PODER
E DIREITOS HUMANOS
desafios
para uma cultura da Paz
Cecília
M. Pinto Pires
Ivete
L. Manetzeder Keil
“Missões humanitárias ou
sacrifícios humanos? Para que a ordem cósmica continuasse
funcionando, os astecas ofereciam corações humanos aos deuses.
Para que a ordem terrestre continue funcionando, o mundo de nossos
dias oferece sacrifícios humanos aos fabricantes de armas e aos
senhores da guerra”. (Eduardo Galeano)
Introdução
O
sentido desse debate tem uma meta/utopia essencial - discutir,
debater, estabelecer raciocínios, provocar situações que conduzam
à produção de uma cultura da Paz. Sabemos que, efetivamente, não
é este o interesse dos epígonos do poder, nem dos que manipulam as
instâncias da sociedade civil organizada. Mas, no horizonte dos
Direitos Humanos o que precisamos é buscar reconstruções e ações
práticas que estimulem o sujeito pela escolha de um mundo de paz. A
paz é um direito. Entretanto, os homens não nascem naturalmente
capacitados para o seu exercício. O exercício da paz resulta de um
aprendizado, que implica saberes, os quais possibilitam aos homens o
reconhecimento da alteridade cultural. Talvez uma saída para a
humanidade no caminho para a verdade do ser humano seja fundamentar
seu espírito na cultura,
considerando a esteticidade que está presente em todas as dimensões
da vida humana e, assim fazendo, regenerar o político em outras
bases, isto é, longe da racionalidade instrumental e utilitária da
tecnologia moderna e da economia monetária.
O
Estado nasce forte sob o signo das estruturas de poder vinculadas às
decisões do imaginário capitalista. Desde o seu início, a nação
ficou subsumida ao aparato jurídico-político-ideológico do
Estado. Hoje, as nações enfrentam questões como a de sua própria
identidade. Com a política estratégica contemporânea para o fenômeno
globalista, os Estados foram diminuídos de tamanho. Esta minimização
do poder político produziu o fortalecimento da racionalidade do
poder social.
Em
tempos de globalização, o desejo dos sujeitos é pela emancipação
e pela construção de projetos de liberdade. Tais projetos esbarram
nas estratégias manipuladoras do globalismo
real – isto é mais forte, como vivência, no âmbito do imaginário
popular. Em pleno século 21, a chamada soberania popular continua
sendo um efeito retórico e não uma conquista efetiva.
A
Radiografia da Exclusão
Ao
tratarmos da questão dos Direitos Humanos, propomos a consigna da
subversão ética como experiência de quem pertence aos continentes
excluídos. A repetição dos nossos lamentos não impede o avanço
dos poderosos, que sempre assumiram a tarefa de dirigir a produção
das subjetividades.
As
condições da experiência dos homens são questões fundamentais
aos Direitos Humanos. Qualidade humana e condições da experiência
dos homens estão atravessadas por uma perspectiva ético-política.
Tal problemática expressa a produção da existência humana em
diferentes contextos históricos e afirma a importância de um mundo
assinalado pela diversidade e pela liberdade, um mundo comum
desejoso da criatividade do novo. No âmbito dessas relações, o
exercício dos direitos aparece como uma construção da convivência
coletiva. Para isso, faz-se necessário uma experiência de
intersubjetividade.
A
globalização, esse fenômeno atual da economia capitalista, produziu assimetrias
entre povos e nações, quando, entre egoísmos e particularismos,
apresenta crescimento sem trabalho e prodigiosa concentração de
renda. Nela, as economias passaram a manter interdependência
global, significando mudanças profundas na sociedade e na cultura,
revelando novas formas de ser, viver, amar, imaginar, sentir, agir,
pensar, sonhar, morrer. A globalização contemporânea está
presente na realidade e no pensamento ensejando um novo processo
civilizatório assinalado pela destituição da cidadania. Prova
disto é a concentração de renda que ele apresenta, demarcando um
perfil de severa violação de direito: 20% dos privilegiados se
aglutinam em torno da riqueza planetária e 80% dos excluídos se
aglomeram como sobreviventes em novas versões dissimuladas de
campos de concentração.
Apesar
de ser um fenômeno típico da produção ideológica do
neoliberalismo, a globalização econômica trouxe na sua avalanche
a crise do ethos cultural
dos povos. As raízes culturais são arrancadas, as fronteiras
invadidas, os senhores das nações empobrecidas estão aliados aos
senhores da rapina mundial e os povos dos
continentes excluídos brigam entre si uma briga que não é
sua. E, cegos introjetam o desejo e o poder de quem os domina
dificultando sua liberdade real. No plano interno, os valores da
vida justa, individual e coletiva, não aparecem como meta. Não há,
neste universo de valores, estas finalidades ético-estéticas. A
capacidade de des-objetivar-se
(deixar de ser um mero objeto capitalístico para a condição de
sujeito) aparece comprometida pela dimensão existencial de relação
com o mundo – imersos que estão num curto-circuito de sem sentido
absoluto.
Temos
todos consciência de que a situação de violência individual,
social, coletiva, planetária não será negada apenas por um ato de
vontade política ou
por um decreto de governabilidade generosa, nem mesmo por campanhas
de solidariedade construídas na mídia. Ao contrário, a base
dessas ações capturam os homens em processos de infantilização e
aniquilamento. Diante disso, além da perplexidade e da indignação,
que fazer? como agir? Como pensar a felicidade e a paz antes do
entardecer da civilização?! Sabemos o quanto a possibilidade da
paz é um direito fundamental dos homens. Possibilidade que se
coloca rigorosamente contra a convicção capitalista de que os
seres humanos são supérfluos e descartáveis.
Para
falarmos de Direitos Humanos no horizonte conceitual do poder, temos
que trabalhar com algumas evidências de violações e experiências
de homogeneização e aniquilamento das subjetividades:
1.
A experiência das duas guerras, trazendo para o acúmulo
social o aumento de tensões entre os povos e os países, centrais e
periféricos;
2.
A crise de valores se fazendo sentir em grande intensidade e
respondendo pela desorientação ética dos sujeitos;
3.
A vivência do dramático no ambiente humano, evidenciada
pela destruição da natureza, pelos acidentes nucleares, pelas doenças
incuráveis, pela baixa qualidade de vida das populações, pela
redução do número de postos de trabalho, pela fome;
4.
A guetização progressiva dos pobres, a infantilização
mass-midiática da população, a prostração e resignação da
sociedade diante de sua exclusão, a espera passiva de justiça
social;
5.
A experiência dos processos revolucionários, onde nem
sempre a racionalidade se fez presente, agravando os procedimentos
autoritários e impedindo as possibilidades emancipatórias dos
sujeitos, especialmente, dos mais afetados pela condição de
miserabilidade;
6.
A barbárie instalada expressa nas singularidades históricas
mais terríveis deste século, como os holocaustos que dizimaram os
judeus, os índios das Américas, as populações africanas, as
crianças de Kosovo, as populações da Albânia e tantas outras
etnias massacradas pela Razão do Poder, no conflito com a Razão Ética.
Os
jornais, no entanto, noticiam que o Timor Leste precisa receber exércitos
de outros países para manter a paz em suas fronteiras e a ONU
envia, então, para aquele país, símbolo das ações excludentes, as
forças de paz. São ações polêmicas. Nos terríveis relatos
sobre os territórios ocupados pelas forças de paz assinala-se, na base dos conflitos, respostas a uma
política conquistadora oriunda dos países imperiais e eles próprios
articuladores dessas forças. Se há uma integração no mundo
globalizado esta é uma integração mortífera, porquanto não há
nenhum compromisso de recuperação das marginalizações produzidas
pelo capitalismo. Como entender essa ação da governabilidade
mundial associada à luta pelo acatamento aos direitos dos povos,
quando os direitos dos sujeito sociais foram aniquilados?
Moçambique
sofre a calamidade de uma enchente arrasadora de suas plantações,
momento em que seus habitantes são vitimados por epidemias e mais
uma vez a súplica à solidariedade mundial para que as sobras da
mesa dos ricos alimente a fome dos pobres se faz ouvir. A ONU
preside essa coleta de recursos, de tal forma que os predadores do
continente aniquilado possam prestar sua ajuda, no ato cênico de
quem se comove com o caos. Tudo está ligado a tudo no processo da
globalização. Até a comoção é global e a vulgarização da dor
faz parte do cotidiano histórico da civilização que construímos.
Há muito a mídia conseguiu banalizar o sofrimento, instituindo
o cenário espetacular do horror e, no exato momento do seu
acontecimento: guerras, catástrofes, assassinatos, corrupções. É
difícil neste contexto resistir a uniformização do pensamento e
idéias, manter-se descontaminado,
o comportamento não depende unicamente da consciência. A trama, os
processos e as redes de interdependência a que cada homem do
planeta está exposto influem na produção das subjetividades e
definem os sujeitos. De certo modo, somos o que aprendemos a sê-lo
no entrecruzamento dos fluxos materiais, sociais, culturais e planetários.
A
lógica neoliberal estabelece três movimentos na sua racionalidade
instrumental:
1.
A tese: não dá para incluir todos na riqueza social;
2.
A antítese: é preciso estabelecer uma política de seleção
dos melhores;
3.
A Síntese: uma sociedade qualificada, para alguns sem
antinomias ou sem contradições.
1.
A participação no chamado "bolo
social", foi uma determinação exterior, pensada à
revelia dos que não fizeram parte do pacto de dominação econômica
e tecnológica, embora, ofereceram um silêncio conivente face às
razões dos arquitetos da razão instrumental globalizada, como o
Banco Mundial, o FMI e seus demais parceiros, que decidiram sobre a
implementação do processo privatista e instituíram a política
dos sete melhores.
2.
A seleção dos melhores é classificatória. As relações
de mercado aí se estabelecem e fortalecem interesses. Há um
gabarito mundial determinando modelos e ações por meio de novas
simbologias, nova linguagem, novo aparato de poder diferente das
botas dos generais, dos cães amestrados da Gestapo e dos campos de
reeducação da KGB. A lógica do pensamento instrumental é mais
sofisticada, atualmente, por que a ordem é trabalhar com os
melhores, é qualificar cada vez mais o que aparenta condições de
avanço para que a qualidade seja total.
3.
O liberalismo, na versão atual, continua anestesiando a crítica,
tal e qual Marcuse denunciava nos anos 60-70. As lutas entre as
classes diminuíram ou ficaram mais controladas e os indivíduos se
aglutinaram num exército de mônadas, cada um realmente lutando por
si mesmo, pois o que resta é, afinal, o sentimento de que todos
somos sobreviventes. Não emergem contradições numa sociedade onde
a globalização administra o conflito. A rigor, não há escolhas,
há rumos traçados desde fora e desde longe, que,
ao sujeito resta acatar ou se tornar eticamente subversivo.
A
humanidade já tentou construir sua autonomia, pretendendo dominar a
natureza. Optou por mecanismos de aniquilação. Inventou formas de
guerrear e pensou em estratégias de destruição da natureza e de
si mesmo. A violação dos direitos
chegou ao seu absoluto. A falência da fraternidade, o estímulo
ao assassinato, a dominação do Estado sobre a sociedade civil
constituem razões suficientes para que o sujeito no exercício de
sua subjetividade passasse por experiências cruéis de extermínio
de todas as formas materiais e simbólicas. Aqui aparece a questão
do Poder, enquanto um problema para emancipação do sujeito, sendo
um empecilho para o acatamento aos seus direitos civis, políticos,
econômicos, culturais, ecológicos, éticos, direitos construídos
e exigidos pela razão emancipatória. Ou ao contrário, o exercício
de poder pelos dominados, vindo de uma transversalidade,
pode fecundar uma ordem internacional, regional e local baseada na
redefinição das relações entre o Terceiro Mundo e os países
ricos. Trata-se do estabelecimento de novas relações de poder.
As
Estratégias Do Poder
No
debate atual sobre poder e direitos humanos, cresce a importância acerca do
entendimento do lugar e da circunstância, nas quais as diferentes
manifestações de poder se
apresentam. Entender o poder é entender, também, sua
governabilidade, seu procedimento estratégico, suas determinações
valorativas, face às demandas sociais e históricas dos povos.
O
poder, construção cultural da humanidade, exerce sobre essa mesma
humanidade estratégias de sedução, de despudor, de beligerância,
de ascensão social e sobretudo de intimidação. Michel Foucault
chama atenção para o modo como o poder se instala na vida dos
sujeitos, numa tessitura que não o remete simplesmente a um
significante de que seria o significado, mas a um enunciado de tal
forma exposto que todos exercem situações de poder e formulam
propostas de efetivação do poder.
“O
poder está sempre numa posição secundária em relação à
economia? É sempre finalizado e como que funcionalizado pela
economia? O poder tem essencialmente como razão de ser e como
finalidade servir à economia? Está destinado a faze-la funcionar,
a solidificar, a manter, a reconduzir relações que são características
dessa economia e essenciais ao seu funcionamento? (...) o poder é
modelado com base na mercadoria? O poder é algo que se possui, que
se adquire, que se cede por contrato ou por força, que se aliena ou
se recupera, que circula, que irriga esta região, que evita aquela?
Ou então, é preciso, ao contrário, para analisá-lo, tentar lançar
mão de instrumentos diferentes, mesmo que as relações de poder
constituam sempre uma espécie de feixe ou de anel com as relações
econômicas? E, nesse caso, a indissociabilidade entre a economia e
o político não seria da ordem da subordinação funcional, nem
tampouco da ordem da isomorfia formal, mas de uma outra ordem que se
trataria precisamente de revelar”.
Foucault
está falando do sistema de identificações na trama do poder e a
conseqüência disso na vivência social e histórica dos sujeitos.
Tramas compostas por tipos do poder constantemente atualizados e,
dizem os senhores, sempre em defesa da sociedade. A ascensão do
capitalismo neoliberal aparece favorecida sobretudo pelo poder por
influência. Além é claro de outros tipos de poder; na polis,
o poder nunca está em estado puro. Assim como o poder disciplinar
é o controle, o poder por influência mediatiza todas as espécies
de aparelhos e instituições. Sendo que este tipo de poder é muito
mais perverso do que o poder soberano, disciplinar, ou mesmo, o de
controle, porque ele não se exerce no plano do visível, mas no
plano da subjetividade. Sua finalidade é a produção da
subjetividade. O capitalismo contemporâneo re-organiza o planeta e
o faz investindo na subjetividade. As máscaras deslizam da face, e
o capitalismo globalizado, diferentemente do modelo que o antecedeu,
não tem necessidade de identificar-se ao discurso da igualdade de
direitos. As situações concretas irão determinar os domínios nos
quais o capital evolui – e daí determinará os espaços de
cidadania, estabelecendo entre os grupos hierarquias, conflitos e
acomodações. Isto é, classificando os que são ou não cidadãos.
Trata-se da desvalorização do outro e da naturalização da exclusão,
e da violação dos direitos.
Cada
sociedade se institui categorizando o mundo produzindo uma
determinada racionalidade. Entretanto, no capitalismo
globalizado “desenvolvem-se estruturas de poder propriamente globais. São as
estruturas que expressam as configurações e os movimentos, as
articulações e as contradições no âmbito da sociedade
global.”
Observa-se
um novo ethos de e em dimensões mundiais aprofundando-se a improbabilidade
do acontecimento da democracia. A questão da exclusão – embora não
seja específica ao mundo do trabalho aí tem sua maior afirmação
– aparece não apenas tendo como resultado um imaginário de
inferioridade, mas concretamente discrimina, despreza, fixa o outro
em áreas específicas produzindo guetos. E o que é pior,
exacerba-se na violência assassina. Os outros passam a ser não apenas excluídos e inferiores, mas
portadores de uma essência desordenadora e perversa.
Maquiavel
informava que à idéia do poder junta-se a idéia da incerteza. Não
há ordem natural e os homens mostram que os mecanismos da política
se estabelecem de forma contingente, portanto nada é estável e a
cada momento o destino dos povos pode ser regido por outra vontade,
diferente da vontade individual, o que mostra que o reino da política
não é o reino da paz. E ao debatermos poder e direitos humanos
pretendemos descobrir nas vontades coletivas a cultura da paz, como
a cultura da emancipação, da superação da exclusão. Todavia, a
paz não significa o aniquilamento das identidades nacionais como
enseja a globalização, mas o aniquilamento das dominações
imperialistas. É o aniquilamento do governo, de uma gestão econômica
da sociedade, em que o outro é desvalorizado e excluído e a lógica
utilitária é quem administra.
O
governo, ou seja, a arte de governar, no capitalismo contemporâneo
é conduzido como exercício de uma racionalidade instrumental (e não
ética) operante num vasto quadro de convencimento: melhorar as
condições da sociedade civil, reparar as injustiças sociais,
aumentar a riqueza, melhorar o estado de segurança, aumentar o número
de postos de trabalho... Através das táticas de governabilidade a
sociedade civil aparece como que protegida pelo Estado. É difícil,
num primeiro instante, discernir o que seja um discurso de esquerda
e um discurso de direita.
De certo modo, os discursos assinalam as mesmas questões.
Teoricamente quase não aparece a diversidade dos planos. Pura retórica.
Na prática, o Estado, no capitalismo neoliberal, tem diminuído o
seu tamanho e a sociedade civil perplexa diante da ruptura do
contrato social – a grande narrativa da modernidade - se imobiliza. Não vivemos a rude
transparência (se podemos assim dizer) do poder despótico, embora
possamos afirmar, com as mesmas palavras utilizadas por Maquiavel no
Livro II no capítulo intitulado Da
natureza dos três diferentes tipos de governo para referir-se
ao poder despótico, que o período republicano do nosso tempo
arrasta “tudo e a todos com
sua vontade e caprichos, sem leis ou freios”.
O
poder no estado neoliberal assinala a desvalorização da atividade
política enquanto arena pública concretizando a liberdade do indivíduo
no estado da não interferência. O reino da liberdade particular
para alguns, projeto do neoliberalismo, solapa a experiência
coletiva capaz de harmonizar o indivíduo com sua cultura. E, ainda
mais, o fascismo, considerado superado por alguns mais crédulos e
ingênuos, como fênix levanta-se das cinzas e se instala entre nós
sob a forma de micro fascismos
societais, e concretamente nos ameaça. A realidade
desastrosamente embrutecida compraz-se do nosso duplo medo: do que
estamos vivendo e do que ainda está por vir. Com efeito, as regras
que substanciam a democracia são fortemente rompidas pelo poder
dominante que nutre o neoliberalismo (e que dele se nutre).
Mas
o que é poder? Entre as muitas definições de poder vem-nos à
mente a definição de Michel Foucault para quem o poder é uma relação
de forças. Isto é, “uma ação
sobre as ações eventuais", ou atuais, futuras e
presentes, “um conjunto de ações
sobre ações possíveis”.
As relações de poder são afecções, porquanto as forças tem
poder de afetar outras forças e também de serem por elas afetadas.
As forças dominantes assinalam a vigência e mesquinhez do grande
capital sobre os homens e sobre o planeta. O poder por influência
tudo contamina. E se a mass-mídia, nos seus mais nobres horários,
leva para dentro das nossas casas a banalização dos problemas
humanos e das injustiças cometidas no/pelo capitalismo dando-lhes
um sentido próprio é, justamente, para influenciar nossa avaliação
sobre os acontecimentos. Temos, pois, notícias já
interpretadas, semiotizadas, mas não temos o privilégio das
informações sobre os fatos mundiais, regionais e locais. O
importante para o capital de subjetividade, na era do capitalismo
globalizado, não é o real, mas a realidade produzida por ele. Ora,
sabemos o quanto a produção de uma subjetividade emancipada não
interessa ao monoteísmo do mercado.
A mutação subjetiva que estamos assistindo (Castoriadis fala do nascimento de um
tipo específico de homem no capitalismo mundializado) passa pela
influência da televisão, da telemática e da informática. O poder
“investe (nos dominados),
passa por eles e através deles, apoia-se neles, do mesmo modo que
eles, em sua luta contra o poder, apoiam-se por sua vez nos pontos
em que ele os afeta”.
Michel
Foucault ao elaborar o inventário da governamentalização do
Estado, isto é, do governo sob sua forma política, chama atenção
para o nascimento e desenvolvimento deste fenômeno no Ocidente
analisando suas três fases.
A
saber:
1-
pastoral cristã;
2-
nova técnica diplomático-militar;
3-
polícia.
Cada
fase assinala uma arte específica de exercício do poder desenhando
realidades e intervenções distintas na vida dos governados. Não
havendo, a rigor, em nenhuma das fases, projeção de práticas de
respeito e dignidade.
A
conquista dos Direitos Humanos portanto requer a dobradura e superação
das forças que dominam, mas também exige um compromisso ético-político
de cidadania para todos. Nesta perspectiva, consideramos necessária
a criação de um movimento reflexivo constante sobre as ações
humanas. Um movimento que jamais pode cessar evitando-se a
cristalização de novos grupos de poder dominante e desse modo
assegurar e proteger as condições efetivas para a existência
emancipada. Trata-se do estabelecimento de um novo contrato mútuo e
em novas bases no qual são traçados caminhos seguros de liberdade
transcendendo os direitos de alguns poucos e garantindo a existência
de um mundo comum de direitos.
Entretanto,«haverá
paz estável, uma paz que não tenha a guerra como alternativa,
somente quando existirem cidadãos não mais apenas deste ou daquele
Estado, mas do mundo».
A
fonte da ação emancipatória vinculada às necessidades concretas
é necessariamente uma formação política, com tomada de uma
consciência teórica («com a
crise e a crítica do sistema produtor de mercadorias, também se
altera a posição da própria teoria»),
implicando o resgate dos símbolos que exemplificam a identidade dos
homens articulados entre si e com a ordem planetária. Criando-se
uma importante ruptura em direção à paz.
A
Busca Pela Experiência da Paz
E
a paz? Como conquistá-la, como mantê-la? Apenas por uma razão ética,
que nesse tempo requer uma ação subversiva, de tal forma que
inquiete os que desejam manter o mundo como palco de guerras. É a
subversão ética a utopia a ser pensada, hoje, quando se fala em
poder e direitos humanos. Ao acreditarmos na possibilidade da paz
como um direito a ser conquistado pelos povos e nações, faz-se
necessário preparar os caminhos éticos, na perspectiva de valores,
cujas viabilizações estejam além das determinações dos governos
e busquem modos novos de cumplicidade emancipatória. Esse é o
enfrentamento, na urgência dos direitos e na plenitude da
cidadania. Haverá colisão de interesses e vontades, embora possa
ser pensada a felicidade como um consenso entre os excluídos, ainda
que os projetos individuais se fortaleçam além e acima das
necessidades sociais. Mas, tudo isso, coordenado por uma organização
da sociedade civil, cujo sentido
será dado pelos que querem participar do projeto de emancipação.
“O
desafio para nossas culturas é um desafio de vida ou morte. Nada é
mais importante, neste momento, do que fazer um esforço conjunto
para superar as diferenças culturais como testemunho de uma
humanidade plural frente ao fenômeno de nosso tempo.”
Na
abordagem da questão dos direitos como conquista cultural e histórica
da humanidade não pode ser desconsiderada a intensa mediação que
se efetivou entre o Estado e as outras formas de dominação que
circundam o Estado para a sua plenitude de poder. Pensamos, então,
na construção teórico-prática dos direitos humanos dos excluídos,
sejam quais forem as causas de sua exclusão, por meio da violência
instituída, ou, por meio da violência cotidiana.
A sociedade civil precisa se organizar, a partir da compreensão
lúcida de rupturas, superando e negando o projetos de poder da
sociedade política.
“É
inegável a necessidade de proteger o ser humano em sua
individualidade contra os abusos do Estado e do poder e de melhorar
os mecanismos jurídicos, nacionais e internacionais. O ser humano,
como tal, tem direito à vida, à integridade, à dignidade e à
liberdade, qualquer que seja sua condição sócio-econômica, política
ou ideológica e qualquer que seja o país onde se encontre. Este é
um primeiro princípio universal e genérico”.
É
preciso vivenciar uma espécie de sabedoria ética, que enseje
agrupamento de forças políticas, face à necessidade prática
acumulativa de procedimentos emancipatórios. A subjetividade
esquecida nos porões das ditaduras, aniquilada nos cânones das facções
políticas precisa ser enaltecida e revigorada no acordo
intersubjetivo dos nossos povos e países excluídos.
Para que isto se viabilize, são
necessárias as seguintes condições: a busca da liberdade, o
desejo de felicidade e a luta pela paz. Em síntese, uma política
de compromissos com a cidadania.
Como
construção cultural e simbólica no horizonte do empírico-histórico
dos povos e nações, a compreensão de experiência de paz passa
pelos olhares dessas circunstâncias históricas. Na perspectiva do
pensamento oriental, a paz se traduz como ausência de conflito,
como vivência mítica-religiosa, como negação do sujeito que se
imola no imaginário exterior a si mesmo e à sua dimensão planetária.
No prisma da razão ocidental, a paz surge como compreensão de
hegemonias que dominam as contestações, submetem as diferenças,
aniquilam as alteridades e costuram consensos estratégicos e
acordos lingüísticos. Há, nessa esteira, o aparecer de um
capitalismo beligerante, que, ao estimular a competitividade
estabelece valores de mercado para subordinar os descontentes e
reduzir os desatentos.
Na
discussão sobre a cultura da paz, no universo de uma recorrência
aos direitos humanos, temos que pensar em novas ondas criadoras e
produtoras de uma subjetividade emancipada. Sobre isso se debruçam
os projetos que perseguem “utopias”
como metas de paz. Ao observarmos as grandes crises materiais do capitalismo
real, quando a anatomia da sociedade das elites se torna
transparente, expondo suas entranhas, é possível inventariar os
resultados desse globalismo: os problemas oriundos dos recursos
energéticos para o desenvolvimento; a industrialização das
cidades em grande escala ; as questões não resolvidas da
propriedade agrária ; a quantificação insignificante dos salários,
expressão da mais-valia dos trabalhadores; o desmantelamento do
processo educativo e a consequente lacuna de conhecimento nas vidas
dos sujeitos; a dificuldade de ações governamentais e privadas que
procedam com vistas à emancipação das subjetividades.
Nesse
inventário, a intenção é superar a dor desses cortes e sará-los,
pela ética e pela estética. Nesse momento, a fala dos excluídos
necessita se fazer ouvir, além das « armas
da crítica e da crítica das armas », usando as condições
atuais e necessárias para ser eficaz
na conquista dos seus direitos. E, novamente, a subversão ética
será a grande fala dos excluídos, os quais enfrentarão as
instituições que os oprimem, sem abandonarem a racionalidade.
É
evidente que a paz exige pré-condições ou solidificações de
avanços sociais que ensejem a possibilidade de viver tais experiências.
Assim a discussão de justiça é “conditio
sine qua non” para que haja paz. Será impossível a conquista
da paz como cultura dos povos sem a implementação de justiça no
mundo.
A
luta pela paz requer:
1-
resgate dos “humilhados
e ofendidos” nos processos totalitários mundiais;
2-
a preservação da natureza nas suas espécies vivas e
naquilo que necessariamente irá qualificar a vida;
3-
A dignidade no trabalho, a possibilidade do emprego, de
preservação do teto, de garantia do alimento, da limitação de
todas as formas de violência;
4-
A afirmação total da racionalidade emancipatória, como
dimensão dos meios de autonomia do sujeito, um desenho novo de
esferas éticas, estéticas, religiosas, políticas, econômicas e
familiares;
5-
A ruptura do eterno círculo de pobreza, que alimenta a geração
do exército de famintos em várias regiões da terra dos homens ;
6-
A afirmação da intersubjetividade, cuja beleza só pode ser
cultivada pelo valor da vida autêntica e livre.
Sabemos
que tais exigências não se aglutinam em torno de governos ou de
lideranças políticas, apenas. Antes necessita de procedimentos de
liberdade ancorados em processos negadores da submissão e
superadores da necessidade restrita à necessidade de sobrevivência.
Daí pensarmos na Declaração Universal dos Direitos Humanos dos
Excluídos, onde eles assumam uma dimensão peculiar, como sujeitos
sobreviventes no território da exclusão.
O
paradigma da paz será a leitura do homem que encontra o próprio
homem e o reconhece como sujeito e nesse reconhecimento estabelece vínculos
de tarefas e destinos comuns.
Afinal
"Como
viver? É a questão principal, pois contém todas as demais. Como
viver de uma maneira mais feliz, mais sensata, mais livre? No mundo
tal como é, já que não temos opção. Na época que é
a nossa, já que todas as opções dependem dela.
Para transformar o mundo? Para se transformar? Ambos.
Um pelo outro. A
ação é o caminho. Mas que só vale pelo pensamento que a ilumina
(...) a vida é breve demais, preciosa demais, difícil demais, para
que nos resignemos de viver de qualquer jeito...
"
Se
no limite do desenho em que pensamos o futuro, pudermos apreciar a
estética e a ética da vida boa e justa para todos, está posta a
pedra fundamental da meta/utopia por uma cultura da Paz.
A
propósito de uma Síntese:
Nossa
tarefa de envolvidos com a exclusão e a superação da barbárie
permanece no limite da denúncia e do enfrentamento. Denúncia,
porque o silêncio cúmplice ou acabrunhado dos que testemunham a
violação dos Direitos Humanos impede que se avance nas fronteiras
da liberdade e da paz. Enfrentamento, pois mais do que nunca, hoje,
o poder necessita ser enfrentado na sua dominação e nas suas
estratégias de exclusão.
Essa
é a manifestação do “rosto
que fala”, segundo a linguagem de Levinas. E nós entendemos
que a o rosto dos excluídos produzem discursos inaudíveis para o
poder, mas, perfeitamente compreendidos pelos que assumem a não-violência
como paradigma da razão ética, uma ética que não concilia com o
arbítrio, uma ética que subverte o mundo na construção da Paz.
E
concluímos com a fala de Albert Camus
“Em
face das perspectivas aterradoras que se abrem à humanidade,
compreendemos ainda melhor que a paz é o único combate profícuo.
Porque
não é uma súplica, mas uma ordem que devem impor os povos aos
governos – a ordem de escolherem definitivamente entre o inferno e
a razão”.
E
a escolha é pelo sujeito e por sua emancipação ética.
A
escolha é por uma cultura da Paz
FOUCAULT, Michel. Em defesa da Sociedade. São Paulo: Martins
Fontes, 1999, p.
20/21.
Luc FERRY, André Comte SPONVILLE, La sagesse des modernes. Paris
: Roberts, 1997, p. 5.