
Analectos
Livro IV: Ren, a Humanidade em Confúcio
Trad.
do chinês e comentários: Ho Yeh Chia
IV. 1: Confúcio
fez a seguinte apreciação sobre o amor humano (Ren) em
sociedade: “Morar em um ambiente em que as pessoas se amem e
respeitem mutuamente (Ren) é a melhor coisa possível.
Não é nada sábio o homem que, podendo escolher, não mora em
um ambiente em que reine o amor e o respeito aos outros homens
(ren)”
Esta passagem traz à
tona uma característica importante da educação confuciana: a importância
do contato humano que é contagiante, como diz I. 14: "Aproxima-se
de pessoas virtuosas e por elas se regula. A isso pode-se denominar que
é gostar de aprender”. Estar perto de pessoas virtuosas é como se
nos aproximássemos de deliciosos perfumes, acabaremos impregnando-nos
de suas fragrâncias. Quando habitamos num ambiente em que há muitos
virtuosos podemos perceber que o mundo é belo assim, havendo tantas
pessoas que andam juntas da humanidade.
IV. 2: Confúcio fez
as seguintes considerações sobre o amor humano: “Quem não possuir a
virtude (Ren) não poderia viver por longo tempo na pobreza, nem
tampouco em abundância. Os que têm a virtude (Ren) amam o bem
moral por si mesmo [e encontram a paz na sua virtude]; e os que são sábios
beneficiam-se de seu Ren”
Quem não possuir o amor
humano - Ren -, não poderia suportar a pobreza e nem se
beneficiar da riqueza. Nem a pobreza e nem a riqueza poderiam ajudar a
uma pessoa que não possui o amor humano a se realizar virtuosamente. A
pobreza e a riqueza, quando vividas com Ren, ambos poderiam ser
caminhos para a virtude. Diz o apóstolo Paulo (Fil 4, 12): "Sei
viver na pobreza; sei viver na abundância".
IV. 3: Disse o Mestre:
“Só quem possui a virtude humana tem o poder de amar o homem e de
odiar o homem”
"...Como é
conveniente" acrescentam Couvreur e Huaqing. Waley cita a sentença
3 como se fosse um provérbio e junta-a a 4 para atenuar... como se Confúcio
estivesse contradizendo o provérbio... Sem dúvida é passagem de difícil
interpretação. Num caso semelhante, Tomás comenta: "Debemus enim
in peccatoribus odire quod peccatores sunt, et diligere quod homines
sunt", devemos odiar no pecador o que há de pecador e amar neles o
que há de humano (II-II, 25, 6, c). Confúcio, que sabe muito bem da
grandeza do homem, é sensível também (precisamente quem possui o Ren)
à miséria moral, que é o que deve ser odiado no homem.
IV. 4: Confúcio também
observou: “Se a vontade amar e determinar-se ao bem, não haverá
lugar para o mal”
Como dissemos, a hipótese
de Waley é a de que IV, 3 e IV, 4 formam um todo único: IV. 3 seria um
dito popular que Confúcio corrige em IV, 4 (e em III, 13). A hipótese
não parece provável (o que daria a Confúcio uma identidade moral com
o cristianismo: o amor aos maus). O sentido mais provável é: só um
homem ético sabe distinguir os bons dos maus, deve amar os bons e odiar
os maus na linha do Antigo Testamento: olho por olho; dente por dente.
Os homens sem Ren ao vingar-se excedem.
IV. 5: Disse o Mestre:
“Riqueza e posição é o que todos desejam, mas se não puder obtê-las
por meios justos, o homem virtuoso não as aceitará. Pobreza e
inferioridade é o que todos detestam, mas se não for por meios justos,
o homem virtuoso não as rejeitará. Um homem que se pretende virtuoso,
se abandona a prática do bem está traindo esse nome. O homem virtuoso
não deixa de praticar o bem em nenhuma circunstância. Ele é virtuoso
quando tudo o favorece, e o é também quando tudo lhe é obstáculo”
Um homem ético não
aceita obter riqueza e superioridade se não for por meios justos, de
acordo com seus princípios . Também não fugiria da pobreza e da
inferioridade se não por meios honestos. Este texto dialoga com IV. 2.
IV. 6: Ainda sobre o
amor humano (Ren), Confúcio precisou: “Nunca vi alguém que
amasse verdadeiramente a virtude Ren e que detestasse plenamente
o vício (o não-Ren). Quem verdadeiramente ama a virtude Ren
nada põe acima dela. Quem verdadeiramente detesta o vício (o não-Ren),
comporta-se moralmente e não permite nada de imoral em sua vida. Também
não encontrei ninguém que não tivesse forças para comportar-se
moralmente durante um dia. Talvez haja (alguém moralmente tão fraco),
mas eu ainda não encontrei”
É texto importante para
a concepção - que Confúcio parece endossar - de "natureza
ferida". Por que dispomos de forças para um dia, mas não
habitualmente? Para Confúcio, Ren, a plenitude da condição
humana, impõe grandes exigências éticas a cada indivíduo, mas ela é
acessível/inacessível na vida cotidiana: ninguém a possui, mas todos
a podem (e devem...) possuir!!
IV. 7: Confúcio fez
esta observação: “As faltas dos homens os definem. Observando as
faltas específicas de um homem, pode-se julgar seu caráter moral”
As faltas dos homens têm
a sua família, ou seja, têm um porquê, uma raíz, uma origem, uma razão
de existir. Família, também pode ser entendida como seu semelhante, ou
seja, as faltas pertencem a um grupo, a seus parecidos, a um determinado
ciclo de amizade, de convivência, até mesmo familiar. Observando as
faltas nossas - e corrigindo-as -, pode-se conhecer a virtude humana.
Observando as faltas dos outros pode saber quem são e até mesmo
descobrir suas virtudes (nesse sentido, a interpretação de Guerra:
"as faltas têm todas seu lado louvável").
IV. 8: Disse o Mestre:
“Se um homem ouviu a verdade toda (Dao) pela manhã, pode-se morrer
pela noite, que já valeu a pena a vida”
Uma interpretação elástica,
mas não descabida: a iluminação intelectual é decisiva, mas não
basta. Faz falta o resto do dia para praticá-la...
IV. 9: Disse o Mestre:
“Se um estudioso decidir dedicar-se à virtude e ainda assim sentisse
vergonha de seu humilde traje e pobre comida, já não tenho o que falar
com ele”
Uma pessoa que se dedica
à virtude não tem que se preocupar nem com as comodidades efêmeras
nem com a opinião dos outros.
IV. 10: Disse o
Mestre: “Perante às coisas do mundo, um homem ético não tem parti
pris; ele segue o que for justo”
Na mesma linha das
anteriores: bem simpliciter é a justiça (ou como diz Tomás:
"iustitia est circa simpliciter bona" II-II 58, 10
ad2). Não buscar como absoluto uma coisa qualquer - riqueza, poder,
fama, bem-estar -, nem rejeitar outra - como pobreza -. Mas seguir o que
é justo fazendo o que se deve (ou o que é certo) fazer. Porém, este
pensamento não deve ser interpretado como “conformismo”, muito
menos como “para impedir as lutas de classes", como muitos
criticaram, principalmente na época da Revolução Cultural.
IV. 11: Disse o
Mestre: “O homem que aspira à perfeição moral se ocupa da virtude;
o homem não comprometido com os valores morais, pensa apenas em sua
acomodação na terra. O homem ético pensa apenas nos deveres e sanções;
o homem sem ética pensa apenas em seus direitos e benefícios”
A terra é valor
fundamental na cultura chinesa, basicamente agrícola: é preciso
enterrar os antepassados na própria terra; é preciso ter raízes na
terra. Por aí se vê a ruptura, a estatura do compromisso moral para
Confúcio...
A interpretação de
Guerra ficou um pouco diferente. Para ele, o homem não virtuoso se
ocupa em “dar nas vistas”. O ideograma de “terra” (que simboliza
riqueza, conforto material), segundo ele, tem também o sentido de
“ver”.
IV. 12: Confúcio
advertiu: “Quem age por considerar apenas seus lucros e interesses próprios,
despertará muitos ressentimentos”
Ouvirá queixas,
despertará ódio e raiva; e não deixará nenhuma boa lembrança.
IV. 13: Confúcio
considerou: “Pode-se governar o Estado pelas prescrições rituais
praticadas com respeito e condescendência? Que dificuldade há nisso?
Mas se o governante não tivesse capacidade para praticar as prescrições
rituais com respeito e condescendência, para que lhe serviriam os
ritos?”
Retoma os ritos e a
governação está neste livro da humanidade, pois os ritos e a governação
são exteriorização concreta da humanidade?
IV. 14: Confúcio deu
este testemunho: “Eu não me afligiria por não ter um cargo, mas sim
se não tivesse qualidades para tal. Eu não me preocuparia por não
obter reconhecimento, mas sim em ter méritos para tal”
IV. 15: Confúcio
comunicou a seu discípulo Zengzi, cognominado Shen: “Shen, meus
ensinamentos podem-se abarcar em apenas um”. Zengzi disse: “Sim!”
Tendo saído o Mestre, os outros discípulos perguntaram: “O que ele
queria dizer?”. Zengzi respondeu: “Os ensinamentos do Mestre
reduzem-se a fidelidade, em relação a si mesmo, e compreensão para
com os outros”
Esta passagem tão famosa
parece expressar a idéia central do ensinamento de Confúcio.
A resposta de Shen aos
seus colegas foi não apenas uma, mas duas idéias, que parecem ser
centrais. O “Zhon” é a fidelidade a si mesmo, a lealdade
consigo mesmo.
O ideograma, muito
sugestivo, mostra o centro de um coração: indicando a idéia de
“estou dentro e no centro do Eu para ser fiel e sincero comigo
mesmo”.

Já “shu” é a
compreensão para com os outros, o perdoar o outro. O ideograma sugere
que o coração está em comparação com outro coração: é a idéia
de “e se outro fosse eu?”, de compreender o outro se colocando no
lugar do outro, e de "não fazermos aos outros o que não gostaríamos
que fizessem conosco".

Para ilustrar melhor esta
idéia, encontramos na oração cristã, “Pai-Nosso”, as melhores
palavras. Ao rezarmos: “... Perdoai as nossas ofensas, assim como nós
perdoamos aqueles que nos tenham ofendido...”; não é a expressão
mais perfeita desta idéia? pois o que pedimos não é que sejamos
perdoados conforme a capacidade que cada um de nós tivermos para
perdoar o outro?(1)
Curiosamente, o Prof. Nan
Huai Chin, em seu livro, Outras Idéias dos Analectos(2), faz
notar que a resposta de Zeng é um tanto misteriosa. É interessante a
sua colocação: “Por que o Mestre se dirigiu apenas ao Zeng? Há aqui
uma questão de segredo. Vamos tentar encenar a situação: um belo dia
o Mestre estava na sala de aula e Zeng passara pela sua frente, então
Confúcio o chamou e lhe disse: ‘meus ensinamentos podem-se abarcar em
apenas um’. Podemos materializar o ‘abarcar em um’ como que abarca
as moedas com um fio (no centro das moedas antigas tinha um buraco,
muito útil para que elas possam ser amarradas num fio, facilitando a
sua transporte, contagem, organização, etc.). Como o ensinamento
poderia ser abarcado? Entretanto, Zeng, ao ouvir a metáfora do Mestre,
curvou seu corpo e respondeu que sim. E o Mestre saiu da sala, deixando
todo mundo confuso. Então, Zeng é perguntado pelos seus colegas e
precisava esclarecer a charada - que não tem resposta, pois a percepção
de saber, muitas vezes, não se pode ser dito em palavras -. Sua
resposta foi uma tentativa de dizer aos colegas que não perceberam o
ensinamento do Mestre que se cada um procurar dar o máximo de si, com
fidelidade, sinceridade, perdão e tolerência, podem-se chegar a
compreender o ensinamento de Confúcio.
Mas Confúcio disse que
era para ser abarcado em um, e não em dois. Ora, todos conhecemos a
famosa história Zen, “Rodar a flor, e sorrir”: Era uma vez o Buda
Sidarta, já idoso e morava na montanha Lin-San, estava dando sua aula
para seus alunos, que eram muitos. No entanto, ninguém sabia sobre o
que ele ia tratar naquele dia. E lá estava o Buda, quieto no seu lugar,
não pronunciara nenhuma palavra, e depois, tirou uma flor que estava
num vaso a sua frente, e olhou para todos, como se insinuasse que o
ensinamento do dia tivesse algo que ver com a flor, e continuou sem
dizer nada, apenas rodava a flor. E seus alunos não compreendiam esse
gesto.
Havia um grande e famoso
discípulo que também lá estava presente, o Daye - já muito velho -,
que achou aquilo tudo muito engraçado e, sem podendo se conter, soltou
um leve sorriso. E, ao ver essa reação, finalmente, o Buda se pôs a
falar: ‘Tenho muito boas dharmas, que atingirão a iluminação.
Suas formas não têm formas, misteriosas e minuciosas, não expressas
em letras. E já as passei para o Daye’. E assim, o Zen foi criado,
pois seus saberes não podem ser passadas pelas palavras, mas é preciso
algo muito mais, como, por exemplo, a própria vida, o viver, a experiência,
o perceber. E a história acaba aí, no entanto, nunca soubemos qual foi
a lição do Buda daquele dia; o que, a final de contas, o Buda quis
dizer com uma flor na mão? E o Daye compreendeu?
Na verdade, isso não é
a questão central. Em XV, 3, encontramos uma pista para uma melhor
comprensão desta passagem: Confúcio confidencia ao discípulo: "Shen,
tu julgas-me um homem que estudou muito e aprendeu tudo de cor (...) Não,
todo meu saber está abarcado por um mesmo fio".
IV. 16: Confúcio
ponderou: “Um homem ético vê o que é justo numa questão; um homem
sem ética vê apenas como tirar vantagem”
Yi, deveres, também
significa justiça, e o que for correto. Aliás, é precisamente neste
sentido que falemos do dever. Não o dever de dívida, mas o dever ao
que devemos/precisamos/naturalmente temos que fazer.
IV. 17: Confúcio
recomendou: “Ao encontrarmos pessoas de valor, devemos pensar em como
igualá-las; ao encontrarmos pessoas sem valor, devemos examinarmo-nos a
nós mesmos internamente para vermos se somos iguais a elas”
Nesta sentença reafirma
as idéias do examinar a si mesmo e do tomar o outro como nosso espelho
moral.
IV. 18: Disse o
Mestre: “Ao servir os pais, podemos sutilmente chamar-lhes a atenção
quando eles estão errados. Se eles não aceitarem a correção,
continuemos a respeitá-los sem jamais desobedecê-los. Assumi todas as
tarefas sem lamentar-vos”
No serviço dos pais, a
obediência parece ser muito importante.
IV. 19: Disse o
Mestre: “Tendo os pais vivos, não se viaja para longe. Tendo que
viajar, que eles saibam onde se está”
Além de outras razões
(ver I, 1) é preciso no caso de falecimento cumprir os ritos das exéquias.
A piedade filial em sua forma mais bela, natural e humana.
IV. 20: Disse o
Mestre: “Se durante três anos após a morte do pai, o filho não se
desviou de suas tradições familiares, pode-se dizer que é um filho
fiel e transmissor da herança paterna”
Sentença repetida do
texto I. 11 já comentado. Subentende-se que são três anos depois da
morte do pai. O dao aqui pode ser caminho, princípio, hábitos,
enfim, o que o pai gostava, aprovava, desejava. Manter esses princípios
como se o pai estivesse vivo.
IV. 21: Confúcio
aconselhou: “Um filho deve sempre ter em mente a idade dos pais, para
alegrar-se por estarem vivos e também para preocupar-se por sua morte
que virá”
Ter a consciência das
idades dos pais, “à uma para regozijo, à outra com receio”, como
traduziu Guerra. Receio de que talvez não restará muito tempo para
estar com eles.
IV. 22: Confúcio
lembrou: “Os antigos eram reservados nas palavras, porque se
envergonhariam caso seu agir não estivesse à altura delas”
Falar pouco, ou não
falar nada, é o melhor caminho. Não fale antes de agir, e não deixe
de fazer o que disse.
IV. 23: Confúcio
disse: “Quem sabe realmente manter-se em seus limites, raramente
erra”
No sentido de ter cuidado
para com suas palavras e ações, o reto agir, recta ratio agibilium
da prudentia ocidental.
IV. 24: Confúcio
recomendou: “Um homem de bem deve ser parco no falar, e pronto no
agir”
O homem ético deseja ter
poucas palavras e muita ação; o agir nos Analectos é sempre o
agir moral; não um fazer qualquer, técnico ou alienado.
IV. 25: Confúcio
observou: “O virtuoso nunca será deixado só; terá certamente o
apoio de outros”
Embora preferimos morar
onde há a humanidade, nem sempre podemos encontrar um bairro humano.
Esta sentença ensina que se formos humanos, poderemos ampliar a
humanidade e teremos companheiros. É a tese central da moral confuciana
que está no Grande Escola: a harmonia social é consequência da
organização de cada Estado, que por sua vez é consequência da boa
administração familiar, e esta tem como pré-requisito o aperfeiçoamento
pessoal, de cada indivíduo.
IV. 26: O discípulo
Ziyou observou: “No serviço do príncipe, dar conselhos demasiados
leva a cair em desgraça; entre amigos, ao afastamento”
Não é, porém, para
sermos falsos ou desleais. Esta sentença é a expressão concreta da
harmonia: sem excesso e nem escasso, adotar a sabedoria do meio caminho.
Em XV, 7, diz o Mestre: "Quem diz o que não deve ser dito, perde o
amigo; quem diz o que não deve ser dito, perde a palavra. O sábio não
perde o amigo nem a palavra".
(1). Devo esta nota ao
prof. Sylvio R. G. Horta.
(2). NAN, Huai Ching, Lun
Yu Bie Zai (Novas interpretações dos Analectos), Taipei, editora Lao
Ku Culture Foundation, 17th Printing, 1997, p. 188 e ss.
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