DOS DELITOS E DAS
PENAS
Cesare Beccaria
APÊNDICE
APRESENTAÇÃO
Nélson Jahr Garcia
"Dos delitos e das penas"
é uma obra que se insere no movimento filosófico e humanitário
da segunda metade do século XVIII, ao qual pertencem os trabalhos
dos Enciclopedistas, como Voltaire, Rousseau, Montesquieu e tantos
outros.
Na época havia grassado a tese de
que as penas constituíam uma espécie de vingança coletiva; essa
concepção havia induzido à aplicação de punições de conseqüências
muito superiores e mais terríveis que os males produzidos pelos
delitos. Prodigalizara-se a prática de torturas, penas de morte,
prisões desumanas, banimentos, acusações secretas.
Foi contra essa situação que se
insurgiu Beccaria. Sua obra foi elogiada por intelectuais,
religiosos e nobres (inclusive Catarina da Rússia). As críticas
foram poucas, geralmente resultantes de interesses egoísticos de
magistrados e clérigos. A humanidade encontrava novos caminhos
para garantir a igualdade e a justiça.
Estamos divulgando o texto por
acreditarmos que deva ser lido de novo, especialmente no Brasil. A
prática de torturas, entre nós, tem sido cada vez mais freqüente.
A pena de morte, que vai sendo abolida em países mais avançados,
aqui tem sido proposta por inúmeros políticos raivosos. Crianças
ficam encarceradas sob condições cruéis, às vezes bárbaras.
Juizes corruptos vivem no conforto de suas mansões. Assassinos
frios, por serem influentes, desfrutam de todas as mordomias.
Que o espírito de Beccaria nos
ilumine.
BIOGRAFIA DO AUTOR
CESARE BONESANA, marquês
de Beccaria, nasceu em Milão no ano de 1738. Educado em Paris
pelos jesuítas, entregou-se com entusiasmo ao estudo da
literatura e das matemáticas. Muita influência exerceu na formação
do seu espírito a leitura das Lettres Persanes de Mostesquieu e
de L'Esprit de Helvétius. Desde então, todas as suas preocupações
se voltaram para o estudo da filosofia. Foi ele um dos fundadores
da sociedade literária que se formou em Milão e que,
inspirando-se no exemplo da de Helvétius, divulgou os novos princípios
da filosofia francesa. Além disso, a fim de divulgar na Itália
as idéias novas, Beccaria fez parte da redação do jornal II
Caffè, que apareceu de 1764 a 1765.
Foi mais ou menos por essa época
que, insurgindo-se contra as injustiças dos processos criminais
em voga, Beccaria principiou a agitar com os seus amigos, entre os
quais se destacavam os irmãos Pietro e Alessandro Verri, os
complexos problemas relacionados com a matéria. Assim teve origem
o seu livro Dei Delitti e delle Pene. Receoso de perseguições, o
autor mandou imprimir sua obra secretamente, em Livorno, e ainda
assim velando muitos pensamentos com expressões vagas e
indecisas.
O tratado Dos Delitos e das Penas é
a filosofia francesa aplicada à legislação penal: contra a
tradição jurídica, invoca a razão e o sentimento; faz-se
porta-voz dos protestos da consciência pública contra os
julgamentos secretos, o juramento imposto aos acusados, a tortura,
a confiscação, as penas infamantes, a desigualdade ante o
castigo, a atrocidade dos suplícios; estabelece limites entre a
justiça divina e a justiça humana, entre os pecados e os
delitos; condena o direito de vingança e toma por base do direito
de punir a utilidade social; declara a pena de morte inútil e
reclama a proporcionalidade das penas aos delitos, assim como a
separação do poder judiciário e do poder legislativo. Nenhum
livro fora tão oportuno e o seu sucesso foi verdadeiramente
extraordinário, sobretudo entre os filósofos franceses. O abade
Morellet traduziu-o, Diderot anotou-o, Voltaire comentou-o.
d'Alembert, Buffon, Hume, Helvétius, o barão d'Holbach, em suma,
todos os grandes homens da França manifestaram desde logo a sua
admiração e seu entusiasmo. Em 1766, indo a Paris, Beccaria foi
alvo das mais vivas demonstrações de simpatia. No entanto, tendo
regressado a Milão, cidade que ele não mais abandonou, teve de
sofrer uma campanha infamante por parte dos seus adversários, que
ainda se apegavam aos preconceitos e à rotina para acusá-lo de
heresia. A denúncia não teve conseqüências, mas Beccaria
ressentiu-se de tal forma que o receio de novas perseguições
levou-o a renunciar às dissertações filosóficas.
Em 1768, o governo austríaco,
sabedor de que ele recusara as ofertas de Catarina II, que
procurara atraí-lo para São Petersburgo, criou em seu favor uma
cátedra de economia política.
Beccaria morreu em Milão, em 1794.
PREFÁCIO DO AUTOR
A
I. INTRODUÇÃO
AS
vantagens da sociedade devem ser igualmente repartidas entre todos
os seus membros.
No entanto, entre os homens
reunidos, nota-se a tendência contínua de acumular no menor número
os privilégios, o poder e a felicidade, para só deixar à
maioria miséria e fraqueza.
Só com boas leis podem impedir-se
tais abusos. Mas, de ordinário, os homens abandonam a leis provisórias
e à prudência do momento o cuidado de regular os negócios mais
importantes, quando não os confiam à discrição daqueles mesmos
cujo interesse é oporem-se às melhores instituições e às leis
mais sábias.
Além disso, não é senão depois
de terem vagado por muito tempo no meio dos erros mais funestos,
depois de terem exposto mil vezes a própria liberdade e a própria
existência, que, cansados de sofrer, reduzidos aos últimos
extremos, os homens se determinam a remediar os males que os
afligem.
Então, finalmente, abrem os olhos a
essas verdades palpáveis que, por sua simplicidade mesma, escapam
aos espíritos vulgares, incapazes de analisar os objetos e
acostumados a receber sem exame e sobre palavra todas as impressões
que se lhes queiram dar.
Abramos a história, veremos que as
leis, que deveriam ser convenções feitas livremente entre homens
livres, não foram, o mais das vezes, senão o instrumento das
paixões da minoria, ou o produto do acaso e do momento, e nunca a
obra de um prudente observador da natureza humana, que tenha
sabido dirigir todas as ações da sociedade com este único fim:
todo o bem-estar possível para a maioria.
Felizes as nações (se há algumas)
que não esperaram que revoluções lentas e vicissitudes incertas
fizessem do excesso do mal uma orientação para o bem, e que,
mediante leis sábias. apressaram a passagem de um para o outro.
Como é digno de todo o reconhecimento do gênero humano o filósofo
(6) que,
do fundo do seu retiro obscuro e desprezado, teve a coragem de lançar
na sociedade as primeiras sementes por tanto tempo infrutíferas
das verdades úteis!
As verdades filosóficas, por toda
parte divulgadas através da imprensa, revelaram enfim as
verdadeiras relações que unem os soberanos aos súditos e os
povos entre si. O comércio animou-se e entre as nações
elevou-se uma guerra industrial, a única digna dos homens sábios
e dos povos policiados.
Mas, se as luzes do nosso século já
produziram alguns resultados, longe estão de ter dissipado todos
os preconceitos que tínhamos. Ninguém se levantou, senão
frouxamente, contra a barbárie das penas em uso nos nossos
tribunais. Ninguém se ocupou com reformar a irregularidade dos
processos criminais, essa parte da legislação tão importante
quanto descurada em toda a Europa. Raramente se procurou destruir,
em seus fundamentos, as séries de erros acumulados desde vários
séculos; e muito poucas pessoas tentaram reprimir, pela força
das verdades imutáveis, os abusos de um poder sem limites, e
fazer cessar os exemplos bem freqüentes dessa fria atrocidade que
os homens poderosos encaram como um dos seus direitos. Entretanto,
os dolorosos gemidos do fraco, sacrificado à ignorância cruel e
aos opulentos covardes; os tormentos atrozes que a barbárie
inflige por crimes sem provas, ou por delitos quiméricos; o
aspecto abominável dos xadrezes e das masmorras, cujo horror é
ainda aumentado pelo suplício mais insuportável para os
infelizes, a incerteza; tantos métodos odiosos, espalhados por
toda parte, deveriam ter despertado a atenção dos filósofos,
essa espécie de magistrados que dirigem as opiniões humanas.
O imortal Montesquieu (7)
só ocasionalmente pode abordar essas importantes matérias. Se eu
segui as pegadas luminosas desse grande homem, é que a verdade é
uma e a mesma em toda parte. Mas, os que sabem pensar (e é
somente para estes que escrevo) saberão distinguir meus passos
dos seus. Sentir-me-ei feliz se, como ele, puder ser objeto do
vosso secreto reconhecimento, oh vós, discípulos obscuros e pacíficos
da razão! Sentir-me-ei feliz se puder excitar alguma vez esse frêmito
pelo qual as almas sensíveis respondem à. voz dos defensores da
humanidade!
Seria este, talvez, o momento de
examinar e distinguir as diferentes espécies de delitos e a
maneira de puni-los; mas, o número e a variedade dos crimes,
segundo as diversas circunstâncias de tempo e de lugar, nos lançariam
num atalho imenso e fatigante. Contentar-me-ei, pois, com indicar
os princípios mais gerais, as faltas mais comuns e os erros mais
funestos, evitando igualmente os excessos dos que, por um amor mal
entendido da liberdade, procuram introduzir a desordem, e dos que
desejariam submeter os homens à regularidade. dos claustros.
Mas, qual é a origem das penas, e
qual o fundamento do direito de punir? Quais serão as punições
aplicáveis aos diferentes crimes? Será a pena de morte
verdadeiramente útil, necessária, indispensável para a segurança
e a boa ordem da sociedade? Serão justos os tormentos e as
torturas? Conduzirão ao fim que as leis se propõem? Quais os
melhores meios de prevenir os delitos? Serão as mesmas penas
igualmente úteis em todos os tempos? Que influência exercem
sobre os costumes?
Todos esses problemas merecem que se
procure resolvê-los com essa precisão geométrica que triunfa da
destreza dos sofismas, das dúvidas tímidas e das seduções da
eloqüência.
Sentir-me-ia feliz se não tivesse
outro mérito além do de ter sido o primeiro que apresentou na Itália,
com maior clareza, o que outras nações ousaram escrever e começam
a praticar.
Mas, se, ao sustentar os direitos do
gênero humano e da verdade invencível, contribuí para salvar da
morte atroz algumas das trêmulas vítimas da tirania ou da ignorância
igualmente funesta, as bênçãos e as lágrimas de um único
inocente reconduzido aos sentimentos da alegria e da felicidade
consolar-me-iam do desprezo do resto dos homens.
II. ORIGEM DAS PENAS E DIREITO DE
PUNIR
A MORAL
política não pode proporcionar à sociedade nenhuma vantagem durável,
se não for fundada sobre sentimentos indeléveis do coração do
homem.
Toda lei que não for estabelecida
sobre essa base encontrará sempre uma resistência à qual será
constrangida a ceder. Assim, a menor força, continuamente
aplicada, destrói por fim um corpo que pareça sólido, porque
lhe comunicou um movimento violento.
Consultemos, pois, o coração
humano; acharemos nele os princípios fundamentais do direito de
punir.
Ninguém fez gratuitamente o sacrifício
de uma porção de sua liberdade visando unicamente ao bem público.
Tais quimeras só se encontram nos romances. Cada homem só por
seus interesses está ligado às diferentes combinações políticas
deste globo; e cada qual desejaria, se fosse possível, não estar
ligado pelas convenções que obrigam os outros homens. Sendo a
multiplicação do gênero humano, embora lenta e pouco considerável,
muito superior aos meios que apresentava a natureza estéril e
abandonada, para satisfazer necessidades que se tornavam cada dia
mais numerosas e se cruzavam de mil maneiras, os primeiros homens,
até então selvagens, se viram forçados a reunir-se. Formadas
algumas sociedades, logo se estabeleceram novas, na necessidade em
que se ficou de resistir às primeiras, e assim viveram essas
hordas, como tinham feito os indivíduos, num contínuo estado de
guerra entre si. As leis foram as condições que reuniram os
homens, a princípio independentes e isolados sobre a superfície
da terra.
Cansados de só viver no meio de
temores e de encontrar inimigos por toda parte, fatigados de uma
liberdade que a incerteza de conservá-la tornava inútil,
sacrificaram uma parte dela para gozar do resto com mais segurança.
A soma de todas essas porções de liberdade, sacrificadas assim
ao bem geral, formou a soberania da nação; e aquele que foi
encarregado pelas leis do depósito das liberdades e dos cuidados
da administração foi proclamado o soberano do povo.
Não bastava, porém, ter formado
esse depósito; era preciso protegê-lo contra as usurpações de
cada particular, pois tal é a tendência do homem para o
despotismo, que ele procura sem cessar, não só retirar da massa
comum sua porção de liberdade, mas ainda usurpar a dos outros.
Eram necessários meios sensíveis e
bastante poderosos para comprimir esse espírito despótico, que
logo tornou a mergulhar a sociedade no seu antigo caos. Esses
meios foram as penas estabelecidas contra os infratores das leis.
Disse eu que esses meios tiveram de
ser sensíveis, porque a experiência fez ver quanto a maioria está
longe de adotar princípios estáveis de conduta. Nota-se, em
todas as partes do mundo físico e moral, um princípio universal
de dissolução, cuja ação só pode ser obstada nos seus efeitos
sobre a sociedade por meios que impressionam imediatamente os
sentidos e que se fixam nos espíritos, para contrabalançar por
impressões vivas a força das paixões particulares, quase sempre
opostas ao bem geral. Qualquer outro meio seria insuficiente.
Quando as paixões são vivamente abaladas pelos objetos
presentes, os mais sábios discursos, a eloqüência mais
arrebatadora, as verdades mais sublimes, não passam, para elas,
de um freio impotente que logo despedaçam.
Por conseguinte, só a necessidade
constrange os homens a ceder uma parte de sua liberdade; daí
resulta que cada um só consente em pôr no depósito comum a
menor porção possível dela, isto é, precisamente o que era
preciso para empenhar os outros em mantê-lo na posse do resto.
O conjunto de todas essas pequenas
porções de liberdade é o fundamento do direito de punir. Todo
exercício do poder que se afastar dessa base é abuso e não
justiça; é um poder de fato e não de direito (8);
é uma usurpação e não mais um poder legítimo.
As penas que ultrapassam a
necessidade de conservar o depósito da salvação pública são
injustas por sua natureza; e tanto mais justas serão quanto mais
sagrada e inviolável for a segurança e maior a liberdade que o
soberano conservar aos súditos.
III. CONSEQUÊNCIAS DESSES PRINCÍPIOS
A PRIMEIRA
conseqüência desses princípios é que só as leis podem fixar
as penas de cada delito e que o direito de fazer leis penais não
pode residir senão na pessoa do legislador, que representa toda a
sociedade unida por um contrato social.
Ora, o magistrado, que também faz
parte da sociedade, não pode com justiça infligir a outro membro
dessa sociedade uma pena que não seja estatuída pela lei; e, do
momento em que o juiz é mais severo do que a lei, ele é injusto,
pois acrescenta um castigo novo ao que já está determinado.
Segue-se que nenhum magistrado pode, mesmo sob o pretexto do bem público,
aumentar a pena pronunciada contra o crime de um cidadão.
A segunda conseqüência é que o
soberano, que representa a própria sociedade, só pode fazer leis
gerais, às quais todos devem submeter-se; não lhe compete, porém,
julgar se alguém violou essas leis.
Com efeito, no caso de um delito, há
duas partes: o soberano, que afirma que o contrato social foi
violado, e o acusado, que nega essa violação. É preciso, pois,
que haja entre ambos um terceiro que decida a contestação. Esse
terceiro é o magistrado, cujas sentenças devem ser sem apelo e
que deve simplesmente pronunciar se há um delito ou se não há.
Em terceiro lugar, mesmo que a
atrocidade das mesmas não fosse reprovada pela filosofia, mãe
das virtudes benéficas e, por essa razão, esclarecida, que
prefere governar homens felizes e livres a dominar covardemente um
rebanho de tímidos escravos; mesmo que os castigos cruéis não
se opusessem diretamente ao bem público e ao fim que se lhes
atribui, o de impedir os crimes, bastará provar que essa
crueldade é inútil, para que se deva considerá-la como odiosa,
revoltante, contrária a toda justiça e à própria natureza do
contrato social.
IV. DA INTERPRETAÇÃO DAS LEIS
RESULTA
ainda, dos princípios estabelecidos precedentemente, que os
juizes dos crimes não podem ter o direito de interpretar as leis
penais, pela razão mesma de que não são legisladores. Os juizes
não receberam as leis como uma tradição doméstica, ou como um
testamento dos nossos antepassados, que aos seus descendentes
deixaria apenas a missão de obedecer. Recebem-nas da sociedade
viva, ou do soberano, que é representante dessa sociedade, como
depositário legítimo do resultado atual da vontade de todos.
Não se julgue que a autoridade das
leis esteja fundada na obrigação de executar antigas convenções
(9);
essas velhas convenções são nulas, pois não puderam ligar
vontades que não existiam. Não se pode sem injustiça exigir sua
execução; seria reduzir os homens a não passar de um vil
rebanho sem vontade e sem direitos. As leis emprestam sua força
da necessidade de orientar os interesses particulares para o bem
geral e do juramento formal ou tácito que os cidadãos vivos
voluntariamente fizeram ao rei.
Qual será, pois o legítimo intérprete
das leis? O soberano, isto é, o depositário das vontades atuais
de todos; e não o juiz, cujo dever consiste exclusivamente em
examinar se tal homem praticou ou não um ato contrário às leis.
O juiz deve fazer um silogismo
perfeito. A maior deve ser a lei geral; a menor, a ação conforme
ou não à lei; a conseqüência, a liberdade ou a pena. Se o juiz
for constrangido a fazer um raciocínio a mais, ou se o fizer por
conta própria, tudo se torna incerto e obscuro.
Nada mais perigoso do que o axioma
comum, de que é preciso consultar o espírito da lei. Adotar tal
axioma é romper todos os diques e abandonar as leis à torrente
das opiniões. Essa verdade me parece demonstrada, embora pareça
um. paradoxo aos espíritos vulgares que se impressionam mais
fortemente com uma pequena desordem atual do que com conseqüências
distantes, mas mil vezes mais funestas, de um só princípio falso
estabelecido numa nação.
Todos os nossos conhecimentos, todas
as nossas idéias se mantêm. Quanto mais complicadas, tanto
maiores são as suas relações e resultados.
Cada homem tem sua maneira própria
de ver; e o mesmo homem, em diferentes épocas, vê diversamente
os mesmos objetos. O espírito de uma lei seria, pois, o resultado
da boa ou má lógica de um juiz, de uma digestão fácil ou
penosa, da fraqueza do acusado, da violência das paixões do
magistrado, de suas relações com o ofendido, enfim, de todas as
pequenas causas que mudam as aparências e desnaturam os objetos
no espírito inconstante do homem.
Veríamos, assim, a sorte de um
cidadão mudar de face ao passar para outro tribunal, e a vida dos
infelizes estaria à mercê de um falso raciocínio, ou do mau
humor do juiz. Veríamos o magistrado interpretar apressadamente
as leis, segundo as idéias vagas e confusas que se apresentassem
ao seu espírito. Veríamos os mesmos delitos punidos
diferentemente, em diferentes tempos, pelo mesmo tribunal, porque,
em lugar de escutar a voz constante e invariável das leis, ele se
entregaria à instabilidade enganosa das interpretações arbitrárias.
Podem essas irregularidades funestas
ser postas em paralelo com os inconvenientes momentâneos que às
vezes produz a observação literal das leis?
Talvez esses inconvenientes
passageiros obriguem o legislador a fazer, no texto equívoco de
uma lei, correções necessárias e fáceis. Mas, seguindo a letra
da lei, não se terá ao menos que temer esses raciocínios
perniciosos, nem essa licença envenenada de tudo explicar de
maneira arbitrária e muitas vezes com intenção venal.
Quando as leis forem fixas e
literais, quando só confiarem ao magistrado a missão de examinar
os atos dos cidadãos, para decidir se tais atos são conformes ou
contrários à lei escrita; quando, enfim, a regra do justo e do
injusto, que deve dirigir em todos os seus atos o ignorante e o
homem instruído, não for um motivo de controvérsia, mas simples
questão de fato, então não mais se verão os cidadãos
submetidos ao jugo de uma multidão de pequenos tiranos, tanto
mais insuportáveis quanto menor é a distância entre o opressor
e o oprimido; tanto mais cruéis quanto maior resistência
encontram, porque a crueldade dos tiranos é proporcional, não às
suas forças, mas aos obstáculos que se lhes opõem; tanto mais
funestos quanto ninguém pode livrar-se do seu jugo senão
submetendo-se ao despotismo de um só.
Com leis penais executadas à letra,
cada cidadão pode calcular exatamente os inconvenientes de uma ação
reprovável; e isso é útil, porque tal conhecimento poderá
desviá-lo do crime. Gozará com segurança de sua liberdade e dos
seus bens; e isso é justo, porque é esse o fim da reunião dos
homens em sociedade. É verdade, também, que os cidadãos
adquirirão assim um certo espírito de independência e serão
menos escravos dos que ousaram dar o nome sagrado de virtude à
covardia, às fraquezas e às complacências cegas; estarão, porém,
menos submetidos às leis e à autoridade dos magistrados.
Tais princípios desagradarão sem dúvida
aos déspotas subalternos que se arrogaram o direito de esmagar
seus inferiores com o peso da tirania que sustentam. Tudo eu
poderia recear, se esses pequenos tiranos se lembrassem um dia de
ler o meu livro e entendê-lo; mas, os tiranos não lêem.
V. DA OBSCURIDADE DAS LEIS
SE
a interpretação arbitrária das leis é um mal, também o é a
sua obscuridade, pois precisam ser interpretadas. Esse
inconveniente é bem maior ainda quando as leis não são escritas
em língua vulgar (10).
Enquanto o texto das leis não for
um livro familiar, uma espécie de catecismo, enquanto forem
escritas numa língua morta e ignorada do povo, e enquanto forem
solenemente conservadas como misteriosos oráculos, o cidadão,
que não puder julgar por si mesmo as conseqüências que devem
ter os seus próprios atos sobre a sua liberdade e sobre os seus
bens, ficará na dependência de um pequeno número de homens
depositários e intérpretes das leis.
Colocai o texto sagrado das leis nas
mãos do povo, e, quanto mais homens houver que o lerem, tanto
menos delitos haverá; pois não se pode duvidar que no espirito
daquele que medita um crime, o conhecimento e a certeza das penas
ponham freio à eloqüência das paixões.
Que pensar dos homens,, quando se
reflete que as leis da maior parte das nações estão escritas em
línguas mortas e que esse costume bárbaro ainda subsiste nos países
mais esclarecidos da Europa?
Dessas últimas reflexões resulta
que, sem um corpo de leis escritas, jamais uma sociedade poderá
tomar uma forma de governo fixo, em que a força resida no corpo
político e não nos membros desse corpo; em que as leis não
possam alterar-se e destruir-se pelo choque dos interesses
particulares, nem reformar-se senão pela vontade geral.
A razão e a experiência fizeram
ver quantas tradições humanas se tornam mais duvidosas e mais
contestadas, à medida que a gente se afasta de sua fonte. Ora, se
não existe um momento estável do pacto social, como resistirão
as leis ao movimento sempre vitorioso do tempo e das paixões?
Vê-se por aí, igualmente, a
utilidade da imprensa, que pode, só ela, tornar todo o público,
e não alguns particulares, depositário do código sagrado das
leis.
Foi a imprensa que dissipou esse
tenebroso espírito de cabala e de intriga, que, não pode
suportar a luz e que finge desprezar as ciências somente porque
secretamente as teme.
Se agora, na Europa, diminuem esses
crimes atrozes que assombravam nossos pais, se saímos enfim desse
estado de barbárie que tornava nossos antepassados ora escravos
ora tiranos, é à imprensa que o devemos.
Os que conhecem a história de dois
ou três séculos e do nosso podem ver a humanidade, a
generosidade, a tolerância mútua e as mais doces virtudes
nasceram no seio do luxo e da indolência. Quais foram, ao contrário,
as virtudes dessas épocas que, tão sem propósitos, se chamam séculos
da boa fé e da simplicidade antiga?
A humanidade gemia sob o jugo da
implacável superstição; a avareza e a ambição de um pequeno número
de homens poderosos inundavam de sangue humano os palácios dos
grandes e os tronos dos reis. Eram traições secretas e morticínios
públicos. O povo só encontrava na nobreza opressores e tiranos;
e os ministros do Evangelho, manchados na carnificina e as mãos
ainda sangrentas, ousavam oferecer aos olhos do povo um Deus de
misericórdia e de paz.
Os que se levantam contra a pretensa
corrupção do grande século em que vivemos não acharão ao
menos que esse quadro abominável possa convir-lhe.
VI. DA PRISÃO
OUTORGA-SE,
em geral, aos magistrados encarregados de fazer as leis, um
direito contrário ao fim da sociedade, que é a segurança
pessoal; refiro-me ao direito de prender discricionariamente os
cidadãos, de tirar a liberdade ao inimigo sob pretextos frívolos,
e, por conseguinte de deixar livres os que eles protegem, mau
grado todos os indícios do delito.
Como se tornou tão comum um erro tão
funesto? Embora a prisão difira das outras penas, por dever
necessariamente preceder a declaração jurídica do delito, nem
por isto deixa de ter, como todos os outros gêneros de castigos,
o caráter essencial de que só a lei deve determinar o caso em
que é preciso empregá-la.
Assim, a lei deve estabelecer, de
maneira fixa, por que indícios de delito um acusado pode ser
preso e submetido a interrogatório.
O clamor público, a fuga, as
confissões particulares, o depoimento de um cúmplice do crime,
as ameaças que o acusado pode fazer, seu ódio inveterado ao
ofendido, um corpo de delito existente, e outras presunções
semelhantes, bastam para permitir a prisão de um cidadão. Tais
indícios devem, porém, ser especificados de maneira estável
pela lei, e não pelo juiz, cujas sentenças se tornam um atentado
à liberdade pública, quando não são simplesmente a aplicação
particular de uma máxima geral emanada do código das leis.
À medida que as penas forem mais
brandas, quando as prisões já não forem a horrível mansão do
desespero e da fome, quando a piedade e a humanidade penetrarem
nas masmorras, quando enfim os executores impiedosos dos rigores
da justiça abrirem os corações à compaixão, as leis poderão
contentar-se com indícios mais fracos para ordenar a prisão.
A prisão não deveria deixar
nenhuma nota de infâmia sobre o acusado cuja inocência foi
juridicamente reconhecida. Entre os romanos, quantos cidadãos não
vemos, acusados anteriormente de crimes hediondos, mas em seguida
reconhecidos inocentes, receberem da veneração do povo os
primeiros cargos do Estado? Porque é tão diferente, em nossos
dias, a sorte de um inocente preso?
É porque o sistema atual da
jurisprudência criminal apresenta aos nossos espíritos a idéia
da força e do poder, em lugar da justiça; é porque se lançam,
indistintamente, na mesma masmorra, o inocente suspeito e o
criminoso convicto; é porque a prisão, entre nós, é antes um
suplício que um meio de deter um acusado; é porque, finalmente,
as forças que defendem externamente o trono e os direitos da nação
estão separadas das que mantêm as leis no interior, quando
deveriam estar estreitamente unidas.
Na opinião pública, as prisões
militares desonram bem menos do que as prisões civis. Se as
tropas do Estado, reunidas sob a autoridade das leis comuns, sem
contudo dependerem imediatamente dos magistrados, fossem
encarregadas da guarda das prisões, a mancha de infâmia
desapareceria ante o aparato e o fausto que acompanham os corpos
militares; porque, em geral, a infâmia, como tudo o que depende
das opiniões populares, se liga mais à forma do que ao fundo.
Mas, como as leis e os costumes de
um povo estão sempre atrasados de vários séculos em relação
às luzes atuais, conservamos ainda a barbárie e as idéias
ferozes dos caçadores do norte, nossos selvagens antepassados.
Os nossos costumes e as nossas leis
retardatárias estão bem longe das luzes dos povos. Ainda estamos
dominados pelos preconceitos bárbaros que nos legaram os nossos
avós, os bárbaros caçadores do norte.
VII. DOS INDÍCIOS DO DELITO E DA
FORMA DOS JULGAMENTOS
EIS
um teorema geral, que pode ser muito útil para calcular a certeza
de um fato e, principalmente, o valor dos indícios de um delito:
Quando as provas de um fato se
apoiam todas entre si, isto é, quando os indícios do delito não
se sustentam senão uns pelos outros, quando a força de várias
provas depende da verdade de uma só, o número dessas provas nada
acrescenta nem subtrai à probabilidade do fato: merecem pouca
consideração, porque, destruindo a única prova que parece
certa, derrubais todas as outras.
Mas, quando as provas são
independentes, isto é quando cada indício se prova à parte,
quanto mais numerosos forem esses indícios, tanto mais provável
será o delito, porque a falsidade de uma prova em nada influi
sobre a certeza das restantes.
Não se admirem de ver-me empregar a
palavra probabilidade ao tratar de crimes que, para merecerem um
castigo, devem ser certos; porque, a rigor, toda certeza moral é
apenas uma probabilidade, que merece, contudo, ser considerada
como uma certeza, quando todo homem de bom senso é forçado a
dar-lhe o seu assentimento, por uma espécie de hábito natural
que resulta da necessidade de agir que é anterior a toda especulação.
A certeza que se exige para
convencer um culpado é, pois, a mesma que determina todos os
homens nos seus mais importantes negócios.
As provas de um delito podem
distinguir-se em provas perfeitas e provas imperfeitas. As provas
perfeitas são as que demonstram positivamente que é impossível
que o acusado seja inocente. As provas são imperfeitas quando não
excluem a possibilidade da inocência do acusado.
Uma única prova perfeita é
suficiente para autorizar a condenação; se se quiser, porém,
condenar sobre provas imperfeitas, como cada uma dessas provas não
estabelece a impossibilidade da inocência do acusado, é preciso
que sejam em número muito grande para valerem uma prova perfeita,
isto é, para provarem todas juntas que é impossível que o
acusado não seja culpado.
Acrescentarei ainda que as provas
imperfeitas, às quais o acusado nada responde de satisfatório,
embora deva, se é inocente, ter meios de justificar-se, se tornam
por isso mesmo provas perfeitas.
É, todavia, mais fácil sentir essa
certeza moral de um delito do que defini-la exatamente. Eis o que
me faz encarar como sábia a lei que, em algumas nações, dá ao
juiz principal assessores que o magistrado não escolheu, mas que
a sorte designou livremente; porque então a ignorância, que
julga por sentimento, está menos sujeita ao erro do que homem
instruído que decide segundo a incerta opinião.
Quando as leis são claras e
precisas, o dever do juiz limita-se à constatação do fato. Se são
necessárias destreza e habilidade na investigação das provas de
um delito, se se requerem clareza e precisão na maneira de
apresentar o seu resultado, para julgar segundo esse mesmo
resultado, basta o simples bom-senso: guia menos enganador do que
todo o saber de um juiz acostumado a só procurar culpados por
toda parte e levar tudo ao sistema que adotou segundo os seus
estudos.
Felizes as nações entre as quais o
conhecimento das leis não é uma ciência.
Lei sábia e cujos efeitos são
sempre felizes é a que prescreve que cada um seja julgado por
seus iguais; porque, quando se trata da fortuna e da liberdade de
um cidadão, todos os sentimentos inspirados pela desigualdade
devem silenciar. Ora, o desprezo com o qual o homem poderoso olha
para a vitima do infortúnio, e a indignação que experimenta o
homem de condição medíocre ao ver o culpado que está acima
dele por sua condição, são sentimentos perigosos que não
existem nos julgamentos de que falo.
Quando o culpado e o ofendido estão
em condições desiguais, os juizes devem ser escolhidos, metade
entre os iguais do acusado e metade entre os do ofendido, para
contrabalançar assim os interesses pessoais, que modificam, mau
grado nosso, as aparências dos objetos, e para só deixar falar a
verdade e as leis.
Igualmente justo é que o culpado
possa recusar um certo número dos juizes que lhe forem suspeitos,
e, se o acusado gozar constantemente desse direito, exercê-lo-á
com reserva; porque de outro modo pareceria condenar-se a si
mesmo.
Sejam públicos os julgamentos;
sejam-no também as provas do crime: e a opinião, que é talvez o
único laço das sociedades, porá freio à violência e às paixões.
O povo dirá: Não somos escravos, mas protegidos pelas leis. Esse
sentimento de segurança, que inspira a coragem, eqüivale a um
tributo para o soberano que compreende os seus verdadeiros
interesses.
Não entrarei em outros pormenores
sobre as precauções que exige o estabelecimento dessas espécies
de instituições. Para aqueles aos quais é necessário tudo
dizer, tudo eu diria inutilmente.
VIII. DAS TESTEMUNHAS
É IMPORTANTE,
em toda boa legislação, determinar de maneira exata o grau de
confiança que se deve dar às testemunhas e a natureza das provas
necessárias para constatar o delito.
Todo homem razoável, isto é, todo
homem que puser ligação em suas idéias e que experimentar as
mesmas sensações que os outros homens, poderá ser recebido em
testemunho. Mas, a confiança que se lhe der deve medir-se pelo
interesse que ele tem de dizer ou não dizer a verdade.
É, pois, por motivos frívolos e
absurdos que as leis não admitem em testemunho nem as mulheres,
por causa de sua franqueza, nem os condenados, porque estes
morreram civilmente, nem as pessoas com nota de infâmia, porque,
em todos esses casos, uma testemunha pode dizer a verdade, quando
não tem nenhum interesse em mentir.
Entre os abusos de palavras que
tiveram certa influência sobre os negócios deste mundo, um dos
mais notáveis é o que faz considerar como nulo o depoimento de
um culpado já condenado. Graves jurisconsultos fazem este raciocínio
Este homem foi atingido por morte civil; ora, um morto já não é
capaz de nada... Muitas vítimas se sacrificaram a essa vã metáfora:
e muitas vezes se tem contestado seriamente à verdade santa o
direito de preferência sobre as formas judiciárias.
Sem dúvida, é preciso que os
depoimentos de um culpado já condenado não possam retardar o
curso da justiça; mas porque, após a sentença, não conceder
aos interesses da verdade e à terrível situação do culpado
alguns instantes ainda, para justificar, se possível, ou aos seus
cúmplices ou a si próprio, com depoimentos novos que mudam a
natureza do fato?
As formalidades e criteriosas
procrastinações são necessárias nos processos criminais, ou
porque não deixam nada à arbitrariedade do juiz, ou porque fazem
compreender ao povo que os julgamentos são feitos com solenidade
e segundo as regras, e não precipitadamente ditados polo
interesse; ou, finalmente, porque a maior parte dos homens,
escravos do hábito, e mais inclinados a sentir do que raciocinar,
fazem assim uma idéia mais augusta das funções do magistrado.
A verdade, muitas vezes demasiado
simples ou demasiado complicada, tem necessidade de certa pompa
exterior para merecer o respeito do povo.
As formalidades, porém, devem ser
fixadas, por leis, nos limites em que não possam prejudicar a
verdade. De outro modo, seria uma nova fonte de inconvenientes
funestos.
Disse eu que se podia admitir em
testemunho toda pessoa que não tem nenhum interesse em mentir.
Deve, pois, conceder-se à testemunha mais ou menos confiança, à
proporções do ódio ou da amizade que ela tem ao acusado e de
outras relações mais ou menos estreitas que ambos mantenham.
Uma só testemunha não basta
porque, negando o acusado o que a testemunha afirma, não há nada
de certo e a justiça deve então respeitar o direito que cada um
tem de ser julgado inocente (11).
Deve dar-se às testemunhas um crédito
tanto mais circunspecto quanto mais atrozes são os crimes e mais
inverosímeis as circunstâncias. Tais são, por exemplo, as acusações
de magia e as ações gratuitamente cruéis. No primeiro caso, é
melhor acreditar que as testemunhas mentem, porque é mais comum
ver vários homens caluniarem de concerto, por ódio ou por ignorância,
do que ver um só homem exercer um poder que Deus recusou a todo
ser criado.
Da mesma forma, não se deve admitir
com precipitação a acusação de uma crueldade sem motivos,
porque o homem só é cruel por interesse, por ódio ou por temor.
O coração humano é incapaz de um sentimento inútil; todos os
seus sentimentos são o resultado das impressões que os objetos
causaram sobre os sentidos.
Deve, igualmente, dar-se menos crédito
a um homem que é membro de uma ordem, ou de uma casta, ou de uma
sociedade particular, cujos costumes e máximas são em geral
desconhecidos, ou diferem dos usos comuns, porque, além de suas
próprias paixões, esse homem tem ainda as paixões da sociedade
da qual faz parte.
Enfim, os depoimentos das
testemunhas devem ser quase nulos, quando se trata de algumas
palavras das quais se quer fazer um crime; porque o tom, os gestos
e tudo o que precede ou segue as diferentes idéias que os homens
ligam a suas palavras, alteram e modificam de tal modo os
discursos que é quase impossível repeti-los com exatidão.
As ações violentas, que constituem
os verdadeiros delitos, deixam traços notáveis na maioria das
circunstâncias que as acompanham e efeitos que das mesmas
derivam; mas, as palavras não deixam vestígio e só subsistem na
memória, quase sempre infiel e muitas vezes influenciadas, dos
que as ouviram.
É, pois, infinitamente mais fácil
fundar uma calúnia sobre discursos do que sobre ações, pois o número
das circunstâncias que se alegam para provar as ações fornece
ao acusado mais recursos para justificar-se; ao passo que um
delito de palavras não apresenta, de ordinário, nenhum meio de
justificação.
IX. DAS ACUSAÇÕES SECRETAS
AS
acusações secretas são um abuso manifesto, mas consagrado e
tornado necessário em vários governos, pela fraqueza de sua
constituição. Tal uso torna os homens falsos e pérfidos. Aquele
que suspeita um delator no seu concidadão vê nele logo um
inimigo. Costumam, então, mascarar-se os próprios sentimentos; e
o hábito de ocultá-los a outrem faz que cedo sejam dissimulados
a si mesmo.
Como os homens que chegaram a esse
ponto funesto são dignos de piedade! Desorientados, sem guia e
sem princípios estáveis, vagam ao acaso no vasto mar da
incerteza, preocupados exclusivamente em escapar aos monstros que
os ameaçam. Um futuro cheio de mil perigos envenena para eles os
momentos presentes. Os prazeres duráveis da tranqüilidade e da
segurança lhes são desconhecidos. Se gozaram., apressadamente e
na confusão, de alguns instantes de felicidade espalhados aqui e
ali sobre o triste curso de sua desgraçada vida, bastarão para
consolá-los de ter vivido?
Será entre tais homens que
encontraremos soldados intrépidos, defensores da pátria e do
trono? Acharemos entre eles magistrados incorruptíveis, que
saibam sustentar e desenvolver os verdadeiros interesses do
soberano, com uma eloqüência livre e patriótica, que deponham
ao mesmo tempo aos pés do monarca os tributos e as bênçãos de
todos os cidadãos, que levem ao palácio dos grandes e ao humilde
teto do pobre a segurança, a paz, a confiança, e que dêem ao
trabalho e à indústria a esperança de uma sorte cada vez mais
doce?... É sobretudo este último sentimento que reanima os
Estados e lhes dá uma vida nova.
Quem poderá defender-se da calúnia,
quando esta se arma com o escudo mais sólido da tirania: o
sigilo?...
Miserável governo aquele em que o
soberano suspeita um inimigo em cada súdito e se vê forçado,
para garantir a tranqüilidade pública, a perturbar a de cada
cidadão!
Quais são, pois, os motivos sobre
os quais se apoiam os que justificam as acusações e as penas
secretas? A tranqüilidade pública? A segurança e a manutenção
da forma de governo? É mister confessar que estranha constituição
é aquela em que o governo, que tem por si a força e a opinião,
ainda mais poderosa do que a força, parece todavia temer cada
cidadão!
Receia-se que o acusador não esteja
em segurança? As leis são, então, insuficientes para defendê-lo,
e os súditos são mais poderosos do que o soberano e as leis.
Desejar-se-ia salvar o delator da
infâmia a que se expõe? Seria, então, confessar que se
autorizam as calúnias secretas, mas que se punem as calúnias públicas.
Apoiar-se-ão na natureza do delito?
Se o governo for bastante infeliz para considerar como crimes
certos atos indiferentes ou mesmo úteis ao público, terá razão:
as acusações e os julgamentos, nesse caso, jamais seriam
bastante secretos.
Pode haver, porém, um delito, isto
é, uma ofensa à sociedade, que não seja do interesse de todos
punir publicamente? Respeito todos os governos; não falo de
nenhum em particular e sei que há circunstâncias em que os
abusos parecem de tal modo inerentes à constituição de um
Estado, que não parece possível desarraigá-los sem destruir o
corpo político. Mas, se eu tivesse de ditar novas leis em algum
canto isolado do universo, minha mão trêmula se recusaria a
autorizar as acusações secretas: julgaria ver toda a posteridade
responsabilizar-me pelos males atrozes que elas acarretam.
Já o disse Montesquieu: as acusações
públicas são conformes ao espírito do governo republicano, no
qual o zelo do bem geral deve ser a primeira paixão dos cidadãos.
Nas monarquias, em que o amor da pátria é muito fraco, pela própria
natureza do governo, é sábia a instituição de magistrados
encarregados de acusar, em nome do público, os infratores das
leis. Mas, todo governo, republicano ou monárquico, deve infligir
ao caluniador a pena que o acusado sofreu, se ele for culpado.
X. DOS INTERROGATÓRIOS SUGESTIVOS
NOSSAS
leis proíbem os interrogatórios sugestivos, isto é, os que se
fazem sobre o fato mesmo do delito; porque, segundo os nossos
jurisconsultos, só se deve interrogar sobre a maneira pela qual o
crime foi cometido e sobre as circunstâncias que o acompanham.
Um juiz não pode, contudo, permitir
as questões diretas, que sugiram ao acusado uma resposta
imediata. O juiz que interroga, dizem os criminalistas, só deve
ir ao fato indiretamente, e nunca em linha reta.
Se se estabeleceu esse método para
evitar sugerir ao acusado uma resposta que o salve, ou por que foi
considerada coisa monstruosa e contra a natureza um homem
acusar-se a si mesmo, qualquer que tenha sido o fim visado com a
proibição dos interrogatórios sugestivos, fez-se cair as leis
numa contradição bem notória, pois que ao mesmo tempo se
autorizou a tortura.
Haverá, com efeito, interrogatório
mais sugestivo do que a dor? O celerado robusto, que pode evitar
uma pena longa e rigorosa, sofrendo com força tormentos de um
instante, guarda um silêncio obstinado e se vê absolvido. Mas, a
questão arranca ao homem fraco uma confissão pela qual ele se
livra da dor presente, que o afeta mais fortemente do que todos os
males futuros.
E, se um interrogatório especial é
contrário à natureza, obrigando o acusado a acusar-se a si
mesmo, não será ele constrangido a isso mais violentamente pelos
tormentos e as convulsões da dor? Os homens, porém, se ocupam
muito mais, em sua norma de conduta, com a diferença das palavras
do que com a das coisas.
Observemos, finalmente, que aquele
que se obstina a não responder ao interrogatório a que é
submetido merece sofrer uma pena que deve ser fixada pelas leis.
É mister que essa pena seja muito
pesada; porque o silêncio de um criminoso, perante o juiz que o
interroga, é para a sociedade um escândalo e a justiça uma
ofensa que cumpre prevenir tanto quanto possível.
Mas, essa pena particular já não
é necessária quando o crime já foi constatado e o criminoso
convencido, pois nesse caso o interrogatório se torna inútil.
Semelhantemente, as confissões do acusado não são necessárias
quando provas suficientes demonstraram que ele é evidentemente
culpado do crime de que se trata. Este último caso é o mais
ordinário; e a experiência mostra que, na maior parte dos
processos criminais, os culpados negam tudo.
XI. DOS
JURAMENTOS
OUTRA
contradição entre as leis e os sentimentos naturais é exigir de
um acusado o juramento de dizer a verdade, quando ele tem o maior
interesse em calá-la. Como se o homem pudesse jurar de boa fé
que vai contribuir para sua própria destruição! Como se, o mais
das vezes, a voz do interesse não abafasse no coração humano a
da religião!
A história de todos os séculos
prova que esse dom sagrado do céu é a coisa de que mais se
abusa. E como a respeitarão os celerados, se ela é diariamente
ultrajada pelos homens considerados mais sábios e mais virtuosos?
Os motivos que a religião opõe ao
temor dos tormentos e ao amor à vida são quase sempre fracos
demais, porque não impressionam os sentidos. As coisas do céu
estão submetidas a leis inteiramente diversas das da terra.
Porque comprometer essas leis umas com as outras? Porque colocar o
homem na atroz alternativa de ofender a Deus, ou perder-se? E não
deixar ao acusado senão a escolha de ser mau cristão ou mártir
do juramento. Destrói-se dessa forma toda a força dos
sentimentos religiosos, único apoio da honestidade no coração
da maior parte dos homens; e pouco a pouco os juramentos não são
mais do que uma simples formalidade sem conseqüências.
Consulte-se a experiência e se
reconhecerá que os juramentos são inúteis, pois não há juiz
que não convenha que jamais o juramento faz o acusado dizer a
verdade.
A razão faz ver que assim deve ser,
porque todas as leis opostas aos sentimentos naturais do homem são
vãs e conseguintemente funestas.
Tais leis podem ser comparadas a um
dique que se elevasse diretamente no meio das águas de um rio
para interromper-lhe o curso: ou o dique é imediatamente
derrubado pela torrente que o leva, ou se forma debaixo dele um
abismo que o mina e o destrói insensivelmente.
XII. DA QUESTÃO
OU TORTURA
É uma
barbaria consagrada pelo uso na maioria dos governos aplicar a
tortura a um acusado enquanto se faz o processo, quer para
arrancar dele a confissão do crime, quer para esclarecer as
contradições em que caiu, quer para descobrir os cúmplices ou
outros crimes de que não é acusado, mas do qual poderia ser
culpado, quer enfim porque sofistas incompreensíveis pretenderam
que a tortura purgava a infâmia.
Um homem não pode ser considerado
culpado antes da sentença do juiz; e a sociedade só lhe pode
retirar a proteção pública depois que ele se convenceu de ter
violado as condições com as quais estivera de acordo. O direito
da força só pode, pois, autorizar um juiz a infligir uma pena a
um cidadão quando ainda se duvida se ele é inocente ou culpado.
Eis uma proposição bem simples: ou
o delito é certo, ou é incerto. Se é certo, só deve ser punido
com a pena fixada pela lei, e a tortura é inútil, pois já não
se tem necessidade das confissões do acusado. Se o delito é
incerto, não é hediondo atormentar um inocente? Com efeito,
perante as leis, é inocente aquele cujo delito não se provou.
Qual o fim político dos castigos? o
terror que imprimem nos corações inclinados ao crime.
Mas, que se deve pensar das
torturas, esses suplícios secretos que a tirania emprega na
obscuridade das prisões e que se reservam tanto ao inocente como
ao culpado?
Importa que nenhum delito conhecido
fique impune; mas, nem sempre é útil descobrir o autor de um
delito encoberto nas trevas da incerteza.
Um crime já cometido, para o qual já
não há remédio, só pode ser punido pela sociedade política
para impedir que os outros homens cometam outros semelhantes pela
esperança da impunidade. Se é verdade que a maioria dos homens
respeita as leis pelo temor ou pela virtude, se é provável que
um cidadão prefira segui-las a violá-las, o juiz que ordena a
tortura expõe-se constantemente a atormentar inocentes.
Direi ainda que é monstruoso e
absurdo exigir que um homem seja acusador de si mesmo, e procurar
fazer nascer a verdade pelos tormentos, como se essa verdade
residisse nos músculos e nas fibras do infeliz! A lei que
autoriza a tortura é uma lei que diz: "Homens, resisti à
dor. A natureza vos deu um amor invencível ao vosso ser, e o
direito inalienável de vos defenderdes; mas, eu quero criar em vós
um sentimento inteiramente contrário; quero inspirar-vos um ódio
de vós mesmos; ordeno-vos que vos tomeis vossos próprios
acusadores e digais enfim a verdade ao meio das torturas que vos
quebrarão os ossos e vos dilaceração os músculos... "
Esse meio infame de descobrir a
verdade é um monumento da bárbara legislação dos nossos
antepassados, que honravam com o nome de julgamentos de Deus as
provas de fogo, as da água fervendo e a sorte incerta dos
combates. Como se os elos dessa corrente eterna, cuja origem está
no seio da Divindade, pudessem desunir-se ou romper-se a cada
instante, ao sabor dos caprichos e das frívolas instituições
dos homens!
A única diferença existente entre
a tortura e as provas de fogo é que a tortura só prova o crime
quando o acusado quer confessar, ao passo que as provas queimantes
deixavam uma marca exterior, considerada como prova do crime.
Todavia, essa diferença é mais
aparente do que real. O acusado é tão capaz de não confessar o
que se exige dele quanto o era outrora de impedir, sem fraude, os
efeitos do fogo e da água fervendo.
Todos os atos da nossa vontade são
proporcionais à força das impressões sensíveis que os causam,
e a sensibilidade de todo homem é limitada. Ora, se a impressão
da dor se torna muito forte para ocupar todo o poder da alma, ela
não deixa a quem a sofre nenhuma outra atividade que exercer senão
tomar, no momento, a via mais curta para evitar os tormentos
atuais.
Dessa forma, o acusado já não pode
deixar de responder, pois não poderia escapar às impressões do
fogo e da água.
O inocente exclamará, então, que
é culpado, para fazer cessar torturas que já não pode suportar;
e o mesmo meio empregado para distinguir o inocente do criminoso
fará desaparecer toda diferença entre ambos.
A tortura é muitas vezes um meio
seguro de condenar o inocente fraco e de absolver o celerado
robusto. É esse, de ordinário, o resultado terrível dessa barbárie
que se julga capaz de produzir a verdade, desse uso digno dos
canibais, e que os romanos, mau grado a dureza dos seus costumes,
reservavam exclusivamente aos escravos, vítimas infelizes de um
povo cuja feroz virtude tanto se tem gabado.
De dois homens, igualmente inocentes
ou igualmente culpados, aquele que for mais corajoso e mais
robusto será absolvido; o mais fraco, porém, será condenado em
virtude deste raciocínio: "Eu, juiz, preciso encontrar um
culpado. Tu, que és vigoroso, soubeste resistir à dor, e por
isso eu te absolvo. Tu, que és fraco, cedeste à força dos
tormentos; portanto, eu te condeno. Bem sei que uma confissão
arrancada pela violência da tortura não tem valor algum; mais,
se não confirmares agora o que confessaste, far-te-ei atormentar
de novo".
O resultado da questão depende,
pois, de temperamento e de cálculo, que varia em cada homem na
proporção de sua força e sensibilidade; de maneira que, para
prever o resultado da tortura, bastaria resolver o problema
seguinte, mais digno de um matemático do que de um juiz:
"Conhecidas a força dos músculos e a sensibilidade das
fibras de um acusado, achar o grau de dor que o obrigará a
confessar-se culpado de determinado crime".
Interrogam um acusado para conhecer
a verdade; mas, se tão dificilmente a distinguem no ar, nos
gestos e na fisionomia de um homem tranqüilo, como a descobrirão
nos traços descompostos pelas convulsões da dor, quando todos os
sinais, que traem às vezes a verdade na fronte dos culpados,
estiverem alterados e confundidos?
Toda ação violenta faz desaparecer
as pequenas diferenças dos movimentos pelos quais se distingue,
às vezes, a verdade da mentira.
Resulta ainda do uso das torturas
uma conseqüência bastante notável: é que o inocente se acha
numa posição pior que a do culpado. Com efeito, o inocente
submetido à questão tem tudo contra si: ou será condenado, se
confessar o crime que não cometeu, ou será absolvido, mas depois
de sofrer tormentos que não mereceu.
O culpado, ao contrário, tem por si
um conjunto favorável: será absolvido se suportar a tortura com
firmeza, e evitará os suplícios de que foi ameaçado, sofrendo
uma pena muito mais leve. Assim, o inocente tem tudo que perder, o
culpado só pode ganhar.
Essas verdades são sentidas,
afinal, embora confusamente, pelos próprios legisladores; mas,
nem por isso suprimiram a tortura. Limitam-se a achar que as
confissões do acusado pelos tormentos são nulas se não forem em
seguida confirmadas pelo juramento. Se, porém, recusar-se a
confirmá-las, será torturado de novo.
Em alguns países e segundo certos
jurisconsultos, essas odiosas violências não são permitidas
mais do que três vezes; em outros, porém, e segundo outros
doutores, o direito de torturar fica inteiramente à discrição
do juiz.
E inútil fundamentar essas reflexões
com os inumeráveis exemplos de inocentes que se confessaram
culpados no meio de torturas. Não há povo, não há século que
não possa citar os seus.
Os homens são sempre os mesmos: vêem
as coisas presentes sem preocupar-se com as conseqüências. Não
há homem que, elevando suas idéias além das primeiras
necessidades da vida, não tenha ouvido a voz interior da natureza
chamá-lo a si e não tenha sido tentado a se lançar de novo nos
braços dela. Mas, o uso, esse tirano das almas vulgares, o
comprime e o retém no erro.
O segundo motivo, pelo qual se
submete à questão um homem que se supõe culpado, é a esperança
de esclarecer as contradições em que ele caiu nos interrogatórios
que o fizeram sofrer. Mas, o medo do suplício, a incerteza do
julgamento que vai ser pronunciado, a solenidade dos processos, a
majestade do juiz, a própria ignorância, igualmente comum à
maior parte dos acusados inocentes ou culpados, são outras tantas
razões para fazer cair em contradição, não só a inocência
que treme como o crime que procura ocultar-se.
Poder-se-ia crer que as contradições,
tão ordinárias no homem, ainda mesmo quando este tem o espírito
tranqüilo, não se multiplicarão nesses momentos de perturbação,
nos quais a idéia de escapar a um perigo iminente absorve toda a
alma?
Em terceiro lugar, submeter um
acusado à tortura, para descobrir se ele é culpado de outros
crimes além daquele de que é acusado, é fazer este odioso
raciocínio: "Tu és culpado de um delito; é, pois, possível
que tenhas cometido cem outros. Essa suspeita me preocupa; quero
certificar-me; vou empregar minha prova de verdade. As leis te farão
sofrer pelos crimes que cometeste, pelos que poderias cometer e
por aqueles dos quais eu quero considerar-te culpado".
Aplica-se igualmente a questão a um
acusado para descobrir os seus cúmplices. Mas, se está provado
que a tortura não é nada menos do que um meio certo de descobrir
a verdade, como fará ela conhecer os cúmplices, quando esse
conhecimento é uma das verdades que se procuram?
E certo que aquele que se acusa a si
mesmo mais facilmente acusará a outrem.
Além disso, será justo atormentar
um homem pelos crimes de outro homem? Não podem descobrir-se os cúmplices
pelos interrogatórios do acusado e das testemunhas, pelo exame
das provas e do corpo de delito, em suma, por todos os meios
empregados para constatar o delito?
Os cúmplices fogem quase sempre,
logo que o companheiro é preso. Só a incerteza da sorte que os
espera condena-os ao exílio e livra a sociedade dos novos
atentados que poderia recear deles; ao passo que o suplício do
culpado que ela tem nas mãos amedronta os outros homens e os
desvia do crime, sendo esse o único fim dos castigos.
A pretensa necessidade de purgar a
infâmia é ainda um dos absurdos motivos do uso das torturas. Um
homem declarado infame pelas leis se torna puro porque confessa o
crime enquanto lhe quebram os ossos? Poderá a dor, que é uma
sensação, destruir a infâmia, que é uma combinação moral?
Será a tortura um cadinho e a infâmia um corpo misto que deponha
nele tudo o que tem de impuro?
Em verdade, abusos tão ridículos não
deveriam ser tolerados no século XVIII.
A infâmia não é um sentimento
sujeito às leis ou regulado pela razão. É obra exclusiva da
opinião. Ora, como a tortura torna infame aquele que a sofre, é
absurdo que se queira lavar desse modo a infâmia com a própria
infâmia.
Não é difícil remontar a origem
dessa lei estranha, porque os absurdos adotados por uma nação
inteira se apoiam sempre em outras idéias estabelecidas e
respeitadas nessa mesma nação. O uso de purgar a infâmia pela
tortura parece ter sua fonte nas práticas da religião, que tanta
influência exerce sobre o espírito dos homens de todos os países
e de todos os tempos. A fé nos ensina que as nódoas contraídas
pela fraqueza humana, quando não mereceram a cólera eterna do
Ser supremo, são purificadas em outro mundo por um fogo
incompreensível. Ora, a infâmia é uma nódoa civil; e, uma vez
que a dor e o fogo do purgatório apagam as manchas espirituais,
porque os tormentos da questão não tirariam a nódoa civil da
infâmia?
Creio que se pode dar uma origem
mais ou menos semelhante ao uso que observam certos tribunais de
exigir as confissões do culpado como essenciais para sua condenação.
Tal uso parece tirado do misterioso tribunal da penitência, no
qual a confissão dos pecados é parte necessária dos
sacramentos.
E dessa forma que os homens abusam
das luzes da revelação; e, como essas luzes são as únicas que
iluminam os séculos da ignorância, a elas é que a dócil
humanidade recorreu em todas as ocasiões, mas para fazer as
aplicações mais falsas e mais infelizes.
A solidez dos princípios que
expusemos neste capítulo era conhecida dos legisladores romanos,
que só submetiam à tortura os escravos, espécie de homens sem
direito algum e sem nenhuma parte nas vantagens da sociedade
civil. Esses princípios foram adotados na Inglaterra, nação que
prova a excelência de suas leis pelos seus progressos nas ciências,
pela superioridade do seu comércio, pela extensão de suas
riquezas, por seu poder e por freqüentes exemplos de coragem e de
virtude política.
A Suécia, igualmente convencida da
injustiça da tortura, já não permite o seu uso. Esse infame
costume foi abolido por um dos mais sábios monarcas da Europa (12),
que elevou a filosofia ao trono e que, legislador benévolo, amigo
dos súditos, os tornou iguais e livres sob a dependência das
leis; única liberdade que homens razoáveis podem esperar da
sociedade; única igualdade que esta pode admitir.
Enfim, as leis militares não
admitiram a tortura; e, se esta pudesse existir em alguma parte,
seria sem dúvida nos exércitos, compostos em grande parte da escória
das nações.
Coisa espantosa para quem não
refletiu sobre a tirania do uso! São homens endurecidos nos
morticínios e familiarizados com o sangue que dão aos
legisladores de um povo em paz o exemplo de julgar os homens com
mais humanidade!
XIII. DA DURAÇÃO DO PROCESSO E DA
PRESCRIÇÃOQUANDO
o delito é constatado e as provas são certas, é justo conceder
ao acusado o tempo e os meios de justificar-se, se lhe for possível;
é preciso, porém, que esse tempo seja bastante curto para não
retardar demais o castigo que deve seguir de perto o crime, se se
quiser que o mesmo seja um freio útil contra os celerados.
Um mal entendido amor da humanidade
poderá condenar logo essa presteza, a qual, porém, será
aprovada pelos que tiverem refletido sobre os perigos múltiplos
que as extremas procrastinações da legislação fazem correr à
inocência.
Cabe exclusivamente às leis fixar o
espaço de tempo que se deve empregar para a investigação das
provas do delito, e o que se deve conceder ao acusado para sua
defesa. Se o juiz tivesse esse direito, estaria exercendo as funções
do legislador.
Quando se trata desses crimes
atrozes cuja memória subsiste por muito tempo entre os homens, se
os mesmos forem provados, não deve haver nenhuma prescrição em
favor do criminoso que se subtrai ao castigo pela fuga. Não é
esse, todavia, o caso dos delitos ignorados e pouco consideráveis:
é mister fixar um tempo após o qual o acusado, bastante punido
pelo exílio voluntário, possa reaparecer sem recear novos
castigos.
Com efeito, a obscuridade que
envolveu por muito tempo o delito diminui muito a necessidade do
exemplo, e permite devolver ao cidadão sua condição e seus
direitos com o poder de torná-lo melhor.
Só posso indicar aqui princípios
gerais. Para fazer sua aplicação precisa, é mister considerar a
legislação existente, os usos do país, as circunstâncias.
Limito-me a acrescentar que, para um povo que reconhecesse as
vantagens das penas moderadas, se as leis abreviassem ou
prolongassem a duração dos processos e o tempo da prescrição
segundo a gravidade do delito, se a prisão provisória e o exílio
voluntário fossem contados como uma parte da pena merecida pelo
culpado, chegar-se-ia a estabelecer assim uma justa progressão de
castigos suaves para um grande número de delitos.
Mas, o tempo que se emprega na
investigação das provas e o que fixa a prescrição não devem
ser prolongados em razão da gravidade do crime que se persegue,
porque, enquanto um crime não está provado, quanto mais atroz,
menos verossímil é ele. Será preciso, pois, às vezes, reduzir
o tempo dos processos e aumentar o que se exige para a prescrição.
Esse princípio parece, à primeira
vista, contraditório em relação ao que estabeleci mais acima, e
segundo o qual podem aplicar-se penas iguais para crimes
diferentes, considerando como partes do castigo o exílio voluntário
ou a prisão que precedeu a sentença. Procurarei explicar-me com
mais clareza.
Podem distinguir-se duas espécies
de delitos. A primeira é a dos crimes atrozes, que começa pelo
homicídio e que compreende toda a progressão dos mais horríveis
assassínios. Incluiremos na segunda espécie os delitos menos
hediondos do que o homicídio.
Essa distinção é tirada da
natureza. A segurança das pessoas é um direito natural; a
segurança dos bens é um direito da sociedade. Há bem poucos
motivos capazes de levar o homem a abafar no coração o
sentimento natural da compaixão que o desvia do assassínio. Mas,
como cada um é ávido de buscar o seu bem-estar, como o direito
de propriedade não está gravado nos corações, sendo simples
obra das convenções sociais, há uma porção de motivos que
induzem os homens a violar tais convenções.
Se se quiser estabelecer regras de
probabilidade para essas duas espécies de delitos, é preciso
colocá-las sobre bases diferentes. Nos grandes crimes, pela razão
mesma de que são mais raros, deve diminuir-se a duração da
instrução e do processo, porque a inocência do acusado é mais
provável do que o crime. Deve-se, porém, prolongar o tempo da
prescrição.
Por esse meio, que acelera a sentença
definitiva, tira-se aos maus a esperança de uma impunidade tanto
mais perigosa quanto maiores são os crimes.
Ao contrário, nos delitos menos
consideráveis e mais comuns, é preciso prolongar o tempo dos
processos, porque a inocência do acusado é menos provável, e
diminuir o tempo fixado para a prescrição, porque a impunidade
é menos perigosa.
É mister, igualmente, notar que, se
não se atender a isso, essa diferença de processo entre as duas
espécies de delitos pode dar ao criminoso a esperança da
impunidade, esperança tanto mais fundada quanto o crime for mais
hediondo e, portanto, mais verossímil. Observemos, porém, que um
acusado solto por falta de provas não é nem absolvido nem
condenado; que pode ser preso de novo pelo mesmo crime e submetido
a novo exame, se se descobrirem novos indícios do seu delito
antes de terminar o tempo fixado para a prescrição, segundo o
crime cometido.
Tal é, pelo menos ao meu ver, o
critério que se poderia seguir para preservar ao mesmo tempo a
segurança dos cidadãos e a sua liberdade, sem favorecer uma em
detrimento da outra. Esses dois bens são igualmente patrimônio
inalienável de todos os cidadãos; e ambos estão cercados de
perigos quando a segurança individual é abandonada ao capricho
de um déspota e quando a liberdade é protegida pela desordem
tumultuosa.
Cometem-se na sociedade certos
crimes que são ao mesmo tempo comuns e difíceis de constatar.
Desde então, pois é quase impossível provar tais crimes, a inocência
é provável perante a lei. E, como a esperança da impunidade
contribui pouco para multiplicar essas espécies de delitos, que têm
todos causas diferentes, a impunidade raramente é perigosa. Nesse
caso, podem, pois, diminuir-se igualmente o tempo dos processos e
o da prescrição.
Mas, segundo os princípios aceitos,
é principalmente para os crimes difíceis de provar, como o adultério,
a pederastia, que se admitem arbitrariamente as presunções, as
conjecturas, as semiprovas, como se um homem pudesse ser
semi-inocente ou semi-culpado, e merecer ser semi-absolvido ou
semi-punido!
É sobretudo nesse gênero de
delitos que se exercem as crueldades da tortura sobre o acusado,
sobre as testemunhas, sobre a família inteira do infeliz de quem
se suspeita, segundo as odiosas lições de alguns criminalistas,
que escreveram, com fria barbárie, compilações de iniqüidades
que ousam apresentar como regras aos magistrados e como leis às
nações.
Quando se reflete sobre todas essas
coisas, é-se forçado a reconhecer com amargura que a razão
quase nunca tem sido consultada nas leis que se deram aos povos.
Os crimes mais hediondos, os delitos mais obscuros e mais quiméricos,
e portanto os mais inverossímeis, são precisamente os que se
consideram constatados sobre simples conjecturas e indícios menos
sólidos e mais equívocos. Dizer-se-ia que as leis e o magistrado
só têm interesse em descobrir um crime, e não em procurar a
verdade; e que o legislador não vê que se expõe constantemente
ao risco de condenar um inocente, pronunciando-se sobre crimes
inverossímeis ou mal provados.
À maioria dos homens falta essa
energia que produz igualmente as grandes ações e os grandes
crimes, e que traz quase sempre juntas as virtudes magnânimas e
os crimes monstruosos, nos Estados que só se mantêm pela
atividade do governo, pelo orgulho nacional e pelo concurso das
paixões pelo bem público.
Quanto às nações cujo poderio é
consolidado e constantemente sustentado por boas leis, as paixões
enfraquecidas parecem mais capazes de manter a forma de governo
estabelecida do que de melhorá-la. Daí resulta uma conseqüência
importante: que os grandes crimes nem sempre são a prova da decadência
de um povo.
XIV. DOS CRIMES COMEÇADOS; DOS CÚMPLICES;
DA IMPUNIDADE
SE
BEM que as leis não possam punir a intenção, não é menos
verdadeira que uma ação que seja o começo de um delito e que
prova a vontade de cometê-lo, merece um castigo, mas menos grande
do que o que seria aplicado se o crime tivesse sido cometido.
Esse castigo é necessário, porque
é importante prevenir mesmo as primeiras tentativas dos crimes.
Mas, como pode haver um intervalo entre a tentativa de um delito e
a sua execução, é justo reservar uma pena maior ao crime
consumado, para deixar àquele que apenas começou o crime alguns
motivos que o impeçam de acabá-lo.
Deve seguir-se a mesma gradação
nas penas, em relação aos cúmplices, se estes não foram todos
executantes imediatos.
Quando vários homens se unem para
enfrentar um perigo comum, quanto maior é o perigo, tanto mais
procurarão torná-lo igual para todos. Se as leis punissem mais
severamente os executantes do crime do que os simples cúmplices,
seria mais difícil aos que meditam um atentado encontrar entre
eles um homem que quisesse executá-lo, porque o risco seria
maior, em virtude da diferença das penas. Há, contudo, um caso
em que a gente deve afastar-se da regra que formulamos, e é
quando o executante do crime recebeu dos cúmplices uma recompensa
particular; como a diferença do risco foi compensada pela diferença
das vantagens, o castigo deve ser igual.
Se tais reflexões parecerem um
tanto rebuscadas, reflita-se que é importantíssimo que as leis
deixem aos cúmplices da má ação o mínimo de meios possível
para que se ponham de acordo.
Alguns tribunais oferecem a
impunidade ao cúmplice de um grande crime que trair os seus
companheiros. Esse expediente apresenta certas vantagens; mas, não
está isento de perigos, de vez que a sociedade autoriza desse
modo a traição, que repugna aos próprios celerados. Ela
introduz os crimes de covardia, bem mais funestos do que os crimes
de energia e de coragem, porque a coragem é pouco comum e espera
apenas uma força benfazeja que a dirija para o bem público, ao
passo que a covardia, muito mais geral, é um contágio que
infecta rapidamente todas as almas.
O tribunal que emprega a impunidade
para conhecer um crime mostra que se pode encobrir esse crime,
pois que ele não o conhece; e as leis descobrem-lhe a fraqueza,
implorando o socorro do próprio celerado que as violou.
Por outro lado, a esperança da
impunidade, para o cúmplice que trai, pode prevenir grandes
crimes e reanimar o povo, sempre apavorado quando vê crimes
cometidos sem conhecer os culpados.
Esse uso mostra ainda aos cidadãos
que aquele que infringe as leis, isto é, as convenções públicas,
já não é fiel às convenções particulares.
Parece-me que uma lei geral, que
prometesse a impunidade a todo cúmplice que revela um crime,
seria preferível a uma declaração especial num caso particular:
preveniria a união dos maus, pelo temor recíproco que inspiraria
a cada um de se expor sozinho aos perigos; e os tribunais já não
veriam os celerados encorajados pela idéia de que há casos em
que se pode ter necessidade deles. De resto, seria preciso
acrescentar aos dispositivos dessa lei que a impunidade traria
consigo o banimento do delator.
É, porém, em vão que procuro
abafar os remorsos que me afligem, quando autorizo as santas leis,
fiadoras sagradas da confiança pública, base respeitável dos
costumes, a proteger a perfídia, a legitimar a traição. E que
opróbrio para uma nação, se os seus magistrados, tornados infiéis,
faltassem à promessa que fizeram e se apoiassem vergonhosamente
em vãs sutilezas, para levar ao suplício aquele que respondeu ao
convite das leis!...
Esses monstruosos exemplos não são
raros; eis porque tanta gente só vê na sociedade política uma máquina
complicada, na qual os mais hábeis ou os mais poderosos governam
as molas ao seu capricho.
Eis também o que multiplica esses
homens frios, insensíveis a tudo o que encanta as almas ternas,
que só experimentam sensações calculadas e que, todavia, sabem
excitar nos outros os sentimentos mais caros e as paixões mais
fortes, quando estas são úteis aos seus projetos; semelhantes ao
músico hábil que, sem nada sentir ele próprio, tira do
instrumento que domina sons tocantes. ou terríveis.
XV. DA MODERAÇÃO DAS PENAS
AS
VERDADES até aqui expostas demonstram à evidência que o fim das
penas não pode ser atormentar um ser sensível, nem fazer que um
crime não cometido seja cometido.
Como pode um corpo político, que,
longe de se entregar às paixões, deve ocupar-se exclusivamente
com pôr um freio nos particulares, exercer crueldades inúteis e
empregar o instrumento do furor, do fanatismo e da covardia dos
tiranos? Poderão os gritos de um infeliz nos tormentos retirar do
seio do passado, que não volta mais, uma ação já cometida? Não.
Os castigos têm por fim único impedir o culpado de ser nocivo
futuramente à sociedade e desviar seus concidadãos da senda do
crime.
Entre as penas, e na maneira de
aplicá-las proporcionalmente aos delitos, é mister, pois,
escolher os meios que devem causar no espírito público a impressão
mais eficaz e mais durável, e, ao mesmo tempo, menos cruel no
corpo do culpado.
Quem não estremece de horror ao ver
na história tantos tormentos atrozes e inúteis, inventados e
empregados friamente por monstros que se davam o nome de sábios?
Quem poderia deixar de tremer até ao fundo da alma, ao ver os
milhares de infelizes que o desespero força a retomar a vida
selvagem, para escapar a males insuportáveis causados ou
tolerados por essas leis injustas que sempre acorrentaram e
ultrajaram a multidão, para favorecer unicamente um pequeno número
de homens privilegiados?
Mas, a superstição e a tirania os
perseguem; acusam-nos de crimes impossíveis ou imaginários; ou
então são culpados, mas somente de terem sido fiéis às leis da
natureza. Não importa! Homens dotados dos mesmos sentidos e
sujeitos às mesmas paixões se comprazem em julgá-los
criminosos, têm prazer em seus tormentos, dilaceram-nos com
solenidade, aplicam-lhes torturas e os entregam ao espetáculo de
uma multidão fanática que goza lentamente com suas dores.
Quanto mais atrozes forem os
castigos, tanto mais audacioso será o culpado para evitá-los.
Acumulará os crimes, para subtrair-se à pena merecida pelo
primeiro.
Os países e os séculos em que os
suplícios mais atrozes foram postos em prática, são também
aqueles em que se viram os crimes mais horríveis. O mesmo espírito
de ferocidade que ditava leis de sangue ao legislador, punha o
punhal nas mãos do assassino e do parricida. Do alto do trono, o
soberano dominava com uma verga de ferro; e os escravos só
imolavam os tiranos para possuírem novos.
À medida que os suplícios se
tornam mais cruéis, a alma, semelhante aos fluidos que se põem
sempre ao nível dos objetos que os cercam, endurece-se pelo espetáculo
renovado da barbárie. A gente se habitua aos suplícios horríveis;
e, depois de cem anos de crueldades multiplicadas, as paixões,
sempre ativas, são menos refreadas pela roda e pela força do que
antes o eram pela prisão.
Para que o castigo produza o efeito
que dele se deve esperar, basta que o mal que causa ultrapasse o
bem que o culpado retirou do crime. Devem contar-se ainda como
parte do castigo os terrores que precedem a execução e a perda
das vantagens que o crime devia produzir. Toda severidade que
ultrapasse os limites se torna supérflua e, por conseguinte, tirânica.
Os males que os homens conhecem por
funesta experiência regularão melhor a sua conduta do que
aqueles que eles ignoram. Suponde duas nações entre aquelas em
que as penas são proporcionais aos delitos. Sendo a escravidão
perpétua o maior castigo em uma, e o suplício o maior em outra,
é certo que essas duas penas inspirarão em cada uma igual
terror.
E, se houvesse uma razão para
transportar para o primeiro povo os castigos mais rigorosos
estabelecidos no segundo, a mesma razão conduziria a aumentar
para este a crueldade dos suplícios, passando insensivelmente do
uso da roda para tormentos mais lentos e mais requintados, em
suma, para o último refinamento da ciência dos tiranos.
A crueldade das penas produz ainda
dois resultados funestos, contrários ao fim do seu
estabelecimento, que é prevenir o crime.
Em primeiro lugar, é muito difícil
estabelecer uma justa proporção entre os delitos e as penas;
porque, embora uma crueldade industriosa tenha. multiplicado as
espécies de tormentos, nenhum suplício pode ultrapassar o último
grau da força humana, limitada pela sensibilidade e a organização
do corpo do homem. Além desses limites, se surgirem crimes mais
hediondos, onde se encontrarão penas bastante cruéis?
Em segundo lugar, os suplícios mais
horríveis podem acarretar às vezes a impunidade. A energia da
natureza humana é circunscrita no mal como no bem. Espetáculos
demasiado bárbaros só podem ser o resultado dos furores
passageiros de um tirano, e não ser sustentados por um sistema
constante de legislação. Se as leis são cruéis, ou logo serão
modificadas, ou não mais poderão vigorar e deixarão o crime
impune.
Termino por esta reflexão: que o
rigor das penas deve ser relativo ao estado atual da nação. São
necessárias impressões fortes e sensíveis para impressionar o
espírito grosseiro de um povo que sai do estado selvagem. Para
abater o leão furioso, é necessário o raio, cujo ruído só faz
irritá-lo. Mas, à medida que as almas se abrandam no estado de
sociedade, o homem se torna mais sensível; e, se se quiser
conservar as mesmas relações entre o objeto e a sensação, as
penas devem ser menos rigorosas.
XVI. DA PENA DE MORTE
ANTE
o espetáculo dessa profusão de suplícios que jamais tornaram os
homens melhores, eu quero examinar se a pena de morte é
verdadeiramente útil e se é justa num governo sábio.
Quem poderia ter dado a homens o
direito de degolar seus semelhantes? Esse direito não tem
certamente a mesma origem que as leis que protegem.
A soberania e as leis não são mais
do que a soma das pequenas porções de liberdade que cada um
cedeu à sociedade. Representam a vontade geral, resultado da união
das vontades particulares. Mas, quem já pensou em dar a outros
homens o direito de tirar-lhe a vida? Será o caso de supor que,
no sacrifício que faz de uma pequena parte de sua liberdade,
tenha cada indivíduo querido arriscar a própria existência, o
mais precioso de todos os bens?
Se assim fosse, como conciliar esse
princípio com a máxima que proíbe o suicídio? Ou o homem tem o
direito de se matar, ou não pode ceder esse direito a outrem nem
à sociedade inteira. A pena de morte não se apoia, assim, em
nenhum direito. É uma guerra declarada a um cidadão pela nação,
que julga a destruição desse cidadão necessária ou útil. Se
eu provar, porém, que a morte não é útil nem necessária,
terei ganho a causa da humanidade.
A morte de um cidadão só pode ser
encarada como necessária por dois motivos: nos momentos de confusão
em que uma nação fica na alternativa de recuperar ou de perder
sua liberdade, nas épocas de confusão, em que as leis são
substituídas pela desordem, e quando um cidadão, embora privado
de sua liberdade, pode ainda, por suas relações e seu crédito,
atentar contra a segurança pública, podendo sua existência
produzir uma revolução perigosa no governo estabelecido.
Mas, sob o reino tranqüilo das
leis, sob uma forma de governo aprovada pela nação inteira, num
Estado bem defendido no exterior e sustentado no interior pela força
e pela opinião talvez mais poderosa do que a própria força, num
país em que a autoridade é exercida pelo próprio soberano, em
que as riquezas só podem, proporcionar prazeres e não poder, não
pode haver nenhuma necessidade de tirar a vida a um cidadão, a
menos que a morte seja o único freio capaz de impedir novos
crimes.
A experiência de todos os séculos
prova que a pena de morte nunca deteve celerados determinados a
fazer mal. Essa verdade se apoia no exemplo dos romanos e nos
vinte anos do reinado da imperatriz da Rússia, a benfeitora
Izabel (13),
que deu aos chefes dos povos uma lição mais ilustre do que todas
as brilhantes conquistas que a pátria só alcança ao preço do
sangue dos seus filhos.
Se os homens, a quem a linguagem da
razão é sempre suspeita e que só se rendem à autoridade dos
antigos usos, se recusam à evidência dessas verdades,
bastar-lhes-á interrogar a natureza e consultar o próprio coração
para testemunhar os princípios que acabam de ser estabelecidos.
O rigor do castigo causa menos
efeito sobre o espírito humano do que a duração da pena, porque
a nossa sensibilidade é mais fácil e mais constantemente afetada
por uma impressão ligeira, mas freqüente, do que por um abalo
violento, mas passageiro. Todo ser sensível está submetido ao
império do hábito; e, como é este que ensina o homem a falar, a
andar, a satisfazer suas necessidades, é também ele que grava no
coração do homem as idéias de moral por impressões repetidas.
O espetáculo atroz, mas momentâneo,
da morte de um celerado é para o crime um freio menos poderoso do
que o longo e contínuo exemplo de um homem privado de sua
liberdade, tornado até certo ponto uma besta de carga e que
repara com trabalhos penosos o dano que causou à sociedade. Essa
volta freqüente do espectador a si mesmo: "Se eu cometesse
um crime, estaria reduzido toda a minha vida a essa miserável
condição", - essa idéia terrível assombraria mais
fortemente os espíritos do que o medo da morte, que se vê apenas
um instante numa obscura distância que lhe enfraquece o horror.
A impressão produzida pela visão
dos suplícios não pode resistir à ação do tempo e das paixões,
que logo apagam da memória dos homens as coisas mais essenciais.
Por via de regra, as paixões
violentas surpreendem vivamente, mas o seu efeito não dura.
Produzirão uma dessas revoluções súbitas que fazem de repente
de um homem comum um romano ou um espartano. Mas, num governo
tranqüilo e livre, são necessárias menos paixões violentas do
que impressões duráveis.
Para a maioria dos que assistem à
execução de um criminoso, o suplício deste é apenas um espetáculo;
para a minoria, é um objeto de piedade mesclado de indignação.
Esses dois sentimentos ocupam a alma do espectador, bem mais do
que o terror salutar que é o fim da pena de morte. Mas, as penas
moderadas e contínuas só produzem nos espectadores o sentimento
do medo.
No primeiro caso, sucede ao
espectador do suplício o mesmo que ao espectador do drama; e,
assim como o avaro retorna ao seu cofre, o homem violento e
injusto retorna às suas injustiças.
O legislador deve, por conseguinte,
pôr limites ao rigor das penas, quando o suplício não se torna
mais do que um espetáculo e parece ordenado mais para ocupar a
força do que para punir o crime.
Para que uma pena seja justa, deve
ter apenas o grau de rigor bastante para desviar os homens do
crime. Ora, não há homem que possa vacilar entre o crime, mau
grado a vantagem que este prometa, e o risco de perder para sempre
a liberdade.
Assim, pois, a escravidão perpétua,
substituindo a pena de morte, tem todo o rigor necessário para
afastar do crime o espírito mais determinado. Digo mais:
encara-se muitas vezes a morte de modo tranqüilo e firme, uns por
fanatismo, outros por essa vaidade que nos acompanha mesmo além
do túmulo. Alguns, desesperados, fatigados da vida, vêem na
morte um meio de se livrar da miséria. Mas, o fanatismo e a
vaidade desaparecem nas cadeias, sob os golpes, em meio às barras
de ferro. O desespero não lhes põe fim aos males, mas os começa.
Nossa alma resiste mais à violência
das dores extremas, apenas passageiras, do que ao tempo e à
continuidade do desgosto. Todas as forças da alma, reunindo-se
contra males passageiros, podem enfraquecer-lhes a ação; mas,
todas as suas molas acabam por ceder a penas longas e constantes.
Numa nação em que a pena de morte
é empregada, é forçoso, para cada exemplo que se dá, um novo
crime; ao passo que a escravidão perpétua de um único culpado põe
sob os olhos do povo um exemplo que subsiste sempre, e se repete.
Se é mister que os homens tenham
sempre sob os olhos os efeitos do poder das leis, é preciso que
os suplícios sejam freqüentes, e desde então é preciso também
que os crimes se multipliquem; o que provará que a pena de morte
não causa toda a impressão que deveria produzir, e que é inútil
quando julgada necessária.
Dir-se-á que a escravidão perpétua
é também uma pena rigorosa e, por conseguinte, tão cruel quanto
a morte. Responderei que, reunindo num ponto todos os momentos
infelizes da vida de um escravo, sua vida seria talvez mais horrível
do que os suplícios mais atrozes; mas, esses momentos ficam
espalhados por todo o curso da vida, ao passo que a pena de morte
exerce todas as suas forças num só instante.
A vantagem da pena da escravidão
para a sociedade é que amedronta mais aquele que a testemunha do
que quem a sofre, porque o primeiro considera a soma de todos os
momentos infelizes, ao passo que o segundo se alheia de suas penas
futuras, pelo sentimento da infelicidade presente.
A imaginação aumenta todos os
males. Aquele que sofre encontra em sua alma, endurecida pelo hábito
da desgraça, consolações e recursos que as testemunhas dos seus
males não conhecem, porque julgam segundo sua sensibilidade do
momento.
É somente por uma boa educação
que se aprende a desenvolver e a dirigir os sentimentos do próprio
coração. Mas, embora os celerados não possam perceber os seus
princípios, nem por isso deixam de agir segundo um certo raciocínio.
Ora, eis mais ou menos, como raciocina um assassino ou um ladrão,
que só se afasta do crime pelo medo do poder ou da roda:
"Quais são, afinal, as leis
que devo respeitar e que deixam tão grande intervalo entre mim e
o rico? O homem opulento recusa-me com dureza a pequena esmola que
lhe peço e me manda para o trabalho, que eu jamais conheci. Quem
fez essas leis? Homens ricos e poderosos, que jamais se dignaram
de visitar a miserável choupana do pobre, que não viram repartir
um pão grosseiro aos seus pobres filhos famintos e à sua mãe
desolada. Rompamos as convenções, vantajosas somente para alguns
tiranos covardes, mas funestas para a maioria. Ataquemos a injustiça
em sua fonte. Sim retornarei ao meu estado de independência
natural, viverei livre, provarei por algum tempo os frutos felizes
da minha astúcia e da minha coragem. À frente de alguns homens
determinados como eu, corrigirei os enganos da fortuna e verei
meus tiranos tremer e empalidecer quando virem aquele que o seu
fausto insolente punha abaixo dos cavalos e dos cães. Talvez
venha uma época de dor e de arrependimento, mas essa época será
curta; e por um dia de sofrimento, terei gozado vários anos de
liberdade e de prazeres".
Se a religião se apresentar então
ao espírito desse infeliz, não o intimidará; diminuirá mesmo
aos seus olhos o horror do último suplício, oferecendo-lhe a
esperança de um arrependimento fácil e da felicidade eterna que
é seu fruto. Mas aquele que tem diante dos olhos um grande número
de anos, ou mesmo a vida inteira que passar na escravidão e na
dor, exposto ao desprezo dos seus concidadãos, dos quais fora um
igual, escravo dessas leis pelas quais era protegido, faz uma
comparação útil de todos os males, do êxito incerto do crime e
do pouco tempo que terá para gozar.
O exemplo sempre presente dos
infelizes que ele vê vítimas da imprudência impressiona-o muito
mais do que os suplícios, que podem endurecê-lo, mas não
corrigi-lo.
A pena de morte é ainda funesta à
sociedade, pelos exemplos de crueldade que dá aos homens.
Se as paixões ou a necessidade da
guerra ensinam a espalhar o sangue humano, as leis, cujo fim é
suavizar os costumes, deveriam multiplicar essa barbaria, tanto
mais horrível quanto dá a morte com mais aparato e formalidades?
Não é absurdo que as leis, que são
a expressão da vontade geral, que detestam e punem o homicídio,
ordenem um morticínio público, para desviar os cidadãos do
assassínio?
Quais são as leis mais justas e
mais úteis? São as que todos proporiam e desejariam observar,
nesses momentos em que o interesse particular se cala ou se
identifica com o interesse público.
Qual é o sentimento geral sobre a
pena de morte? Está traçado em caracteres indeléveis nesses
movimentos de indignação e de desprezo que nos inspira a simples
visão do carrasco, que não é contudo senão o executor inocente
da vontade pública, um cidadão honesto que contribui para o bem
geral e que defende a segurança do Estado no interior, como o
soldado, a defende no exterior.
Qual é, pois, a origem dessa
contradição? E porque esse sentimento de horror resiste a todos
os esforços da razão? É que, numa parte recôndita da nossa
alma, na qual os princípios naturais ainda não foram alterados,
descobrimos um sentimento que nos grita que um homem não tem
nenhum direito legítimo sobre a vida de outro homem, e que só a
necessidade, que estende por toda parte o seu cetro de ferro, pode
dispor da nossa existência.
Que se deve pensar ao ver o sábio
magistrado e os ministros sagrados da justiça fazer arrastar um
culpado à morte, com cerimônia, com tranqüilidade, com
indiferença? E, enquanto o infeliz espera o golpe fatal, por
entre convulsões e angústias, o juiz que acaba de o condenar
deixa friamente o tribunal para ir provar em paz as doçuras e os
prazeres da vida, e talvez louvar-se, com secreta complacência,
pela autoridade que acaba de exercer. Não será o caso de dizer
que essas leis são apenas a máscara da tirania, que essas
formalidades cruéis e refletidas da justiça são simplesmente um
pretexto para imolar-nos com mais confiança, como vítimas
sacrificadas ao despotismo insaciável?
O assassínio, que nos aparece como
um crime horrível, nós o vemos cometer friamente e sem remorso.
Não poderemos autorizar-nos com esse exemplo? Pintavam-nos a
morte violenta como uma cena terrível, e é apenas questão de um
momento. Será menos ainda para aquele que tiver coragem de ir-lhe
ao encontro e de poupar-se desse modo tudo o que ela tem de
doloroso. Tais são os tristes e funestos raciocínios que perdem
uma cabeça já disposta ao crime, um espírito mais capaz de se
deixar conduzir pelos abusos da religião do que pela religião
mesma.
A história dos homens é um imenso
oceano de erros, no qual se vê sobrenadar uma ou outra verdade
mal conhecida. Não me oponham, pois, o exemplo da maior parte das
nações, que, em quase todos os tempos, aplicaram a pena de morte
contra certos crimes; esses exemplos nenhuma força têm contra a
verdade que é sempre tempo de reconhecer. Nesse caso,
aprovar-se-iam os sacrifícios humanos, porque estiveram
geralmente em uso entre todos os povos primitivos.
Mas, se descubro alguns povos que se
abstiveram, mesmo durante um curto espaço de tempo do emprego da
pena de morte, posso prevalecer-me disso com razão; pois o
destino das grandes verdades é não brilhar senão com a duração
do relâmpago, no meio da longa noite de trevas que envolve o gênero
humano.
Ainda não chegaram os dias felizes
em que a verdade eliminará o erro e se tornará apanágio de
maioria, em que o gênero humano não será iluminado somente
pelas verdades reveladas.
Sinto quanto a voz fraca de um filósofo
será facilmente abafada pelos gritos tumultuosos dos fanáticos
escravos do preconceito. Mas, o pequeno número de sábios
espalhados pela superfície da terra saberá entender-me; seu coração
aprovará meus esforços; e se, mau grado todos os obstáculos que
a afastam do trono, a verdade pudesse penetrar até aos ouvidos
dos príncipes, saibam eles que essa verdade lhes leva os votos
secretos da humanidade inteira; saibam que, se protegerem a
verdade santa, sua glória ofuscará a dos mais famosos
conquistadores e a eqüitativa posteridade colocará seus nomes
acima dos Titos (14),
dos Antoninos (15)
e dos Trajanos (16).
Feliz o gênero humano, se, pela
primeira vez, recebesse leis! Hoje, que vemos elevados nos tronos
da Europa príncipes benfeitores, amigos das virtudes pacíficas,
protetores das ciências e das artes, pais dos seus povos, e cidadãos
coroados; quando esses príncipes, consolidando sua autoridades,
trabalham para a felicidade dos seus súditos, quando destroem
esse despotismo intermediário, tanto mais cruel quanto menos
solidamente estabelecido, quando comprimem os tiranos subalternos
que interceptam os votos do povo e os impedem de chegar até ao
trono, onde seriam escutados; quando se considera que, se tais príncipes
deixam subsistir leis defeituosas, é porque são premidos pela
extrema dificuldade de destruir erros acreditados por uma longa série
de séculos e protegidos por um certo número de homens
interessados que punem: todo cidadão esclarecido deve desejar com
ardor que o poder desses soberanos ainda aumente e se torne
bastante grande para permitir-lhes a reforma de uma legislação
funesta.
XVII. DO BANIMENTO E DAS CONFISCAÇÕES
AQUELE
que perturba a tranqüilidade pública, que não obedece às leis,
que viola as condições sob as quais os homens se sustentam e se
defendem mutuamente, esse deve ser excluído da sociedade, isto é,
banido.
Parece-me que se poderiam banir
aqueles que, acusados de um crime atroz, são suspeitos de culpa
com maior verossimilhança, mas sem estar plenamente convencidos
do crime.
Em casos semelhantes, seria mister
que uma lei, a menos arbitrária e a mais precisa possível,
condenasse ao banimento aquele que pusesse a nação na fatal
alternativa de fazer uma injustiça ou de temer um acusado. Seria
mister, igualmente, que essa lei deixasse ao banido o direito
sagrado de poder a todo instante provar sua inocência e recuperar
os seus direitos. Seria mister, enfim, que houvesse razões mais
fortes para banir um cidadão acusado pela primeira vez do que
para condenar a essa pena um estrangeiro ou um homem que já
tivesse sido chamado à justiça.
Mas, deve aquele que se bane, que se
exclui para sempre da sociedade de que fazia parte, ser ao mesmo
tempo privado dos seus bens? Essa questão pode ser encarada sob
diferentes aspectos.
A perda dos bens é uma pena maior
que a do banimento. Deve, pois, haver casos em que, para
proporcionar a pena ao crime, se confiscarão todos os bens do
banido. Em outras circunstâncias, só será despojado de uma
parte de sua fortuna; e, para certos delitos, o banimento não será
acompanhado de nenhuma confiscação. O culpado poderá perder
todos os seus bens, se a lei que pronuncia o banimento declara
rompidos todos os laços que o ligavam à sociedade; porque desde
então o cidadão está morto, resta somente o homem; e, perante a
sociedade, a morte política de um cidadão deve ter as mesmas
conseqüências que a morte natural.
Segundo essa máxima, dir-se-á
talvez que é evidente que os bens do culpado deveriam reverter
para os herdeiros legítimos, e não para o príncipe; não é
nisso, porém, que me apoiarei para desaprovar as confiscações.
Se alguns jurisconsultos sustentaram
que as confiscações punham um freio às vinganças dos
particulares banidos, tirando-lhes o poder de ser nocivos, é que
não refletiram que não basta uma pena produzir algum bem para
ser justa. Uma pena só é justa quando necessária. Um legislador
não autorizará nunca uma injustiça útil, se quer prevenir as
invasões da tirania, que vela sem cessar, que seduz e abusa pelo
pretexto falaz de algumas vantagens momentâneas, e que faz
deperecer em pranto e na miséria um povo cuja ruína prepara,
para espalhar a abundância e a felicidade sobre uma minoria de
homens privilegiados.
O uso das confiscações põe
continuamente a prêmio a cabeça do infeliz sem defesa, e faz o
inocente sofrer os castigos reservados aos culpados. Pior ainda,
as confiscações podem fazer do homem de bem um criminoso, pois o
levam ao crime, reduzindo-o à indigência e ao desespero.
E, além disso, não há espetáculo
mais hediondo que o de uma família inteira coberta de infâmia,
mergulhada nos horrores da miséria pelo crime do seu chefe, crime
que essa família, submetida à autoridade do culpado, não
poderia prevenir, mesmo que tivesse os meios para tanto.
XVIII. DA INFÂMIA
A INFÂMIA
é um sinal da improbação pública, que priva o culpado da
consideração, da confiança que a sociedade tinha nele e dessa
espécie de fraternidade que une os cidadãos de um mesmo país.
Como os efeitos da infâmia não
dependem absolutamente das leis, é mister que a vergonha que a
lei inflige se baseie na moral, ou na opinião pública. Se se
tentasse manchar de infâmia uma ação que a opinião não julga
infame, ou a lei deixaria de ser respeitada, ou as idéias aceitas
de probidade e de morai desapareceriam, mau grado todas as declamações
dos moralistas, sempre impotentes contra a força do exemplo.
Declarar infames ações
indiferentes em si mesmas, é diminuir a infâmia das que
efetivamente merecem ser designadas desse modo.
Bem necessário é evitar que se
punam com penas corporais e dolorosas certos delitos fundados no
orgulho e que fazem dos castigos uma glória. Tal é o fanatismo,
que só pode ser reprimido pelo ridículo e pela vergonha.
Se se humilhar à orgulhosa vaidade
dos fanáticos perante uma grande multidão de espectadores, devem
esperar-se felizes efeitos dessa pena, pois que a própria verdade
tem necessidade dos maiores esforços para se defender, quando é
atacada pela arma do ridículo.
Opondo assim a força à força e a
opinião à opinião, um legislador esclarecido dissipa no espírito
do povo a admiração que lhe causa um falso princípio, cujo
absurdo lhe foi dissimulado com raciocínios especiosos.
As penas infamantes devem ser raras,
porque o emprego demasiado freqüente do poder da opinião
enfraquece a força da própria opinião. A infâmia não deve
cair tão pouco sobre um grande número de pessoas ao mesmo tempo,
porque a infâmia de um grande número não é mais, em breve, a
infâmia de ninguém.
Tais são os meios de harmonizar as
relações invariáveis das coisas e de atender à natureza, que,
sempre ativa e jamais sujeita aos limites do tempo, destrói e
revoga todas as leis que se afastam dela. Não é só nas
belas-artes que é preciso seguir fielmente a natureza: as
instituições políticas, ao menos aquelas que têm um caráter
de sabedoria e elementos de duração, se fundam na natureza; e a
verdadeira política não é outra coisa senão a arte de dirigir
para o mesmo fim de utilidade os sentimentos imutáveis do homem.
XIX. DA PUBLICIDADE E DA PRESTEZA
DAS PENAS
QUANTO
mais pronta for a pena e mais de perto seguir o delito, tanto mais
justa e útil ela será. Mais justa. porque poupará ao acusado os
cruéis tormentos da, incerteza, tormentos supérfluos, cujo
horror aumenta para ele na razão da força de imaginação e do
sentimento de fraqueza.
A presteza do julgamento é justa
ainda porque, a perda da liberdade sendo já uma pena, esta só
deve preceder a condenação na estrita medida que a necessidade o
exige.
Se a prisão é apenas um meio de
deter um cidadão até que ele seja julgado culpado, como esse
meio é aflitivo e cruel, deve-se, tanto quanto possível,
suavizar-lhe o rigor e a duração. Um cidadão detido só deve
ficar na prisão o tempo necessário para a instrução do
processo; e os mais antigos detidos têm direito de ser julgados
em primeiro lugar.
O acusado não deve ser encerrado
senão na medida em que for necessário para o impedir de fugir ou
de ocultar as provas do crime. O processo mesmo deve ser conduzido
sem protelações. Que contraste hediondo entre a indolência de
um juiz e a angústia de um acusado! De um lado, um magistrado
insensível, que passa os dias no bem-estar e nos prazeres, e de
outro um infeliz que definha, a chorar no fundo de uma masmorra
abominável.
Os efeitos do castigo que se segue
ao crime devem ser em geral impressionantes e sensíveis para os
que o testemunharam; haverá, porém, necessidade de que esse
castigo seja tão cruel para quem o sofre? Quando os homens se
reuniram em sociedade, foi para só se sujeitarem aos mínimos
males possíveis; e não há país que possa negar esse princípio
incontestável.
Eu disse que a presteza da pena é
útil; e é certo que, quanto menos tempo decorrer entre o delito
e a pena, tanto mais os espíritos ficarão compenetrados da idéia
de que não há crimes sem castigo; tanto mais se habituarão a
considerar o crime como a causa da qual o castigo é o efeito
necessário e inseparável.
É a ligação das idéias que
sustenta todo o edifício do entendimento humano. Sem ela, o
prazer e a dor seriam sentimentos isolados, sem efeito, tão cedo
esquecidos quanto sentidos. Os homens sem idéias gerais e princípios
universais, isto é, os homens ignorantes e embrutecidos, não
agem senão segundo as idéias mais vizinhas e mais imediatamente
unidas. Negligenciam as relações distantes, e essas idéias
complicadas, que só se apresentam ao homem fortemente apaixonado
por um objeto, ou aos espíritos esclarecidos. A luz da atenção
dissipa no homem apaixonado as trevas que cercam o vulgar. O homem
instruído, acostumado a percorrer e a comparar rapidamente um
grande número de idéias e de sentimentos opostos, tira do
contraste um resultado que constitui a base de sua conduta, desde
então menos incerta e menos perigosa.
É, pois, da maior importância
punir prontamente um crime cometido, se se quiser que, no espírito
grosseiro do vulgo, a pintura sedutora das vantagens de uma ação
criminosa desperte imediatamente a idéia de um castigo inevitável.
Uma pena por demais retardada torna menos estreita a união dessas
duas idéias: crime e castigo. Se o suplício de um acusado causa
então alguma impressão, e somente como espetáculo, pois só se
apresenta ao espectador quando o horror do crime, que contribui
para fortificar o horror da pena, já está enfraquecido nos espíritos.
Poder-se-ia ainda estreitar mais a
ligação das idéias de crime e de castigo, dando à pena toda a
conformidade possível com a natureza do delito, a fim de que o
receio de um castigo especial afaste o espírito do caminho a que
conduzia a perspectiva de um crime vantajoso. É preciso que a idéia
do suplício esteja sempre presente no coração do homem fraco e
domine o sentimento que o leva ao crime.
Entre vários povos, punem-se os
crimes pouco consideráveis com a prisão ou com a escravidão num
país distante, isto é, manda-se o culpado levar um exemplo inútil
a uma sociedade que ele não ofendeu.
Como os homens não se entregam, a
princípio, aos maiores crimes, a maior parte dos que assistem ao
suplício de um celerado, acusado de algum crime monstruoso, não
experimentam nenhum sentimento de terror ao verem um castigo que
jamais imaginam poder merecer. Ao contrário, a punição pública
dos pequenos delitos mais comuns causar-lhe-á na alma uma impressão
salutar que os afastará de grandes crimes, desviando-os primeiro
dos que o são menos.
XX. QUE O CASTIGO DEVE SER INEVITÁVEL.
- DAS GRAÇAS
NÃO
é o rigor do suplício que previne os crimes com mais segurança,
mas a certeza do castigo, o zelo vigilante do magistrado e essa
severidade inflexível que só é uma virtude no juiz quando as
leis são brandas. A perspectiva de um castigo moderado, mas
inevitável causará sempre uma forte impressão mais forte do que
o vago temor de um suplício terrível, em relação ao qual se
apresenta alguma esperança de impunidade.
O homem treme à idéia dos menores
males, quando vê a impossibilidade de evitá-los; ao passo que a
esperança, doce filha do céu, que tantas vezes nos proporciona
todos os bens, afasta sempre a idéia dos tormentos mais cruéis,
por pouco que ela seja sustentada pelo exemplo da impunidade, que
a fraqueza ou o amor do ouro tão freqüentemente concede.
As vezes, a gente se abstém de
punir um delito pouco importante, quando o ofendido perdoa. É um
ato de benevolência, mas um ato contrário ao bem público. Um
particular pode bem não exigir a reparação do mal que se lhe
fez; mas, o perdão que ele concede não pode destruir a
necessidade do exemplo.
O direito de punir não pertence a
nenhum cidadão em particular; pertence às leis, que são o órgão
da vontade de todos. Um cidadão ofendido pode renunciar à sua
porção desse direito, mas não tem nenhum poder sobre a dos
outros.
Quando as penas se tiverem tornado
menos cruéis, a demência e o perdão serão menos necessários.
Feliz a nação que não mais lhes desse o nome de virtudes! A demência,
que se tem visto em alguns soberanos substituir outras qualidades
que lhes faltavam para cumprir os deveres do trono, deveria ser
banida de uma legislação sábia na qual as penas fossem brandas
e a justiça feita com formas prontas e regulares.
Essa verdade parecerá dura apenas
aos que vivem submetidos aos abusos de uma jurisprudência
criminal que concede a graça e o perdão necessários em razão
mesmo da atrocidade das penas e do absurdo das leis.
O direito de conceder graça é sem
dúvida a mais bela prerrogativa do trono; é o mais precioso
atributo do poder soberano; mas, ao mesmo tempo, é uma improbação
tácita das leis existentes. O soberano que se ocupa com a
felicidade pública e que julga contribuir para ela exercendo o
direito de conceder graça, eleva-se então contra o código
criminal, consagrado, mau grado seus vícios, pelos preconceitos
antigos, pelo calhamaço impostor dos comentadores, pelo grave
aparelho das velhas formalidades, enfim, pelo sufrágio dos semi-sábios,
sempre mais insinuantes e mais escutados do que os verdadeiros sábios.
Sendo a clemência virtude do
legislador e não do executor das leis, devendo manifestar-se no Código
e não em julgamentos particulares, se se deixar ver aos homens
que o crime pode ser perdoado e que o castigo nem sempre é a sua
conseqüência necessária, nutre-se neles a esperança da
impunidade; faz-se com que aceitem os suplícios não como atos de
justiça, mas como atos de violência.
Quando o soberano concede graça a
um criminoso, não será o caso de dizer que sacrifica a segurança
pública à de um particular e que, por um ato de cega benevolência,
pronuncia um decreto geral de impunidade?
Sejam, pois, as leis inexoráveis,
sejam os executores das leis inflexíveis; seja, porém, o
legislador indulgente e humano. Arquiteto prudente, dê por base
ao seu edifício o amor que todo homem tem ao próprio bem-estar,
e saiba fazer resultar o bem geral do concurso dos interesses
particulares; não se verá, assim, constrangido a recorrer a leis
imperfeitas, a meios pouco refletidos que separam a cada instante
os interesses da sociedade dos cidadãos; não será forçado a
elevar sobre o medo e a desconfiança o simulacro da felicidade pública.
Filósofo profundo e sensível, terá deixado aos seus irmãos o
gozo pacífico da pequena porção de felicidade que o Ser supremo
lhes concedeu nesta terra, que não é mais do que um ponto no
meio de todos os mundos.
XXI. DOS ASILOS
SERÃO
justos os asilos? E será útil o uso estabelecido entre as nações
de permutarem entre si os criminosos?
Em toda a extensão de um Estado político,
não deve haver nenhum lugar fora da dependência das leis. A força
destas deve seguir o cidadão por toda a parte, como a sombra
segue o corpo.
Há pouca diferença entre a
impunidade e os asilos; e, como o melhor meio de impedir o crime
é a perspectiva de um castigo certo e inevitável, os asilos, que
representam um abrigo contra a ação das leis, convidam mais ao
crime do que as penas o evitam, do momento em que se tem a esperança
de evitá-los.
Multiplicar os asilos é formar
pequenas soberanias, porque, quando as leis não têm poder, novas
potências se formam de ordem comum, estabelece-se um espírito
oposto ao do corpo inteiro da sociedade.
Vê-se, na história de todos os
povos, que os asilos foram a fonte de grandes revoluções nos
Estados e nas opiniões humanas.
Pretenderam alguns que, cometido um
crime num lugar, isto é, um ato contrário às leis, teriam estas
em toda parte o direito de punir. Será a qualidade de súdito,
nesse caso, um caráter indelével? Será o nome de súdito pior
que o de escravo? E admitir-se-á que um homem habite um país e
seja submetido às leis de outro país? que suas ações fiquem ao
mesmo tempo subordinadas a dois soberanos e a duas legislações
muitas vezes contraditórias?
Ousou-se dizer, assim, que um crime
cometido em Constantinopla podia ser punido em Paris, porque
aquele que ofende uma sociedade humana merece ter todos os homens
por inimigos e deve ser objeto da execração universal. No
entanto, os juizes não são vingadores do gênero humano em
geral; são os defensores das convenções particulares que ligam
entre si um certo número de homens. Um crime só deve ser punido
no país onde foi cometido, porque é somente aí, e não em outra
parte, que os homens são forçados a reparar, pelo exemplo da
pena, os funestos efeitos que o exemplo do crime pode produzir.
Um celerado, cujos crimes
precedentes não puderam violar as leis de uma sociedade da qual não
era membro, pode bem ser temido e expulso dessa sociedade; mas, as
leis não podem infligir-lhe outra pena, pois são feitas somente
para punir o mal que lhe é feito, e não o crime que não as
ofende.
Será, pois, útil que as nações
permutem reciprocamente entre si os criminosos? Certamente, a
persuasão de não encontrar nenhum lugar na terra em que o crime
possa ficar impune seria um meio bem eficaz de preveni-lo. Não
ousarei, porém, decidir essa questão, até que as leis,
tornando-se mais conformes aos sentimentos naturais do homem, com
penas mais brandas, impedindo o arbítrio dos juizes e da opinião,
assegurem a inocência e preservem a virtude das perseguições da
inveja; até que a tirania, relegada ao Oriente, tenha deixado a
Europa sob o doce império da razão, dessa razão eterna que une
com um laço indissolúvel os interesses dos soberanos aos
interesses dos povos.
XXII. DO USO DE PÔR A CABEÇA A
PRÊMIO
SERÁ
vantajoso para a sociedade pôr a prêmio a cabeça de um
criminoso, armar cada cidadão de um punhal e fazer assim outros
tantos carrascos?
Ou o criminoso saiu do país, ou
ainda está nele. No primeiro caso, excitam-se os cidadãos a
cometer um assassínio, a atingir talvez um inocente, a merecer
suplícios. Faz-se uma injúria à nação estrangeira,
espezinha-se-lhe a autoridade, autoriza-se que se façam
semelhantes usurpações entre os próprios vizinhos.
Se o criminoso ainda está no país
cujas leis violou, o governo que põe sua cabeça a prêmio revela
fraqueza. Quando a gente tem força para defender-se não compra o
socorro de outrem.
Além disso, o uso de pôr a prêmio
a cabeça de um cidadão anula todas as idéias de moral e de
virtude, tão fracas e tão abaladas no espírito humano. De um
lado, as leis punem a traição; de outro, autorizam-na. O
legislador aperta com uma das mãos os laços de sangue e de
amizade, e com a outra recompensa aquele que os quebra. Sempre em
contradição consigo mesmo, ora procura espalhar a confiança e
animar os que duvidam, ora semeia a desconfiança em todos os corações.
Para prevenir um crime, faz nascer cem.
Semelhantes usos só convêm às nações
fracas, cujas leis só servem para sustentar por um momento um
edifício de ruínas que todo se esboroa.
Mas, à medida que as luzes de uma
nação se difundem, a boa fé e a confiança recíproca se tornam
necessárias, e a política é, enfim, constrangida a admiti-las.
Então, desmancham-se e previnem-se mais facilmente as cabalas, os
artifícios, as manobras obscuras e indiretas. Então, também, o
interesse geral sai sempre vencedor dos interesses particulares.
Os povos esclarecidos poderiam
buscar lições em alguns séculos de ignorância, nos quais a
moral particular era sustentada pela moral pública.
As nações só serão felizes
quando a sã moral estiver estreitamente ligada à política. Mas,
leis que recompensam a traição, que acendem entre os cidadãos
uma guerra clandestina, que excitam suspeitas recíprocas,
opor-se-ão sempre a essa união tão necessária da política e
da moral; união que daria aos homens segurança e paz, que lhes
aliviaria a miséria e que traria às nações mais, longos
intervalos de repouso e concórdia do que aqueles de que até ao
presente gozaram.
XXIII. QUE AS PENAS DEVEM SER
PROPORCIONADAS AOS DELITOS
O INTERESSE
de todos não é somente que se cometam poucos crimes, mais ainda
que os delitos mais funestos à sociedade sejam os mais raros. Os
meios que a legislação emprega para impedir os crimes devem,
pois, ser mais fortes à medida que o delito é mais contrário ao
bem público e pode tornar-se mais comum. Deve. pois, haver uma
proporção entre os delitos e as penas.
Se o prazer e a dor são os dois
grandes motores dos seres sensíveis; se, entre os motivos que
determinam os homens em todas as suas ações, o supremo
Legislador colocou como os mais poderosos as recompensas e as
penas; se dois crimes que atingem desigualmente a sociedade
recebem o mesmo castigo, o homem inclinado ao crime, não tendo
que temer uma pena maior para o crime mais monstruoso, decidir-se-á
mais facilmente pelo delito que lhe seja mais vantajosos; e a
distribuição desigual das penas produzirá a contradição, tão
notória quando freqüente, de que as leis terão de punir os
crimes que tiveram feito nascer.
Se se estabelece um mesmo castigo, a
pena de morte por exemplo, para quem mata um faisão e para quem
mata um homem ou falsifica um escrito importante, em breve não se
fará mais nenhuma diferença entre esses delitos; destruir-se-ão
no coração do homem os sentimentos morais, obra de muitos séculos,
cimentada por ondas de sangue, estabelecida com lentidão através
mil obstáculos, edifício que só se pode elevar com o socorro
dos mais sublimes motivos e o aparato das mais solenes
formalidades.
Seria em vão que se tentaria
prevenir todos os abusos que se originam da fermentação contínua
das paixões humanas; esses abusos crescem em razão da população
e do choque dos interesses particulares, que é impossível
dirigir em linha reta para o bem público. Não se pode provar
essa asserção com toda a exatidão matemática; pode-se, porém,
apoiá-la com exemplos notáveis.
Lançai os olhos sobre a história,
e vereis crescerem os abusos à medida que os impérios aumentam.
Ora, como o espírito nacional se enfraquece na mesma proporção,
o pendor para o crime crescerá em razão da vantagem que cada um
descobre no abuso mesmo; e a necessidade de agravar as penas
seguirá necessariamente igual progressão.
Semelhante à gravitação dos
corpos, uma força secreta impele-nos sempre para o nosso bem
estar. Essa impulsão só é enfraquecida pelos obstáculos que as
leis lhe opõem. Todos os diversos atos do homem são efeitos
dessa tendência interior. As penas são os obstáculos políticos
que impedem os funestos efeitos do choque dos interesses pessoais,
sem destruir-lhes a causa, que é o amor de si mesmo, inseparável
da humanidade.
O legislador deve ser um arquiteto hábil,
que saiba ao mesmo tempo empregar todas as forças que podem
contribuir para consolidar o edifício e enfraquecer todas as que
possam arruiná-lo.
Supondo-se a necessidade da reunião
dos homens em sociedade, mediante convenções estabelecidas pelos
interesses opostos de cada particular, achar-se-á um progressão
de crimes, dos quais o maior será aquele que tende à destruição
da própria sociedade. Os menores delitos serão as pequenas
ofensas feitas aos particulares. Entre esses dois extremos estarão
compreendidos todos os atos opostos ao bem público, desde o mais
criminoso até ao menos passível de culpa.
Se os cálculos exatos pudessem
aplicar-se a todas as combinações obscuras que fazem os homens
agir, seria mister procurar e fixar uma progressão de penas
correspondente à progressão dos crimes. O quadro dessas duas
progressões seria a medida da liberdade ou da escravidão da
humanidade ou da maldade de cada nação.
Bastará, contudo, que o legislador
sábio estabeleça divisões principais na distribuição das
penas proporcionadas aos delitos e que, sobretudo, não aplique os
menores castigos aos maiores crimes.
XXIV. DA MEDIDA DOS DELITOS
JÁ
observamos que a verdadeira medida dos delitos é o dano causado
à sociedade. Eis aí uma dessas verdades que, embora evidentes
para o espírito menos perspicaz, mas ocultas por um concurso
singular de circunstâncias, só são conhecidas de um pequeno número
de pensadores em todos os países e em todos os séculos cujas
leis conhecemos.
As opiniões espalhadas pelos déspotas
e as paixões dos tiranos abafaram as noções simples e as idéias
naturais que constituíam sem dúvida a filosofia das sociedades
primitivas. Mas, se a tirania comprimiu a natureza por uma ação
insensível, ou por impressões violentas sobre os espíritos da
multidão, hoje, enfim, as luzes do nosso século dissipam os
tenebrosos projetos do despotismo, reconduzindo-nos aos princípios
da filosofia e mostrando-no-los com mais certeza.
Esperemos que a funesta experiência
dos séculos passados não seja perdida e que os princípios
naturais reapareçam entre os homens, mau grado todos os obstáculos
que se lhes opõem.
A grandeza do crime não depende da
intenção de quem o comete, como erroneamente o julgaram alguns:
porque a intenção do acusado depende das impressões causadas
pelos objetos presentes e das disposições precedentes da alma.
Esses sentimentos variam em todos os homens e no mesmo indivíduo,
com a rápida sucessão das idéias, das paixões e das circunstâncias.
Se se punisse a intenção, seria
preciso ter não só um Código particular para cada cidadão, mas
uma nova lei penal para cada crime.
Muitas vezes, com a melhor das intenções,
um cidadão faz à sociedade os maiores males, ao passo que um
outro lhe presta grandes serviços com a vontade de prejudicar.
Outros jurisconsultos medem a
gravidade do crime pela dignidade da pessoa ofendida, de preferência
ao mal que possa causar à sociedade. Se esse método fosse
aceito, uma pequena irreverência para com o Ser supremo mereceria
uma pena bem mais severa do que o assassínio de um monarca, pois
a superioridade da natureza divina compensaria infinitamente a
diferença da ofensa.
Outros, finalmente, julgaram o
delito tanto mais grave quanto maior a ofensa, à Divindade.
Sentir-se-á facilmente quanto essa opinião é falsa, se se
examinarem com sangue-frio as verdadeiras relações que unem os
homens entre si e as que existem entre o homem e Deus.
As primeiras são relações de
igualdade. Só a necessidade faz nascer; do choque das paixões e
da posição dos interesses particulares, a idéia da unidade
comum, base da justiça humana. Ao contrário, as relações que
existem entre o homem e Deus são relações de dependência, que
nos submetem a um ser perfeito e criador de todas as coisas, a um
senhor soberano que somente a si reservou o direito de ser ao
mesmo tempo legislador e juiz, somente ele pode ser a um tempo uma
e outra coisa.
Se ele estabeleceu penas eternas
para aquele que infringiu suas leis, qual será o inseto bastante
temerário que ousará vir em socorro de sua justiça divina, para
empreender vingar o ser que se basta a si mesmo, que os crimes não
podem entristecer, que os castigos não podem alegrar e que é o
único na natureza a agir de maneira constante?
A grandeza do pecado ou da ofensa
para com Deus depende da maldade do coração; e, para que os
homens pudessem sondar esse abismo, ser-lhes-ia preciso o socorro
da revelação. Como poderiam eles determinar as penas dos
diferentes crimes, sobre princípios cuja base lhes é
desconhecida? Seria arriscado punir quando Deus perdoa e perdoar
quando Deus pune.
Se os homens ofendem a Deus com o
pecado, muitas vezes o ofendem mais ainda encarregando-se do
cuidado de vingá-lo.
XXV. DIVISÃO DOS DELITOS
HÁ
crimes que tendem diretamente à destruição da sociedade ou dos
que a representam. Outros atingem o cidadão em sua vida, nos seus
bens ou em sua honra. Outros, finalmente, são atos contrários ao
que a lei prescreve ou proíbe, tendo em vista o bem público.
Todo ato não compreendido numa
dessas classes não pode ser considerado como crime, nem punido
como tal, senão pelos que descobrem nisso o seu interesse
particular.
Por não se ter sabido guardar esses
limites é que se vê em todas as nações uma oposição entre as
leis e a moral, e muitas vezes uma oposição entre aquelas
mesmas. O homem de bem está exposto às penas mais severas. As
palavras vício e virtude não passam de sons vagos. A existência
do cidadão envolve-se de incerteza; e os corpos políticos caem
numa letargia funesta, que os conduz insensivelmente à ruína.
Cada cidadão pode fazer tudo o que
não é contrário às leis, sem temer outros inconvenientes além
dos que podem resultar de sua ação em si mesma. Esse dogma político
deveria ser gravado no espírito dos povos, proclamado pelos
magistrados supremos e protegido pelas leis. Sem esse dogma
sagrado, toda sociedade legítima não pode subsistir por muito
tempo, porque ele é a justa recompensa do sacrifício que os
homens fizeram de sua independência e de sua liberdade.
É essa opinião que torna as almas
fortes e generosas, que eleva o espírito, que inspira aos homens
uma virtude superior ao medo e os faz desprezar essa miserável
maleabilidade que tudo aprova e que é a única virtude dos homens
bastante fracos para suportar constantemente uma existência precária
e incerta.
Percorram-se, com visão filosófica,
as leis e a história das nações, e se verão quase sempre os
nomes de vício e virtude, de bom e mau cidadão, mudarem de valor
segundo o tempo e as circunstâncias. Não são, porém, as
reformas operadas no Estado ou nos negócios públicos que causarão
essa revolução das idéias; esta será a conseqüência dos
erros e dos interesses passageiros dos diferente legisladores.
Muitas vezes se verão as paixões
de um século servir de base à moral dos séculos seguintes, e
formar toda a política dos que presidem às leis. Mas, as paixões
fortes, filhas do fanatismo e do entusiasmo, obrigam a pouco e
pouco, à força de excessos, o legislador à prudência, e podem
tornar-se um instrumento útil nas mãos da astúcia ou do poder,
quando o tempo as tiver enfraquecido.
Foi do enfraquecimento das paixões
fortes que nasceram entre os homens as noções obscuras de honra
e virtude; e essa obscuridade subsistirá sempre, porque as idéias
mudam com o tempo, que deixa sobreviver os nomes às coisas, que
variam segundo os lugares e os climas; é que a moral esta
submetida, como os impérios, a limites geográficos.
XXVI. DOS CRIMES DE LESA-MAJESTADE
OS
crimes de lesa-majestade foram postos na classe dos grandes
crimes, porque são funestos à sociedade. Mas, a tirania e a
ignorância, que confundem as palavras e as idéias mais claras,
deram esse nome a uma multidão de delitos de natureza
inteiramente diversa. Aplicaram-se as penas mais graves a faltas
leves; e, nessa ocasião como em mil outras, o homem é muitas
vezes vítima de uma palavra.
Toda espécie de delito é nociva à
sociedade; mas, nem todos os delitos tendem imediatamente a
destruir. É preciso julgar as ações morais por seus efeitos
positivos e ter em conta o tempo e o lugar. Só a arte das
interpretações odiosas, que é ordinariamente a ciência dos
escravos, pode confundir coisas que a verdade eterna separou por
limites imutáveis.
XXVII. DOS ATENTADOS CONTRA A
SEGURANÇA DOS PARTICULARES E, PRINCIPALMENTE, DAS VIOLÊNCIAS
DEPOIS
dos crimes que atingem a sociedade, ou o soberano que a
representa, vêm os atentados contra a segurança dos
particulares.
Como essa segurança é o fim de
todas as sociedades humanas, não se pode deixar de punir com as
penas mais graves aquele que a atinge.
Entre esses crimes, uns são
atentados contra a vida, outros contra a honra, e outros contra os
bens. Falaremos antes dos primeiros, que devem ser punidos com
penas corporais.
Os atentados contra a vida e a
liberdade dos cidadãos estão no número dos grandes crimes.
Compreendem-se, nessa classe, não somente os assassínios e os
assaltos cometidos por homens do povo, mas, igualmente as violências
da mesma natureza exercidas pelos grandes e pelos magistrados:
crimes tanto mais graves quanto as ações dos homens elevados
agem sobre a multidão com muito mais influência e os seus
excessos destroem no espírito dos cidadãos as idéias de justiça
e de dever, para substituir as do direito do mais forte: direito
igualmente perigoso para quem dele abusa e para quem o sofre.
Se os grandes e os ricos podem
escapar a preço de dinheiro às penas que merecem os atentados
contra a segurança do fraco e do pobre, as riquezas, que, sob a
proteção das leis, são a recompensa da indústria, tornar-se-ão
alimento da tirania e das iniqüidades.
Não mais existe liberdade todas as
vezes que as leis permitem que em certas circunstâncias um cidadão
deixe de ser um homem para tornar-se uma coisa que se possa pôr a
prêmio. Vê-se, então, a astúcia dos homens poderosos ocupada
completamente com o aumento de sua força e dos seus privilégios,
aproveitando todas as combinações que a lei lhes torna favoráveis.
Eis o mágico segredo que transformou a massa dos cidadãos em
bestas de carga; foi assim que os grandes acorrentaram escravos.
É por isso que certos governos, que têm todas as aparências de
liberdade, gemem sob uma tirania oculta. É pelos privilégios dos
grandes que os usos tirânicos se fortificam insensivelmente,
depois de se terem introduzido na constituição, por vias que o
legislador negligenciou fechar.
Os homens sabem opor diques bastante
fortes à tirania declarada; mas, muitas vezes, não vêem o
inseto imperceptível que mina sua obra e que abre por fim, à
torrente devastadora, uma estrada tanto mais segura quanto mais
oculta.
Quais serão, pois, as penas
reservadas aos crimes dos nobres, cujos privilégios ocupam tão
grande lugar na legislação da. maior parte dos povos? Não
examinarei se essa distinção hereditária entre plebeus e nobres
é útil ao governo, ou necessária às monarquias; nem se é
verdade que a nobreza é um poder intermediário próprio para
conter em justos limites o povo e o soberano; nem se essa ordem
isolada da sociedade não tem o inconveniente de reunir num círculo
estreito todas as vantagens da indústria, todas as esperanças e
toda a felicidade: como essas ilhotas encantadoras e férteis que
se encontram no meio dos desertos terríveis da Arábia.
Quando fosse verdade que a
desigualdade é inevitável e mesmo útil na sociedade, é certo
que só deveria existir entre os indivíduos e em virtude das
dignidades e do mérito, mas não entre as ordens do Estado; que
as distinções não devem permanecer. num só lugar, mas circular
em todas as partes do corpo político; que as desigualdades
sociais devem nascer e desaparecer a cada instante, mas não
perpetuar-se nas famílias.
Seja qual for a conclusão de todas
essas questões, limitar-me-ei, a dizer que as penas das pessoas
de mais alta linhagem devem ser as mesmas que as do último dos
cidadãos. A igualdade civil é anterior a todas as distinções
de honras, e de riquezas. Se todos os cidadãos não dependerem
igualmente das mesmas leis, as distinções deixarão de ser legítimas.
Deve supor-se que os homens,
renunciando à liberdade despótica que receberam da natureza,
para se reunirem em sociedade, disseram entre si: "Aquele que
for mais industrioso obterá as maiores honras, a glória do seu
nome passará aos seus descendentes; mas, não obstante as honras
e as riquezas, não receará menos do que o último dos cidadãos
a violação, das leis que o elevaram acima dos outros".
E verdade que não há assembléia
geral do gênero humano em que se tenha aprovado semelhante
decreto; este se funda, porém, na natureza imutável dos
sentimentos do homem.
A igualdade perante as leis não
destrói as vantagens que os príncipes julgam retirar da nobreza:
apenas impede os inconvenientes das distinções e torna as leis
respeitáveis, tirando toda esperança de impunidade.
Dir-se-á, talvez, que a mesma pena,
aplicada contra o nobre e contra o plebeu, torna-se completamente
diversa e mais grave para o primeiro, por causa da educação que
recebeu, e da infâmia que se espalha sobre uma família ilustre.
Responderei no entanto, que o castigo se mede pelo dano causado à
sociedade, e não pela sensibilidade do culpado. Ora, o exemplo do
crime é tanto mais funesto quanto é dado por um cidadão de
condição mais elevada.
Acrescentarei que a igualdade da
pena só pode ser exterior, e não pode ser proporcionada ao grau
de sensibilidade, que é diferente em cada indivíduo.
Quanto à infâmia que cobre uma família
inocente, o soberano pode facilmente apagá-la com demonstrações
públicas de benevolência. Sabe-se que tais demonstrações de
favor têm foros de razão no povo crédulo e admirador.
XXVIII. DAS INJÚRIAS
A
XXIX. DOS DUELOS
A HONRA,
que não é senão a necessidade dos sufrágios públicos, deu
nascimento aos combates singulares, que só puderam estabelecer-se
na desordem das más leis.
Se os duelos não estiveram em uso
na antigüidade, como algumas pessoas o crêem, é que os antigos
não se reuniam armados com um ar de desconfiança, nos templos,
no teatro e entre os amigos. Talvez também, sendo o duelo um
espetáculo muito comum que vis escravos davam ao povo, os homens
livres tivessem receio de que os combates singulares não
bastassem para que eles fossem considerados homens honrados.
Seja como for, é em vão que se
experimentou entre os modernos impedir os duelos com pena de
morte. Essas leis severas não puderam destruir um costume fundado
numa espécie de honra, mais cara aos homens do que a própria
vida. O cidadão que recusa um duelo vê-se presa do desprezo dos
seus concidadãos; é forçado a levar uma vida solitária, a
renunciar aos encantos da sociedade, ou a expor-se constantemente
aos insultos e à vergonha, cujos repetidos golpes o afetam de
maneira mais cruel do que a idéia do suplício.
Por que motivo serão os duelos
menos freqüentes entre os homens do povo do que entre os grandes?
É somente porque o povo não traz espada, é porque tem menos
necessidade de sufrágios públicos do que os homens de condição
mais elevada, que se observam entre si com mais desconfiança e
inveja.
Não é inútil repetir aqui o que já
se disse certa vez: que o melhor meio de impedir o duelo é punir
o agressor, isto é, aquele que deu lugar à querela, a declarar
inocente aquele que, sem procurar tirar a espada, se viu
constrangido a defender a própria honra, isto é, a opinião, que
as leis não protegem suficientemente, e mostrar aos seus concidadãos
que pode respeitar as leis, mas que não teme os homens.
XXX. DO ROUBO
UM
roubo cometido sem violência só deveria ser punido com uma pena
pecuniária. É justo que quem rouba o bem de outrem seja
despojado do seu.
Mas, se o roubo é ordinariamente o
crime da miséria e do desespero, se esse delito só é cometido
por essa classe de homens infortunados, a quem o direito de
propriedade (direito terrível e talvez desnecessário) só deixou
a existência como único bem, as penas pecuniárias contribuirão
simplesmente para multiplicar os roubos, aumentando o número dos
indigentes, arrancando o pão a uma família inocente, para dá-lo
a um rico talvez criminoso.
A pena mais natural do roubo será,
pois, essa espécie de escravidão, que é a única que se pode
chamar justa, isto é, a escravidão temporária, que torna a
sociedade senhora absoluta da pessoa e do trabalho do culpado,
para fazê-lo expiar, por essa dependência, o dano que causou e a
violação do pacto social.
Se, porém, o roubo é acompanhado
de violência, é justo ajuntar à servidão as penas corporais.
Outros escritores mostraram, antes
de mim, os inconvenientes graves que resultam do uso de aplicar as
mesmas penas contra os roubos cometidos com violência e contra
aqueles em que o ladrão só empregou a astúcia. Fez-se ver
quanto é absurdo pôr na mesma balança uma certa soma de
dinheiro e a vida de um homem. O roubo com violência e o roubo de
astúcia são delitos absolutamente diferentes; e a sã política
deve admitir, ainda mais do que as matemáticas, o axioma certo de
que entre dois objetos heterogêneos, há uma distância infinita.
Essas coisas foram ditas; mas, é
sempre útil repetir verdades que jamais se puseram em prática.
Os corpos políticos conservam por muito tempo o movimento
recebido; é, porém, moroso e difícil imprimir-lhes um novo
movimento.
XXXI. DO CONTRABANDO
O CONTRABANDO
é um verdadeiro delito, que ofende o soberano e a nação, mas
cuja pena não deveria ser infamante, porque a opinião pública não
empresta nenhuma infâmia a essa espécie de delito.
Porque, pois, o contrabando, que é
um roubo feito ao príncipe, e por conseguinte à nação, não
acarreta a infâmia sobre aquele que o exerce? E que os delitos
que os homens não consideram nocivos aos seus interesses não
afetam bastante para excitar a indignação pública. Tal é o
contrabando. Os homens, sobre os quais as conseqüências remotas
de um ato só produzem impressões fracas, não vêem o dano que o
contrabando pode causar-lhes. Chegam mesmo, às vezes, a retirar
dele vantagens momentâneas. Não vêem senão o mal causado ao príncipe,
e, para recusarem estima ao culpado, só têm uma razão premente
contra o ladrão, o falsário e alguns outros criminosos que podem
prejudicá-los pessoalmente.
Essa maneira de sentir é conseqüência
do princípio incontestável de que todo ser sensível só se
interessa pelos males que conhece.
O contrabando é um delito gerado
pelas próprias leis, porque, quanto mais se aumentam os direitos,
tanto maior é a vantagem do contrabando; a tentação de exercê-lo
é também tão forte quanto mais fácil é cometer essa espécie
de delito, sobretudo se os objetos proibidos são de pequeno
volume, e se são interditos numa tão grande circunferência de
território que a extensão deste torne difícil guardá-lo.
O confisco das mercadorias
proibidas, e mesmo de tudo o que se acha apreendido com objetos de
contrabando, é uma pena justíssima. Para torná-lo mais eficaz,
seria preciso que os direitos fossem pouco consideráveis; pois os
homens só se arriscam na proporção do lucro que o êxito possa
proporcionar-lhes.
Será, porém, o caso de deixar
impune o culpado que não tem nada que perder? Não. Os impostos são
parte tão essencial e tão difícil numa boa legislação, e estão
de tal modo comprometidos em certas espécies de contrabando, que
tal delito merece uma pena considerável, como a prisão e mesmo a
servidão, mas uma prisão e uma servidão análogas à natureza
do delito.
Por exemplo, a prisão de um
contrabandista de fumo não deve ser a do assassino ou a do ladrão;
e, sem dúvida, o castigo mais conveniente ao gênero do delito
seria aplicar à utilidade do fisco a servidão e o trabalho
daquele que pretendeu fraudar-lhe os direitos.
XXXII. DAS FALÊNCIAS
O LEGISLADOR
que percebe o preço da boa fé nos contratos, e que quer proteger
a segurança do comércio, deve dar recurso aos credores sobre a
pessoa mesma dos seus devedores, quando estes abrem falência.
Importa, porém, não confundir o falido fraudulento com o que é
de boa fé. O primeiro deveria ser punido como o são os moedeiros
falsos, porque não é maior o crime de falsificar o metal
amoedado, que constitui a garantia dos homens entre si, do que
falsificar essas obrigações mesmas.
Mas, o falido de boa fé, o infeliz
que pode provar evidentemente aos seus juizes que a infidelidade
de outrem, as perdas dos seus correspondentes, ou enfim
contratempos que a prudência humana não poderia evitar, o
despojaram dos seus bens, deve ser tratado com menos rigor. Por
que motivos bárbaros ousar-se-á mergulhá-lo nas masmorras, privá-lo
do único bem que lhe resta na miséria, a liberdade, e
confundi-lo com os criminosos e forçá-lo a arrepender-se de ter
sido honesto? Vivia tranqüilo, ao abrigo de sua probidade, e
contava com a proteção das leis. Se as violou, é que não
estava em seu poder conformar-se exatamente a essas leis severas,
que o poder e a avidez insensível impuseram e que o pobre aceitou
seduzido pela esperança que subsiste sempre no coração do homem
e que o faz acreditar que todos os acontecimentos felizes serão
para ele e todas as desgraças para os outros.
O medo de ser ofendido predomina
geralmente na alma sobre a vontade de prejudicar; e os homens,
entregando-se às suas primeiras impressões, amam as leis cruéis,
se bem que seja do seu interesse viver sob leis brandas, pois eles
próprios estão submetidos a elas.
Mas, voltemos ao falido de boa fé:
não o desobriguem de sua dívida senão depois que ele a tiver
pago inteiramente; recusem-lhe o direito de subtrair-se aos
credores sem o consentimento destes, e a liberdade de levar
adiante sua indústria; forcem-no a empregar seu trabalho e seus
talentos no pagamento do que deve, proporcionalmente aos seus
lucros. Mas, sob nenhum pretexto legítimo, não se poderá fazê-lo
sofrer uma prisão injusta e inútil aos credores.
Dir-se-á, talvez, que os horrores
da prisão obrigarão o falido a revelar as trapaças que
ocasionaram uma falência suspeita de fraude. É bem raro, porém,
que essa espécie de tortura seja necessária, se se fizer um
exame rigoroso da conduta e dos negócios do acusado.
Se a fraude do falido for muito
duvidosa, será melhor optar por sua inocência. Há uma máxima
geralmente certa em legislação, segundo a qual a impunidade de
um culpado tem graves inconvenientes; mas, a impunidade é pouco
perigosa quando o delito é difícil de constatar-se.
Alegar-se-á também a necessidade
de proteger os interesses do comércio, assim como o direito de
propriedade, que deve ser sagrado. Mas, o comércio e o direito de
propriedade não são o fim do pacto social, são apenas meios que
podem conduzir a esse fim.
Se se submeterem todos os membros da
sociedade a leis cruéis, para preservá-los dos inconvenientes
que são as conseqüências naturais do estado social, isso será
faltar ao fim procurando atingi-lo; e esse é o erro funesto que
perde o espírito humano em todas as ciências, mas sobretudo na
política (17).
Poder-se-ia distinguir a fraude do
delito grave, mas menos odioso, e fazer uma diferença entre o
delito grave e a pequena falta, que seria preciso separar também
da perfeita inocência.
No primeiro caso, aplicar-se-iam ao
culpado as penas aplicáveis ao crime de falsário. O segundo
delito seria punido com penas menores, com a perda da liberdade.
Deixar-se-ia ao falido inteiramente inocente a escolha dos meios
que desejasse empregar para estabelecer os seus negócios; e, no
caso de um delito leve, dar-se-ia aos credores o direito de
prescrever esses meios.
Mas, a distinção entre faltas
graves e leves deve ser obra da lei, que é a única imparcial;
seria perigoso abandoná-la à prudência arbitrária de um juiz.
E tão necessário fixar limites na política quanto nas ciências
matemáticas, porque o bem público se mede como os espaços e a
extensão.
Seria fácil ao legislador
previdente impedir a maior parte das falências fraudulentas e
remediar a desgraça do homem laborioso, que falta aos seus
compromissos sem ser culpado. Possam todos os cidadãos consultar
a cada instante os registros públicos, nos quais se terá uma
nota exata de todos os contratos; e que contribuições sabiamente
repartidas entre os comerciantes felizes formem um banco, do qual
se tirem somas convenientes para socorrer a indústria infeliz.
Tais estabelecimentos só poderão ter vantagens numerosas, sem
inconvenientes real.
Mas essas leis fáceis, a um tempo tão
simples e tão sublimes; essas leis que esperam apenas o sinal do
legislador para espalhar sobre as nações a abundância e a força;
essas leis que seriam motivo de reconhecimento eterno de todas as
gerações, são desconhecidas ou rejeitadas. Um espírito de
hesitação, idéias estreitas, a tímida prudência do momento,
uma rotina obstinada, que teme as inovações mais úteis: tais são
os móveis ordinários dos legisladores que regulam o destino da
fraca humanidade.
XXXIII. DOS DELITOS QUE PERTURBAM
A TRANQUILIDADE PÚBLICA
A TERCEIRA
espécie de delitos que distinguimos compreende os que perturbam
particularmente o repouso e a tranqüilidade pública: as querelas
e o tumulto de pessoas que se batem na via pública, destinada ao
comércio e à passagem dos cidadãos, e os discursos fanáticos
que excitam facilmente as paixões de uma populaça curiosa e que
emprestam grande força da multidão dos auditores e sobretudo um
certo entusiasmo obscuro e misterioso, com poder bem maior sobre o
espírito do povo do que a tranqüila razão, cuja linguagem a
multidão não entende.
Iluminar as cidades durante a noite
à custa do público; colocar guardas de segurança nos diversos
bairros das cidades; reservar ao silêncio e à tranqüilidade
sagrada dos templos, protegidos pelo governo, os discursos de
moral religiosa, e as arengas destinadas a sustentar os interesses
particulares e públicos às assembléias da nação, aos
parlamentos aos lugares, enfim, onde reside a majestade soberana:
tais são as medidas próprias para prevenir a perigosa fermentação
das paixões populares; e são esses os principais objetos que
devem ocupar a vigilância do magistrado de polícia.
Mas, se esse magistrado não age
segundo leis conhecidas e familiares a todos os cidadãos; se
pode, ao contrário, fazer ao seu capricho leis que julga serem
necessárias, abre assim a porta à tirania, que ronda sem cessar
em torno das barreiras que a liberdade pública lhe fixou e que só
procura transpô-las.
Creio não haver exceção à regra
geral de que os cidadãos devem saber o que precisam fazer para
serem culpados, e o que precisam evitar para serem inocentes.
Um governo que tem necessidade de
censores, ou de qualquer outra espécie de magistrados arbitrários,
prova que é mal organizado e que sua constituição não tem força.
Num país em que o destino dos cidadãos está entregue à
incerteza, a tirania oculta imola mais vítimas do que o tirano
mais cruel que age abertamente. Este ultimo revolta, mas não
avilta.
O verdadeiro tirano começa sempre
reinando sobre a opinião; quando é senhor dela, apressa-se a
comprimir as almas corajosas, das quais tem tudo que temer, porque
só se apresentam com o archote da verdade, quer no fogo das paixões,
quer na ignorância dos perigos.
XXXIV. DA OCIOSIDADE
OS
governos sábios não sofrem, no seio do trabalho e da indústria,
uma espécie de ociosidade que é contrária ao fim político do
estado social: quero falar de certas pessoas ociosas e inúteis
que não dão à sociedade nem trabalho nem riquezas, que acumulam
sempre sem jamais perder, que o vulgo respeita com uma admiração
estúpida e que são aos olhos do sábio um objeto de desprezo.
Quero falar de certas pessoas que não conhecem necessidade de
administrar ou aumentar as comodidades da vida, único motivo
capaz de excitar a atividade humana, e que indiferentes à
prosperidade do Estado, só se inflamam com paixão por opiniões
que lhes agradam, mas que podem ser perigosas.
Austeros declamadores confundiram
essa espécie de ociosidade com a que é fruto das riquezas
adquiridas pela indústria. Cabe exclusivamente às leis, e não
à virtude rígida (mas fechada em idéias estreitas) de alguns
censores, definir a espécie de ociosidade punível.
Não se pode encarar como ociosidade
funesta em política aquela que, gozando do fruto dos vícios ou
das virtudes de alguns antepassados, dá contudo pão e existência
à pobreza industriosa, da troca dos prazeres atuais que recebe
desta e que põe o pobre na contingência de travar a guerra pacífica
que a indústria sustenta contra a opulência e que sucedeu aos
combates sangrentos e incertos da força contra a força.
Essa espécie de ociosidade pode
mesmo tornar-se vantajosa, à medida que a sociedade aumenta e que
o governo deixa aos cidadãos mais liberdade.
XXXV. DO SUICÍDIO
O SUICÍDIO
é um delito que parece não poder ser submetido a nenhuma pena
propriamente dita; pois essa pena só poderia recair sobre um
corpo insensível e sem vida, ou sobre inocentes. Ora, o castigo
que se aplicasse contra os restos inanimados do culpado não
poderia produzir outra impressão sobre os espectadores senão a
que estes experimentariam ao verem fustigar uma estátua.
Se a pena é aplicada à família
inocente, ela é odiosa e tirânica, porque já não há liberdade
quando as penas não são puramente pessoais.
Os homens amam demasiado a vida; estão
ligados a ela por todos os objetos que os cercam; a imagem
sedutora do prazer e a doce esperança, amável feiticeira que
mistura algumas gotas de felicidade ao licor envenenado dos males
que ingerimos a grandes tragos, encantam muito fortemente os corações
dos mortais, para que se possa temer que a impunidade contribua
para tornar o suicídio mais comum.
Se se obedece às leis pelo temor de
um suplício doloroso, aquele que se mata nada tem que temer, pois
a morte destrói toda sensibilidade. Não é, pois, esse motivo
que poderá deter a mão desesperada do suicida.
Mas, aquele que se mata faz menos
mal à sociedade do que aquele que renuncia para sempre à sua pátria.
O primeiro deixa tudo ao seu país, ao passo que o outro lhe rouba
sua pessoa e uma parte dos seus bens.
Direi mais. Como a força de uma nação
consiste no número dos cidadãos, aquele que abandona o seu país
para entregar-se a outro causa à sociedade o dobro do prejuízo
que lhe pode causar o suicida.
A questão reduz-se, pois, a saber
se é útil ou perigoso à sociedade deixar a cada um dos membros
que a compõem uma liberdade perpétua de afastar-se dela.
Toda lei que não é forte por si
mesma, toda lei cuja execução pode ser impedida em certas
circunstâncias, jamais deveria ser promulgada. A opinião, que
governa os espíritos, obedece às impressões lentas e indiretas
que o legislador sabe dar-lhe; resiste, porém, aos seus esforços,
quando são violentos e diretos; e as leis inúteis, que logo são
desprezadas, comunicam seu aviltamento às leis mais salutares,
que costumam ser vistas antes como obstáculos a vencer do que
como a salvaguarda da tranqüilidade pública.
Ora, como a energia dos nossos
sentimentos é limitada, se se quiser obrigar os homens a
respeitar objetos estranhos ao bem da sociedade, eles terão menos
veneração pelas leis verdadeiramente úteis.
Não me deterei no desenvolvimento
das conseqüências vantajosas que um sábio dispensador da
felicidade pública poderá tirar desse princípio; procurarei
apenas provar que não é necessário fazer do Estado uma prisão.
Uma lei que tentasse tirar aos cidadãos
a liberdade de abandonar seu país, seria uma lei inútil; porque,
a menos que rochedos inacessíveis ou mares impraticáveis separem
esse país de todos os outros, como guardar todos os pontos de sua
circunferência? Como guardar os próprios guardas?
O imigrante que leva tudo o que
possui não deixa nada sobre que as leis possam fazer cair a pena
com que o ameaçam. Seu delito já não pode ser punido, desde que
foi cometido; e infligir-lhe um castigo antes que ele seja
consumado, é punir a intenção e não o fato, é exercer um
poder tirano sobre o pensamento, sempre livre e sempre
independente das leis humanas.
Tentar-se-á punir o fugitivo com o
confisco dos bens que ele deixa? Mas a conclusão, que não se
pode impedir por pouco que se respeitem os contratos dos cidadãos
entre si, tornaria esse meio ilusório. Além disso, semelhante
lei destruiria todo comércio entre as nações; e, se se punisse
o emigrado, no caso dele regressar aos país, isso significaria
impedi-lo de reparar o prejuízo que causou à sociedade e banir
para sempre aquele que uma vez se tivesse afastado da pátria.
Enfim, a proibição de sair de um
país só faz aumentar, em quem o habita, o desejo de abandoná-lo,
ao passo que desvia os estrangeiros de nele se estabelecerem. Que
se deve, pois, pensar de um governo que não tem outro meio senão
o temor, para reter os homens em sua pátria, à qual eles estão
naturalmente ligados pelas primeiras impressões da infância?
A maneira mais certa de fixar os
homens em sua pátria é aumentar o bem-estar respectivo de cada
cidadão. Do mesmo modo que todo governo deve empregar os maiores
esforços para fazer pender a seu favor a balança do comércio,
assim também o maior interesse do soberano e da nação é que a
soma de felicidade seja aí maior do que entre os povos vizinhos.
Os prazeres do luxo não são os
principais elementos dessa felicidade: embora impedindo as
riquezas de se reunirem numa só mão, eles se tornam um remédio
necessário à desigualdade, que toma mais força à medida que a
sociedade faz mais progressos (18).
Mas, os prazeres do luxo são a base
da felicidade pública, num país em que a segurança dos bens e a
liberdade das pessoas dependem exclusivamente das leis, porque então
esses prazeres favorecem a população; ao passo que se tornam um
instrumento de tirania para um povo cujos direitos não são
garantidos. Assim como os animais mais generosos e os livres
habitantes dos ares preferem as solidões inacessíveis e as
florestas longínquas, onde sua liberdade não corre risco, aos
campos alegres e férteis, que o homem, seu inimigo, semeou de
armadilhas, assim também os homens evitam o próprio prazer,
quando este lhes é oferecido pela mão dos tiranos (19).
Está, pois, demonstrado que a lei
que prende os cidadãos ao seu país é inútil e injusta; e o
mesmo juízo deve ser feito sobre a que pune o suicídio.
Trata-se de um crime que Deus pune
após a morte do culpado, e somente Deus pode punir depois da
morte.
Não é, porém, um crime perante os
homens, porque o castigo recai sobre a família inocente e não
sobre o culpado.
Se me objetarem que o medo desse
castigo pode, contudo, deter a mão do infeliz determinado a
morrer, responderei que quem renuncia tranqüilamente à doçura
de viver e odeia bastante a existência terrena para preferir-lhe
uma eternidade talvez infeliz, não se comoverá decerto com a
consideração remota e menos forte da vergonha que o crime atrairá
sobre sua família.
XXXVI. DE CERTOS DELITOS DIFÍCEIS
DE CONSTATAR
COMETEM-SE
na sociedade certos delitos que são bastante freqüentes, mas que
é difícil provar. Tais são o adultério, a pederastia, o
infanticídio.
O adultério é um crime que,
considerado sob o ponto de vista político, só é tão freqüente
porque as leis não são fixas e porque os dois sexos são
naturalmente atraídos um pelo outro (20).
Se eu falasse a povos ainda privados
das luzes da religião, diria que há uma grande diferença entre
esse delito e todos os outros. O adultério é produzido pelo
abuso de uma necessidade constante, comum a todos os mortais,
anterior à sociedade; ao passo que os outros delitos, que tendem
mais ou menos à destruição do pacto social, são antes o efeito
das paixões do momento do que das necessidades da natureza.
Os que leram a história e estudaram
os homens podem reconhecer que o número dos delitos produzidos
pela tendência de um sexo para outro é, no mesmo clima, sempre
igual a uma quantidade constante. Se assim é, toda lei, todo
costume cujo fim fosse diminuir a soma total dos efeitos dessa
paixão, seria inútil e até funesta, porque o efeito dessa lei
seria sobrecarregar uma porção da sociedade com suas próprias
necessidades e com as dos outros. O partido mais sábio seria,
pois, seguir até certo ponto o declive do rio das paixões e
dividir-lhe o curso num número de regatos suficientes para
impedir em toda parte dois excessos contrários, a seca e as
enchentes.
A fidelidade conjugal é sempre mais
segura à proporção que os casamentos são mais numerosos e mais
livres. Se os preconceitos hereditários os conciliam, se o poder
paterno os forma e os impede ao seu capricho, a galanteria
quebra-lhes secretamente os laços, mau grado as declamações dos
moralistas vulgares, sempre ocupados em gritar contra os efeitos,
omitindo as causas.
Mas, essas reflexões são inúteis
para aqueles que os motivos sublimes da religião mantêm nos
limites do dever, que o pendor da natureza os leva a transpor.
O adultério é um delito de um
instante; envolve-se de mistério; cobre-se de um véu que as próprias
leis se empenham em conservar, véu necessário, mas de tal modo
transparente que só faz aumentar os encantos do objeto que
oculta. As ocasiões são tão fáceis, as conseqüências tão
duvidosas, que é bem mais fácil ao legislador preveni-lo quando
não foi cometido do que reprimi-lo quando já se estabeleceu.
Regra geral: em todo delito que, por
sua natureza, deve quase sempre ficar impune, a pena é um aguilhão
a mais. Nossa imaginação é mais vivamente excitada e se empenha
com mais ardor em perseguir o objeto dos seus desejos, quando as
dificuldades que se apresentam não são insuperáveis e quando não
têm um aspecto bastante desencorajador, relativamente ao grau de
atividade que se tem no espírito. Os obstáculos se tornam, por
assim dizer, tantas barreiras que impedem nossa imaginação
caprichosa de afastar-se delas, e que continuamente a forçam a
pensar nas conseqüências da ação que medita. Então a alma se
apega bem mais fortemente aos lados agradáveis que a seduzem do
que às conseqüências perigosas cuja idéia se esforça por
afastar.
A pederastia, que as leis punem com
tanta severidade e contra a qual se empregam tão facilmente essas
torturas atrozes que triunfam da própria inocência, é menos o
efeito das necessidades do homem isolado e livre do que o desvio
das paixões do homem escravo que vive em sociedade. Se às vezes
ela é produzida pela sociedade dos prazeres, é bem freqüentemente
o efeito dessa educação que, para tornar os homens úteis aos
outros, começa por torná-los inúteis a si mesmos, nessas casas
em que uma juventude numerosa, viva, ardente, mas separada por
obstáculos intransponíveis do sexo, do qual a natureza lhe pinta
fortemente todos os encantos, prepara para si uma velhice
antecipada, consumindo de antemão, inutilmente para a humanidade,
um vigor apenas desenvolvido.
O infanticídio é ainda o resultado
quase inevitável da cruel alternativa em que se acha uma infeliz,
que só cedeu por fraqueza, ou que sucumbiu sob os esforços da
violência. De um lado a infâmia, de outro a morte de um ser
incapaz de sentir a perda da vida: como não havia de preferir
esse último partido, que a rouba à vergonha, à miséria,
juntamente com o desgraçado filhinho'
O melhor meio de prevenir essa espécie
de delito seria proteger com leis eficazes a fraqueza e a
infelicidade contra essa espécie de tirania, que só se levanta
contra os vícios que não se podem cobrir com o manto da virtude.
Não pretendo enfraquecer o justo
horror que devem inspirar os crimes de que acabamos de falar. Eu
quis indicar suas fontes e penso que me será permitido tirar daí
a conseqüência geral de que não se pode chamar precisamente
justa ou necessária (o que é a mesma coisa) a punição de um
delito que as leis não procuraram prevenir com os melhores meios
possíveis e segundo as circunstâncias em que se encontra uma nação.
XXXVII. DE UMA ESPÉCIE PARTICULAR
DE DELITO
OS
QUE lerem esta obra se aperceberão sem dúvida de que não falei
de uma espécie de delito cuja punição inundou a Europa de
sangue humano.
Não descrevi esses espetáculos
espantosos em que o fanatismo elevava constantemente fogueiras, em
que homens vivos serviam de alimento às chamas, em a que multidão
feroz se comprazia em ouvir os gemidos abafados dos infelizes, em
que cidadãos corriam, como a um espetáculo agradável, a
contemplar a morte dos seus irmãos, no meio dos turbilhões de
negra fumaça, em que os lugares públicos ficavam cobertos de
destroços palpitantes e de cinzas humanas.
Os homens esclarecidos verão que o
país onde habito, o século em que vivo e a matéria de que trato
não me permitiram examinar a natureza desse delito. Seria, aliás,
empresa demasiado longa e que me desviaria muito do meu assunto,
querer provar, contra o exemplo de várias nações, a necessidade
de uma inteira conformidade de opinião num Estado político;
procurar demonstrar como certas crenças religiosas, entre as
quais só podem achar-se diferenças sutis, obscuras e muito acima
da capacidade humana, podem contudo perturbar a tranqüilidade pública,
a menos que somente uma seja autorizada e todas as outras
proscritas.
Seria preciso fazer ver ainda como
algumas dessas crenças, tornando-se mais claras pela fermentações
dos espíritos, podem fazer nascer do choque das opiniões a
verdade, que então sobrenada depois de ter aniquilado o erro, ao
passo que outras seitas, pouco firmes em suas bases; têm
necessidade, para manter-se, de se apoiarem na força.
Seria demasiado longo, igualmente,
mostrar que, para reunir todos os cidadãos de um Estado numa
perfeita conformidade de opiniões religiosas, é preciso
tiranizar os espíritos e constrangê-los a vergar sob o jugo da
força, embora essa violência se oponha à razão e à autoridade
que mais respeitamos (21),
que nos recomenda a doçura e o amor dos nossos irmãos, embora
seja evidente que a força só faz hipócritas e, portanto, almas
vis.
Deve-se crer que todas essas coisas
estarão demonstradas e conformes aos interesses da humanidade, se
houver em alguma parte uma autoridade legítima e reconhecida que
as ponha em prática.
Quanto a mim, só falo aqui dos
crimes que pertencem ao homem natural e que violam o contrato
social; devo silenciar, porém, sobre os pecados cuja punição
mesmo temporal deve ser determinada segundo outras regras que não
as da filosofia.
XXXVIII. DE ALGUMAS FONTES GERAIS
DE ERROS E DE INJUSTIÇAS NA LEGISLAÇÃO
E, em primeiro lugar, das falsas
idéias de utilidade
AS
FALSAS idéias que os legisladores fizeram da utilidade são uma
das fontes mais fecundas de erros e injustiças.
É ter falsas idéias de utilidade
ocupar-se mais com inconvenientes particulares do que com
inconvenientes gerais; querer comprimir os sentimentos naturais em
lugar de procurar excitá-los; impor silêncio à razão e dizer
ao pensamento: "Sê escravo".
É ter ainda falsas idéias de
utilidade sacrificar mil vantagens reais ao temor de uma
desvantagem imaginária ou pouco importante.
Não teria certamente idéias justas
quem desejasse tirar aos homens o fogo e a água, porque esses
dois elementos causam incêndios e inundações, e quem só
soubesse impedir o mal pela destruição.
Podem considerar-se igualmente como
contrárias ao fim de utilidade as leis que proíbem o porte de
armas, pois só desarmam o cidadão pacífico, ao passo que deixam
o ferro nas mãos do celerado, bastante acostumado a violar as
convenções mais sagradas para respeitar as que são apenas
arbitrárias.
Além disso, essas convenções são
pouco importantes; há pouco perigo em infringi-las e, por outro
lado, se as leis que desarmam fossem executadas com rigor,
destruiriam a liberdade pessoal, tão preciosa ao homem tão
respeitável aos olhos do legislador esclarecido; submeteriam a
inocência a todas as investigações, a todos os vexames arbitrários
que só devem ser reservados aos criminosos.
Tais leis só servem para
multiplicar os assassínios, entregam o cidadão sem defesa aos
golpes do celerado, que fere com mais audácia um homem desarmado;
favorecem o bandido que ataca, em detrimento do homem honesto que
é atacado.
Essas leis são simplesmente o ruído
das impressões tumultuosas que produzem certos fatos
particulares; não podem ser o resultado de combinações sábias
que pesam numa mesma balança os males e os bens; não é para
prevenir os delitos, mas pelo vil sentimento do medo, que se fazem
tais leis.
É por uma falsa idéia de utilidade
que se procura submeter uma multidão de seres sensíveis à
regularidade simétrica que pode receber uma matéria bruta e
inanimada; que se negligenciam os motivos presentes, únicos
capazes de impressionar o espírito humano de maneira forte e durável,
para empregar motivos remotos, cuja impressão é fraca e
passageira, a menos que uma grande força de imaginação, que só
se se encontra num pequeno número de homens, supra o afastamento
do objeto, mantendo-o sob relações que o aumentam e o aproximam.
Enfim, também podem chamar-se
falsas idéias de utilidade as que separam o bem geral dos
interesses particulares, sacrificando as coisas às palavras.
Há, entre o estado de sociedade e o
estado de natureza, a diferença de que o homem selvagem só faz
mal a outrem quando nisso descobre alguma vantagem para si, ao
passo que o homem social é às vezes levado, por leis viciosas, a
prejudicar sem nenhum proveito.
O déspota espalha o medo e o
abatimento na alma dos seus escravos, mas esse medo e esse
abatimento voltam-se contra ele próprio, logo lhe enchem o coração
e o tornam presa de males maiores do que os que ele causa.
Aquele que se compraz em inspirar o
terror corre poucos riscos, se teme apenas a própria família e
as pessoas que o cercam. Mas, quando o terror é geral, quando
fere uma grande multidão de homens, o tirano deve tremer. Receie
a temeridade, o desespero; receie sobretudo o homem audacioso, mas
prudente, que souber com habilidade sublevar contra ele os
descontentes, tanto mais fáceis de serem seduzidos quando se
despertarem em suas almas as mais caras esperanças e quando se
tiver o cuidado de mostrar-lhes os perigos da empresa repartidos
entre um grande número de cúmplices. Juntai a isso que os
infelizes dão menos valor à sua existência na proporção dos
males que os afligem.
Eis, sem dúvida, porque as ofensas
são quase sempre seguidas de ofensas novas. A tirania e o ódio são
sentimentos duráveis, que se sustentam e tomam novas forças à
medida que se exercem; ao passo que, em nossos corações
corruptos, o amor e os sentimentos ternos se enfraquecem e se
extinguem na ociosidade.
XXXIX. DO ESPÍRITO DE FAMÍLIA
O ESPIRÍTO
da família é outra fonte geral de injustiças na legislação.
Se as disposições cruéis e os
outros vícios das leis penais foram aprovados pelos legisladores
mais esclarecidos, nas repúblicas mais livres, é que se
considerou o Estado antes como uma sociedade de famílias do que
como a associação de um certo número de homens.
Suponha-se uma nação composta de
cem mil homens, distribuídos em vinte mil famílias de cinco
pessoas cada uma, inclusive o chefe que a representa; se a associação
é feita por famílias, haveria vinte mil cidadãos e oitenta mil
escravos; se é feita por indivíduos, haveria cem mil cidadãos
livres.
No primeiro caso, seria uma república
composta de vinte mil pequenas monarquias; no segundo, tudo
respirará o espírito de liberdade, que animará os cidadãos, não
somente nas praças públicas e nas assembléias nacionais, mas
ainda sob o teto doméstico, onde residem os principais elementos
de felicidade e de miséria.
Se a associação é feita por famílias,
as leis e os costumes, que são sempre o resultado dos sentimentos
habituais dos membros da sociedade política, serão obra dos
chefes dessas famílias; ver-se-á em breve o espírito monárquico
introduzir-se aos poucos na própria república, e os seus efeitos
só encontrarão obstáculos na oposição dos interesses
particulares, porque os sentimentos naturais de liberdade e de
igualdade já terão deixado de viver nos corações.
O espírito de família é um
espirito de minúcia limitado pelos mais insignificantes
pormenores; ao passo que o espírito público, ligado aos princípios
gerais, vê os fatos com visão segura, coordena-os nos lugares
respectivos e sabe tirar deles conseqüências úteis ao bem da
maioria.
Nas sociedades compostas de famílias,
as crianças ficam sob a autoridade do chefe e são obrigadas a
esperar que a morte lhes dê uma existência que só depende das
leis. Habituadas a obedecer e a tremer, na idade da força, quando
as paixões não são ainda refreadas pela moderação, espécie
de temor prudente que é o fruto da experiência e da idade, como
resistirão elas aos obstáculos que o vício opõe constantemente
aos esforços da virtude, quando a velhice decrépita e medrosa
tirar-lhes a coragem de tentar reformas ousadas, que aliás as
seduzem pouco, porque não têm a esperança de recolher-lhes os
frutos?
Nas repúblicas, em que todo homem
é cidadão, a subordinação nas famílias não é efeito da força,
mas de um contrato; e os filhos, uma vez saídos da idade em que a
fraqueza e a necessidade de educação os mantêm sob a dependência
natural dos pais, tornam-se desde então membros livres da
sociedade: se ainda se submetem ao chefe da família, é apenas
para participar das vantagens que esta lhes oferece, do mesmo modo
que os cidadãos se sujeitam, sem perder a liberdade, ao chefe da
grande sociedade política.
Nas repúblicas compostas de famílias,
os jovens, isto é, a parte mais considerável e mais útil da nação,
ficam à discrição dos pais. Nas repúblicas de homens livres,
os únicos laços que submetem os filhos ao pai são os
sentimentos sagrados e invioláveis da natureza, que convidam os
homens a ajudar-se mutuamente em suas necessidades recíprocas e
que lhes inspiram o reconhecimento pelos benefícios recebidos.
Esses santos deveres são muito mais
alterados pelo vício das leis, que prescrevem uma submissão cega
e obrigatória, do que pela maldade do coração humano. Essa
oposição entre as leis fundamentais dos Estados políticos e as
leis de família, é fonte de muitas outras contradições entre a
moral pública e a moral particular, que se combatem continuamente
no espírito de cada homem.
A moral particular só inspira a
submissão e o medo, ao passo que a moral pública anima a coragem
e o espírito da liberdade.
Guiado pela primeira, o homem limita
seu bem-estar ao círculo estreito de um pequeno número de
pessoas que ele nem mesmo escolheu. Inspirado pela outra, procura
estender a felicidade sobre todas as classes da humanidade.
A moral particular exige que cada
qual se sacrifique continuamente a um falso ídolo que se chama o
bem da família e que muitas vezes não é o bem real de nenhum
dos indivíduos que a compõem. A moral pública ensina a procurar
o bem-estar sem ferir as leis; e, se às vezes excita um cidadão
a imolar-se pela pátria, recompensa-o pelo entusiasmo que lhe
inspira antes do sacrifício e pela glória que lhe promete.
Tantas contradições fazem que os
homens desdenhem de praticar a virtude, que não podem reconhecer
no meio das trevas de que a cercaram e que lhes parece distante,
porque está envolta nessa obscuridade que oculta aos nossos olhos
os objetos morais como os objetos físicos.
Quantas vezes o cidadão que reflete
sobre suas ações passadas não se terá admirado de achar-se um
mau homem?
A medida que a sociedade cresce,
cada um dos seus membros torna-se uma parte menor do todo, e o
amor do bem público se enfraquece na mesma proporção, se as
leis deixam de fortificá-lo. As sociedades políticas têm, como
o corpo humano, um crescimento limitado; não poderiam estender-se
além de certos limites, sem que sua economia fosse perturbada.
Parece que a grandeza de um Estado
deve estar na razão inversa do grau de atividade dos indivíduos
que a compõem. Se essa atividade crescesse ao mesmo tempo que a
população, as boas leis achariam um obstáculo, para prevenir os
delitos, no próprio bem que tivessem podido fazer.
Uma república muito vasta só pode
escapar ao despotismo subdividindo-se num certo número de
pequenos Estados confederados. Mas, para formar essa união, seria
preciso um ditador poderoso, que tivesse a coragem de Sila (22),
com tanto gênio para fundar quanto Sila o teve para destruir.
Se tal homem for ambicioso, poderá
esperar uma glória imortal. Se for filósofo, as bênçãos dos
seus concidadãos o consolarão da perda de sua autoridade, mesmo
sem pedir-lhes reconhecimento.
Quando os sentimentos que nos unem
à nação principiam a enfraquecer-se, os que nos ligam aos
objetos que nos cercam adquirem novas forças. Assim, sob o
despotismo feroz, os laços da amizade são mais duráveis; e as
virtudes de família (virtudes sempre fracas) se tornam, então,
as mais comuns, ou antes, são as únicas que ainda se praticam.
Após todas essas observações,
pode julgar-se quanto foram curtas e limitadas as opiniões da
maioria dos nossos legisladores.
XL. DO ESPÍRITO DO FISCO
HOUVE
um tempo em que todas as penas eram pecuniárias. Os crimes dos súditos
eram para o príncipe uma espécie de patrimônio. Os atentados
contra a segurança pública eram objeto de lucro, sobre o qual se
sabia especular. O soberano e os magistrados achavam seu interesse
nos delitos que deveriam prevenir. Os julgamentos não eram, então,
nada menos do que um processo entre o fisco que percebia o preço
do crime, e o culpado que devia pagá-lo. Fazia-se disso um negócio
civil, contencioso, como se se tratasse de uma querela particular,
e não do bem público. Parecia que o fisco tinha outros direitos
que exercer além da proteção da tranqüilidade pública, e o
culpado outras penas que sofrer além das que a necessidade do
exemplo o exigia. O juiz, estabelecido para apurar a verdade com
ânimo imparcial, não era mais do que o advogado do fisco; e
aquele que se chamava o protetor e o ministro das leis era apenas
o exator dos dinheiros do príncipe.
Nesse sistema, quem se confessasse
culpado se reconhecia, pela própria confissão, devedor do fisco;
e, como era esse o fim de todos os processos criminais, toda a
arte do juiz consistia em obter essa confissão da maneira mais
favorável aos interesses do fisco.
É ainda para esse mesmo fim fiscal
que tende hoje toda a jurisprudência criminal, pois os efeitos
permanecem por muito tempo depois de cessadas as causas.
O acusado que recusa confessar-se
culpado, embora convencido por provas certas, sofrerá uma pena
mais leve do que se tivesse confessado; não lhe será aplicada a
tortura pelos outros crimes que poderia ter cometido, precisamente
porque não confessou o crime principal de que está convencido.
Mas, se o crime é confessado, o juiz apodera-se do corpo do
culpado; dilacera-o metodicamente; e faz dele,. por assim dizer,
um fundo do qual tira todo o proveito possível.
Uma vez reconhecida a existência do
delito, a confissão do acusado se torna prova convincente.
Acredita-se tornar essa prova menos suspeita, arrancando a confissão
do crime pelos tormentos e pelo desespero; e se estabeleceu que a
confissão não basta para condenar o culpado, se esse culpado é
calmo, se fala desembaraçadamente, se não está cercado das
formalidades judiciárias e do aparato aterrador dos suplícios.
Excluem-se cuidadosamente da instrução
de um processo as investigações e as provas que, esclarecendo o
fato de maneira a favorecer o acusado, poderiam prejudicar as
pretensões do fisco; e, se às vezes se poupam alguns tormentos
ao culpado, não é nem por piedade para com a desgraça, nem por
indulgência para com a fraqueza, mas porque as confissões
obtidas são suficientes para os direitos do fisco, esse ídolo
que já não passa de uma quimera e que a mudança das circunstâncias
nos torna inconcebível.
O juiz, quando exerce suas funções,
não é mais do que o inimigo do culpado, isto é, de um infeliz
curvado ao peso das cadeias, minado pelo sofrimento, que os
tormentos esperam e que o futuro mais terrível cerca de horror e
de assombro. Não é a verdade o que ele procura; quer descobrir
no acusado um culpado; prepara-lhe armadilhas, parece que tem tudo
que perder e que teme, se não puder convencer o acusado, diminuir
a infalibilidade que o homem se arroga em todas as coisas.
O juiz tem o poder de determinar por
que indícios se pode encarcerar um cidadão. E declarar que esse
cidadão é culpado, antes de poder provar que é inocente. Não
se parecerá tal informação com um procedimento ofensivo? E eis,
todavia, a marcha da jurisprudência criminal, em quase toda a
Europa, no século XVIII, em plena luz. Mal se conhece nos
tribunais o verdadeiro processo das informações, isto é, a
investigação imparcial do fato, prescrita pela razão, seguida
nas leis militares, empregada mesmo por esses déspotas da Ásia,
nos assuntos que só interessam os particulares.
Nossos descendentes, sem dúvida
mais felizes do que nós, terão dificuldade em conceber essa
complicação torturosa dos mais estranhos absurdos, e esse
sistema de iniqüidades incríveis, que só o filósofo poderá
julgar possível, estudando a natureza do coração humano.
XLI. DOS MEIOS DE PREVENIR CRIMES
É MELHOR
prevenir os crimes do que ter de puni-los; e todo legislador sábio
deve procurar antes impedir o mal do que repará-lo, pois uma boa
legislação não é senão a arte de proporcionar aos homens o
maior bem-estar possível e preservá-los de todos os sofrimentos
que se lhes possam causar, segundo o cálculo dos bens e dos males
desta vida.
Mas, os meios que até hoje se
empregam são em geral insuficientes ou contrários ao fim que se
propõem. Não é possível submeter a atividade tumultuosa de uma
massa de cidadãos a uma ordem geométrica, que não apresente nem
irregularidade nem confusão. Embora as leis da natureza sejam
sempre simples e sempre constantes, não impedem que os planetas
se desviem às vezes dos movimentos habituais. Como poderiam,
pois, as leis humanas, em meio ao choque das paixões e dos
sentimentos opostos da dor e do prazer, impedir que não haja
alguma perturbação e algum desarranjo na sociedade? É essa, porém,
a quimera dos homens limitados, quando têm algum poder.
Se se proíbem aos cidadãos uma porção
de atos indiferentes, não tendo tais atos nada de nocivo, não se
previnem os crimes: ao contrário, faz-se que surjam novos, porque
se mudam arbitrariamente as idéias ordinárias de vício e
virtude, que todavia se proclamam eternas e imutáveis.
Além disso, a que ficaria o homem
reduzido, se fosse preciso interdizer-lhe tudo o que pode ser para
ele uma ocasião de praticar o mal? Seria preciso começar por
tirar-lhe o uso dos sentidos.
Para um motivo que leva os homens a
cometer um crime, há mil outros que os levam a ações
indiferentes, que só são delitos perante as más leis. Ora,
quanto mais se estender a esfera dos crimes, tanto mais se fará
que sejam cometidos. porque se verão os delitos multiplicar-se à
medida que os motivos de delitos especificados pelas leis forem
mais numerosos, sobretudo se a maioria dessas leis não passarem
de privilégios, isto é, de um pequeno número de senhores.
Quereis prevenir os crimes? Fazeis
leis simples e claras; fazei-as amar; e esteja a nação inteira
pronta a armar-se para defendê-las, sem que a minoria de que
falamos se preocupe constantemente em destruí-las.
Não favoreçam elas nenhuma classe
particular; protejam igualmente cada membro da sociedade;
receie-as o cidadão e trema somente diante delas. O temor que as
leis inspiram é salutar, o temor que os homens inspiram é uma
fonte funesta de crimes.
Os homens escravos são sempre mais
debochados, mais covardes, mais cruéis do que os homens livres.
Estes investigam as ciências; ocupam-se com os interesses da nação;
vêem os objetos sob um ponto de vista elevado, e fazem grandes
coisas. Mas, os escravos, satisfeitos com os prazeres do momento,
procuram no ruído do deboche uma distração para o aniquilamento
em que se vêem mergulhados. Toda sua vida está cercada de
incertezas, e, como para eles os delitos não estão determinados,
não sabem quais serão suas conseqüências: e isso empresta nova
força à paixão que os leva a praticá-los.
Num povo que o clima torna
indolente, a incerteza das leis entretém e aumenta a inação e a
estupidez.
Numa nação voluptuosa, mas ativa,
as leis incertas fazem que a atividade dos cidadãos se limite a
pequenas cabalas e intrigas, surdas, que semeiam a desconfiança.
Então, o homem mais prudente é aquele que sabe melhor dissimular
e trair.
Num povo forte e corajoso, a
incerteza das leis é forçada por fim e substituir-se por uma
legislação precisa; isso, porém, só acontece depois de revoluções
freqüentes, que conduziram esse povo, alternativamente, da
liberdade à escravidão e da escravidão à liberdade.
Quereis prevenir os crimes? Marche a
liberdade acompanhada das luzes. Se as ciências produzem alguns
males, é quando estão pouco difundidas; mas, à medida que se
estendem, as vantagens que trazem se tornam maiores.
Um impostor ousado (que não pode
ser um homem vulgar) faz-se adorar por um povo ignorante e só é
objeto de desprezo para uma nação esclarecida.
O homem instruído sabe comparar os
objetos, considerá-los sob diversos pontos-de-vista e modificar
os próprios sentimentos pelos dos outros, porque vê nos seus
semelhantes os mesmos desejos e as mesmas aversões que agem sobre
o seu coração.
Se prodigalizardes luzes ao povo, a
ignorância e a calúnia desaparecerão diante delas, a autoridade
injusta tremerá, só as leis permanecerão inabaláveis,
todo-poderosas; e o homem esclarecido amará uma constituição
cujas vantagens são evidentes, uma vez conhecidos seus
dispositivos, e que dá bases sólidas à segurança pública.
Poderá ele lamentar essa inútil partícula de liberdade de que
se privou, se a comparar com a soma de todas as outras liberdades
que os seus concidadãos lhe sacrificaram, e se pensar que, sem as
leis, estes últimos poderiam armar-se e unir-se contra ele?
Dotado de uma alma sensível,
verifica-se que, sob boas leis, o homem só perdeu a funesta
liberdade de praticar o mal, forçado a bendizer o trono e o
soberano que só o ocupa para proteger.
Não é verdade que as ciências
sejam nocivas à humanidade. Se às vezes deram maus resultados,
é que o mal era inevitável. Multiplicando-se os homens sobre a
superfície da terra, viram-se nascer a guerra, algumas artes
grosseiras, e as primeiras leis, que não eram senão convenções
momentâneas e que pereciam com a necessidade passageira que as
produziria. Foi então que a filosofia começou a aparecer; seus
primeiros princípios foram pouco numerosos e sabiamente
escolhidos, porque a preguiça e a pouca sagacidade dos primeiros
homens os preservam de muitos erros.
Mas, multiplicadas as necessidades
juntamente com a espécie humana, foram necessárias impressões
mais fortes e mais duráveis para impedir as voltas freqüentes, e
cada dia mais funestas ao estado selvagem. Foram, pois, um grande
bem para a humanidade (digo um grande bem sob o aspecto político)
os primeiros erros religiosos que povoaram o universo de falsas
divindades e que inventaram um mundo invisível de espíritos
encarregados de governar a terra.
Foram benfeitores do gênero humano
esses homens audaciosos que ousaram enganar seus semelhantes para
servi-los e que arrastaram a ignorância temerosa ao pé dos
altares. Apresentando aos homens objetos fora do alcance dos
sentidos, interessaram-nos na investigação desses objetos, que
fugiam diante deles à medida que os julgavam mais próximos; forçaram-nos
a respeitar o que não conheciam bem e souberam concentrar para
esse único fim, que os impressionava fortemente, todas as paixões
que os agitavam.
Tal foi a sorte de todas as nações
que se formaram da reunião de diferentes povoações selvagens.
Foi a época da formação das grandes sociedades; e as idéias
religiosas foram sem dúvida o único laço que pode obrigar os
homens a viverem constantemente sob leis.
Não falo desse povo que Deus
escolheu. Os milagres mais extraordinários e os favores mais
assinalados que o céu lhe prodigalizou substituíram a política
humana.
Mas, como os erros podem
subdividir-se ao infinito, as falsas ciências que tais erros
produziram fizeram dos homens uma multidão fanática de cegos,
perdidos no labirinto em que se encerraram e prestes a chocar-se a
cada passo. Então, alguns filósofos sensíveis lamentaram o
antigo estado selvagem; e foi nessa primeira época que os
conhecimentos, ou antes, as opiniões, tornaram-se funestos à
humanidade.
Pode considerar-se como uma época
mais ou menos semelhante o momento terrível em que é preciso
passar do erro à verdade, das trevas à luz. O choque terrível
dos preconceitos úteis a um pequeno número de homens poderosos
contra as verdades vantajosas para a multidão fraca, e a fermentação
de todas as paixões sublevadas, causam males infinitos aos
infelizes humanos.
Percorrendo a história, cujos
principais acontecimentos, após certos intervalos, se reproduzem
quase sempre, detenhamo-nos na passagem perigosa, mas indispensável,
da ignorância à filosofia, e portanto da escravidão à
liberdade; e veremos quantas vezes uma geração inteira é
sacrificada à felicidade da que deve suceder-lhe.
Quando, porém, a calma está
restabelecida, quando já está extinto o incêndio cujas flamas
purificaram a nação, livrando-a dos males que a oprimiam, a
verdade, que primeiro se arrastava com lentidão, precipita os
passos, senta-se nos tronos ao lado dos monarcas e, por fim, nas
assembléias das nações, sobretudo nas repúblicas, obtém culto
e altares.
Poder-se-á acreditar, então, que
as luzes que esclarecem a multidão são mais perigosas do que as
trevas? E que filósofo se persuadirá de que o conhecimento exato
das relações que unem os objetos entre si possa ser funesto à
humanidade?
Se o semi-saber é mais perigoso do
que a ignorância cega, porque aos males que produz a ignorância
acrescenta ainda os erros inumeráveis que resultam
inevitavelmente de uma visão limitada aquém dos limites da
verdade, sem dúvida o dom mais precioso que um soberano pode
conceder à nação e a si mesmo é confiar o depósito sagrado
das leis a um homem esclarecido. Acostumado a ver a verdade sem
temê-la, acima dessa necessidade geral dos sufrágios públicos,
necessidade que nunca está satisfeita e que tão freqüentemente
faz sucumbir a virtude; habituado a tudo considerar sob os pontos
de vista mais elevados, ele vê a nação como uma família, os
seus concidadãos como irmãos; e a distância que separa os
grandes do povo lhe parece tanto menor quanto sabe envolver com o
olhar maior massa de homens.
O sábio tem necessidades e
interesses que o vulgo desconhece; é para ele uma necessidade não
desmentir, em sua conduta pública, os princípios que estabeleceu
nos seus escritos e o hábito que adquiriu de amar a verdade por
si mesma.
Tais homens fariam a felicidade de
uma nação; mas, para tornar essa felicidade durável, é preciso
que boas leis aumentem de tal forma o número dos sábios que
quase já não seja possível fazer uma escolha errônea.
Outro meio de prevenir os delitos é
afastar do santuário das leis a própria sombra da corrupção,
interessando os magistrados em conservar em toda a sua pureza o
depósito que a nação lhes confia.
Quanto mais numerosos forem os
tribunais, tanto menos se poderá temer que violem as leis,
porque, entre vários homens que se observam mutuamente, a
vantagem de aumentar a autoridade comum é tanto menor quanto
menor a parcela de autoridade de cada um e muito pouco considerável
para contrabalançar os perigos da empresa.
Se o soberano dá muito aparato,
pompa e autoridade à magistratura; se ao mesmo tempo fecha todo
acesso aos lamentos justos ou mal fundados do fraco, que se julga
oprimido; se acostuma os súditos a temer os magistrados mais do
que as leis, aumentará sem dúvida o poder dos juizes, mas
somente à custa da segurança pública e particular.
Podem ainda prevenir-se os crimes
recompensando a virtude; e pode-se observar que as leis atuais de
todas as nações guardam a esse respeito um profundo silêncio.
Se os prêmios propostos pelas
academias aos autores das descobertas úteis alargaram os
conhecimentos e aumentaram o número dos bons livros, imagine-se
que recompensas concedidas por um monarca benfeitor não
multiplicariam também as ações virtuosas. A moeda da honra,
distribuída com sabedoria, jamais se esgota e produz sempre bons
frutos.
Afim, o meio mais seguro, mas ao
mesmo tempo mais difícil de tornar os homens menos inclinados a
praticar o mal, é aperfeiçoar a educação.
O assunto é vasto demais para
entrar nos limites que me prescrevi. Ouso, porém, dizer que está
tão estreitamente ligado com a natureza do governo que será
apenas um campo estéril e cultivado somente por um pequeno número
de sábios, até chegarem os séculos ainda distantes em que as
leis não terão outro fim senão a felicidade pública.
Um grande homem, que esclarece os
seus semelhantes e que é por estes perseguido, desenvolveu as máximas
principais de uma educação verdadeiramente útil (23).
Fez ver que ela consistia bem menos na multidão confusa dos
objetos que se apresentam às crianças do que na escolha e na
precisão com as quais se lhes expõem.
Provou que é preciso substituir as
cópias pelos originais nos fenômenos morais ou físicos que o
acaso ou a habilidade do mestre oferece ao espírito do aluno.
Ensinou a conduzir as crianças à
virtude, pela estrada fácil do sentimento, a afastá-las do mal
pela força invencível de necessidade e dos inconvenientes que
seguem a má ação.
Demostrou que o método incerto da
autoridade imperiosa deveria ser abandonado, pois só produz uma
obediência hipócrita e passageira.
XLII. CONCLUSÃO
DE
tudo o que acaba de ser exposto, pode deduzir-se um teorema geral
utilíssimo, mas conforme ao uso, que é o legislador ordinário das
nações:
É que, para não ser um ato de violência
contra o cidadão, a pena deve ser essencialmente pública, pronta,
necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias
dadas, proporcionada ao delito e determinada pela lei.
APÊNDICE
RESPOSTAS ÀS "NOTAS E OBSERVAÇÕES"
DE UM FRADE DOMINICANO SOBRE O LIVRO "DOS DELITOS E DAS
PENAS"
ESSAS
Notas e Observações não passam de uma coleção de injúrias
contra o autor do livro Dos Delitos e Das Penas, que é chamado fanático,
impostor, escritor falso e perigoso, satírico desenfreado, sedutor
do público. É acusado de distilar o fel mais amargo, de juntar a
contradições vergonhosas os traços pérfidos e ocultos da
dissimulação e de ser obscuro por perversidade. O crítico pode
estar certo de que não responderei às personalidades.
Representa ele o meu livro como uma
obra horrível, virulenta e de uma licença venenosa, infame, ímpia.
Encontra nele blasfêmias impudentes, insolentes ironias, pilhérias
indecentes, sutilezas perigosas, motejos escandalosos, calúnias
grosseiras.
A religião e o respeito devido aos
soberanos são o pretexto para duas das mais graves acusações que
se acham nessas Notas e Observações. Serão estas as únicas às
quais me julgarei obrigado a responder. Comecemos pela primeira.
I - Acusação de impiedade
1. - "O autor do livro Doa
Delitos e das Penas não conhece essa justiça que tem origem no
legislador eterno, que tudo vê e prevê".
Eis mais ou menos o silogismo do autor
das Notas.
"O autor do livro Dos Delitos não
aprova que a interpretação da lei dependa da vontade e do capricho
de um juiz. - Ora, aquele que não quer confiar a interpretação da
lei à vontade e aos caprichos de um juiz não crê numa justiça
emanada de Deus. - O autor não admite, pois, uma justiça puramente
divina... "
2. - "Segundo o autor do livro
Dos Delitos e das Penas, a Escritura santa só contém
imposturas".
Em toda a obra Dos Delitos e das
Penas, só se trata da Escritura santa uma única vez; é quando, a
propósito dos erros religiosos, no capítulo XLI. eu disse que não
falava desse povo eleito de Deus, para o qual os milagres mais
extraordinários e as graças mais assinaladas substituíram a política
humana.
3. - "Toda a gente sensata
encontrou no autor do livro Dos Delitos e das Penas um inimigo do
cristianismo, um mau homem e um mau filósofo".
Pouco me importa parecer ao meu crítico
bom ou mau filósofo; os que me conhecem asseguram que não sou mau
homem.
Serei, então, inimigo do
cristianismo, quando insisto para que a tranqüilidade dos templos
seja assegurada sob a proteção do governo, e quando digo, ao falar
da sorte das grandes verdades, que a revelação é a única que se
conservou em sua pureza, em meio às nuvens tenebrosas com que o
erro envolveu o universo durante tantos séculos?
4. - "O autor do livro Dos
Delitos e das Penas fala da religião como se se tratasse de uma
simples máxima política".
O autor do livro Dos Delitos e das
Penas chama à religião "um dom sagrado do céu". Será
provável que ele trate como simples máxima política o que lhe
parece um dom sagrado do céu?
5. - "O autor é inimigo
declarado do Ser supremo".
Peço de todo meu coração que esse
Ser supremo perdoe a todos os que me ofendem.
6. - "Se o cristianismo causou
algumas desgraças e alguns morticínios, ele exagera-os e silencia
sobre os bens e as vantagens que a luz do Evangelho espalhou sobre
todo o gênero humano".
Não se encontrará um único lugar no
meu livro que faça menção aos males causados pelo Evangelho; não
citei mesmo um só fato que com isso se relacione.
7. - "O autor profere uma blasfêmia
contra os ministros da religião, ao dizer que suas mãos sujaram-se
de sangue humano".
Todos os que escreveram a história,
desde Carlos Magno (24)
até Otão-o-Grande (25),
e mesmo depois desse príncipe, proferiram muitas vezes a mesma
blasfêmia. Ignorar-se-á que, durante três séculos, o clero, os
abades e. os bispos não tiveram escrúpulo algum em marchar para a
guerra? E não será o caso de dizer, sem blasfemar, que os eclesiásticos
que se achavam no meio das batalhas e que participaram da
carnificina sujavam as mãos de sangue humano?
8. - "Os prelados da Igreja católica,
tão recomendáveis por sua doçura e sua humanidade, passam, no
livro Dos Delitos e das Penas, por ser os autores de suplícios tão
bárbaros quanto inúteis".
Não tenho culpa de ser obrigado a
repetir mais de uma vez a mesma coisa. Não se citará na minha obra
uma só frase que diga que os prelados inventaram suplícios.
9. - "A heresia não pode
chamar-se crime de lesa-majestade divina, segundo o autor do livro
Dos Delitos e das Penas".
Não há em todo o meu livro uma
palavra que possa dar lugar a tal imputação. Propus-me apenas
tratar Dos Delitos e das Penas, e não dos pecados.
Eu disse, falando do crime de
lesa-majestade, que somente a ignorância e a tirania, que confundem
as palavras e as idéias mais claras, podem chamar por esse nome e
punir como tais, com o último suplício, delitos de natureza
diferente. O crítico talvez ignore quanto se abusa da palavra
lesa-majestade nos tempos de tirania e de ignorância, aplicando-a a
delitos de gênero inteiramente diverso, pois não conduziam
imediatamente à destruição da sociedade. Consulte a lei dos
imperadores Graciano (26),
Valentiniano (27)
e Teodósio (28);
observe como são considerados criminosos de lesa-majestade aqueles
que ousam duvidar da bondade da escolha do imperador, quando este
conferia algum emprego. Uma outra lei de Valentiniano, de Teodósio
e de Arcácio (29)
ensinar-lhe-á que os moedeiros falsos também eram criminosos de
lesa-majestade. Era preciso um decreto do Senado para livrar da
acusação de lesa-majestade aquele que tivesse fundido estátuas
dos imperadores, embora velhas e mutiladas. Somente depois de um
edito dos imperadores Severo (30)
e Antonino é que se deixou de intentar a ação de lesa-majestade
contra os que vendiam as estátuas dos imperadores; e esses príncipes
baixaram um decreto que proibia a perseguição por esse crime
daqueles que acaso tivessem lançado uma pedra contra a estátua de
um imperador. Domiciano (31)
condenou à morte uma dama romana, por se ter despido diante de sua
estátua. Tibério (32)
mandou matar, como criminoso de lesa-majestade, um cidadão que
vendera uma casa em que se achava a estátua do imperador.
Em séculos menos distantes do nosso,
verá Henrique VIII (33)
abusar de tal modo das leis que fez perecer por um suplício infame
o duque de Norfolk, sob o pretexto de crime de lesa-majestade,
porque ele juntara as armas da Inglaterra às de sua família. Esse
monarca chegou a declarar culpado do mesmo crime quem quer que
ousasse prever a morte do príncipe; daí resultou que, na sua última
moléstia, os seus médicos recusaram adverti-lo do perigo em que se
achava.
10. - "Segundo o autor do livro
Dos Delitos e das Penas, os hereges anatematizados pela Igreja e
proscritos pelos príncipes são vítimas de uma palavra".
Todas essas interpretações são forçadas.
Limitei-me a falar do crime de lesa-majestade humana; e a palavra
lesa-majestade serviu muitas vezes de pretexto à tirania, sobretudo
ao tempo dos imperadores romanos. Toda ação que tivesse a desgraça
de desagradar-lhes tornava-se logo um crime de lesa-majestade. Suetônio
(34) diz
que o crime de lesa-majestade era o delito dos que não tinham
cometido delito algum. Se eu disse que a ignorância e a tirania
deram esse nome a delitos de natureza diferente e tornaram os homens
vítimas de uma palavra, não fiz senão falar segundo a história.
11. - "Não será uma horrível
blasfêmia sustentar, com o autor do livro Dos Delitos e das Penas,
que a eloqüência, a declamação e as mais sublimes verdades são
um freio demasiado fraco para reter por muito tempo as paixões
humanas?"
Não penso que a acusação de blasfêmia
recaia sobre o que eu disse da eloqüência e da declamação. O
acusador quis, de certo, referir-se à insuficiência que eu atribuo
às mais sublimes verdades. Pergunto-lhe se julga que na Itália se
conhecem essas sublimes verdades, isto é, as da fé. Sem dúvida,
responder-me-á que sim. Mas serviram tais verdades de freio às
paixões humanas na Itália? Todos os oradores sacros, todos os
juizes, todos os homens, numa palavra, assegurar-me-ão o contrário.
É um fato, pois, que as sublimes verdades são, para as paixões
humanas, um freio que as não refreia ou que logo se parte; e,
enquanto houver num país católico, juizes criminosos, prisões e
castigos, estará provada a insuficiência das sublimes verdades.
12. - "O autor do livro Dos
Delitos e das Penas escreve imposturas sacrílegas contra a Inquisição".
Meu livro não faz nenhuma menção,
nem direta, nem indireta, da Inquisição. Pergunto, porém, ao meu
acusador se lhe parece bem conforme ao espírito da Igreja a condenação
de homens à morte nas fogueiras. Não é do seio mesmo de Roma, sob
os olhos do vigário de Jesus Cristo, na capital da religião católica,
que se cumprem hoje, para com protestantes de qualquer nação,
todos os deveres de humanidade e hospitalidade? Os últimos papas, e
sobretudo o atual, receberam e recebem com a maior bondade os
ingleses, os holandeses e os russos; esses povos, de seitas e religiões
diferentes, têm em Roma toda a liberdade passível, e ninguém está
mais certo do que eles de gozar ali da proteção das leis e do
governo.
13. - O autor do livro Dos Delitos e
das Penas representa, sob cores odiosas, as ordens religiosas e
sobretudo os frades".
Seria difícil citar um só lugar do
meu livro que faça menção de ordens religiosas ou de frades, a
menos que se interprete arbitrariamente o capitulo em que falo da
ociosidade.
14. - "O autor do livro Dos
Delitos e das Penas é um desses escritores ímpios, para os quais
os eclesiásticos não passam de charlatães, os monarcas de
tiranos, os santos de fanáticos, a religião de impostura, e que
nem mesmo respeitam a majestade do Criador, contra o qual vomitam
blasfêmias hediondas".
Passemos às acusações de sedição.
II - Acusações de sedição
1. - "O autor do livro Dos
Delitos e das Penas considera todos os príncipes e todos os
soberanos do século como tiranos cruéis".
Só uma vez falei no meu livro dos
soberanos e dos príncipes que reinam atualmente na Europa; e eis o
que digo: "Feliz o gênero humano, se, pela primeira vez,
recebesse leis! Hoje, que vemos elevados nos tronos da Europa, etc.
(Ver o fim do cap. XVI).
2. - "Não podem deixar de
espantar a confiança e a liberdade com que o autor do livro Dos
Delitos e das Penas se volta furioso contra os soberanos e os eclesiásticos".
A confiança e a liberdade não são
um mal. Qui ambulat simpliciter, ambulat confidenter; qui autem
depravat vias suas, manifestus erit (35).
Se aprovei nos súditos certo espírito
de independência, foi na medida que se submetessem às leis e
fossem respeitosos para com os primeiros magistrados. Desejo mesmo
que os homens, não tendo que temer a escravidão, mas gozando de
sua liberdade sob a proteção das leis, se tornem soldados intrépidos,
defensores da pátria e do trono, cidadãos virtuosos e magistrados
incorruptíveis, que levem ao pé do trono os tributos e o amor de
todas as ordens da nação e que espalhem nas cabanas a segurança
e. a esperança de uma sorte cada vez mais doce. Já não estamos
nos séculos de Calígula (36),
de Nero (37),
de Heliogábalo (38);
e o crítico faz muito pouca justiça aos príncipes reinantes
acreditando que os meus princípios possam ofendê-los.
3. - "O autor do livro Dos
Delitos e das Penas sustenta que o interesse do particular supera o
de toda a sociedade em geral ou dos que a representam".
Se houvesse tal absurdo no livro Dos
Delitos e das Penas, não creio que o meu adversário tivesse feito
um livro de 191 páginas para refutá-lo.
4. - "O autor do livro Dos
Delitos e das Penas contesta aos soberanos o direito de punir com a
morte".
Como não se trata aqui nem de religião
nem de governo, mas somente da justeza de um raciocínio, meu
acusador tem toda a liberdade de julgar o que quiser. Reduzo o meu
silogismo desta forma:
Não se deve infligir a pena de morte,
se esta não é verdadeiramente útil e necessária;
Mas, a pena de morte não é necessária
nem verdadeiramente útil;
Não deve, pois, infligir-se a pena de
morte.
Não é este o lugar para uma dissertação
sobre os direitos dos soberanos. O crítico não quererá,
certamente, sustentar que se deva infligir a pena de morte, mesmo
quando ela não é verdadeiramente útil, nem necessária. Proposta
tão cruel e escandalosa não pode sair da boca de um cristão. Se a
segunda parte do silogismo não é exata, tratar-se-á de um crime
de lesa-lógica e nunca de lesa-majestade. Podem, aliás, escusar-se
os meus pretensos erros; assemelham-se eles àqueles em que
incidiram tantos cristãos zelosos da primitiva Igreja (39);
assemelham-se àqueles em que incorreram os frades da época de Teodósio-o-Grande,
no fim do IV século. Nos seus Anais da Itália, diz Muratori (40)
que, no ano 389, "Teodósio fez uma lei pela qual ordenava aos
frades que permanecessem nos conventos, porque levavam a caridade
pelo próximo ao ponto de arrancar os criminosos das mãos da justiça,
não querendo que se mandasse matar ninguém". Minha caridade não
vai tão longe e convirei de bom grado que a daquele tempo se
conduzia por falsos princípios. Uma ação violenta contra a
autoridade pública é sempre criminosa.
Restam-me ainda duas palavras que
dizer. Haverá no mundo uma lei que proíba dizer-se ou escrever-se
que um Estado pode existir e conservar a paz interna sem empregar a
pena de morte contra qualquer culpado? Conta Deodoro (41)
(liv. I, cap. LXV) que Sabacão, rei do Egito, fez-se admirar como
modelo de demência, porque comutou as penas capitais nas da
escravidão e porque deu um emprego feliz à sua autoridade
condenando os culpados aos trabalhos públicos. Estrabão (42)
(liv. XI) informa-nos que havia, perto do Cáucaso, algumas nações
que não conheciam a pena de morte, mesmo quando o delito merecia os
maiores suplícios, nemini mortem irrogare, quamvis pessima merito (43).
Essa verdade é consignada na história romana, na época da lei Pórcia,
que proíbe que se tire a vida de um cidadão romano, se a sentença
de morte não for revestida do consenso geral de todo o povo. Tito Lívio
(44) fala
dessa lei (liv. X, cap. IX). Finalmente, o exemplo recente de um
reinado de vinte anos, no mais vasto império do mundo, a Rússia,
atesta ainda essa verdade: a imperatriz Isabel, morta há alguns
anos, jurou, ao subir ao trono dos czares, que não faria morrer
nenhum culpado sob o seu reinado. Essa augusta princesa nunca deixou
de cumprir o feliz compromisso que assumira, sem interromper o curso
da justiça criminal e sem prejudicar a tranqüilidade pública. Se
esses fatos são incontestáveis, será, então verdade dizer que um
Estado pode subsistir e ser feliz sem punir de morte nenhum
criminoso.
EXTRATO DA CORRESPONDÊNCIA DE
BECCARIA E DE MORELLET SOBRE O LIVRO "DOS DELITOS E DAS
PENAS"
De Morellet (45)
a Beccaria
Paris, fevereiro de 1766.
Senhor:
Sem ter a honra de conhecer-vos,
julgo-me no direito de endereçar-vos um exemplar da tradução que
fiz de vossa obra Dei Delitti e delle Pene. Os homens de letras são
cosmopolitas e de todas as nações; estão ligados por laços mais
estreitos do que os que unem os cidadãos de um mesmo país, os
habitantes de uma mesma cidade e os membros de uma mesma família.
Julgo, pois, poder entrar convosco num comércio de idéias e de
sentimentos que me será bastante agradável, se não vos recusardes
ao entusiasmo de um homem que vos estima sem conhecer-vos
pessoalmente, mas que adquiriu esses sentimentos por vós na leitura
do vosso excelente trabalho.
Foi o sr. de Malesherbes (46),
com quem tenho a honra de conviver, que me empenhou em fazer passar
vosso livro para a nossa língua. Eu não tinha necessidade, para
tanto, de esforçar-me muito. Era-me uma ocupação agradável
tornar-me, para minha nação e para o país em que nossa língua
está difundida, o intérprete e o órgão das idéias fortes e
grandes e dos sentimentos de benevolência de que vossa obra está
cheia. Parecia-me que me associaria ao bem que fazíeis aos homens e
que poderia igualmente pretender certo reconhecimento da parte dos
corações sensíveis, aos quais são caros os interesses da
humanidade.
Faz hoje oito dias que minha tradução
apareceu. Eu não quis escrever-vos mais cedo, porque julguei dever
esperar que pudesse instruir-vos sobre a impressão causada por
vossa obra. Ouso, pois, assegurar-vos, Senhor, que o êxito é
universal e que, além da atenção despertada pelo livro, se
formaram pelo autor sentimentos que podem lisonjear-vos ainda mais,
isto é, a estima, o reconhecimento, o interesse, a amizade. Estou
particularmente encarregado de apresentar-vos os agradecimentos e os
cumprimentos do sr. Diderot (47),
do Sr. Helvétius (48),
do Sr. de Buffon (49).
Já conversamos muito com o sr. Diderot sobre vossa obra, que é bem
capaz de pôr fogo a uma cabeça tão quente como é a dele. Terei
algumas observações que vos comunicar, que são o resultado das
nossas conversas. O sr. de Buffon serviu-se das expressões mais
fortes para testemunhar-me o prazer que vosso livro lhe causou; e
pede-vos aceiteis os seus cumprimentos. Levei também vosso livro ao
Sr. Rousseau (50),
que está em Paris de viagem para a Inglaterra, aonde vai
estabelecer-se, e que parte por estes dias. Ainda não posso
dizer-vos sua impressão, porque não tornei a vê-lo. Talvez possa
conhecê-la hoje por intermédio do Sr. Hume (51),
com quem irei jantar; estou, porém, certo da impressão que ele terá.
O sr. Hume, que vive há tempos conosco, encarregou-me, igualmente,
de dizer-vos mil coisas de sua parte.
A essas pessoas, que conheceis por sua
reputação, acrescento um homem infinitamente estimável que as reúne
em sua casa, o Sr. barão d'Holbach (52),
autor de excelentes trabalhos impressos, de química e de história
natural, e de muitos outros que não foram publicados; filósofo
profundo, juiz esclarecidíssimo de todos os gêneros de
conhecimentos, alma sensível e aberta à amizade. Não posso
exprimir-vos a impressão que vosso livro lhe causou, nem quanto ele
ama e estima a obra, e o autor. Como passamos a vida em casa dele,
seria preciso que o conhecêsseis primeiro, porque, se pudermos ter
a honra de atrair-vos a Paris, esta casa será a vossa. Envio-vos,
pois, igualmente, os seus agradecimentos e as suas saudações. Não
vos falo do Sr. d'Alembert (53),
que vos escreveu e me disse que queria juntar ainda uma palavra à
minha carta. Deveis conhecer sua opinião sobre vossa obra. Quanto
à tradução, compete-lhe dizer-vos se ficou satisfeito...
Não vos ocultarei a mais forte razão
que me determinou a tratar de vos dar alguma boa opinião de mim: a
esperança de que me perdoareis mais facilmente a liberdade que
tomei de fazer algumas modificações na disposição de algumas
partes do vosso trabalho. Apresentei no prefácio as razões gerais
que me justificam: convosco, porém, devo alongar-me um pouco a esse
respeito. Para o espírito filosófico que se torna senhor da matéria,
nada mais fácil do que apreender o conjunto de vosso tratado, cujas
partes se ligam estreitamente e dependem todas do mesmo princípio.
Mas, para os leitores vulgares e menos instruídos, e sobretudo para
os leitores franceses, julgo ter seguido um caminho mais regular e
em tudo mais conforme ao gênio de minha nação e à feição dos
nossos livros.
A única objeção que posso temer é
a censura de ter diminuído a força e o calor do original, pelo
restabelecimento mesmo dessa ordem. Eis minhas respostas: Sei que a
verdade tem a maior necessidade da eloqüência e do sentimento.
Seria absurdo pensar o contrário, e sobretudo não seria convosco
que se poderia avançar tão estranho paradoxo. Mas, se não é
preciso sacrificar o calor à ordem, creio não ser preciso tão
pouco sacrificar a ordem ao calor; e tudo irá bem se se puderem
conciliar essas duas coisas a um tempo. Resta, pois, examinar, se me
saí bem nessa conciliação.
Se minha tradução tem menos calor do
que o original, seria preciso atribuir essa falha a muitas outras
causas, e não à diferença da ordem. Seria ou a fraqueza do estilo
do tradutor, ou a natureza mesma de toda tradução, que deve ficar
abaixo do original, sobretudo nas coisas de sentimento.
Não devo dissimular-vos outra objeção
que me fizeram. Disseram-me que um autor poderia chocar-se ao ver em
sua obra modificações mesmo úteis. Mas, Senhor, essa maneira de
ver não poderia ser a vossa. Assim pelo menos o julguei. Um homem
de gênio, que fez uma obra admirável, cheia de idéias novas e
fortes, e excelente pelo fundo, deve poder ouvir dizer friamente que
o seu livro não tem toda a ordem de que era suscetível. Deve ir
mesmo até à adoção das modificações feitas, se forem úteis e
baseadas em boas razões. Eis Senhor, a coragem que espero de vós.
Rejeitai, dentre as modificações feitas por mim, aquelas que vos
parecem mal-entendidas; conservai as que estiverem bem, e acreditai
que só tereis feito aumentar vossa reputação. Sois digno de que
eu use para convosco dessa confiança, e me lisonjeio de que o
aproveis.
Terminarei minha justificativa
citando-vos grandes autoridades que aplaudiram a liberdade por mim
tomada. O sr. d'Alembert permite-me que vos diga ser essa a sua
opinião. O sr. Hume, que leu com muito cuidado o original e a tradução,
é do mesmo parecer. Eu poderia citar-vos ainda numerosas pessoas
instruídas que assim também o julgaram.
A avidez com a qual o público recebeu
aqui vossa obra faz-me acreditar que a nossa primeira edição breve
estará esgotada e que, antes de um mês, será preciso fazer outra.
Se, na disposição que apresentei, separei idéias que devam estar
ligadas, ou fiz aproximações que vos pareçam prejudicar o
sentido, peço-vos que a respeito me participeis vossas observações,
e, numa nova edição, não deixarei de conformar-me com vossas
opiniões...
Termino, Senhor, esta longa carta,
rogando-vos que me considereis como um dos vossos maiores
admiradores e como um dos homens que mais vivamente desejam
participar de vossa estima e de vossa amizade. Muito me afligiria a
idéia de não vô-lo poder dizer um dia a vós mesmos. Estou
ansioso por ter vossas notícias, conhecer vosso juízo sobre a
minha tradução, saber se continuais a marchar na bela estrada que
vos abristes e a ocupar-vos com o bem da humanidade.
É com tais sentimentos de respeito,
de estima e de amizade que tenho a honra de ser, etc.
Morellet
De Beccaria a Morellet
Milão, maio de 1766.
Permiti-me, Senhor, que empregue
convosco as fórmulas usadas na vossa língua, como mais cômodas,
mais simples, mais verdadeiras, mais dignas por isso de um filósofo
como vós. Permiti-me, igualmente, que me sirva de um copista, por
ser a carta que vos escrevi muito pouco legível. A mais profunda
estima, o maior reconhecimento, a mais terna amizade, são os
sentimentos que fez nascer em mim a carta encantadora que vos
dignastes escrever-me. Eu não saberia exprimir-vos quanto me honra
ver minha obra traduzida na língua de uma nação que esclarece e
instrui a Europa. Tudo devo, eu mesmo, aos livros franceses. Foram
eles que desenvolveram em minha alma os sentimentos de humanidade
sufocados por oito anos de educação fanática. Eu já respeitava
vosso nome pelos excelentes artigos que inseristes na obra imortal
da Enciclopédia (54);
e foi para mim a mais agradável surpresa saber que um homem de
letras da vossa reputação dignava-se de traduzir o meu tratado Dos
Delitos. Agradeço-vos, de todo o meu coração, o presente que me
fizeste de vossa tradução, assim como vossa atenção em
satisfazer o interesse que eu tinha em lê-la. Li-a com um prazer
que não posso exprimir-vos, e achei que embelezastes o original.
Protesto-vos com a maior sinceridade que a ordem que seguistes
parece-me, a mim mesmo, mais natural e preferível à minha, e que
lamento que a nova edição italiana esteja quase terminada, porque
do contrário eu me poria inteira ou quase inteiramente de acordo
com o vosso plano.
Minha obra nada perdeu de sua força
em vossa tradução, exceto nos lugares em que o caráter essencial
a uma e a outra língua estabeleceu certa diferença entre vossa
expressão e a minha. A língua italiana é mais maleável e dócil,
e talvez, por ser menos cultivada no gênero filosófico, possa
adotar expressões que a vossa recusaria empregar. Não vejo solidez
na objeção que vos fizeram, de que a mudança da ordem poderia
fazer perder a força. A força consiste na escolha das expressões
e na aproximação das idéias; e a confusão só pode prejudicar
esses dois efeitos.
O receio de ferir o amor-próprio do
autor não devia deter-vos mais. Primeiro, porque, como vós mesmo o
dissestes com razão em vosso excelente prefácio, um livro em que
se defende a causa da humanidade, uma vez tornado público, pertence
ao mundo e a todas as nações; e, relativamente a mim em
particular, eu teria feito muito poucos progressos na filosofia do
coração, que coloco acima da do espírito, se não tivesse
adquirido a coragem de ver e amar a verdade. Espero que a quinta edição,
que deve aparecer breve, esteja logo esgotada; e asseguro-vos que na
sexta observarei inteiramente, ou quase inteiramente, a ordem de
vossa tradução, que dá maior relevo às verdades que tratei de
coligir. Digo quase inteiramente, porque, segundo uma leitura única
e rápida que fiz até este momento não posso decidir-me com
inteiro conhecimento de causa sobre as particularidades como já o
fiz sobre o conjunto.
A impaciência que meus amigos têm de
ler vossa tradução forçou-me, Senhor a deixá-la sair de minhas mãos
logo depois de a ter tido, e sou obrigado a dar em outra carta a
explicação de certas passagens que julgastes obscuras. Devo
dizer-vos, porém, que tive, ao escrever, os exemplos de Machiavelli
(55), de
Galileu (56)
e de Giannone ante os meus olhos. Ouvi o ruído das cadeias firmar a
superstição, e os gritos de fanatismo abafar os gemidos da
verdade. A visão desse espetáculo medonho determinou-me, algumas
vezes, a envolver a luz de nuvens. Quis defender a humanidade sem
ser mártir. Essa idéia, de que eu devia ser obscuro, tornou-me às
vezes tal, sem necessidade. Acrescentai a isso a inexperiência e a
falta de hábito de escrever, perdoáveis num autor que tem apenas
vinte e sete anos e que há somente cinco anos entrou na carreira
das letras.
Ser-me-ia impossível pintar-vos,
Senhor, a satisfação com a qual vejo o interesse que tomais por
mim, e quanto me comovem as demonstrações de estima que me dais, e
que não posso aceitar sem ser vão, nem rejeitar sem fazer-vos injúria.
Recebi com o mesmo reconhecimento e a mesma confusão as coisas
lisonjeiras que me dissestes da parte desses homens célebres que
honram a humanidade, a Europa e a sua nação. D'Alembert, Diderot,
Helvétius, Buffon, Hume, nomes ilustres que não se pode ouvir
pronunciar sem ficar comovido, assim como vossas obras imortais, são
minha leitura contínua, o objeto de minhas ocupações durante o
dia e de minhas meditações no silêncio da noite. Cheio das
verdades que ensinais, como poderia eu incensar o erro e aviltar-me
ao ponto de mentir à posteridade?...
Minha única ocupação é cultivar em
paz a filosofia, e contentar assim três sentimentos muito vivos em
mim: o amor à reputação literária, o amor à liberdade e a
compaixão pelas desgraças dos homens, escravos de tantos erros.
Data de cinco anos a época de minha conversão à filosofia, e
devo-a à leitura das Cartas Persas (57).
A segunda obra que completou a revolução
do meu espírito foi a do sr. Helvétius. Foi ele quem me lançou
com força no caminho da verdade e quem primeiro despertou minha
atenção para a cegueira e as desgraças da humanidade. Devo à
leitura do Espírito (58)
uma grande parte de minhas idéias...
O Sr. conde Firmiani regressou a Milão
há vários dias, mas está muito ocupado, e ainda não pude vê-lo.
Ele protegeu meu livro, e é a ele que devo minha tranqüilidade.
Remeter-vos-ei breve algumas explicações
das passagens que achastes obscuras e que não pretendo justificar,
porque não escrevi para não ser entendido. Rogo-vos
encarecidamente me envieis vossas observações e as dos vossos
amigos, para que eu as aproveite numa sexta edição. Comunicai-me,
sobretudo, o resultado de vossas palestras, sobre meu livro com o
sr. Diderot. Desejo vivamente saber que impressão teve de mim essa
alma sublime...
Tenho a honra de ser, etc.
Beccaria
Notas
(1) Jurisconsulto alemão, do começo
do século XVII.
(2) Jurisconsulto piemontês, falecido
em 1575.
(3) Jurisconsulto italiano, famoso por
sua crueldade, falecido em Roma em 1618. Deixou uma obra em treze
volumes.
(4) Alusão ao frade Vincenzo
Facchinei di Gorfri, do convento de Vallombrosa, que escreveu Notas
e Observações cuja resposta vem publicada as Notas e Observações
cuja resposta vem publicada no Apêndice deste volume.
(5) Thomas Hobbes (1588-1679), filósofo
inglês autor do Leviatan, obra em que defende o materialismo em
filosofia, o egoísmo em moral e o despotismo em política.
(6) Alusão a Jean-Jacques Rousseau,
de cuja autoria são os livros: Discursos sobre as Ciências e as
Artes e sobre a Origem da Desigualdade.
(7) Charles de Secondat, barão de
Montesquieu (1689-1755), grande escritor francês, autor das Cartas
Persas e dos livros Grandeza e Decadência dos Romanos e O Espírito
das Leis.
(8) "Observe-se que a palavra
direito não contradiz a palavra força. O direito é a força
submetida a leis para vantagens da maioria. Entendo por justiça os
laços que reúnem de maneira estável os interesses particulares.
Se esses laços se quebrassem, não haveria sociedade. É mister que
se evite ligar à palavra justiça a idéia de uma força física ou
de um ser existente. A justiça é pura e simplesmente o ponto de
vista sob o qual os homens encaram as coisas morais para o bem-estar
de cada um. Não pretendo falar aqui de justiça de Deus, que é de
outra natureza, tendo relações imediatas com as penas e as
recompensas de uma vida futura".
(9) "Se cada cidadão tem obrigações
a cumprir para com a sociedade, a sociedade tem igualmente obrigações
a cumprir para com cada cidadão, pois a natureza de um contrato
consiste em obrigar igualmente as duas partes contratantes. Essa
cadeia de obrigações mútuas, que desce do trono até à cabana e
que liga igualmente o maior e o menor dos membros da sociedade, tem
como único fim o interesse público, que consiste na observação
das convenções úteis à maioria. Violada uma dessas convenções,
abre-se a porta à desordem. - A palavra obrigação é uma das que
se empregam mais freqüentemente em moral do que em qualquer outra
ciência. Existem obrigações a cumprir no comércio e na
sociedade. Uma obrigação supõe um raciocínio moral, convenções
racionadas; não se pode, porém, emprestar à palavra obrigação
uma idéia física ou real. É uma palavra abstrata que precisa ser
explicada. Ninguém pode obrigar-vos a cumprir obrigações sem
saberdes quais são tais obrigações". Nota de Beccaria.
(10) Isto é, em vernáculo e não em
latim.
(11) "Entre os criminalistas, ao
contrário, a confiança que merece uma testemunha aumenta em proporção
da atrocidade do crime. Apoiam-se eles neste axioma de ferro, ditado
pela mais cruel imbecilidade: In atrocissimis leviores conjecturae
sufficiunt, et licet judici jura transgredi. Traduzamos essa máxima
hedionda, para que a Europa conheça ao menos um dos revoltantes
princípios e tão numerosos aos quais está submetida quase sem o
saber: "Nos delitos mais atrozes, isto é, menos provável,
bastam as mais ligeiras circunstâncias, e o juiz pode pôr-se acima
das leis." Os absurdos em uso na legislação são muitas vezes
o resultado do medo, fonte inesgotável das inconseqüências e dos
erros humanos. Os legisladores, ou antes, os jurisconsultos, cujas
opiniões são consideradas após sua morte como espécies de oráculos,
e que, como escritores vendidos ao interesse, se tornaram árbitros
soberanos da sorte dos homens, os legisladores, repito, receosos de
ver condenar inocentes, sobrecarregaram a jurisprudência de
formalidades e exceções inúteis, cuja exata observação
colocaria a desordem e a impunidade no trono da justiça. Outras
vezes, assombrados com certos crimes atrozes e difíceis de provar,
acharam que deviam desprezar essas formalidades que eles próprios
estabeleceram. Foi assim. que, dominados ora por um despotismo
impertinente, ora por temores pueris, fizeram dos julgamentos mais
graves uma espécie de jogo abandonado ao acaso e aos caprichos do
arbítrio".
(12) Refere-se Beccaria a Gustavo III
(1746-1792), que subiu ao trono da Suécia, em 1771, tendo feito um
governo liberal e posto em prática numerosas idéias defendidas
pelos enciclopedistas franceses. Morreu assassinado aos 46 anos de
idade, vítima de uma conspiração dos aristocratas.
(13) Isabel Petrovna (1709-1762),
filha de Pedro-o-Grande, tendo subido ao trono da Rússia em 1741.
(14) Tito, filho de Vespasiano,
imperador romano de 76 a 81, cognominado a delícia do gênero
humano, em virtude dos grandes benefícios feitos ao povo.
"Perdi o dia" (Diem perdidi), - costumava ele dizer quando
se passava um dia sem que tivesse tido ocasião de praticar alguma ação
generosa.
(15) Antonino o Piedoso foi um dos
sete imperadores romanos (Nerva, Trajano, Adriano, Antonio, Marco
Aurélio, Vero e Cômodo) que reinaram de 96 a 192. Seu governo, de
138 a 161, caracterizou-se por um notável espírito de moderação
e de justiça.
(16) Um dos sete imperadores
antoninos, excelente organizador. Reinou de 98 a 117.
(17) "Nas primeiras edições
desta obra, eu mesmo cometi esse erro. Ousei dizer que o falido de
boa fé devia ser guardado como penhor de sua dívida, reduzido ao
estado de escravidão e obrigado a trabalhar por conta dos credores.
Envergonho-me de ter escrito essas coisas cruéis. Acusaram-me de
impiedade e de sedição, sem que eu fosse sedicioso nem ímpio.
Ataquei os direitos da humanidade, e ninguém se levantou contra
mim... "
(18) "0 comércio ou a troca dos
prazeres do luxo não deixa de ter inconvenientes. Esses prazeres são
preparados por muitos agentes, mas partem de um pequeno número de mãos
e se distribuem a um pequeno número de homens. A maioria só
raramente pode prová-los numa pequena proporção. Eis porque o
homem se lamenta quase sempre de sua miséria. Mas, esse sentimento
é apenas o efeito da comparação e nada tem de real".
(19) "Quando a extensão de um país
aumenta em proporção maior do que a população, o luxo favorece o
despotismo, porque a indústria particular diminui à medida que os
homens estão mais dispersos, e, quanto menos indústria houver,
mais os pobres dependerão dos ricos, cujo fausto os faz subsistir.
Torna-se, então, tão difícil para os oprimidos reunirem-se contra
os opressores, que as insurreições deixam de ser temidas. Os
homens poderosos obtém com muito mais facilidade a submissão, a
obediência, a veneração e essa espécie de culto que torna mais
sensível a distância que o despotismo estabelece entre o homem
poderoso e o infeliz. - Os homens são mais independentes quando são
menos observados, e são menos observados quando são em maior número.
- Por outro lado, quando a população aumenta em maior proporção
do que a extensão do país, o luxo torna-se, ao contrário, uma
barreira contra o despotismo. - Anima a indústria com a atividade
dos cidadãos. O rico encontra em torno de si bastantes prazeres
para entregar-se completamente ao luxo de ostentação, o único
capaz de firmar no espírito do povo a idéia de sua dependência. E
pode observar-se que nos Estados vastos, mas fracos e despovoados, o
luxo de ostentação deve prevalecer, se outras causas não o
impedem; ao passo que o luxo de comodidade tenderá a diminuir cada
vez mais a ostentação nos países mais populosos do que
extensos".
(20) "Essa atração se parece em
muitas coisas com a gravitação universal. A força dessas duas
causas diminui com a distância. Se a gravitação modifica os
movimentos dos corpos, a atração natural de um sexo para outro
afeta todos os movimentos da alma, enquanto durar sua atividade.
Essas causas diferem pelo fato de que a gravitação se põe em
equilíbrio com os obstáculos que encontra, ao passo que a paixão
do amor adquire com os obstáculos mais força e vigor".
(21) 0 Evangelho.
(22) Ditador romano, nascido em 136 a.
C. Companheiro e mais tarde rival de Mário, cônsul em 88, vencedor
de Mitridates, chefe do partido aristocrático e depois senhor de
Roma e da Itália. Proscreveu os adversários, reformou a constituição
romana em sentido favorável ao Senado e conseguiu enorme influência.
Abdicou inesperadamente em pleno fastígio e morreu no ano seguinte
(80 a. C.).
(23) Referencia à obra Emilio ou Da
Educação (1762), romance filosófico em que Jean-Jacques Rousseau
propõe um sistema de educação baseado no princípio de que
"o homem é naturalmente bom" e de que, sendo má a educação
dada pela sociedade, conviria estabelecer "uma educação
negativa, como a melhor, ou antes, como a única boa". A
despeito de certos paradoxos, esse livro teve influência salutar
sobre a educação daquela época.
(24) Carlos Magno ou Carlos I
(742-814), rei dos Francos e imperador do Ocidente, era filho de
Pepino-o-Breve, do qual sucedeu em 768. Político profundo e hábil
organizador, estimava e protegia as letras, criando escolas,
rodeando-se de homens eminentes e governando com sabedoria o seu
imenso império.
(25) Otão I, o Grande (912-973),
imperador da Alemanha desde 936, tendo governado com grande
habilidade.
(26) Imperador romano de 375 a 383.
(27) Imperador romano de 364 a 375,
cujo governo foi assinalado por grande severidade e intolerância
religiosa.
(28) Teodósio I, o Grande (346-395),
imperador romano que contribuiu para o triunfo do cristianismo sobre
o paganismo.
(29) Arcádio (376-408), filho de Teodósio,
imperador do Oriente desde 395.
(30) Alexandre Severo (208-235),
imperador romano, sucessor de Heliogábalo.
(31) Imperador romano de 81 a 96,
filho de Vespasiano e de Tito, célebre por sua crueldade. Morreu
assassinado, sendo cúmplice do crime sua própria mulher. Foi o último
dos doze Césares.
(32) Segundo imperador romano, de 14 a
37, famoso por sua desumanidade.
(33) Henrique VIII (1491-1547), rei da
Inglaterra desde 1509, rompeu com a Igreja católica e fundou o
anglicanismo. Instruído, artista, mas cruel e libertino.
(34) Historiador latino, autor da obra
Os doze Césares, coleção de anedotas de imenso interesse
documental.
(35) "Quem caminha livremente,
caminha com confiança; quem, porém, se desvia do seu caminho, será
descoberto".
(36) Calígula (12-41), imperador
romano desde 37. Famoso por sua crueldade, desejava que o povo
romano tivesse uma só cabeça para decepá-la de um golpe. Sua
insensatez chegou ao ponto de dar o titulo de cônsul ao seu cavalo
Incitatus.
(37) Imperador romano de 54 a 68, que
se celebrizou por sua crueldade.
(38) Imperador romano de 218 a 222 e
que se tornou famoso por suas loucuras e crueldades.
(39) "Podem consultar-se os
santos padres e, entre outros, Tertuliano na sua Apolog., cap.
XXXVII, onde ele diz que os cristãos tinham por máxima sofrer ante
a própria morte do que dá-la a alguém. E, no seu Tratado de
Idolatria, caps. XVII e XXI, condena ele toda espécie de cargos públicos,
como interditos aos cristãos, porque não era possível exercê-los
sem que, às vezes, fosse obrigado a pronunciar a pena de morte
contra os criminosos".
(40) Lodovico Antonio Muratori
(1672-1750), historiador Italiano.
(41) Deodoro da Sicília, autor de uma
Biblioteca Histórica.
(42) Geógrafo grego, autor de uma
preciosa Geografia. Morreu sob Tibério.
(43) "Não condenar ninguém à
morte, nem mesmo pelo pior delito".
(44) Tito Lívio (59 a. C. - 19 d.
C.), historiador latino, nascido em Pádua. Deixou, sob o título de
Décadas, uma história romana, mais notável pelo estilo do que
pela autenticidade dos fatos.
(45) André Morellet (1727-1819),
abade, literato e economista francês, colaborador da Enciclopédia.
(46) Chrétien-Guillaume de Lamoignon
de Malesherbes (1721-1794), magistrado de grande reputação,
ministro sob Luiz XVI, que ele defendeu perante a Convenção.
Morreu no cadafalso.
(47) Denis Diderot (1713-1784), filósofo
francês, ardente propagandista das idéias filosóficas do século
XVIII, um dos fundadores da Enciclopédia. Deixou várias obras
importantes.
(48) Claude-Arien Hélvetius
(1715-1771), literato e filósofo francês, autor do livro Do Espírito.
(49) Georges-Louis Leclerc de Buffon
(1707 1778), naturalista e escritor francês, autor da História
Natural.
(50) Jean-Jacques Rousseau
(1712-1778), filósofo e escritor francês, nascido em Genebra,
autor da Nova Heloísa, do Contrato Social, do Emilio ou Da Educação,
Confissões e Discursos sobre as Ciências e as Artes e sobre a
Origem da Desigualdade.
(51) David Hume (1711-1776), filósofo
e historiador inglês, criador da filosofia fenomenista, autor de um
célebre Ensaio sobre o Entendimento Humano.
(52) Paul-Henri Holbach (1723-1789),
barão, filósofo materialista francês, amigo e protetor dos
Enciclopedistas
(53) Jean le Rond d'Alembert
(1717-1783), célebre escritor, filósofo e matemático francês, um
dos fundadores da Enciclopédia.
(54) Publicação monumental, dirigida
por d' Alembert e Diderot, que foi uma verdadeira máquina de guerra
posta ao serviço das doutrinas filosóficas do século XVIII
(1751-1772).
(55) Nicolau Machiavelli (1469-1527)
político e historiador italiano, autor das Décadas sobre Tito Lívio
e do Príncipe.
(56) Galileu Galilei (1564-1642),
ilustre matemático, físico e astrônomo italiano, nascido em Pisa.
Proclamou, partilhando a teoria de Copérnico, que o Sol, e não a
Terra, é o centro do mundo planetário, e que a Terra gira em torno
de si mesma e tem também, como os outros planetas, um movimento de
translação ao redor do Sol. Foi por isso denunciado como herege e
obrigado pela Inquisição a abjurar de joelhos as suas afirmações
(1633). Depois dessa abjuração, que o livrou da fogueira, foi
condenado ao cativeiro e morreu cego alguns anos mais tarde. É
famosa sua frase: E pur si muove! (E contudo se move!), que teria
proferido ao ser obrigado a abjurar.
(57) Cartas satíricas que Montesquieu
publicou em 1721, sob o anônimo. É uma correspondência imaginária
de dois persas chegados à Europa, Rica e Uzbek, dirigida aos seus
amigos da Pérsia e na qual o autor passa em revista, com plena
liberdade, a política, a religião e toda a sociedade francesa de
sua época.
(58) Obra publicada em 1758 e na qual
Helvétius aconselha o materialismo, tendo provocado os mais vivos
protestos.
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