Educando
para a Cidadania
Os
Direitos Humanos no Currículo Escolar
BIOLOGIA E CIDADANIA
Ao abordar a questão das relações
entre Biologia e Cidadania, é muito provável que, imediatamente,
fixemos nossa atenção sobre a temática referente à poluição, no
seu mais amplo significado, qual seja o de “qualquer alteração
física, química ou biológica em um ambiente provocada por ação
humana”. Assim, são formas de poluição não apenas o despejo dos
esgotos domésticos e industriais nos rios (poluição química), mas
também as ondas sonoras e eletromagnéticas geradas por aviões,
submarinos, telecomunicações (poluição física) e o desmatamento de
florestas, drenagem de banhados, introdução de espécies exóticas
(poluição biológica).
Com as atividades humanas que produzem
tais conseqüências nocivas só tem se intensificado, a perspectiva de
que venham a inviabilizar a vida sobre o planeta não pode ser vista
como uma probabilidade remota.
p>Desde que surgiu, o homem, como qualquer
animal, provoca mudanças no seu ambiente. Mas as alterações efetuadas
pelos povos “primitivos” estão longe de ser catastróficas, como
têm sido muitas das conseqüências das civilizações modernas. Estas
alterações profundas vêm se avolumando ao longo dos últimos
séculos. O que efetivamente causa maior preocupação é o fato de que
começam a colocar em risco a própria sobrevivência humana. Muitas
espécies foram deliberadamente extintas e, período relativamente
recente da história humana, sem que isso tenha provocado uma
preocupação tão generalizada como a que agora se verifica. Se já
não são respeitados os direitos políticos do cidadão, começam
também a ser violentados os seus direitos biológicos. Não há como
compatibilizar o direito universal à vida e a presença de veneno na
água, nos alimentos e no ar! Neste ponto é que as relações entre
Biologia e Cidadania passam pela responsabilidade do educador, e é aqui
que se torna imperioso afirmar que a problemática ambiental é
conseqüência e não a causa.
O homem civilizado considera-se
proprietário do planeta. O biólogo e o educador de Ciências e
Biologia precisam ter em mente a distinção entre o homem civilizado e
o homem “primitivo”. Aos povos “primitivos” não é necessário
advertir que todo o homem tem direito à vida. Os direitos à cidadania
só são violados pelos cidadãos, os habitantes das cidades, quase
sempre com a cumplicidade dos respectivos sistemas sociais.
O homem civilizado considera-se o
proprietário do planeta, devido a julgar-se superior aos outros
animais. Do ponto de vista biológico, tal superioridade é apenas
relativa. Há duas justificativas geralmentalegadas quanto a esta
superioridade. A primeira é a de que o homem seria o produto da
intervenção direta de um ser superior sobrenatural. Embora muitos
sistemas religiosos possuam objetivos até similares aos de uma
educação orientada para a preservação e valorização da vida, as
premissas das quais partem não são as mesmas. E, infelizmente, ao
ignorar todas as evidências filogenéticas e paleontológicas
concernentes à origem do homem, o educador de Biologia que não abrir
mão desse dogma prestará um desserviço à humanidade, por agravar o
estado das coisas.
A Segunda justificativa para que se
considere o homem com direitos diferenciados em relação aos outros
organismos é bem mais sutil. Ela ainda é defendida por boa parte dos
próprios biólogos. Para estes, o homem seria o topo da evolução
orgânica. A vida, desde os primórdios, há cerca de quatro bilhões de
anos, este ser supremo e perfeito. Sem dúvida, o homem é um organismo
maravilhoso. A paineira e a baleia azul também o são. E se o homem
pode fazer coisas que a paineira e a baleia azul não podem, também é
verdade que aqueles organismos podem fazer coisas que estão muito além
da capacidade humana. Na verdade, cada organismo é produto final de uma
longa história evolutiva. Cada uma das milhões de espécies existentes
é o seu próprio “topo da evolução”. Não há razões objetivas
para defender-se a visão arcaica do homem no ápice da pirâmide.
Senão, vejamos, quais
as características da espécie humana? O educador
de Biologia deve enfrentar o desafio de levantar
esta e outras questões junto aos seus alunos e
irá verificar, talvez com surpresa, como tais
questões, aparentemente despropositadas, são difíceis
de responder. Quando falamos de um
paineira ou de uma baleia azul, somos capazes
de fazer um breve enunciado de quais são as suas
características. Mas o homem? Alguns dirão que
o homem é por demais complexos para que ele se
faça tal enunciado. Mas isto é voltar, de maneira
circular, ao argumento inicial que ora questionamos!
O homem domina a escrita? É necessário não deixar-se
iludir por esta tentadora candidata à característica
da supremacia humana. Lembremo-nos de que o homem
“primitivo” não dominava a escrita, exclusivamente
do homem civilizado. E mais uma vez estamos a
confundir “homem” com “homem civilizado”, confusão
esta muito perigosa do ponto de vista biológico,
pois, a partir dela, o homem “primitivo” não seria
mais homem e poderíamos considerar naturais todas
as conseqüências da civilização.
Quando comparamos o homem civilizado com
o homem “primitivo”, encontramos a causa para muitos dos problemas
que afligem a moderna civilização. Em primeiro lugar, é preciso que
fique bem claro que, do ponto de vista biológico, não há nenhuma
distinção importante entre o homem atual e aquele que colonizou a
Europa há cem mil anos, vindo da África. Ou seja, se o filho de um
homem de Cro-Magnon, ao nascer, fosse transferido ao mundo moderno, num
meio que lhe propiciasse chances, poderia perfeitamente tornar-se um
conceituado astrofísico, bem como qualquer criança moderna,
transferida 1aquele meio, adaptar-se-ia com igual facilidade. Isto deve
fazer com que se tenha cuidado ao menosprezar o homem “primitivo”.
Além disso, continuando nossa comparação, podemos ver que as
civilizações modernas e antigas são pródigas em episódios como
comércio de escravos, prostituição, homicídios, estupros, hierarquia
de classes, etc, que não são encontrados freqüentemente entre os
povos “primitivos”. Estas chagas da civilização permitem trazer à
tona também o grande paradoxo dos tempos modernos: acumulamos uma
fabulosa quantidade de conhecimentos e, no entanto, não há um só fato
que todos nós, sete bilhões de seres humanos, saibamos em comum.
Embora haja bons candidatos a tal, como o fato de que a Terra orbita o
Sol, ou de que os mamíferos se reproduzem sexualmente, ou que se faz
fogo, tais conhecimentos não são compartilhados por toda a humanidade.
Ao longo da história, criamos uma diversidade em que o indivíduo
humano foi perdendo intimidade, o sistema social no qual ele estava
inserido foi-se tornando mais importante do que o próprio grupo de
indivíduos onde ele vivia. Ao longo de uma vida, pode-se conhecer com
maior ou menor intimidade um certo número de indivíduos, mas a legião
que é abarcada por um sistema permanece inexoravelmente anônima. E é
então que o sistema assume a identidade perdida pelos indivíduos.
Todos são instados a trabalharem em prol da manutenção do sistema,
embora as normas vigentes neste sistema muitas vezes possam ser
questionadas.
Já a situação do homem “primitivo”
e dos outros animais é bem diferente. As sociedades “primitivas”
são as únicas que possuem uma cultura milenar que é transmitida de
geração à geração. O mesmo ocorre com outros animais. Sabemos que
parte do conhecimento de todos os animais, inclusive o homem, é inato,
ou herdado de seus ancestrais, e que outra parte é aprendido por
transmissão cultural. Assim, os filhotes de aves não precisam aprender
a escancarar o bico quando os pais chegam ao ninho, nem os filhotes
humanos precisam aprender a chorar quando têm fome. Mas os filhotes dos
felídeos precisam aprender a ficar contra o vento a fim de emboscar a
presa e os humanos precisam aprender a fazer fogo e andar de bicicleta.
E a comparação leva a uma conclusão óbvia: qualquer espécie animal,
exceção feita ao homem, possui um repertório milenar de conhecimentos
indispensáveis que não são herdados, mas sim transmitidos dos pais
para os filhos, geração após geração, constituindo-se na cultura da
espécie.
A conclusão paradoxal é que o homem é
o único animal que não possui uma cultura milenar, a menos que
queiramos admitir que o homem “primitivo”, sim, possui, mas que o
homem civilizado não possui, o que é verdade do ponto de vista
biológico, embora não seja nem um pouco lisonjeiro. Portanto,
considerar o homem como o ápice da evolução significa cair numa
arrogante armadilha cultural. Do ponto de vista biológico, a
civilização não é uma característica intrínseca do h. ela é muito
mais um resultado fortuito do processo de superpopulação. São
conhecidos os resultados trágicos em manter-se em cativeiro
populações experimentais de ratos. E os próprios animais mantidos em
cativeiro doméstico, laboratorial ou em jardim zoológico,
freqüentemente exibem normas de comportamento alterado. O que pensar,
então, de animais humanos, mantidos em cativeiro nas grandes cidades da
civilização moderna? O educador de Biologia precisa ter estas
questões em mente para não se
deixar iludir pela aparência de normalidade da civilização.
Questões fundamentais, como o conflito entre o homem e a civilização,
a necessidade de um controle populacional, a inexistência de valores
culturais comuns a toda humanidade, a forma como esta lacuna é
preenchida pelos diferentes sistemas sociais, a falta de liberdade
individual, devem ser debatidas pelo educador de Biologia junto à seus
alunos.
A complexidade das Ciências Biológicas
em seus inúmeros ramos abarca as Ciências Físicas, Químicas e
Matemáticas e o educador de Biologia necessita conhecer ao menos um
mínimo suficiente destas áreas para poder abordar questões correlatas
à Biologia, como, por exemplo, a origem da vida.
O educador de Ciências Biológicas
precisa estar preparado para abandonar o mito de que a evolução
significa um progresso do mais primitivo para o mais superior.
Evolução significa alteração nas freqüências genéticas de uma
população, na medida em que uma característica signifique maior
adaptação ao seu meio. Um organismo muito bem adaptado ao seu meio
não pode ter condições de sobreviver em outro meio ou no seu
próprio, caso este sofra alterações. Assim, cada organismo está
muito bem adaptado a seu modo de vida, não se justificando a visão
comum nos livros de Biologia, que começam a tratar dos organismos “inferiores”,
como protozoários, vão gradualmente “subindo” na escala evolutiva,
até atingirem o seu “ápice” com o homem civilizado. Como
artifício pedagógico pode ser válido, mas já que os protozoários
atuais estão tão afastados dos primeiros organismos quanto nós, isto
não passa de um artifício! Muitas vezes o homem ainda é representado
calçado, bem vestido nos rigores da moda, de cabelo e barba aparados e,
não raro, de relógio e sentado à sua escrivaninha, seu habitat. Um
organismo não é “melhor” nem “pior” do que outro. Uns podem
estar mais ou menos adaptados a um determinado conjunto de condições,
muitas vezes instáveis, mas isto é bem diferente.
Quando o homem puder despir-se da
arrogância de considerar-se proprietário do mundo, então, e só
então, poderemos falar dos direitos à vida, não só do homem, mas de
todos os outros organismos. Isto não significa dizer que não mais se
utilizem animais na alimentação, mas que os organismos, vivendo em
seus ambientes naturais, tenham garantido o direito de não serem
destruídos de forma arrogante. A arrogância manifesta-se ao jogar um
papel no chão, com a mesma impunidade com que jogam ,milhões de
toneladas de veneno no ambiente ou com que se devastam ecossistemas
inteiros, simplesmente porque o direito à prioridade privada isto
permite. São direitos conferidos por leis em vigor em sistemas sociais
criados por homens. Por homens sem uma cultura milenar.
Finalmente, para os que ainda não estão
convencidos e se julgam representantes dos herdeiros e proprietários do
planeta, é bom salientar que a vida é quase tão antiga quanto a
Terra, registrando admiráveis quatro bilhões de anos. E que, dividindo
esta história em mil etapas, o homem só aparece em seu último
episódio. E mais, ao dividir a evolução humana desde a sua origem em
novos mil fragmentos, a civilização só aparece no último. Sabemos
que, como a Terra, os demais planetas do Sistema Solar e o próprio Sol
compartilham uma origem comum. E que, desde a sua origem, o Sol já
gastou a metade do seu combustível nuclear, restando a Segunda metade
para seus processos termonucleares e, consequentemente, para a vida na
Terra. Diante deste singelo fato, duas posturas são possíveis:
-
A arrogância de valer-se dos direitos adquiridos de “proprietário
do planeta”, sob a cumplicidade dos sistemas sociais, para
aproveitar ao máximo tudo o que este planeta nos puder fornecer,
uma vez que “não vamos viver o suficiente para ver o final do
processo, de qualquer forma”;
-
A felicidade de poder
ser testemunha do maravilhoso fenômeno da ocorrência de vida na
superfície de um planeta e a consciência de que as relações de
interdependência, envolvendo todos os organismos do planeta, são
delicados e há necessidade de preservar esta teia, admirá-la e,
sem destruí-la, passá-la aos que virão.
Roberto André dos Santos
Educador na Escola Municipal Francisco Greiss, em Sapucaia do
Sul, e Mestre em Genética |