Educando
para a Cidadania
Os
Direitos Humanos no Currículo Escolar

FUNDAMENTOS SOCIOLÓGICOS DA
EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA
Não há pretensão, aqui, de esgotar o
tema. A função do presente texto não é aprofundar teorias
sociológicas ou realizar abordagens academicistas que nos coloquem
distantes da realidade em que vivemos. Estudos desse estilo, certamente
os encontramos em bibliotecas ou livrarias. Nosso propósito, ao
contrário, é suscitar um debate democrático e solidário sobre a
realidade, apontando algumas pistas rumo a metodologia que possam
provocar mudanças pessoais e coletivas, gerando comunhão e
participação, na formação de uma sociedade autônoma, dona de seu
destino.
Tenho certeza que podemos pensar as
coisas pelo menos sob dois enfoques. Ou pensar as coisas da educação,
da realidade, do mundo, do ser humano, da cidadania, da vida, do ponto
de vista funcionalista-positivista, ou pensá-las
dialética-histórica-criticamente. Aqui entra o papel da reflexão os
Fundamentos Sociológicos da Educação. Aprofundar essas duas
concepções ou teorias em sala de aula é fundamental. Mais: buscar
caracterizar como se dão, na prática, estas duas teorias é questão
emergencial. Aprofundemos um pouco estas questões. O que significa uma
sociedade adestrando seus cidadãos para a assimilação, na prática,
do discurso positivista? As coisas estão postas, a educação está
posta, é assim que correrá o seu curso. A sociedade está organizada
de maneira tal, que tudo o que acontece, acontece de modo funcional. O
ser humano vai internacionalizando, introjetando esta concepção de
mundo. Dela vai decorrer uma prática submissa, intimidada, de perda de
identidade, de perda da historicidade, de moralismo exacerbado e
autoritário, repressivo e opressivo. A Escola cumpre o papel de censor,
reprimindo, punindo, suprimindo os sonhos e as buscas.
Uma abordagem séria sobre nossa
realidade nos permitirá perceber que o modelo sócio-político que
temos implantado é um modelo fundamentado no “caldo” ideológico do
positivismo. Aliás, não é difícil imaginar e entender a razão
histórica para tantos regimes de extrema-direita se terem instalado na
América Latina contemporânea. Não é acaso a utilização de um
aparato repressivo, seja ele jurídico ou militar, como forma de
legitimar o modelo que se pretendia impor ao Continente, opondo a “lei
da força” à “força da lei”. Já se disse, com muita
propriedade, que, em toda a dimensão política, existe a ação
pedagógica; que toda a dimensão pedagógica subjaz uma ação
política. A ausência de um caráter crítico da organização e da
participação, a apatia e o conformismo são sinais claros do modelo
que busca impedir o acesso do cidadão à sua plena maturidade
política, prática marcada pela liberdade. Penso que temos aqui um
grande tema de discussão em sala de aula. Por que não estudar, com
nossos educandos, temas como: alienação da juventude, opressão x
cidadania no contexto brasileiro e Latino-americano? Por que não
aprofundar, com eles, as saídas que os povos vêm encontrando rumo à
sua maturidade? Quando trazemos para a sala de aula Movimentos pelos
direitos da mulher, da cultura negra, de defesa das nações indígenas,
de organização do meio popular, de organização do meio estudantil,
estamos apontando para novas saídas, para uma sociedade que quer tomar
a história na mão e ter plena consciência da cor do seu destino.
Estes estudos podem perfeitamente ser feitos a partir de pesquisas, de
painéis, de seminários, de contato concreto com a realidade de cada
segmento. Quando a isso nos propomos, estamos fazendo sociologia? Se
quisermos uma resposta acadêmica, diria que não. Se buscamos, porém,
com nossos alunos, o estabelecimento da relação entre a função da
sociologia e da escola como processo de socialização, de formação da
cidadania, não temos como deixar de caminhar rumo a esta postura de
trabalho.
São perguntas significativas, das quais
não temos o direito de abdicar: a quem queremos formar? Para quem
formamos? Que horizontes descortinamos? Que visão de realidade temos?
Que interpretação da sociedade fazemos? Espontaneísta? Crítica? O
que buscamos com nosso fazer pedagógico?
Na verdade, nossa prática
didático-pedagógica, explícita ou implícita, afirma, queiramos ou
não, toda nossa concepção de sociedade, de política, de mundo. Na
perspectiva de um currículo emancipador, a sociologia da educação
torna-se vital para provocar uma discussão científica, que faça uma
interpretação competente, sistemática e orgânica da realidade, que
possa permitir que as demais disciplinas de um curso de formação de
magistério, como as didáticas, possam apontar para saídas de um
projeto educacional formador de cidadania.
Por isso, a Sociologia da Educação se
insere nos Fundamentos da Educação, fundamentos que nos lembram: base,
referência, paradigma. Olhando para a prática de todos nós,
educadores brasileiros, penso que nos falta, ao fazermos educação,
olhar para o homem e olhá-lo num processo de relações afetivas,
agindo, interagindo na sociedade. Acredito que somente quando
assumirmos, na prática, o específico que nos cabe fazer na
transformação da sociedade, seremos partícipes e co-autores da
Utopia. Cabe-nos ser competentes didática e pedagogicamente. Esta é a
nossa função, esta é a nossa contribuição ao mundo do trabalho,
onde também se dá a formação do homem como sujeito de direitos,
sujeito de dignidade, construtor da solidariedade. Aqui, apontamos para
uma outra dimensão essencial em nossa prática. Magistério, bico ou
profissão? Na educação das séries iniciais, onde se encontra parte
dos meus alunos, o educador não pode escapar desta discussão. Como
falar em Direitos às crianças, como apontar a liberdade e a dignidade
como valores de vida, se não estou convencido desta opção na minha
própria vida? Se a Escola é lugar onde se fazem e se produzem
relações humanas, será nesse local que se gestará a mudança, a
vida, a liberdade, na vivência do cotidiano. Caso contrário, haverá
de ser um espaço onde começaremos a perpetuação da opressão, da
desigualdade, da exploração, da omissão... não existe neutralidade.
Ou somos a favor do homem, ou seremos a favor de ideologias, de sistemas
opressores que se apropriarão do destino deste homem em nome de leis,
tradições, estruturas.
Educar o social. Deixar que o social
interpele e questione o educando. Educação e cidadania são coisas que
convergem. Educar o cidadão para que seja autor de seu destino, para
que assuma a sua dimensão histórica, cuidando da vida, da sua, dos
outros, de todos, numa dimensão horizontal. Cidadania: dizer não à
repressão, dizer não à escravidão, dizer sim à liberdade de
expressão, à vivência da solidariedade, à construção comunitária
de uma experiência de prática política de autonomia, de
reciprocidade, de cooperação e de responsabilidade. Quando promovemos,
em sala de aula, um seminário sobre conjuntura nacional, aprofundando
questões angustiantes da realidade brasileira, quando somos capazes de
analisar suas causas e efeitos, quando somos capazes de discernir
saídas, estamos discutindo e aprofundando a compreensão da sociedade,
suas relações, a questão do poder, a necessidade da mudança. É
impossível discutir cidadania, pensar a realidade globalmente, sem
pensar e discutir a realidade da fome, da saúde, das condições de
trabalho...
Urge que os Fundamentos da Educação
estejam comprometidos com uma proposta que coloque a defesa da vida como
valor maior da nossa ação pedagógica. É preciso pensar o homem como
sujeito de direitos: direito à alimentação, à saúde, ao trabalho,
ao lazer, à expressão política, ao salário justo, direito à
habitação, à livre expressão, à livre organização, à escolha
livre de um credo ou não... Estes são caminhos para a formação da
consciência e de uma prática solidária. Na minha experiência pessoal
de formação de adolescentes, futuros educadores, tenho tido o cuidado
e a insistência de cultivar as chamadas atitudes de fundo, a tão
fundamental sensibilidade, a solidariedade, a bondade. Somente quando
mergulhamos na ótica de uma educação pelo “mais”, conseguiremos
provocar uma atitude que conduza ao inconformismo e à mudança.
É preciso oportunizar situações
concretas em sala de aula para este tipo de vivência. Nem sempre nos
damos conta de que, embora tendo um conteúdo crítico, nossa prática é autoritária e domesticadora. O cultivo destas
atitudes de fundo vai se dando na forma de como organizamos o espaço em
sala de aula: democrático, gerador de comunhão e participação; e no
modo como nos relacionamos no cotidiano com nossos educandos. As
estratégias de como decidir cooperativamente os critérios norteadores
de avaliação (temida e odiada), a forma de como planejamos o trabalho
e o modo de como socializarmos e envolvemos cada aluno são maneiras de
respaldar o discurso explícito manifesto numa prática implícita.
Certamente não estou dizendo nenhuma novidade. Pelo menos em algum
momento já pensamos nisso. A
verdade, porém, é que não fazemos isto. E nossos alunos dos
cursos de magistério, ao saírem, continuam a repetir as mesmas
práticas domesticadoras e bancárias, verticalistas, porque
contribuímos também para isto. A Sociologia da Educação deve
propiciar a percepção da relação intrínseca entre a prática da
liberdade – expressão da libertação – e o projeto
sócio-político que a referencia e a norteia. É preciso discutir e
aprofundar o mito de que as mudanças sociais dependem da Escola. Hoje,
é preciso rever esta posição. Uma sociologia positivista até que
ajudaria a sustentar este mito. Não queremos isto. A Escola tem o seu
papel no processo de mudança, mas os meios de socialização são os
mais variados possíveis (família, igreja, partidos, sindicatos, meios
de comunicação...). onde existem relações humanas se faz educação.
Nossa prática educativa se faz a partir de determinadas teorias que
ajudam a explicar e a entender a realidade. Logo, o saber e a forma como
o produzo ajudam a explicitar o horizonte da sociedade que queremos
construir.
Posso fazer, em minha prática cotidiana,
levantamentos de dados, pesquisas, estatísticas, gráficos, tabelas.
Isto tudo pode me ajudar a fundamentar uma análise sobre o homem, sobre
o que é ele, como se dão suas relações, em que sociedade vive. Tudo
isto deve servir para que possa discutir e aprofundar questões de
relevância, como, por exemplo: o que torna a região de Pernambuco a
terceira do mundo em mortalidade infantil? O que determina a existência
de 45 milhões de menores carentes? Como explicar que, de cada mil
crianças que ingressam nas séries iniciais, apenas duas concluem a
universidade, ingressando no mercado de trabalho? Como explicar um país
que organiza um estatuto da criança e do adolescente e convive com a
impunidade dos “esquadrões da morte”?
Posso estudar as taxas de natalidade, de
mortalidade... Se não fizer uma abordagem e uma interpretação sobre
os mesmos, isto tudo vira mera curiosidade, conhecimento diletante ou,
em alguns casos, discurso panfletário.
Como educadores, não podemos incorrer em
abordagens, simplistas e lacaias do tipo: o que aí está, assim deve
ser e deve ser aceito, pois esta é a ordem das coisas.
É interessante aprofundar com os nossos
alunos esta análise do mundo funcionalista. Podemos perguntar-lhes: que
conseqüências traz para a vida tal abordagem? Que visão de cidadania
explicita? Para que horizonte aponta? O funcionalismo na educação
acelera o abismo entre os que sabem e os que não sabem, os que pensam e
os que não pensam, os que organizam e os que executam. Não passa por
aqui o caminho do sonho, da Utopia, da esperança. Lembremos que as
coisas não estão aqui simplesmente. Devem ser analisadas. Deve-se
descobrir sua dimensão histórica. O homem é um sujeito histórico. A
educação faz parte deste processo. Libertar é despertar consciência
crítica. Somente assim avançaremos rumo ao futuro e à mudança. Ora,
neste enfoque, a escola deve ser vista como uma orquestra que executa
uma canção de amor e de paz. Superar a “mesmice”, o continuísmo”,
o tecnocratismo, o cientificismo, o psicologismo, a burocracia e o medo,
exige respostas inovadoras e corajosas. VIDA, penso ser a palavra que
define um novo horizonte. Por que não provocar em sala de aula um
aprofundamento a respeito das visões “conteudísticas”, tecnicistas
e libertadoras da educação?
Não se trata apenas de provocar esta
discussão, mas de caracterizar todos os elementos que interagem num
espaço formativo chamado escola. Nesta última vertente, a da
educação libertadora, gostaria de dar ainda mais alguns exemplos de
como aprofundar o surgimento de uma consciência da cidadania. O que
está presente no dia-a-dia presta-se a isto. As canções, por exemplo,
incontáveis canções, sejam elas latinas, populares ou nativas,
prestam-se a isto. Podemos analisar a questão da terra, fazendo uma
pesquisa a respeito dos festivais de canções nativas, regionalistas,
descobrindo, em seqüência histórica, como seus autores vão crescendo
na consciência da função social da terra. Assim, também podemos
analisar “Morte e Vida Severina”. Podemos pensar o êxodo rural
através da leitura de Graciliano Ramos, em “Vidas Secas”... Podemos
aprofundar a questão da violência urbana e do menor a partir do filme
Pixote... Podemos resgatar a importância da dignidade humana na
América Latina debatendo incontáveis documentários e filmes, como,
por exemplo: “ A História Oficial”, “Prá Frente Brasil”, “Chove
sobre Santiago”, etc... Podemos debruçar-nos sobre a questão da
Mulher, da Prostituição, da Gravidez na Adolescência, da Sexualidade
Infantil... Podemos fazer tudo isto numa perspectiva histórica, na qual
o homem é agente e construtor. Provocar a libertação exige recursos
didáticos que nos aproximam da realidade, como forma de explicitar as
teorias. Nosso espaço didático-pedagógico é muito vasto e muito
rico... Quanto mais nos aproximamos da realidade, quanto mais ela
estiver presente em nossa sala de aula, mais e mais estaremos
contribuindo para formar pessoas que pensam a educação.
Por fim, penso que a nós, educadores,
cabe assumir em definitivo o papel do artista, do poeta, do cantador da
palavra que há em nós.
Há muitas lutas por fazer... A defesa da
universalização do saber, de uma escola de qualidade para todos, da
clareza em nosso projeto sócio-político, da criação de canais de
comunhão e participação, da democratização de escola e do acesso à
mesma. Já é tempo de assumir este papel de discutir a cultura e de
formar a cidadania. Formar a cidadania é pensar no povo, organizar o
social. Com a história na mão, mangas arregaçadas no campo ou na
cidade, em todas as idades, sigamos despertando, sensibilizando,
acordando o sonho que há em cada cidadão. É preciso olhar para
frente. Lá está a saída, o novo, o diferente. As perguntas estão
aqui. As respostas, as encontraremos juntos, criativamente.
Ao iniciar este artigo, falávamos de
duas teorias Sociológicas. De um lado, a que absolutiza o que está
pronto, sem pretensões à
transformá-lo. De outro, a que pensa o mundo dialeticamente. A
história exige de nós um posicionamento entre estas duas. Eu já me
decidi pela Segunda, porque creio que a vida não está pronta. Porque
ela é dinâmica , um processo que se faz a muitas mãos e de muitas
formas. Creio que deva ser o nosso credo. Acalentar o h. humanizar o “não
homem”. Ser.
Carlos
Alberto Barcellos
Educador nos Colégios
Anchieta e Sévigné em Porto Alegre, especialista em psicomotricidade e
Assessor da Anistia Internacional no Programa Nacional
de Educação para a Cidadania -
PRONEC. |