Educando
para a Cidadania
Os
Direitos Humanos no Currículo Escolar

EDUCAÇÃO ARTÍSTICA NA FORMAÇÃO DA CIDADANIA
É preciso abrir as portas e janelas para
que o mundo penetre na escola e esta seja, cada vez mais, um espaço
onde o aluno forme, lenta e gradativamente, o suporte de sua vida, a
partir de reflexões pessoais que não desprezem a realidade próxima.
Deixar o mundo entrar na escola é, antes
de tudo, ajudar o aluno a construir sua própria percepção da
realidade e inquietá-lo quanto à amplitude de suas potencialidades,
trabalhando-o como pessoa inteira: afetiva, expressiva, crítica,
transformadora...
A escola deve ser um lugar que fomente no
aluno a capacidade de se tornar “senhor de seu destino”, a partir da
compreensão de suas possibilidades individuais e, consequentemente,
sociais.
Nesta “nova” concepção de escola,
é mister resgatar o papel da Educação Artística, tirando-a da
rejeição (direta ou indireta) em que se encontra.
A arte, muito mais que conceitos vagos
como "inspiração”, “sensibilidade espontânea”, “Dom”...
é um fator na formação da personalidade, ajuda a criança a enfrentar
os problemas presentes e futuros e a preservar sua integridade e seu
equilíbrio.
Quando a criança pincela uma folha
branca e deixa registrada sua marca, se processa entre elas (criança e
folha de papel) um diálogo impenetrável. São “palavras-mudas” que
possibilitam pequenos – e por vezes grandes – ajustes pessoais.
Se o adulto não puder entender toda
profunda significação que a arte da criança tem para ela, deve
procurar aceitá-la como algo que está fora e acima de seu mundo.
Vê-se como um simples passatempo (embora
alegremente praticada como um jogo) é negar-lhe toda sua contribuição
na formação de verdadeiros cidadãos.
Porém, se a Educação Artística
contribui na formação de verdadeiros cidadãos, é limitá-la em
demasia colocar em foco apenas a personalidade do educando.
O que está fundamentalmente em causa na
Educação Artística é a VIDA e a qualidade desta. Não uma vida com
qualidade apenas para uma minoria de pessoas, mas para todos que
repartam o meio ambiente, pois todos ajudam a contribuí-lo, sem
exclusão nem privilégios para alguns. Na destruição todos sofrem. Na
construção, nem todos usufruem.
É insuficiente educar os ouvidos, os
olhos, o corpo para que as “obras imortais” sejam admiradas. Não
apenas o conteúdo dos museus deve ser respeitado. Afinal, não é a
natureza a mais bela obra de arte? Deus não é mais a fonte da beleza
eterna?
De que serve tornar as pessoas sensíveis
às belas artes, se primeiro não as tornamos sensíveis à feiúra
crescente do nosso meio ambiente?
Sensibilizar o cidadão em relação a
esse meio é alertar-lhe para as perspectivas da vida cotidiana. Por “meio
ambiente” devemos entender a totalidade dos valores sensíveis do
panorama da vida – sistema dos objetos naturais e artificiais,
conjunto dos estímulos sensoriais, formas, cores, cheiros, sabores,
movimentos, ruídos, justaposição e superposição de qualidades
percebidas, através das quais o espaço se acha ocupado, ritmado,
modulado, diferenciado, determinado como espaço familiar de quem o
habita.
Qual a maneira mais plena de habitar o
mundo senão tirando-lhe proveito a partir do discernimento dos matizes
das cores e luzes, da textura dos objetos e seres, da observação das
formações e transformações momentâneas, da proporção dos tamanhos
e distâncias, da consciência do ritmo próprio dos movimentos?
A partir desse amor à vida que a
criança vai adquirindo, à maneira em que vai percebendo o grande valor
das pequenas coisas da natureza, ela se vai tornando apta a conceber
arte e a ser uma recriadora. Ser artista, porque a vida – que ela
aprendeu a valorizar com toda sua plenitude – é a arte mais
autêntica, elevada a libertadora-humanizadora, porque não concebe, ao
seu lado, indivíduos cuja existência não lhe permita a tranqüilidade
de admirar as nuances de um pôr-de-sol. Este sujeito passa a ser ponto
de referência aos demais. Resiste às imposições e tenta manter
inalterados os elementos que favorecem a Vida e que por vezes são alvos
de interesses, de descasos, de arbítrios, de monopólio da arte...
“Para um verdadeiro artista, só é
bonito o rosto que, independente do exterior, brilha com a verdade
interior da alma” (Gandhi).
Nesta concepção, não existe ARTE
ENGAJADA. Existem, sim, artistas (por artistas, entendam-se todas as
pessoas que se expressam com arte) cujo grau de cidadania se tornou tão
elevado que não concebem usar sua técnica aliada à sensibilidade para
fins que não sejam o clamor por justiça.
No entanto, é preciso propiciar
técnicas aos alunos, a fim de que a Educação Artística não caia num
“laisser-faire”, que os alunos não se contentem com o acaso, mas,
ao contrário, utilizem toda sensibilidade, afetividade e fantasia
(qualidades essenciais na formação de cidadãos) aliadas à
utilização de métodos específicos, resultantes de uma
alfabetização estética. Esta garante a expressão desejada, sem a
qual toda expressão permanece impotente e toda criação é ilusória.
O indivíduo precisa perceber a arte como
manifestação de um povo. É apenas quando o aluno compreende esta
afirmação que ele se torna capaz de admirar a História da Arte. Não
porque ela guarda em si nomes e obras célebres, mas porque de estilo em
estilo ele vai compreendendo a evolução das sociedades humanas com
seus princípios e métodos de pensamento múltiplos, mas bem definidos.
O homem e a arte caminham juntos e,
através da Segunda, podemos conhecer o primeiro. No evoluir das artes
observamos um ajuste perfeito entre informação e intuição. A cada
época corresponde um estilo e cada estilo, uma época.
Para que esta cadeia não se rompa, é
preciso garantir o direito à livre expressão. A arte não pode ser
mais limitada por prescrições religiosas, governos autoritários ou
academias intransigentes. Mais do que nunca, hoje é preciso tê-la como
uma garantia de livre expressão. Um meio de reivindicar, expontânea e
conscientemente, os direitos humanos e de defender a vida e os valores
nos quais acreditamos.
A religião não pode limitá-la, pois,
segundo Santo Agostinho, “Deus é a beleza de todas as belezas”. O
governo? “A arte é bem maior que os governos” (Isadora Duncan).
As academias ou escolas de belas artes
devem ser um lugar propício, um espaço para cultuar a liberdade, onde
a arte atinja sua mais alta expressão.
Enfim, é importante mostrar ao aluno que
arte se faz com muita sensibilidade, mas também com muito trabalho,
pois, na maioria das vezes, faz-se necessário apenas dez por cento da
inspiração. Segundo Degas, “é preciso pintar o mesmo tema dez, cem
vezes”.
Compreendendo esta perseverança na busca
de uma obra que o satisfaça, o aluno se prepara para uma luta bem
maior: a de transformação da sociedade. Luta esta que também exige
sensibilidade, mas muito raciocínio, calma, persistência. Monet um dia
afirmou que “tudo se transforma, até mesmo a pedra”.
Apenas quando aprende a ousar, o aluno se
torna um verdadeiro cidadão e um verdadeiro artista, pois quem não
ousa nunca erra, mas também jamais passará da mediocridade. A utopia
não existe. É apenas algo inalcansável nas circunstâncias do agora,
mas que no dia em que a mediocridade for destronada, resgatada a arte e
o sonho que existe em cada um, tornar-se-á realidade, e o que hoje é
só imaginação será vivido de forma coletiva, sem exclusão. “O que
conta não e o que o artista faz, mas sim aquilo que ele é”
(Picasso).
É preciso preparar a pessoa para a vida,
e para uma vida com qualidade.
Neste sentido, é importante que a
proposta de Educação Artística trabalhe, simultaneamente, com todas
as linguagens (corporal, sonora, plástica, etc.) desde o início da
formação escolar.
A infância (pré-escola e séries
iniciais) é o tempo mágico das densas emoções, onde a expressão se
manifesta intuitivamente. Esta afirmação basta para que este período
seja respeitado na sua plenitude e desafiado, a fim de que a criança o
viva intensamente.
Faz-se necessário ir oferecendo
materiais compatíveis com o grau de desenvolvimento da criança. A
maior variedade de materiais possíveis enriquecerá a sensibilidade
infantil, devido às várias consistências e texturas.
Quando se trata de um processo, não é
possível ter pressa. Ao contrário, é fundamental dar tempo para que a
sensibilidade vá se familiarizando com o novo e, aos poucos,
descobrindo suas sensibilidades transformativas.
Deixar a criança simplesmente triturar
um pedaço de argila, ou mesmo abandonar um pedaço de papel para se
pintar é, antes de tudo, respeitar a curiosidade inicial e favorecer a
exploração do novo. Estas e outras experiências, por mais
insignificantes que pareçam, são fundamentais para uma posterior
modelagem ou pintura a serem executadas.
Neste estágio, são desnecessárias
perguntas do tipo:
-
o que tu quiseste desenhar (pintar, modelar...) aqui?
A atividade teatral é iniciada através
do gostoso brinquedo de casinha ou mesmo dos – muitas vezes temidos
– brinquedos de médico.
É a própria vida preparando para a
vida.
Só depois vamos aprofundando estas
vivências iniciais (e essenciais) e aguçando a percepção com
perguntas do tipo:
-
Qual a cor do material que estás usando?
-
Onde encontramos esta cor na natureza?
-
Tu conheces este mesmo material em outras cores?
-
Ele é frio ou quente?
-
É lisinho e macio, ou não?
-
Que outros objetos ou animais tu conheces mais macios que este
material?
Neste momento, a criança vai se
sensibilizando em relação ao meio ambiente. Aprendendo a conhecê-lo
e, consequentemente, a amá-lo e valoriza-lo.
O mesmo deve ir acontecendo com as demais
linguagens estéticas. Propor adivinhações através de mímica ou
desafiar a criança a cantar uma mesma música valorizando as qualidades
da voz (mais alto, baixo, agudo, grave...) são “técnicas” lúdicas
de ir desenvolvendo as possibilidades individuais.
Aos poucos, a maneira correta de utilizar
cada material vai sendo descoberta ou, se necessário, demonstrada. O
importante, porém, é que tudo seja vivido, testado e que fique sempre
uma abertura para se descobrir novas possibilidades.
O aluno deve ser capaz de realizar obras
que o satisfaçam, mas, antes mesmo desta ânsia de conseguir bons
resultados, é importante que saboreie os processos vivenciados.
O professor adquire um papel de
desafiador. Daquele que faz o aluno sempre procurar a sua própria
superação.
Quando um aluno é capaz de diferençar
pequenas nuances dos matizes e não se limita a igualá-las
resumidamente, tornou-se apto a diferençar as grandes e também
pequenas desigualdades.
Tudo se vai somando, construindo... Uma
melodia, um desenho, uma pintura, uma modelagem, uma encenação... uma
mentalidade.
Nesta busca de si mesmo, de
auto-superação, o aluno não pode se desvincular de um passado, de uma
história.
Quem mais viveu este processo que estou
vivendo?
Quem atingiu técnicas de pintura,
escultura, desenho, teatro, música, que podem ser úteis para o meu
crescimento?
E a pergunta mais decisiva e importante:
-
Como eu posso ser útil para os outros? Como posso colaborar no
mundo em que me encontro?
A História das Artes se faz resposta
para uma curiosidade resultante de vários anos e de uma necessidade de
fazer a história presente e futura. Contrariaria todas as expectativas
anteriores se esta História se limitasse à enfadonha leitura de
livros. Precisa ser uma leitura viva, uma leitura que se relaciona. Uma
História das Artes que conta a vida de uma humanidade que ainda caminha
e – mais importante – da qual todos fazemos parte e com a qual
podemos colaborar na alteração de rumos. Uma arte livre, que resgata
emoções, valores, vivências, lutas. Arte universal, arte que garante
uma vida digna para todos, arte do povo, pois, segundo o poeta, não
existe arte distante: “todo artista tem que ir aonde o povo está”.
Ao que eu acrescentaria: todo povo tem que ser artista, construtor da
sua arte, reflexo de sua vida.
Márcia de Lima Carneiro
Neves
Educadora no Colégio Anchieta e Sévigné, em Porto Alegre,
e colaboradora da Anistia Internacional |