, os quais
descrevem como Aquiles e muitos outros príncipes antigos foram confiados à
educação do centauro Quiron. Isso não quer dizer outra coisa, o ter por
preceptor um ser meio animal e meio homem, senão que um príncipe precisa saber
usar uma e outra dessas naturezas: uma sem a outra não é durável.
Necessitando um príncipe, pois, saber bem
empregar o animal, deve deste tomar como modelos a raposa e o leão, eis que
este não se defende dos laços e aquela não tem defesa contra os lobos. É
preciso, portanto, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar
os lobos. Aqueles que agem apenas como o leão, não conhecem a sua arte. Logo,
um senhor prudente não pode nem deve guardar sua palavra, quando isso seja
prejudicial aos seus interesses e quando desapareceram as causas que o levaram a
empenhá-la. Se todos os homens fossem bons, este preceito seria mau; mas,
porque são maus e não observariam a sua fé a teu respeito, não há razão
para que a cumpras para com eles. Jamais faltaram a um príncipe razões legítimas
para justificar a sua quebra da palavra. Disto poder-se-ia dar inúmeros
exemplos modernos, mostrar quantas pazes e quantas promessas foram tornadas írritas
e vãs pela infidelidade dos príncipes; e aquele que, com mais perfeição,
soube agir como a raposa, saiu-se melhor. Mas é necessário saber bem disfarçar
esta qualidade e ser grande simulador e dissimulador: tão simples são os
homens e de tal forma cedem às necessidades presentes, que aquele que engana
sempre encontrará quem se deixe enganar.
Não quero deixar de apontar um dos exemplos
recentes. Alexandre VI jamais fez outra coisa, jamais pensou em outra coisa senão
enganar os homens, sempre encontrando ocasião para assim poder agir. Nunca
existiu homem que tivesse maior eficácia em asseverar, que com maiores
juramentos afirmasse uma coisa e que, depois, menos a observasse; não obstante,
os enganos sempre lhe resultaram segundo o seu desejo, pois bem conhecia este
lado do mundo.
A um príncipe, portanto, não é essencial
possuir todas as qualidades acima mencionadas, mas é bem necessário parecer
possuí-las. Antes, ousarei dizer que, possuindo-as e usando-as sempre, elas são
danosas, enquanto que, aparentando possuí-las, são úteis; por exemplo:
parecer piedoso, fiel, humano, íntegro, religioso, e sê-lo realmente, mas
estar com o espírito preparado e disposto de modo que, precisando não sê-lo,
possas e saibas tornar-te o contrário, Deve-se compreender que um príncipe, e
em particular um príncipe novo, não pode praticar todas aquelas coisas pelas
quais os homens são considerados bons, uma vez que, freqüentemente, é
obrigado, para manter o Estado, a agir contra a fé, contra a caridade, contra a
humanidade, contra a religião. Porém, é preciso que ele tenha um espírito
disposto a voltar-se segundo os ventos da sorte e as variações dos fatos o
determinem e, como acima se disse, não apartar-se do bem, podendo, mas saber
entrar no mal, se necessário.
Um príncipe, portanto, deve ter muito cuidado em
não deixar escapar de sua boca nada que não seja repleto das cinco qualidades
acima mencionadas, para parecer, ao vê-lo e ouvi-lo, todo piedade, todo fé,
todo integridade, todo humanidade, todo religião; e nada existe mais necessário
de ser aparentado do que esta última qualidade. É que os homens em geral
julgam mais pelos olhos do que pelas mãos, porque a todos cabe ver mas poucos são
capazes de sentir. Todos vêem o que tu aparentas, poucos sentem aquilo que tu
és; e esses poucos não se atrevem a contrariar a opinião dos muitos que, aliás,
estão protegidos pela majestade do Estado; e, nas ações de todos os homens,
em especial dos príncipes, onde não existe tribunal a que recorrer, o que
importa é o sucesso das mesmas, Procure, pois, um príncipe, vencer e manter o
Estado: os meios serão sempre julgados honrosos e por todos louvados, porque o
vulgo sempre se deixa levar pelas aparências e pelos resultados, e no mundo não
existe senão o vulgo; os poucos não podem existir quando os muitos têm onde
se apoiar. Algum príncipe dos tempos atuais, que não convém nomear, não
prega senão a paz e fé, mas de uma e outra é ferrenho inimigo; uma e outra,
se ele as tivesse praticado, ter-lhe-iam por mais de uma vez tolhido a reputação
ou o Estado.
CAPÍTULO XIX
DE COMO SE DEVA EVITAR O SER DESPREZADO E ODIADO
(DE CONTEMPTU ET ODIO FUGIENDO)
Porque falei das mais importantes das qualidades
acima mencionadas, desejo discorrer rapidamente sobre as outras, sob estas
generalidades: que o príncipe pense (como acima se disse em parte) em fugir àquelas
circunstâncias que possam torná-lo odioso e desprezível; sempre que assim
proceder, terá cumprido o que lhe compete e não encontrará perigo algum nos
outros defeitos. Odioso o tornará, acima de tudo, como já disse, o ser rapace
e usurpador dos bens e das mulheres dos súditos, do que se deve abster; e,
desde que não se tirem nem os bens nem a honra à universalidade dos homens,
estes vivem felizes e somente se terá de combater a ambição de poucos, o que
se refreia por muitos modos e com facilidade. Desprezível o torna ser
considerado volúvel, leviano, efeminado, pusilânime, irresoluto, do que um príncipe
deve guardar-se como de um escolho, empenhando-se para que nas suas ações se
reconheça grandeza, coragem, gravidade e fortaleza; com relação às ações
privadas dos súditos, deve querer que a sua sentença seja irrevogável; deve
manter-se em tal conceito que ninguém possa pensar em enganá-lo ou traí-lo.
O príncipe que dá de si esta opinião é assaz
reputado e, contra quem é reputado, só com muita dificuldade se conspira;
dificilmente é atacado, desde que se considere excelente e seja reverenciado
pelos seus. Na verdade, um príncipe deve ter dois temores: um de ordem interna,
de parte de seus súditos, o outro de natureza externa, de parte dos potentados
estrangeiros. Destes se defende com boas armas e bons amigos; e sempre que tenha
boas armas terá bons amigos. A situação interna, desde que ainda não
perturbada por uma conspiração, estará segura sempre que esteja estabilizada
a externa; mesmo quando esta se agite, se o príncipe organizou-se e viveu como
eu já disse, desde que não desanime, resistirá a qualquer impacto, como
salientei ter feito o espartano Nábis.
Mas, a respeito dos súditos, quando os negócios
externos não se agitam, deve-se temer que conspirem secretamente, contra o que
o príncipe se assegura firmemente fugindo de ser odiado ou desprezado e
mantendo o povo com ele satisfeito; isto é de necessidade seja conseguido, como
já acima se falou longamente. Um dos mais poderosos remédios de que um príncipe
pode dispor contra as conspirações é não ser odiado pela maioria, porque
sempre, quem conjura, pensa com a morte do príncipe satisfazer o povo, mas,
quando considera que com isso irá ofendê-lo, não se anima a tomar semelhante
partido, mesmo porque as dificuldades com que os conspiradores têm de se
defrontar são infinitas. Por experiência vê-se que muitas foram as conspirações
mas poucas tiveram bom fim, pois quem conspira não pode ser sozinho, nem pode
ter por companheiros senão aqueles que acredite estarem descontentes; mas, logo
que tenhas revelado a um descontente a tua intenção, lhe dás motivo para
ficar contente porque, evidentemente, ele pode daí esperar todas as vantagens;
de forma que, vendo o ganho certo de um lado, sendo o outro dúbio e cheio de
perigo, é preciso seja ou extraordi 112 nário amigo teu ou implacável inimigo
do príncipe para manter-te a palavra empenhada.
Para reduzir o assunto a termos breves, digo que
do lado do conspirador não existe senão medo, ciúme, suspeita de castigo que
o atordoa; mas, do lado do príncipe, existe a majestade do principado, as leis,
as barreiras dos amigos e do Estado que o defendem; consequentemente, somada a
tais fatores a benevolência popular, é impossível exista alguém tão temerário
que venha a conspirar. Isso porque, geralmente, onde um conspirador teme antes
da execução do mal, se tiver o povo por inimigo, deve temer ainda mesmo depois
de ocorrido o fato, não podendo por isso esperar qualquer amparo.
Deste assunto poder-se-ia citar inúmeros
exemplos; porém, limito-me a apenas um, conservado pela recordação de nossos
pais. Tendo sido messer Aníbal Bentivoglio, príncipe em Bolonha e avô
do atual messer Aníbal, morto pelos caneschi que contra ele haviam
conspirado, não restando de sua família senão messer Giovanni que era
ainda criança de colo, logo após esse homicídio o povo levantou-se e matou
todos os canneschi. Isso resultou da benquerença popular que a casa de
Bentivoglio desfrutava naqueles tempos, benquerença essa tão grande que, não
restando em Bolonha qualquer membro dessa família em condições de poder
governar o Estado após a morte de Anibal e constando haver em Florença um
descendente dos Bentivoglio que se julgava até então filho de um artífice, os
bolonheses foram até essa cidade e lhe confiaram o governo daquela comunidade,
a qual foi por ele dirigida até que messer Giovanni atingisse a idade
conveniente para governar.
Concluo, portanto, que um príncipe deve dar
pouca importância às conspirações se o povo lhe é benévolo; mas quando
este lhe seja adverso e o tenha em ódio, deve temer tudo e a todos. Os Estados
bem organizados e os príncipes hábeis têm com toda a diligência procurado não
desesperar os grandes e satisfazer o povo conservando-o contente, mesmo porque
este é um dos mais importantes assuntos de que um príncipe tenha de tratar.
Entre os reinos bem organizados e governados nos
nossos tempos está aquele de França. Nele existem inúmeras boas instituições,
das quais dependem a liberdade e a segu 113 rança do rei; a primeira delas é o
Parlamento com a sua autoridade. Aquele que organizou esse reino, conhecendo a
ambição dos poderosos e a sua insolência, julgando ser necessário pôr um
freio para corrigi-los e, de outra parte, por conhecer o ódio da maioria contra
os grandes com base no medo, desejando protegê-la mas não querendo fosse este
particular cuidado do rei, buscou dele retirar o peso da odiosidade dos grandes
em sendo favorecido o povo ou deste ao dever apoiar os grandes; por isso,
constituiu um terceiro juiz que fosse aquele que, sem responsabilidade do rei,
contivesse os grandes e amparasse os pequenos. Essa ordem não podia ser melhor
nem mais prudente, nem se pode negar seja a maior razão da segurança do rei e
do reino. Daí pode-se extrair outra conclusão digna de nota: os príncipes
devem atribuir a outrem as coisas odiosas, reservando para si aquelas de graça.
Novamente concluo que um príncipe deve estimar os grandes, mas não se fazer
odiado pelo povo.
Talvez a muitos pudesse parecer, considerando a
vida e a morte de alguns imperadores romanos, fossem elas exemplos contrários
à minha opinião, dado que viveram exemplarmente e demonstraram grandes
virtudes e, sem embargo disso, perderam o Império ou mesmo foram mortos pelos
seus que contra eles conspiraram. Querendo, portanto, responder a estas objeções,
falarei das qualidades de alguns imperadores, mostrando as causas de sua ruína,
não discrepantes daquilo que foi por mim aduzido, ao mesmo tempo, porei em
consideração aqueles fatos que são notáveis para quem lê as ações
daqueles tempos. Considero suficiente citar todos os imperadores que se
sucederam no poder, desde Marco o filósofo até Maximino, os quais foram Marco,
seu filho Cômodo, Pertinax, Juliano, Severo, seu filho Antonino Caracala,
Macrino, Heliogábalo, Alexandre e Maximino.
Deve-se notar inicialmente que, enquanto nos
outros principados tem-se de lutar apenas contra a ambição dos grandes e a
insolência do povo, os imperadores romanos encontravam uma terceira
dificuldade, aquela de terem de suportar a crueldade e a ambição dos soldados.
Esta terceira dificuldade era de tal forma séria que se tornou a causa da ruína
de muitos, pois é difícil satisfazer ao mesmo tempo os soldados e o povo: este
amava a paz e, por isso, estimava os príncipes moderados, enquanto que os
soldados amavam o príncipe de ânimo militar, que fosse insolente, cruel e
rapace, querendo que o mesmo exercesse tais violências contra as populações
para poder ter, assim, duplicado soldo e expansão à sua rapacidade e
crueldade.
Tais fatos fizeram com que aqueles imperadores
que, por natureza ou por engenho, não desfrutavam uma grande reputação de
forma a poder manter freados um e outros, sempre se arruinassem; a maioria
deles, principalmente aqueles que como homens novos chegavam ao principado,
conhecida a dificuldade que resultava desses dois sentimentos diversos,
propendiam para satisfazer aos soldados, pouco se preocupando com o fato de por
tal forma ofender o povo. Esse partido era necessário: porque, não podendo o
príncipe deixar de ser odiado por alguém, deve primeiro buscar não ser odiado
por qualquer classe social; mas, quando não pode conseguir isto, deve
empenhar-se em, por todos os meios, evitar o ódio daquelas classes que são
mais poderosas. Por isso, aqueles imperadores que, por serem novos, tinham
necessidade de favores extraordinários, aderiam antes aos soldados que ao povo,
o que, não obstante, se lhes tornava útil ou não, conforme soubessem ou não
conservar-se reputados entre eles.
Das razões mencionadas, resultou que Marco,
Pertinax e Alexandre, todos eles de vida modesta, amantes da justiça, inimigos
da crueldade, humanos e benignos, tiveram, a partir de Marco, triste fim.
Somente Marco viveu e morreu honradíssimo, visto ter sucedido no império jure
hereditário não tendo de agradecê-lo nem aos soldados nem ao povo;
depois, sendo dotado de muitas virtudes que o faziam venerando, teve sempre,
enquanto viveu, uma ordem e outra dentro de seus limites, não sendo jamais
odiado ou desprezado. Mas Pertinax, tornado imperador contra a vontade dos
soldados que, acostumados a viver licenciosamente sob Cômodo, não puderam
suportar aquela vida honesta a que o imperador queria reduzi-los; por isso,
tendo Pertinax criado ódio contra si e a este ódio acrescido o desprezo por
ser já velho, arruinou-se logo no início de sua administração.
Deve-se notar aqui que o ódio se adquire tanto
pelas boas como pelas más ações: como já disse acima, querendo um príncipe
conservar o Estado, freqüentemente é forçado a não ser bom, pois quando
aquele elemento mais forte, povo, soldados ou grandes, de que julgas necessitar
para manter-te, é corrompido, convém que sigas o seu desejo para satisfazê-lo;
então, as boas obras tornam-se tuas inimigas. Mas passemos a Alexandre, o qual
foi de tanta bondade que, entre outros louvores que lhe são endereçados,
existe este de que, em quatorze anos que conservou o poder, não foi executada
qualquer pessoa sem julgamento; contudo, sendo considerado efeminado e homem que
se deixava governar pela mãe, tornou-se desprezado, o exército conspirou e ele
foi morto.
Falando agora, por outro lado, das qualidades de
Cômodo, Severo, Antonino Caracala e Maximino, os achareis extremamente cruéis
e rapaces: para satisfazer os soldados, não pouparam nenhuma espécie de injúria
que pudesse ser cometida contra o povo; todos, exceto Severo, tiveram triste
fim. É que Severo possuiu tanto valor que, conservando os soldados como seus
amigos, ainda que o povo fosse por ele oprimido, pode sempre reinar com
felicidade, pois aquelas suas virtudes o tornavam tão admirável no conceito
dos soldados e do povo, que este ficava por assim dizer atônito e aturdido e
aqueles reverentes e satisfeitos. E, porque as ações do mesmo foram grandes e
notáveis num príncipe novo, desejo mostrar de forma breve quão bem soube usar
a ação da raposa e do leão, naturezas essas que, disse acima, devem ser
imitadas pelos príncipes.
Tendo Severo conhecido a ignávia do Imperador
Juliano, persuadiu seu exército, do qual era capitão na Stiavônia, de que era
conveniente ir a Roma para vingar a morte de Pertinax, assassinado pelos
soldados pretorianos; sob este pretexto, sem demonstrar aspirar o Império,
conduziu o exército contra Roma, chegando à Itália antes que fosse conhecida
sua partida. Estando em Roma, o Senado, por temor, elegeu-o imperador, sendo
morto Juliano. A seguir, restavam a Severo duas dificuldades para se assenhorear
de todo o Estado: uma na Ásia, onde Pescênio Nigro, chefe dos exércitos asiáticos,
se fizera aclamar imperador; a outra no Poente, onde estava Albino que, por sua
vez, também aspirava ao Império. Porque julgasse perigoso revelar-se inimigo
de ambos, deliberou atacar Nigro e enganar Albino a quem escreveu que, tendo
sido pelo Senado eleito imperador, desejava com ele compartilhar aquela
dignidade; enviou-lhe o título de César e, por deliberação do Senado,
tornou-o seu colega. Albino aceitou tais coisas como verdadeiras; mas, depois
que venceu e matou Nigro, pacificados os negócios orientais e retornado a Roma,
Severo queixou-se ao Senado de que Albino, pouco reconhecido dos benefícios
dele recebidos, tinha dolosamente procurado matá-lo, razão pela qual via
necessidade de ir punir sua ingratidão. Depois, foi ao seu encontro na França
e lhe tolheu o governo e a vida.
Quem examinar, portanto, minuciosamente as ações
deste homem, achá-lo-á um ferocíssimo leão e uma astuciosíssima raposa,
ve-lo-á temido e reverenciado por todos e não odiado pelos exércitos, não se
admirando que ele, homem novo, tenha podido deter tanto poder; a sua alta reputação
o defendeu sempre daquele ódio que, pelas suas rapinagens, o povo contra ele
poderia ter concebido. Mas Antonino, seu filho, foi, também ele, homem que
possuía excelentes qualidades que o faziam maravilhoso no conceito do povo e
querido pelos soldados; era um militar que suportava muito bem quaisquer
fadigas, desprezava os alimentos delicados e abominava toda e qualquer frouxidão,
o que o tornava amado por todos os exércitos. Contudo, sua ferocidade e
crueldade foi tanta e tão inaudita, tendo mesmo, depois de inúmeros assassínios
privados, morto grande parte da população de Roma e toda aquela de Alexandria,
que tornou-se extremamente odioso para todo o mundo: começou a ser temido também
por aqueles que o rodeavam, de forma que foi morto por um centurião em meio ao
seu exército.
A propósito do referido, é de notar-se que tais
assassinatos, decorrentes da deliberação de um espírito obstinado, são
impossíveis de evitar por parte dos príncipes, porque todo aquele que não
tema morrer pode golpeá-los. Todavia, o príncipe pouco deve temer, porque tais
mortes são raras. Deve apenas cuidar de não fazer grave injúria a algum
daqueles de que se serve e que tem ao seu derredor no serviço do principado,
como fez Antonino que havia morto vilmente um irmão daquele centurião e ainda
ameaçava este diariamente, enquanto o conservava na sua própria guarda; era
resolução temerária e capaz de destruí-lo, como aconteceu.
Passemos a Cômodo, para quem era de grande
facilidade manter o Império por possuí-lo iure hereditario, uma vez que
era filho de Marco; bastava-lhe seguir as pegadas do pai e teria satisfeito os
soldados e o povo. Mas, sendo de espírito cruel e bestial, para poder usar sua
rapacidade contra o povo, passou a cativar os exércitos e torná-los
licenciosos; por outro lado, não mantendo a sua dignidade, descendo freqüentemente
às arenas para combater com os gladiadores, fazendo outras coisas extremamente
vis e pouco dignas da majestade imperial, tornou-se desprezível no conceito dos
soldados. E, sendo odiado por uns e desprezado por outros, conspiraram contra
ele e foi morto.
Resta-nos narrar as qualidades de Maximino. Este
foi homem belicosíssimo e, estando os exércitos enfastiados da moleza de
Alexandre, de quem falei acima, morto este, elegeram-no para o governo. Maximino
não possuiu o poder por muito tempo, pois duas coisas tornaram-no odiado e
desprezado: uma, o ser de condição extremamente vil, pois já apascentara
ovelhas na Trácia" (fato por todos bastante conhecido e que lhe causava
grande depreciação no conceito geral); a outra, porque, tendo no início de
seu principado retardado em ir a Roma e tomar posse do trono imperial, dera de
si impressão de extremamente cruel, eis que, por intermédio de seus prefeitos,
em Roma e em muitos pontos do Império, praticara numerosas crueldades. De modo
que, agitado todo o mundo pelo desprezo à vileza de seu sangue e tomado de ódio
pelo medo à sua ferocidade, rebelou-se primeiro a África, depois o Senado com
todo o povo de Roma; toda a Itália contra ele conspirou. A esse movimento
juntou-se seu próprio exército que, fazendo campanha em Aquiléia e
encontrando dificuldade no assédio, aborrecido de sua crueldade, temendo menos
por vê-lo com tantos inimigos, matou-o.
Não quero falar nem de Heliogábalo, nem de
Macrino, nem de Juliano, os quais, por serem inteiramente desprezíveis, se
extinguiram logo; passarei, pois, à conclusão deste assunto. Assim, digo que
os príncipes de nossos tempos têm a menos, nos seus governos, esta dificuldade
de satisfazer extraordinariamente aos soldados, eis que, não obstante se deva
ter para com os mesmos alguma consideração, isso se resolve logo, pois nenhum
destes príncipes tem um exército que seja inveterado com os governos e
administrações das províncias, como eram os exércitos do Império Romano.
Porém, se então era necessário mais, aos soldados do que ao povo, isso
decorria de que os soldados podiam mais que aquele; agora é necessário a todos
os príncipes, exceto ao Turco e ao Sultão satisfazer mais ao povo que aos
militares, porque aquele pode mais que estes.
Faço exceção do Turco em razão de ter ele
sempre, em torno de si, doze mil infantes e quinze mil soldados de cavalaria,
dos quais dependem a segurança e o poderio do seu reino; e é necessário que,
postergada qualquer outra consideração, esse senhor os conserve amigos. E
deveis notar que este Estado do Sultão é diverso de todos os outros
principados: ele é semelhante ao pontificado cristão, a que não se pode
chamar nem principado hereditário nem principado novo, posto que não são
filhos do príncipe velho que herdam e se tornam senhores, mas sim aquele eleito
para o posto pelos que têm autoridade. E, sendo esta uma instituição antiga,
não se pode chamar de principado novo, dado que nela não existem algumas das
dificuldades que se encontram nos novos: se bem o príncipe seja novo, as
instituições desse Estado são velhas e ordenadas a recebê-lo como se fosse
seu senhor hereditário.
Retornemos, porém, ao nosso assunto. Digo que
todo aquele que considere o acima exposto verá o ódio ou o desprezo ter sido a
causa da ruína dos imperadores citados e saberá, ainda, porque procedendo uma
parte deles de um modo e a outra parte por forma contrária, em qualquer um
desses modos de agir alguns deles tiveram fim feliz, enquanto os outros
terminaram infelizes. A Pertinax e Alexandre, por serem príncipes novos, foi inútil
e prejudicial querer imitar Marco que se encontrava no principado iure
hereditario; igualmente, a Caracala, Cômodo e Maximino foi pernicioso o
imitar Severo, por não possuírem tanta virtude que fosse bastante para que
pudessem seguir suas pegadas. Portanto, um príncipe novo, num principado novo,
não pode imitar as ações de Marco e tampouco é necessário seguir as de
Severo; deve tomar de Severo aquelas qualidades que forem necessárias para
fundar seu Estado, e de Marco aquelas que forem convenientes e gloriosas para
conservar um governo já estabelecido e firme.
CAPÍTULO XX
SE AS FORTALEZAS E MUITAS OUTRAS COISAS QUE A
CADA DIA SÃO FEITAS PELOS PRÍNCIPES SÃO ÚTEIS OU NÃO
(AN ARCES ET MULTA ALIA QUAE COTIDIE A
PRINCIPIBUS FIUNT UTILIA AN INUTILIA SINT)
Para conservar seguramente o Estado, alguns príncipes
desarmaram os seus súditos, outros mantiveram divididas as terras submetidas,
alguns nutriram inimizades contra si mesmos, outros dedicaram-se a conquistar o
apoio daqueles que lhes eram suspeitos no início de seu governo, alguns construíram
fortalezas, outros as arruinaram e destruíram. E, se bem não seja possível
estabelecer determinado juízo sobre todas essas coisas sem entrar nas
particularidades de cada um dos Estados onde devesse ser tomada alguma dessas
deliberações, falarei de maneira genérica, compatível com o assunto.
Jamais existiu um príncipe novo que desarmasse
os seus súditos, mas, antes, sempre que os encontrou desarmados, armou-os; isto
porque, armando-os, essas armas passam a ser tuas, tornam fiéis aqueles que te
são suspeitos, os que eram fiéis assim se conservam e de súditos tornam-se
teus partidários. E, porque não se pode armar todos os súditos, beneficiados
aqueles que armas, com os outros podes tratar mais seguramente; essa diversidade
de tratamento que reconhecem em seu favor os torna obrigados para contigo e os
outros desculpar-te-ão, julgando ser necessário tenham aqueles mais
recompensas por estarem sujeitos a maiores perigos e maiores obrigações. Mas
quando os desarmas, começas a ofendê-los, mostras deles duvidar, ou por vileza
ou por desconfiança uma ou outra destas opiniões concebe ódio contra ti. E,
por não poderes ficar desarmado, torna-se necessário que te voltes à milícia
mercenária, que é daquela qualidade que já foi dita e, quando fosse boa, não
poderia sê-lo por forma a defender-te dos inimigos poderosos e dos súditos
suspeitos.
Porém, como disse, um príncipe novo num
principado também novo, sempre organizou as forças armadas e destes exemplos a
história está repleta. Mas, quando um príncipe conquista um novo Estado que,
como membro, se agrega ao antigo, então é necessário desarmar o conquistado,
salvo aqueles que, nele, foram teus partidários na conquista; estes mesmos, com
o tempo e a oportunidade, devem ser tornados amolecidos e efeminados,
procedendo-se de modo que as armas fiquem somente em poder de teus próprios
soldados, daqueles que, no Estado antigo, estavam junto de ti.
Os nossos antepassados e aqueles que eram
considerados entendidos costumavam dizer que Pistóia precisava ser mantida pela
divisão do povo e Pisa pelas fortalezas; e, por isso mesmo, em algumas regiões
por eles conquistadas, mantinham as discórdias entre os partidos para dominá-las
mais facilmente. Isto, naqueles tempos em que a Itália apresentava certo equilíbrio,
devia ser útil. Mas não creio se possa admitir tal como preceito hodierno, eis
que não acredito pudessem as divisões, alguma vez, acarretar qualquer benefício;
ao contrário, quando o inimigo se avizinha, as cidades divididas,
necessariamente, perdem-se logo, eis que sempre a parte mais fraca aderirá às
forças externas e a outra não poderá resistir.
Os venezianos, levados pelas razões acima
mencionadas segundo acredito, incentivavam as facções guelfas e gibelinas nas
cidades a eles submetidas; e, se bem nunca as deixassem chegar à luta,
alimentavam entre elas essas divergências para que, ocupados os cidadãos
naquelas suas diferenças, não se unissem contra eles. Isso, como se viu, não
lhes aproveitou porque, derrotados em Vailá, logo algumas daquelas cidades
passaram a se insurgir e lhes tomaram todo o Estado. Tais atitudes revelam
fraqueza do príncipe, eis que em um principado poderoso jamais serão
permitidas semelhantes divisões, úteis somente em tempo de paz, eis que por
elas pode-se mais facilmente manejar os súditos; mas, sobrevindo a guerra, tal
sistema demonstra sua falácia.
Sem dúvida alguma, os príncipes se tornam
grandes quando superam as dificuldades e as oposições que lhes são
antepostas; porém a fortuna, principalmente quando quer tornar grande um príncipe
novo, que tem mais necessidade de adquirir reputação do que um hereditário, o
faz nascer dos inimigos e determina que lhe sejam opostos embaraços, a fim de
que ele tenha oportunidade de superá-los e, assim, possa subir mais alto pela
escada que os inimigos lhe oferecem, Por isso, muitos pensam que um príncipe hábil
deve, quando tenha ocasião, incentivar com astúcia alguma inimizade para,
eliminada esta, continuar a ascensão de sua grandeza.
Os príncipes, particularmente aqueles que são
novos, têm encontrado mais lealdade e maior utilidade nos homens que no início
de seu governo foram considerados suspeitos, do que nos que inicialmente eram
seus confidentes. Pandolfo Petrucci, príncipe de Siena, dirigia o seu Estado
mais com aqueles que lhe foram suspeitos do que com os que não o foram. Mas
deste assunto não é possível falar em caráter genérico, pois o mesmo varia
segundo cada caso. Somente direi isto: os homens que no início de um principado
haviam sido inimigos, sendo de condição que para manter-se precisam de apoio,
o príncipe poderá sempre com grande facilidade vir a conquistá-los; e eles
tanto mais são forçados a servi-lo com lealdade, quanto reconheçam ser-lhes
necessário cancelar com obras aquela má opinião que, a seu respeito, se
fazia. Assim, o príncipe deles obtém sempre maior utilidade do que daqueles
que, servindo-o com excessiva segurança, descuram de seus interesses.
Já que o assunto torna oportuno, não quero
deixar de recordar aos príncipes que tomaram um Estado novo pelo favor de
alguns dos habitantes do mesmo deverem considerar bem qual a razão que
determinou assim agissem os que o favoreceram; se a mesma não é afeição
natural em relação a eles mas sim, se o apoio decorreu do fato dos mesmos não
estarem satisfeitos com o Estado anterior, só com fadiga e grande dificuldade
se poderá conservá-los amigos, dado que é quase impossível possam vir a ser
contentados. E, considerando bem os exemplos que se extraem das coisas antigas e
modernas, em razão disso, ver-se-á ser muito mais fácil ao príncipe tornar
amigos aqueles homens que se contentavam com o regime antigo e, portanto, eram
seus inimigos, que aqueles que, por descontentes, fizeram-se seus amigos e o
favoreceram na conquista.
Tem sido costume dos príncipes, para poder
manter seu Estado mais seguramente, edificar fortalezas que sejam a brida e o
freio postos aos que desejassem enfrentá-los, bem como um refúgio seguro
contra um ataque de surpresa. Eu louvo esse proceder, porque usado desde tempos
remotos; não obstante messer Nicoló Vitelli, nos tempos atuais,
destruiu duas fortalezas na Cidade de Castelo para, assim, conservar o Estado.
Guido Ubaldo, Duque de Urbino, tendo retornado ao seu domínio de que havia sido
expulso por César Bórgia, destruiu desde os alicerces todas as fortalezas
daquela província, por entender que sem aquelas seria mais difícil perder
novamente seu Estado. Os Bentivoglio, retornados a Bolonha, usaram igual
expediente. Portanto, as fortalezas são úteis ou não, segundo os tempos; se
te fazem bem por um lado, prejudicam-te por outro. Pode-se explicar esta
afirmativa pela forma a seguir exposta.
O príncipe que tiver mais temor de seu povo do
que dos estrangeiros, deve construir as fortalezas; mas aquele que sentir mais
medo dos estrangeiros que de seu povo, deve abandoná-las. O castelo de Milão,
edificado por Francisco Sforza, fez e fará mais guerra à casa dos Sforza do
que qualquer outra desordem naquele Estado. Por isso, a melhor fortaleza que
possa existir é o não ser odiado pelo povo: mesmo que tenham fortificações
elas de nada valem se o povo te odeia, eis que a este, quando tome das armas,
nunca faltam estrangeiros que o socorram. Nos nossos tempos vê-se que as
fortalezas não têm sido proveitosas a príncipe algum, senão à Condessa de
Forli quando foi morto o Conde Girolamo, seu esposo, eis que a mesma,
refugiando-se numa fortificação, pode fugir ao ímpeto popular, esperar pelo
socorro de Milão e recuperar o Estado; ademais, as circunstâncias eram tais
que o estrangeiro não podia socorrer o povo. Depois, também para ela pouco
valeram as fortalezas quando César Bórgia a atacou e o povo, seu inimigo,
aliou-se ao estrangeiro. Portanto, teria sido mais seguro para ela, quer então,
quer antes, não ser odiada pelo povo do que possuir fortalezas. Consideradas
assim todas estas questões, louvarei tanto os que fizerem como os que não
fizerem as fortalezas e censurarei aquele que, fiando-se nas fortificações,
venha a subestimar o fato de ser odiado pelo povo.
CAPÍTULO XXI
O QUE CONVÉM A UM PRÍNCIPE PARA SER ESTIMADO
(QUOD PRINCIPEM DECEAT UT EGREGIUS HABEATUR)
Nada faz estimar tanto um príncipe como as
grandes empresas e o dar de si raros exemplos. Temos, nos nossos tempos,
Fernando de Aragão, atual rei de Espanha. A este pode-se chamar, quase, príncipe
novo, porque de um rei fraco tornou-se, por fama e por glória, o primeiro rei
dos cristãos; e, se considerardes suas ações, as achareis todas grandiosas e
algumas mesmo extraordinárias. No começo de seu reinado, assaltou Granada e
esse empreendimento foi o fundamento de seu Estado. Primeiro ele o fez
isoladamente, sem luta com outros Estados e sem receio de ser impedido de tal;
manteve ocupadas nesse empreendimento as atenções dos barões de Castela que,
pensando na guerra, não cogitavam de inovações e ele, por esse meio, adquiria
reputação e autoridade sobre os mesmos sem que de tal se apercebessem. Pode
manter exércitos com dinheiro da Igreja e do povo e, com tão longa campanha,
estabeleceu a organização de sua milícia que, depois, tanto o honrou. Além
disto, para poder encetar maiores empreendimentos, servindo-se sempre da religião,
dedicou-se a uma piedosa crueldade expulsando e livrando seu reino dos marranos,
ação de que não pode haver exemplo mais miserável nem mais raro. Sob essa
mesma capa, atacou a África, fez a campanha da Itália e, ultimamente, assaltou
a França; assim, sempre fez e urdiu grandes empreendimentos, os quais em todo o
tempo mantiveram suspensos e admirados os ânimos dos súditos, ocupados em
esperar o êxito dessas guerras. Essas suas ações nasceram umas das outras,
pelo que, entre elas, não houve tempo para que os homens pudessem agir contra
ele.
Muito apraz a um príncipe dar de si exemplos
raros na forma de comportar-se com os súditos, semelhantes àqueles que são
narrados de messer Barnabò de Milão, quando surge a oportunidade de
alguém ter realizado alguma coisa extraordinária de bem ou de mal na vida
civil, obtendo meio de premiá-lo ou puni-lo por forma que seja bastante
comentada, Acima de tudo, um príncipe deve empenhar-se em dar de si, com cada ação,
conceito de grande homem e de inteligência extraordinária.
Um príncipe é estimado, ainda, quando
verdadeiro amigo e vero inimigo, isto é, quando sem qualquer consideração se
revela em favor de um, contra outro. Esta atitude é sempre mais útil do que
ficar neutro, eis que, se dois poderosos vizinhos teus entrarem em luta, ou são
de qualidade que vencendo um deles tenhas a temer o vencedor, ou não. Em
qualquer um destes dois casos será sempre mais útil o definir-te e fazer
guerra digna, porque no primeiro caso se não te definires serás sempre presa
do que vencer, com prazer e satisfação do que foi vencido, e não terás razão
ou coisa alguma que te defenda nem quem te receba. O vencedor não quer amigos
suspeitos ou que não o ajudem nas adversidades; quem perde não te recebe por não
teres querido correr a sua sorte de armas em punho.
Antíoco invadiu a Grécia a chamado dos etólios
para expulsar os romanos. Enviou embaixadores aos aqueus, amigos dos romanos,
para concitá-los a ficarem neutros, enquanto os romanos os persuadiam a tomar
armas ao seu lado. Esta matéria veio à deliberação do congresso dos aqueus,
onde o legado de Antíoco os induzia à neutralidade; a isto, o representante
romano respondeu: Quod autem isti dicunt non interponendi vos bello, nihil
magis alienum rebus vestris est; sine gratia, sine dignitate, praemium victoris
eritis.
Sempre acontecerá que aquele que não é amigo
procurará tua neutralidade e aquele que é amigo pedirá que te definas com as
armas. Os príncipes irresolutos, para fugir aos perigos presentes, seguem na
maioria das vezes o caminho da neutralidade e, geralmente, caem em ruína. Mas,
quando o príncipe se define galhardamente em favor de uma das partes, se aquele
a quem aderes vence, mesmo que seja tão poderoso que venhas a ficar á sua
discrição, ele tem obrigação para contigo e está ligado a ti pela amizade;
e os homens nunca são tão desonestos que, com tamanha prova de ingratidão,
possas vir a ser oprimido.
Além disso, as vitórias nunca são tão
brilhantes que o vencedor não deva ter qualquer consideração, principalmente
para com o que é justo. Mas, se aquele a quem aderes perder, serás amparado
por ele e, enquanto puder, ajudar-te-á e ficarás associado a uma fortuna que
poderá ressurgir. No segundo caso, quando aqueles que lutam são de classe que
não devas temer o vencedor, ainda maior prudência é aderir, pois causas a ruína
de um com a ajuda de quem deveria salvá-lo, se fosse sábio; vencendo, fica à
tua mercê, e é impossível não vença com o teu auxílio.
Note-se aqui que um príncipe deve ter a cautela
de jamais fazer aliança com um mais poderoso que ele para atacar os outros, senão
quando a necessidade o compelir, como se disse acima, porque, vencendo, torna-se
seu prisioneiro; e os príncipes devem fugir o quanto possam de ficar à discrição
dos outros. Os venezianos aliaram-se à França contra o duque de Milão,
podendo ter evitado essa aliança de que resultou a sua ruína. Mas, quando não
se pode evitá-la (como aconteceu aos florentinos quando o Papa e a Espanha
levaram seus exércitos a atacar a Lombardia), então deverá o príncipe aderir
pelas razões acima expostas. Nem julgue algum Estado poder adotar sempre
partidos seguros, devendo antes pensar ser obrigado a tomar, freqüentemente,
partidos duvidosos; vê-se na ordem das coisas que nunca se procura fugir a um
inconveniente sem incorrer em outro e a prudência consiste em saber conhecer a
natureza desses inconvenientes e tomar como bom o menos prejudicial.
Deve, ainda, um príncipe mostrar-se amante das
virtudes, dando oportunidade aos homens virtuosos e honrando os melhores numa
arte. Ao mesmo tempo, deve animar os seus cidadãos a exercer pacificamente as
suas atividades no comércio, na agricultura e em qualquer outra ocupação, de
forma que o agricultor não tema ornar as suas propriedades por receio de que as
mesmas lhe sejam tomadas, enquanto o comerciante não deixe de exercer o seu comércio
por medo das taxas; deve, além disso, instituir prêmios para os que quiserem
realizar tais coisas e os que pensarem em por qualquer forma engrandecer a sua
cidade ou o seu Estado. Ademais, deve, nas épocas convenientes do ano, distrair
o povo com festas e espetáculos. E, porque toda cidade está dividida em
corporações de artes ou grupos sociais, deve cuidar dessas corporações e
desses grupos, reunir-se com eles algumas vezes, dar de si prova de humanidade e
munificência, mantendo sempre firme, não obstante, a majestade de sua
dignidade, eis que esta não deve faltar em coisa alguma.
CAPÍTULO XXII
DOS SECRETÁRIOS QUE OS PRÍNCIPES TÊM JUNTO DE
SI
(DE HIS QUOS A SECRETIS PRINCIPES HABENT)
Não é de pouca importância para um príncipe a
escolha dos ministros, os quais são bons ou não, segundo a prudência daquele.
E a primeira conjetura que se faz da inteligência de um senhor, resulta da
observação dos homens que o cercam; quando são capazes e fiéis, sempre se
pode reputá-lo sábio, porque soube reconhecê-los competentes e conservá-los.
Mas, quando não são assim, sempre se pode fazer mau juízo do príncipe,
porque o primeiro erro por ele cometido reside nessa escolha, Não houve ninguém
que, conhecendo messer Antônio de Venafro como ministro de Pandolfo
Petruci, príncipe de Siena, deixasse de julgar este senhor como extremamente
valoroso pelo fato de ter aquele por ministro. E, porque são de três espécies
as inteligências, uma que entende as coisas por si, a outra que discerne o que
os outros entendem e a terceira que não entende nem por si nem por intermédio
dos outros, a primeira excelente, a segunda muito boa e a terceira inútil,
estavam todos acordes que se Pandolfo não se classificava no primeiro grau,
estava, necessariamente, no segundo; porque, toda vez que alguém tem a
capacidade de conhecer o bem e o mal que uma pessoa faça ou diga, mesmo que por
si não tenha capacidade para solucionar os problemas, discerne as más e as
boas obras do ministro, exalta estas e corrige aquelas, e o ministro não pode
esperar enganá-lo, pelo que se conserva bom.
Mas, para que um príncipe possa conhecer o
ministro, existe um método que não falha. Quando vires o ministro pensar mais
em si do que em ti, e que em todas as ações procura o seu interesse próprio,
podes concluir que este jamais será um bom ministro e nele nunca poderás
confiar; aquele que tem o Estado de outrem em suas mãos não deve pensar nunca
em si, mas sim e sempre no príncipe, não lhe recordando nunca coisa que não
seja da sua competência. Por outro lado, o príncipe, para conservá-lo bom
ministro, deve pensar nele, honrando-o, fazendo-o rico, obrigando-se-lhe,
fazendo-o participar das honrarias e cargos, a fim de que veja que não pode
ficar sem sua proteção, e que as muitas honras não o façam desejar mais
honras, as muitas riquezas não o façam desejar maiores riquezas e os muitos
cargos o façam temer as mudanças. Quando, pois, os ministros, e os príncipes
com relação àqueles, estão assim preparados, podem confiar um no outro;
quando não for assim, o fim será sempre danoso ou para um ou para o outro.
CAPÍTULO XXIII
COMO SE AFASTAM OS ADULADORES
(QUOMODO ADULATORES SINT FUGIENDI)
Não quero deixar de tratar de um ponto
importante, de um erro do qual os príncipes só com muita dificuldade se
defendem, se não são de extrema prudência ou se não fazem boa escolha.
Refiro-me aos aduladores, dos quais as cortes estão repletas, dado que os
homens se comprazem tanto nas suas coisas próprias e de tal modo se iludem, que
com dificuldade se defendem desta peste e, querendo defender-se, há o perigo de
tornar-se menosprezado. Não há outro meio de guardar-se da adulação, a não
ser fazendo com que os homens entendam que não te ofendem dizendo a verdade;
mas, quando todos podem dizer-te a verdade, passam a faltar-te com a reverência.
Portanto, um príncipe prudente deve proceder por
uma terceira maneira, escolhendo em seu Estado homens sábios e somente a eles
deve dar a liberdade de falar-lhe a verdade daquilo que ele pergunte e nada
mais. Deve consultá-los sobre todos os assuntos e ouvir as suas opiniões;
depois, de liberar por si, a seu modo, e, com estes conselhos e com cada um
deles, portar-se de forma que todos compreendam que quanto mais livremente
falarem, tanto mais facilmente serão aceitas suas opiniões. Fora aqueles, não
querer ouvir ninguém, seguir a deliberação adotada e ser obstinado nas suas
decisões. Quem procede por outra forma, ou é precipitado pelos aduladores, ou
muda freqüentemente de opinião pela variedade dos pareceres; daí resulta a
sua desestima.
Quero, a este propósito, aduzir um exemplo
atual. Pe. Lucas, homem do atual Imperador Maximiliano, falando de Sua
Majestade, disse que ele não se aconselhava com ninguém e não fazia nada a
seu modo; isso resultava de ter costume contrário ao acima exposto. Porque o
Imperador é homem discreto, não comunica a ninguém os seus desígnios, não
pede parecer; mas, como ao serem postos em prática começam a ser conhecidos e
descobertos, começam, a ser contrariados por aqueles que o cercam, e ele, como
é homem de opinião fraca, os desfaz. Dai resulta que as coisas que faz num dia
são destruídas no outro e que não se entenda nunca o que ele quer ou o que
deseja fazer, não podendo pessoa alguma basear-se em suas deliberações.
Um príncipe, portanto, deve aconselhar-se
sempre, mas quando ele queira e não quando os outros desejem; antes, deve
tolher a todos o desejo de aconselhar-lhe alguma coisa sem que ele venha a
pedir. Mas deve ser grande perguntador e, depois, acerca das coisas perguntadas,
paciente ouvinte da verdade; antes, notando que alguém por algum respeito não
lhe diga a verdade, deve mostrar aborrecimento. Há muitos que entendem que o príncipe
que dá de si opinião de prudente, seja assim considerado não pela sua
natureza, mas pelos bons conselhos que o rodeiam, porém, sem dúvida alguma,
estão enganados, eis que esta é uma regra geral que nunca falha: um príncipe
que não seja sábio por si mesmo, não pode ser bem aconselhado, a menos que
por acaso confiasse em um só que de todo o governasse e fosse homem de extrema
prudência. Este caso poderia bem acontecer, mas duraria pouco, porque aquele
que efetivamente governasse, em pouco tempo lhe tomaria o Estado; mas,
aconselhando-se com mais de um, um príncipe que não seja sábio, não terá
nunca os conselhos uniformes e não saberá por si mesmo harmonizá-los. Cada
conselheiro pensará por si e ele não saberá corrigi-los nem inteirar-se do
assunto. E não é possível encontrar conselheiros diferentes, porque os homens
sempre serão maus se por uma necessidade não forem tornados bons.
Consequentemente se conclui que os bons conselhos, venham de onde vierem, devem
nascer da prudência do príncipe, e não a prudência do príncipe resultar dos
bons conselhos.
CAPÍTULO XXIV
POR QUE OS PRÍNCIPES DA ITÁLIA PERDERAM SEUS
ESTADOS
(CUR ITALIAE PRINCIPES REGNUM AMISERUNT)
As coisas já referidas, observadas
prudentemente, fazem um príncipe novo parecer antigo e logo o tornam mais
seguro e mais firme no Estado do que se aí fosse um príncipe antigo. Porque um
príncipe novo é muito mais observado nas suas ações do que um hereditário;
e, quando estas são reconhecidas como virtuosas, atraem mais fortemente os
homens e os ligam a si muito mais que a tradição do sangue. Porque os homens são
levados muito mais pelas coisas presentes do que pelas passadas e, quando nas
presentes encontram o bem, ficam satisfeitos e nada mais procuram. Antes,
assumirão toda sua defesa, desde que não falte à palavra nas outras coisas.
Assim, terá a dupla glória de ter dado início a um principado novo e de tê-lo
ornado e fortalecido com boas leis, boas armas e bons exemplos; por outro lado,
aquele que, tendo nascido príncipe, veio a perder o Estado por sua pouca prudência,
terá duplicada a sua vergonha.
E, se se consideraram aqueles senhores que, na Itália,
perderam seus Estados nos nossos tempos, como o rei de Nápoles, o duque de Milão
e outros, achar-se-á neles, primeiro um defeito comum quanto às armas, pelas
razões que já foram expostas; depois, ver-se-á que alguns deles, ou tiveram a
inimizade do povo, ou, tendo o povo por amigo, não souberam garantir-se contra
os grandes, eis que sem estes defeitos não se perdem os Estados que tenham
tanta força que possam levar a campo um exército. Felipe da Macedônia, não o
pai de Alexandre, mas o que foi vencido por Tito Quinto, tinha um Estado não
muito extenso, em comparação com a grandeza dos romanos e da Grécia que o
assaltaram; não obstante, por ser homem de espírito militar, que sabia ter o
povo como amigo e garantir-se contra os grandes, sustentou por muitos anos a
guerra contra aqueles; e se, afinal, perdeu o domínio de algumas cidades,
restou-lhe todavia o reino.
Portanto, estes nossos príncipes que tinham
permanecido muitos anos em seus principados para depois perdê-los, não podem
acusar a sorte, mas sim a sua própria ignávia, pois, não tendo nunca, nos
tempos pacíficos, pensado que estes poderiam mudar (o que é defeito comum dos
homens na bonança não se preocupar com a tempestade) quando chegaram os tempos
adversos preocuparam-se em fugir e não em defender-se, esperando que as populações,
cansadas da insolência dos vencedores, os chamassem de volta. Esse partido é
bom quando os outros falham, mas é muito mau o ter abandonado os outros remédios
por esse, pois não irás cair apenas por acreditar encontrar quem te levante;
isso não acontece ou, se acontecer, não será para tua segurança, dado que
aquela defesa torna-se vil se não depender de ti. As defesas somente são boas,
certas e duradouras quando dependem de ti próprio e da tua virtude.
CAPÍTULO XXV
DE QUANTO PODE A FORTUNA NAS COISAS HUMANAS E DE
QUE MODO SE LHE DEVA RESISTIR
(QUANTUM FORTUNA IN REBUS HUMANIS POSSIT, ET
QUOMODO ILLI SIT OCCURREN DUM)
Não ignoro que muitos têm tido e têm a opinião
de que as coisas do mundo sejam governadas pela fortuna e por Deus, de forma que
os homens, com sua prudência, não podem modificar nem evitar de forma alguma;
por isso poder-se-ia pensar não convir insistir muito nas coisas, mas deixar-se
governar pela sorte. Esta opinião tornou-se mais aceita nos nossos tempos pela
grande modificação das coisas que foi vista e que se observa todos os dias,
independente de qualquer conjetura humana. Pensando nisso algumas vezes, em
parte inclinei-me em favor dessa opinião. Contudo, para que o nosso livre arbítrio
não seja extinto, julgo poder ser verdade que a sorte seja o árbitro da metade
das nossas ações, mas que ainda nos deixe governar a outra metade, ou quase.
Comparo-a a um desses rios torrenciais que, quando se encolerizam, alagam as
planícies, destróem as árvores e os edifícios, carregam terra de um lugar
para outro; todos fogem diante dele, tudo cede ao seu ímpeto, sem poder opor-se
em qualquer parte. E, se bem assim ocorra, isso não impedia que os homens,
quando a época era de calma, tomassem providências com anteparos e diques, de
modo que, crescendo depois, ou as águas corressem por um canal, ou o seu ímpeto
não fosse tão desenfreado nem tão danoso.
Da mesma forma acontece com a sorte, a qual
demonstra o seu poderio onde não existe virtude preparada para resistir e, aí,
volta seu ímpeto em direção ao ponto onde sabe não foram construídos diques
e anteparos para contê-la, E, se considerardes a Itália, que é a sede destas
variações e aquela que lhes deu motivo, vereis ser ela uma região sem diques
e sem qualquer anteparo, eis que se protegida por convenientes forças
militares, como a Alemanha, a Espanha e a França, ou esse transbordamento não
teria feito as grandes alterações que fez, ou não teria ocorrido. Penso que
isto seja suficiente quanto ao que tinha a dizer acerca da oposição que se
pode antepor à sorte em geral.
Mas, restringindo-me mais ao particular, digo por
que se vê um príncipe hoje em franco e feliz progresso e amanhã em ruína,
sem que tenha mudado sua natureza ou as suas qualidades; isso resulta, segundo
creio, primeiro das razões que foram longamente expostas mais atrás, isto é,
que o príncipe que se apoia totalmente na sorte arruina-se segundo as variações
desta. Creio, ainda, seja feliz aquele que acomode o seu modo de proceder com a
natureza dos tempos, da mesma forma que penso seja infeliz aquele que, com o seu
proceder, entre em choque com o momento que atravessa.
Isso decorre de ver-se que os homens, naquilo que
os conduz ao fim que cada um tem por objetivo, isto é, glórias e riquezas,
procedem por formas diversas: um com cautela, o outro com ímpeto, um com violência,
o outro com astúcia, um com paciência e o outro por forma contrária; e cada
um, por esses diversos meios, pode alcançar o objetivo.
Vê-se, ainda, de dois indivíduos cautos, um
alcançar o seu objetivo, o outro não, e da mesma maneira, dois deles alcançarem
igualmente fim feliz com duas tendências diversas, sendo, por exemplo, um
cauteloso e o outro impetuoso; isso resulta apenas da natureza dos tempos que se
adaptam ou não ao proceder dos mesmos. Daí decorre aquilo que eu disse, isto
é, que dois indivíduos agindo por formas diversas podem alcançar o mesmo
efeito, ao passo que de dois que operem igualmente, um alcança o seu fim e o
outro não.
Disto depende, ainda, a variação do conceito de
bem, porque, se alguém se orienta com prudência e paciência e os tempos e as
situações se apresentam de modo a que a sua orientação seja boa, ele alcança
a felicidade; mas, se os tempos e as circunstâncias se modificam, ele se
arruina, visto não ter mudado seu modo de proceder. Nem é possível encontrar
homem tão prudente que saiba acomodar-se a isso, seja porque não pode se
desviar daquilo a que a natureza o inclina, seja ainda porque, tendo alguém
prosperado seguindo sempre por um caminho, não se consegue persuadi-lo de
abandoná-lo. Por isso, o homem cauteloso, quando é tempo de passar para o ímpeto,
não sabe fazê-lo e, em conseqüência, cai em ruína, dado que se mudasse de
natureza de acordo com os tempos e com as coisas, a sua fortuna não se
modificaria.
O Papa Júlio II, em todas as suas coisas
procedeu impetuosamente e encontrou tanto os tempos como as circunstâncias
coincidentes com aquele seu modo de proceder, pelo que sempre alcançou feliz êxito.
Considerai a primeira campanha que encetou contra Bolonha, sendo ainda vivo messer
Giovanni Bentivoglio. Os venezianos estavam descontentes; o rei da Espanha, nas
mesmas condições; com a França ainda discutia tal empresa. Isso não
obstante, com ferocidade e ímpeto, deu início pessoalmente àquela expedição
que, uma vez iniciada, fez com que ficassem suspensos e parados tanto a Espanha
como os venezianos, estes por medo, aquela pelo desejo de recuperar todo o reino
de Nápoles, de outra parte, arrastou consigo o rei de França porque, vendo-o
esse rei em campanha e desejando torná-lo seu amigo para aviltar os venezianos,
julgou não poder negar-lhe a sua gente sem injuriá-lo por forma manifesta.
Realizou Júlio, portanto, com seu movimento
impetuoso, aquilo que jamais outro pontífice, com toda a humana prudência,
teria feito, pois se ele, para partir de Roma, tivesse esperado estar com todos
os planos estabelecidos e todas as coisas assentadas, como qualquer outro Papa
teria feito, nunca teria obtido êxito, eis que o rei de França teria
apresentado mil desculpas e os outros lhe teriam incutido mil receios. Desejo
omitir as outras suas ações, todas semelhantes e todas com feliz êxito, sendo
que a brevidade da vida não o deixou experimentar o contrário, dado que se
tivessem sobrevindo tempos em que se tornasse necessário agir com cautelas,
surgiria a sua ruína, pois jamais ele teria desviado daquele modo de proceder a
que a natureza o inclinava.
Concluo, pois, que variando a sorte e
permanecendo os homens obstinados nos seus modos de agir, serão felizes
enquanto aquela e estes sejam concordes e infelizes quando surgir a discordância.
Considero seja melhor ser impetuoso do que dotado de cautela, porque a fortuna
é mulher e consequentemente se torna necessário, querendo dominá-la,
bater-lhe e contrariá-la; e ela mais se deixa vencer por estes do que por
aqueles que procedem friamente. A sorte, porém, como mulher, sempre é amiga
dos jovens, porque são menos cautelosos, mais afoitos e com maior audácia a
dominam.
CAPÍTULO XXVI
EXORTAÇÃO PARA PROCURAR TOMAR A ITÁLIA E
LIBERTÁ-LA DAS MÃOS DOS BÁRBAROS
(EXHORTATIO AD CAPESSENDAM ITALIAM IN
LIBERTATEMQUE A BARBARIS VINDICANDAM)
Consideradas pois, todas as coisas já expostas,
pensando comigo mesmo se no momento presente, na Itália, corriam tempos capazes
de honrar um príncipe novo e se havia matéria que assegurasse a alguém,
prudente e valoroso, a oportunidade de nela introduzir nova organização que a
ele desse honra e fizesse bem a todo o povo, quer me parecer concorrerem tantas
circunstâncias favoráveis a um príncipe novo que não sei qual o tempo que
poderia ser mais adequado para isto. E se, como já disse, para se conhecer a
virtude de Moisés foi necessário que o povo de Israel estivesse escravizado no
Egito, para conhecer a grandeza do ânimo de Ciro, que os persas fossem
oprimidos pelos medas, e o valor de Teseu, que os atenienses estivessem
dispersos, também no presente, querendo conhecer a virtude de um espírito
italiano, seria necessário que a Itália se reduzisse ao ponto em que se
encontra no momento, que ela fosse mais escravizada do que os hebreus, mais
oprimida do que os persas, mais desunida do que os atenienses, sem chefe, sem
ordem, batida, espoliada, lacerada, invadida, e tivesse suportado ruína de toda
sorte.
Se bem tenha surgido, até aqui, certo vislumbre
de esperança em relação a algum príncipe, parecendo poder ser julgado como
dirigido por Deus para redenção da Itália, contudo foi visto depois como, no
apogeu de suas ações, foi abandonado pela sorte. De modo que, tornada sem
vida, espera ela por aquele que cure as suas feridas e ponha fim aos saques da
Lombardia, às mortandades no Reino de Nápoles e na Toscana, e a cure daquelas
suas chagas já de há muito enfistuladas. Vê-se como ela implora a Deus lhe
envie alguém que a redima dessas crueldades e insolências bárbaras. Vê-se,
ainda, toda ela pronta e disposta a seguir uma bandeira, desde que haja quem a
empunhe.
Nem se vê no presente em quem possa ela confiar
a não ser na vossa ilustre casa, a qual, com a sua fortuna e virtude,
favorecida por Deus e pela Igreja, da qual é agora príncipe, poderá tornar-se
chefe desta redenção. Isso não será muito difícil, se procurardes seguir as
ações e a vida dos acima indicados. E, se bem aqueles homens sejam raros e
maravilhosos, sem dúvida foram homens, todos eles tiveram menor ocasião que a
presente: porque os empreendimentos dos mesmos não foram mais justos nem mais fáceis
do que este, nem foi Deus mais amigo deles do que de vós. É de grande justiça
o que digo: iustum enim est bellum quibus necessarium, et pia arma ubi nulla
nisi in armis spes est. Aqui há uma grande disposição, e onde esta existe
não pode haver grande dificuldade, desde que se imite o modo de agir daqueles
que apontei como exemplo. Além disso, aqui se vêem acontecimentos extraordinários
emanados de Deus: o mar se abriu, uma nuvem revelou o caminho, a pedra verteu água,
aqui choveu o maná; todas as coisas concorreram para a vossa grandeza. O
restante deve ser feito por vós. Deus não quer fazer tudo, para não nos
tolher o livre arbítrio e parte daquela glória que compete a nós. E não é
de admirar se algum dos já citados italianos não tenha podido fazer aquilo que
se pode esperar faça a vossa ilustre casa, e se, em tantas revoluções da Itália
e em tantas manobras de guerra, parecer sempre que nesta a virtude militar
esteja extinta. Isso resulta de que as suas antigas instituições não eram
boas e não houve quem soubesse encontrar outras; e nenhuma coisa faz tanta
honra a um príncipe novo, quanto as novas leis e os novos regulamentos por ele
elaborados. Estes, quando são bem fundados e em si encerrem grandeza, tornam o
príncipe digno de reverência e admiração; na Itália não faltam motivos
para introduzir-se qualquer reforma. Aqui existe grande valor no povo, enquanto
ele falta nos chefes. Observei nos duelos e nos combates individuais o quanto os
italianos são superiores na força, na destreza ou no engenho. Mas, quando se
passa para os exércitos, não comparecem. E tudo resulta da fraqueza dos
chefes, porque aqueles que sabem não são obedecidos, e todos julgam saber, não
tendo surgido até agora alguém que tenha sabido se sobressair pela virtude ou
pela fortuna de forma a que os outros cedam. Daí decorre que, em tanto tempo,
em tantas guerras feitas nos últimos vinte anos, sempre que se formou um exército
inteiramente italiano o mesmo deu mau exemplo, do que dão prova Taro, depois
Alexandria, Cápua, Gênova, Vailá, Bolonha, Mestri.
Querendo, pois, a vossa ilustre casa seguir
aqueles homens excelentes e redimir suas províncias, é necessário, antes de
toda e qualquer outra coisa, como verdadeiro fundamento de qualquer
empreendimento, prover-se de tropas próprias, pois não se pode conseguir
outras mais fiéis e mais seguras, nem melhores soldados. E, ainda que cada um
deles seja bom, todos juntos tornar-se-ão ainda melhores, quando se virem
comandados pelo seu príncipe e por este honrados e mantidos. É necessário,
portanto, preparar esses exércitos, para poder, com a virtude itálica,
defender-se dos estrangeiros.
E, se bem as infantarias suíças e espanholas
sejam consideradas terríveis, em ambas existem defeitos, pelo que um terceiro
tipo de infantaria poderia não somente opor-se-lhes, mas confiar em superá-las.
Porque os espanhóis não podem enfrentar a cavalaria e os suíços deverão ter
medo dos infantes, quando no combate os encontrarem obstinados como eles. Já se
viu, e vê-se ainda, os espanhóis não poderem enfrentar uma cavalaria francesa
e os suíços serem derrotados por uma infantaria espanhola. E, se bem deste último
caso não se tenha tido plena prova, contudo viu-se uma amostra na campanha de
Ravena, quando as infantarias espanholas se defrontaram com os batalhões alemães,
que têm a mesma organização dos suíços; aí os espanhóis, com a agilidade
do corpo e auxílio dos seus pequenos escudos, haviam-se colocado debaixo dos
chuços alemães e estavam certos de feri-los e matá-los sem que os mesmos tal
pudessem impedir; realmente, não fosse a cavalaria que os atacou, teriam morto
todos os inimigos. Pode-se, pois, conhecido o defeito de uma e de outra dessas
infantarias, organizar uma diferente, que resista à cavalaria e não tenha medo
dos infantes, o que dará qualidade superior aos exércitos e imporá a mudança
de táticas. Estas são daquelas coisas que, reformadas, dão reputação e
grandeza a um príncipe novo.
Não se deve, pois, deixar passar esta ocasião,
a fim de que a Itália conheça, depois de tanto tempo, um seu redentor. Nem
posso exprimir com que amor ele seria recebido em todas aquelas províncias que
têm sofrido por essas invasões estrangeiras, com que sede de vingança, com
que obstinada fé, com que piedade, com que lágrimas. Quais portas se lhe
fechariam? Quais povos lhe negariam obediência? Qual inveja se lhe oporia? Qual
italiano lhe negaria o seu favor? A todos repugna este bárbaro domínio. Tome,
portanto, a vossa ilustre casa esta incumbência com aquele ânimo e com aquela
esperança com que se abraçam as causas justas, a fim de que, sob sua insígnia,
esta pátria seja nobilitada e sob seus auspícios se verifique aquele dito de
Petrarca:
Virtude contra Furor
Tomará Armas; e Faça o Combater Curto
Que o Antigo Valor
Nos Itálicos Corações Ainda não é Morto.
CARTA DE MACHIAVELLI A FRANCESCO VETTORI, EM
ROMA
(RELATIVA À OBRA IL PRÍNCIPE)
Magnifico oratori Florentino Francisco Vectori
apud Summum Pontificem et benefactori suo.
Romae,
Magnífico embaixador. Tardias jamais foram as
graças divinas. Digo isto porque me parecia não ter perdido mas sim estar
esmaecida a vossa graça, tendo estado vós muito tempo sem escrever-me; estava
em dúvida de onde pudesse vir a razão de tal. E dava pouca importância a
todas as causas que vinham à minha mente, salvo quando pensava que tivésseis
retraído de escrever-me, porque vos tivesse sido escrito que eu não fosse bom
guardião de vossas cartas; e eu sabia que, afora Filippo e Pagolo, outros, de
minha parte, não as tinham visto. Readquiri essa graça pela vossa última de
23 do mês passado, pelo que fico contentíssimo ao ver quão ordenada e
calmamente exerceis essa função pública, e eu vos concito a continuar assim,
porque quem deixa as suas comodidades pelas comodidades dos outros, perde as
suas e destes não recebe gratidão. Desde que a fortuna quer dispor todas as
coisas, é preciso deixá-la fazer, ficar quieto e não lhe criar embaraço,
esperando que o tempo lhe permita fazer alguma coisa pelos homens; então, será
bem suportardes maiores fadigas, zelar melhor das coisas, e a mim convirá
partir da vilas e dizer: eis-me aqui. Não posso, portanto, desejando render-vos
iguais graças, dizer nesta minha carta outra coisa que não aquilo que seja a
minha vida, e se julgardes tal que valha trocá-la com a vossa, ficarei contente
em mudá-la.
Aqui estou, na vila; depois que ocorreram aqueles
meus últimos casos, não estive, somando todos, vinte dias em Florença. Até
aqui tenho apanhado tordos à mão. Levantava-me antes do amanhecer, preparava a
armadilha, ia-me além com um feixe de gaiolas ao ombro, que até parecia o
Getas quando o mesmo voltava do porto com os livros de Anfitrião; apanhava no mínimo
dois e no máximo seis tordos. E, assim, passei todo o mês de setembro. Depois
esse passatempo, ainda que desprezível e estranho, veio a faltar com desgosto
meu. Dir-vos-ei qual a minha vida agora. Levanto-me de manhã com o sol e vou a
um meu bosque que mandei cortar, onde fico duas horas a examinar o trabalho do
dia anterior e a passar o tempo com aqueles cortadores que estão sempre às
voltas com algum aborrecimento entre si ou com os vizinhos. Acerca deste bosque
eu teria a dizer-vos mil belas coisas que me aconteceram, bem como de Frosino de
Panzano e dos outros que queriam desta lenha. Frosino, principalmente, mandou
buscar certa quantidade sem dizer-me nada e, na ocasião do pagamento, queria
reter dez liras que disse ter ganho de mim, há quatro anos, num jogo de cricca
em casa de Antônio Guicciardini. Comecei a fazer o diabo: queria acusar o
carroceiro, que fora ali mandado por ele, como ladrão. Enfim Giovanni
Machiaveili interveio e nos pôs de acordo. Batista Guicciardini, Filippo Ginori,
Tommaso dei Bene e alguns outros cidadãos, quando aqueles maus ventos sopravam,
cada um me adquiriu uma ruma de lenha. Prometi a todos e mandei uma a Tommaso, a
qual chegou a Florença pela metade, porque, para empilhá-la, ali estavam ele,
a mulher, as criadas e os filhos, os quais pareciam o Gabburra quando na
quinta-feira, com seus rapazes, abate um boi. De modo que, visto em quem eu
depositava o meu ganho, disse aos outros que não tinha mais lenha; todos se
encolerizaram e agastaram comigo, especialmente Batista, que inclui esta entre
as demais desgraças de Prato.
Saindo do bosque, vou a uma fonte e, daqui, ao
meu viveiro de tordos. Levo um livro comigo, ou Dante ou Petrarca, ou um desses
poetas menores, Tíbulo, Ovidio e semelhantes; leio aquelas suas amorosas paixões,
e aqueles seus amores lembram-me os meus; deleito-me algum tempo nestes
pensamentos. Depois, vou pela estrada até à hospedaria; falo com os que
passam, pergunto notícias das suas cidades, ouço muitas coisas e noto vários
gostos e fantasias dos homens. Enquanto isso, chega a hora do almoço, quando
com a minha família como aqueles alimentos que esta pobre vila e este pequeno
patrimônio comportam. Terminado o almoço, retorno à hospedaria; aqui,
geralmente, estão o estalajadeiro, um açougueiro, um moleiro e dois padeiros.
Com estes eu me rebaixo o dia todo jogando cricca, trichtach, e, depois, daí
nas cem mil contendas e infinitos acintes com palavras injuriosas; a maioria das
vezes se disputa uma insignificância e, contudo, somos ouvidos gritar por São
Casciano. Assim, envolvido entre estes piolhos, cubro o cérebro de bolor e
desabafo a malignidade de minha sorte, ficando contente se me encontrásseis
nesta estrada para ver se essa malignidade se envergonha.
Chegada a noite, retorno para casa e entro no meu
escritório; na porta, dispo a roupa quotidiana, cheia de barro e lodo, visto
roupas dignas de rei e da corte e, vestido assim condignamente, penetro nas
antigas cortes dos homens do passado onde, por eles recebido amavelmente,
nutro-me daquele alimento que é unicamente meu, para o qual eu nasci; não me
envergonho ao falar com eles e perguntar-lhes das razões de suas ações. Eles
por sua humanidade, me respondem, e eu não sinto durante quatro horas qualquer
tédio, esqueço todas as aflições, não temo a pobreza, não me amedronta a
morte: eu me integro inteiramente neles. E, porque Dante disse não haver ciência
sem que seja retido o que foi apreendido, eu anotei aquilo de que, por sua
conversação, fiz capital, e compus um opúsculo De Principatibus, onde me
aprofundo o quanto posso nas cogitações deste assunto, discutindo o que é
principado, de que espécies são, como são adquiridos, como se mantêm, porque
são perdidos. Se alguma vez vos agradou alguma fantasia minha, esta não vos
deveria desagradar; e um príncipe, principalmente um príncipe novo, deveria
aceitar esse trabalho: por isso eu o dedico à magnificência de Juliano.
Filippo Casavecchia o viu e vos poderá relatar mais ou menos como é e das
conversas que tive com ele, se bem que freqüentemente eu aumente e corrija o
texto.
Vós desejaríeis, magnífico embaixador, que eu
deixasse esta vida e fosse gozar convosco a vossa. Eu o farei de qualquer
maneira; mas o que me retém por ora são certos negócios que dentro de seis
semanas terei ultimado. O que me deixa ficar em dúvida é que estão ai aqueles
Soderini, aos quais eu seria forçado, estando aí, a visitar e a falar. Receio
que ao meu retorno, pensando apear em casa, viesse a desmontar no Bargiello, eis
que, se bem este Estado" tenha mui sólidas bases e grande segurança, ele
é novo e, por isso, cheio de suspeitas; nem faltam sabidos que, para aparecer,
como Pagolo Bertini, meteriam outros na prisão e deixariam a meu cargo os
aborrecimentos. Peço-vos me tranqüilizeis deste receio e, depois, dentro do
tempo mencionado, irei visitar-vos de qualquer modo.
Discuti com Filippo sobre esse meu opúsculo, se
convinha dá-lo ou não e, sendo acertado dá-lo, se era mais conveniente que eu
o levasse ou que o mandasse. Não me fazia dá-lo o receio de que Juliano não o
lesse e que esse Ardinghelli se honrasse com esse meu último trabalho. Por
outro lado, dá-lo satisfaria a necessidade que me oprime, porque estou em ruína
e não posso permanecer assim por muito tempo, sem que me torne desprezível por
pobreza, isso além do desejo que teria de que esses senhores Medici passassem a
utilizar-me, se tivesse de começar a fazer-me rolar uma pedra; porque, se
depois não conseguisse ganhar o seu favor, lamentar-me-ia de mim mesmo, eis
que, quando fosse lido o opúsculo, ver-se-ia que os quinze anos que estive no
estudo da arte do Estado, não os dormi nem brinquei, devendo todo homem achar
agradável servir-se de alguém que, a custas de outros, fosse cheio de experiência.
E da minha fidelidade não se deveria duvidar porque, tendo sempre observado a
lealdade, não devo aprender agora a rompê-la; quem foi fiel e bom durante
quarenta e três anos, que eu os tenho, não deve poder mudar sua natureza; da
minha lealdade e bondade é testemunho a minha pobreza.
Desejaria, pois, que vós ainda me escrevêsseis
aquilo que sobre este assunto vos pareça. A vós me recomendo. Seja feliz.
10 de Dezembro de 1513
NICOLÓ MACHIAVELLI
Florença.
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