Educando
para a Cidadania
Os
Direitos Humanos no Currículo Escolar

A REALIDADE DA
FÍSICA E A FÍSICA DA REALIDADE
Para começarmos a escrever este artigo
foi fundamental a escolha de um enfoque. Tínhamos muitas
possibilidades. Resolvemos, pois fazer uma breve análise da Física em
lugares bem definidos. Inicialmente, uma pergunta: a realidade da
Física, como disciplina, confunde-se com a física da realidade? A
princípio a resposta parece óbvia: “é claro”! Façamos, porém,
raciocínio mais complexo. Ao analisarmos a expressão “a realidade da
Física”, devemos levar em consideração que não existe apenas “uma”
realidade. Se vivemos num país subdesenvolvido, terceiro-mundista, onde
as desigualdades econômicas são enormes, onde encontramos “seiks”
abonados ao lado de gente que não consegue sequer alimentar-se, podemos
só aí encontrar duas realidades, dois mundos. O primeiro, que tudo
compra, isto é, que pode fazer investimentos altíssimos na área
científica, possuindo, algumas vezes, tecnologia de ponta, utilizando
diuturnamente a Física para o seu “bem-estar”. Ao mesmo tempo, um
segundo que nada compra, marginal, que sobrevive e que, por isso, não
tem tempo sequer para preocupar-se com a educação e menos ainda para
pensar a Física, tida como disciplina enfadonha e pouco comprometida
com o cotidiano. Falando em educação na perspectiva do ensino formal,
caberia perguntar: como se dá o ensino-aprendizagem da Física dentro
da sala de aula? Também aqui, encontramos algumas práticas peculiares.
Há, por exemplo, o ensino da Física ortodoxa, que se encontrava já
nos livros de cinqüenta ou sessenta anos atrás, hermética, pouco
acessível. Esse procura, de forma mais acadêmica possível, informar os conteúdos, supondo
que aprender é para poucos que, por destino ou, quem sabe, fatalidade,
nasceram para isso. Mas há também aquele ensino que, de maneira
velada, traz essa mesma realidade travestida numa roupagem atual.
Antigos e ortodoxos conteúdos com pelagem colorida, práticas “modernas”,
da mesma forma “informam” e muitas vezes “despejam” a Física
como um fardo a ser carregado.
Infelizmente, esta realidade é a que
percebemos com mais freqüência e onde se joga maior ênfase. Há,
contudo, outra perspectiva, minoritária, é verdade, incipiente, é
verdade, mas com muita gana de firmar-se. Uma perspectiva de construir o
objetivo maior não apenas na informação, mas na formação. Uma
perspectiva desalienada, preocupar em gestar consciências críticas,
debruçadas sobre os problemas do mundo em que vivemos. É a partir
desse mundo, que precisamos elaborar pactos de convivência, de
respeito, de amor ao próximo e de responsabilidade diante desses
valores. O educador necessita estar axiologicamente posicionado no
sentido de vivenciar (e fazê-lo junto a seus alunos) um código
ético-moral internalizado e explicitado através da prática concreta.
É preciso ser cidadão para educar na perspectiva da cidadania. O que
tem a Física a ver com isto? Muito. Não podemos, por exemplo, numa
sala de Física, enquanto falamos de termologia, dilatação, calor ou
termodinâmica, abordar fundamentalmente as causas e conseqüências do
efeito estufa?
Por que não relacionarmos o referido
fenômeno com a Biologia, mais especificamente com a Ecologia ou com a
Química? E por que não com a Filosofia e a Sociologia, favorecendo a
interdisciplinariedade? Será o tema de interesse restrito à primeira
área ou terá caráter mais abrangente, indo provocar a reflexão das
chamadas “Ciências Sociais”? aliás, existe uma ciência que não
seja social? Não é a Física uma ciência social? Não creio que as
coisas da vida possam ser compreendidas segmentadamente. Todos somos
admiradores do surto de desenvolvimento e práticas científicas no
Renascimento, uma época de profundas e profícuas transformações nas
mais variadas áreas do conhecimento. Foram ocasionais ou
inter-relação, a cosmovisão, a dinâmica integradora do saber possui
papel essencial? Afirmamos que a influência e a permeabilidade das
diversas áreas do conhecimento é que tornaram tão fértil esse
momento da história humana. É exatamente desta atitude que estamos
necessitando hoje. Precisamos de permeabilidade e transparência por
parte de todos, para que possamos crescer juntos, prosperarmos com
eficiência, competência e solidariedade. Ao nível das ciências:
interdisciplinariedade. Neste sentido, o estudo da Física deve
colaborar, unindo-se a outras áreas e analisando, de maneira ampla e
irrestrita, os grandes problemas raciais na África do Sul, a fome na
Etiópia e em Bangladesh (e em vários outros países), a
superpopulação da Índia, o lixo atômico, o desmatamento da Amazônia
no Brasil, a crise energética mundial, a destruição da camada de
ozônio, etc. Temas urgentes, indispensáveis e multidisciplinares.
Pensemos um pouco na rota das soluções
para os mega-problemas acima arrolados. Muitos de nossos jovens crêem
na perspectiva individualizada: a única solução possível é fazer as
malas e partir para o primeiro mundo. Façamos, então, uma análise de
como ocorrem as relações num país de “primeiro mundo”: lá, onde
a democracia impera, todos podem “comprar” quase tudo. Os avanços
tecnológicos podem ser adquiridos por qualquer pessoa, todos podem ter
acesso à tecnologia de ponta, porque o poder aquisitivo, a renda per
capita, é maior. Apenas para termos uma idéia, em junho de 1990, para
uma jornada de 30 horas semanais, na França, o salário mínimo
respectivo era de US$ 890 mensais, ou US$ 668, nos Estados Unidos, por
uma jornada de 40 horas semanais.
Enquanto isso, no Brasil, uma jornada de
40 horas semanais, US$ 67 mensais, e na Guatemala, para a mesma jornada,
o mínimo representa US$ 50 (Fonte: Embaixada dos países no Brasil). A
custa de quem isto ocorre? Existirão países melhores? A terra fértil
que produz os grãos concentrou-se em algumas mãos, deixando outras sem
nada? Certamente não. Nos países onde se produz avançada tecnologia,
onde as ciências estão num grau de desenvolvimento invejável, a
produção de alimentos nem sempre sustenta seus habitantes. Para
exemplificar: há alguns dados extraídos de uma pesquisa publicada no
DCI, em 08 de junho de 1988, mostrando a participação dos salários e
a margem do lucro no produto industrial em 1980. Enquanto, em Hong-Kong,
a participação dos salários no produto industrial era de 52% e a
margem do lucro de 19%, ou na Noruega, respectivamente, 58% e 15%, no
Brasil a situação literalmente invertia-se, cabendo a participação
dos salários apenas 17% e a gorda margem de lucro ficando com 52%
(Fonte: Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento
Industrial)
Ao nível da divisão internacional do
trabalho, conhecemos a situação. A máquina é fabricada no primeiro
mundo, com tecnologia própria. O alimento é produzido terceiro mundo,
com a máquina do primeiro mundo, mas sem o poder da tecnologia. É
preciso produzir alimentos para ganhar dinheiro. Não adianta, contudo,
ganhar dinheiro sem os alimentos para comprar, já que possuem o
dinheiro. Por que não produzir a própria tecnologia? Não há tempo.
É preciso plantar para exportar, para ganhar algum dinheiro, para comer
um pouco.
Enquanto isso, no primeiro mundo, o povo
bem alimentado, com recursos econômicos, pode investir pesado em sua
tecnologia, aprimorando-a sempre mais. No entanto, muita produção
tecnológica requer muita energia. Compramos, então, também esta
energia, até que, num dado momento, um homem poderoso, sintetizando
interesses, em nome de uma Nação, resolve intervir perigosamente junto
a esse setor econômico-chave. Desencadeia-se uma guerra.
Hipocritamente, o mundo civilizado só percebeu o que este homem
representava, os abusos que vinha cometendo, as violações dos direitos
dos cidadãos iraquianos, quando o fornecimento de petróleo passou a
estar em questão. Podemos crer que a guerra se fez para salvar os “indefesos
kuwaitianos”? na verdade, toda e qualquer guerra, qualquer forma de
violência à vida é degradante. A morte dos Curdos, de crianças
iraquianas, denuncia que, na utilização do cultivo da opressão, dos
interesses escusos, ninguém sai ileso. Nem orientais, nem ocidentais,
nem leste, nem centro, nem oeste... A única e verdadeira saída é a
saída do Homem construtor da Paz e da Dignidade. Como podemos pensar a
educação num mundo sem amor e solidariedade? Como podemos pensar a
vida num emaranhado de rancores? Como podemos pensar a Física em tal
universo de valores? Talvez, escolhendo uma proposta que leve em
consideração o homem como valor supremo, desenvolvendo-lhe seu mais
fundamental direito, a dignidade.
Tendo como ideal esta visão de mundo, a
coisa não fica assim tão difícil. Como dizia o poeta: “A vida é a
arte do encontro, embora haja tantos desencontros por aí”. Como levar
a Física para a sala de aula nesta perspectiva? A Física deve ser mais
uma, entre outras disciplinas, que auxilia o aluno a pensar de maneira
lógica, utilizando, para para isso, todos os recursos e habilidades
mentais que ele possui. Mas, deve desafiá-lo a cada instante,
provocando desequilíbrio em seus conhecimentos, em suas falsas
certezas, em suas verdades acabadas, para que ele possa, de maneira
autônoma, transpor estes limites.
Deve, ao mesmo tempo, oferecer suportes
de conteúdos, para que esse aluno se desenvolva de maneira gradativa e
independente. O professor será o grande provocador desse
desenvolvimento. Para que esses desafios ocorram de maneira paulatina,
evitando traumatizar ou desestimular o aluno, é imprescindível que o
professor o conheça com a maior integridade possível. Conhecendo seu
aluno, o professor poderá saber o exato momento em que ele necessita de
novo desafio, visto que já venceu o anteriormente provocado.
Nesta razão é que se dá o papel
libertador dos chamados conteúdos. Eles subsidiam o orientando para que
possa vencer as dificuldades que lhe são propostas, com tranqüilidade,
segurança e autoconfiança. Cabe aqui salientar-se que só se
constróem conhecimentos quando o trabalho é embasado em conteúdos significativos. Exatamente por
esse motivo, não podemos pensar em educação sem conteúdo. Posto que
o professor e o aluno são pessoas de relação, é evidente que, para
cada desafio, seja estimulado, de comum acordo, um tempo. Este tempo
não deve ser rígido e muito menos tomado como uma espécie de verdugo
do professor e de seu orientando. O tempo é mais um desafio a ser
derrotado. A avaliação, nesta perspectiva, precisa ser realizada
bilateralmente, como um processo dentro do trabalho. Isto implica numa
continuidade e num acompanhamento constante das realizações do
professor e do aluno. esse acompanhamento deve ser feito tanto pelo
professor (dos trabalhos seus e de seu orientando) como pelo aluno (dos
seus trabalhos e de seu orientador). Isto não implica em que seja
imprescindível a avaliação formal, com provas, exames ou testes, mas
também não significa que estas modalidades estejam terminantemente
proibidas. Quando alguma das partes sentir necessidade, poderá
sugeri-las.
O que realmente interessa é que os
objetivos de cada etapa do processo estejam plenamente explicitados,
para que possa ocorrer uma efetiva aprendizagem e uma significativa
mudança de atitudes em relação aos meios e aos fins de educação.
Assim, a avaliação deve estar inserida corretamente no contexto
metodológico, de forma dialética e dialógica. Apenas para
exemplificar: há alguns anos, numa aula introdutória (terceira série
do 2º grau), quando consultávamos a turma a respeito do método de
trabalho e da forma como pretendíamos desenvolvê-lo, ao abordar o tema
“avaliação”, comentamos que não era nossa intenção realizar
avaliações formais, uma vez que os que lá estavam, estavam em fim de
uma etapa e já haviam sido cobrados suficientemente até ali.
O que nos interessava naquele momento era
fornecer-lhes o maior número de instrumentos possíveis para qualificar
suas vidas. Mais tarde, fomos agradavelmente surpreendidos por uma
história que nos foi contada pela mãe de uma daquelas alunas. Sua
filha, ao chegar em casa, comentara que, naquele ano, seria necessário
estudar mais Física do que em anos anteriores, uma vez que não haveria
provas... Comentários desse tipo estimulam nosso agir e indicam que,
pelo menos alguns alunos, conseguem realmente compreender uma proposta
de caráter mais abrangente.
Finalmente, precisamos lembrar que esta
forma de encarar o ensino de Física exigirá do professor e do aluno um
engajamento político-social. Pensar em desafios, em qualquer área,
não comporta o acadêmico "estudar por estudar”. Precisamos
levar sempre em consideração, junto a nossos alunos, que o estudo e a
cultura devem levar o homem a ascender material e espiritualmente na
vida, na dimensão individual e coletiva. Somente a organicidade, com os
Movimento Populares e com a sociedade civil organizada, poderá
levar-nos a uma decisão real de colocarmos nossos intelectos e nossas
ações a serviço da melhoria de vida para todos, do resgate pleno da
dignidade humana, o maior dos valores.
A Física, como qualquer disciplina, tem
tudo a ver com isso.
Moacyr Marranghello
Educador na Escola Municipal Emílio Meyer e nos Colégios Anchieta
e Sévigné, em Porto Alegre, na Universidade Luterana do Brasil,
em Canoas, e especialista em método e técnicas de ensino.
|