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Educando para a Cidadania
Os Direitos Humanos no Currículo Escolar

CIDADANIA E LINGUAGEM

 

Estudos recentes tem chamado a atenção para a relação entre o uso da linguagem e o exercício da soberania. Esse interesse se prende, por um lado, as problematizações que a lingüística tem apresentado com respeito à concepção, ensino e aprendizagem da língua, e por outro lado, à tomada de consciência como cidadãos por expressivos segmentos populares.

Assim, se concebemos que o homem se constitui pela interação com outros homens e nesse interagir ele produz cultura, então, para nós, cultura não é algo pronto, definitivo. É algo que se faz, se constrói a cada relação. Da mesma forma, a linguagem, que é uma manifestação cultural, é algo que nós, falantes, produzimos a cada momento, de acordo com nossas necessidades.

Ver o homem como responsável pela sua realização, em parceria com os demais, criando nessa interação suas crenças, suas leis, suas verdades, sua cultura, traz, na realidade, inúmeras implicações. Ter essa consciência, sobretudo se não for só teórica, significa mexer com acomodações apaziguadas, pelo senso comum e legitimadas por “autoridades”; significa questionar essas autoridades, muitas vezes representadas por instituições refratárias à crítica, “proprietárias” do saber e da verdade.

Vejamos o caso da linguagem. Como já explicitamos, inserida na cultura, a linguagem é produto de um processo internacional histórico, reinventada sempre que a usamos. Essa reinvenção é real. Apesar de imaginarmos que a língua é algo pronto, sistematizado, cabendo a nós aprendê-la, apropriar-nos dela, na verdade não é bem assim. Até porque é impossível introjetar signos lingüísticos, é impossível transferir com precisão jogos de representação simbólica. Ademais, a nossa fala averba as interações que temos com a realidade, abrindo o leque dos símbolos lingüísticos.

No entanto, a linguagem não é apenas resultado da interação social, senão também condição para a própria condição humana.

A propósito, é significativa uma das passagens de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, onde Fabiano, assim como a família e o meio físico que os rodeia, retratam o próprio título da obra. Neste contexto físico e social, o protagonista da história, preso, sequer consegue elaborar seus pensamentos (que coincidiriam com sua defesa) diante do soldado amarelo.

“Fabiano também não sabia falar. Às vezes, largava nomes arrevasados, por embromação. Via perfeitamente que tudo era besteira. Não podia arrumar o que tinha no interior. Se pudesse... Ah! Se pudesse, atacaria os soldados amarelos que espancaram as criaturas inofensivas”.

Se Fabiano conseguisse “arrumar o que tem no interior” (e arrumaria isso por meio da linguagem), ele teria poder: ele “atacaria os soldados amarelos que espancam as criaturas inofensivas”. Isto significa que a linguagem dá poder de argumentação, poder de leitura e explicação da realidade...  )Claro que não se trata do poder de polícia). Sem esses poderes, somos menos cidadãos e, como Fabiano, temos menos possibilidades de sermos livres.

Quando o texto diz que “Fabiano também não sabia falar” não está se referindo ao seu dialeto, porque esse ele sabia, mas à variante lingüística culta, urbana. Então, no nosso contexto social, não é o simples expressar que confere poder, prestígio, mas o expressar-se de acordo com o estabelecido como norma, social e historicamente imposta pelo segmento que domina política e economicamente a sociedade.

Aqui nos deparamos com um dos problemas cruciais no ensino da linguagem: o papel da escola na formação do cidadão quanto ao aspecto lingüístico.

Convém retomar a concepção exposta no início deste texto de que a língua é uma construção social. Seus significados têm, portanto, a ver com suas condições de produção. E toda essa construção simbólica a criança leva para a escola. São seus valores, suas crenças, suas falas, seu medo. Isso é tudo para ela.

Ao ingressar na escola, ela fala com descontração, conta suas histórias com toda expressividade, organiza lingüisticamente suas experiências e seus sonhos. Leva tudo para a escola, porque tudo isso foi construído por ela, tem significado, é ela.

E a escola aproveitará esse entusiasmo, ampliando o campo de interação da criança com maior autonomia sobre a realidade? Em síntese, possibilitar-lhe-á a cidadania? As pesquisas realizadas em escolas brasileiras demonstram que pouco disso acontece. Ao invés disso, ridiculariza-se a linguagem da criança e nega-se a sua cultura. Assim, ainda antes de ensinar uma nova língua – a língua depositária dos textos escritos, da cultura e da literatura, imprescindível a todo cidadão – antes de tudo isso, violenta-se toda uma construção simbólica da criança num acintoso desrespeito a uma cultura cuja única culpa é ser diferente daquela que ela, escola, representa. Com isso, não considera todas as linguagens que a criança traz de seu mundo, proibindo que ela seja dona de seu próprio discurso. Isto tem, sem dúvida, um efeito arrasador sobre o educando. Tanto assim que, após alguns anos de escolarização (há quem fale em domesticação), o aluno “esqueceu” tudo. Não gosta mais de escrever, não sabe mais falar, detesta Português. Tornou-se contrário, não mais organiza seu mundo, muito menos cria outros. De lingüisticamente criativo, a escola transforma-o num alienado lingüístico.

Com sua visão dogmática sobre a linguagem. A escola aniquila o sujeito ao impor o professor como o que domina a linguagem, desconsidera o contexto ao cristalizar os significados e acaba matando a língua, ao vê-la apenas como estrutura pronta e definitiva.

Ante tal quadro o que fazer?

Primeiro e antes de tudo, urge que o professor se assuma como cidadão, que ele próprio tenha a consciência da sua cidadania e conhecimentos dos pressupostos teóricos que fundamentam sua prática pedagógica. Só seu idealismo, sua boa intenção não são eficientes. Há professores que dedicam toda uma vida reforçando preconceitos e legitimando um sistema de ensino da linguagem que descaracteriza o sujeito como cidadão.

Com essa consciência, questões como “ensinar ou não a gramática?”, “língua padrão ou popular?”, geradoras de polêmicas, perdem praticamente o sentido. Os problemas são outros e questionam “se estou ou não favorecendo aos meus alunos dizerem a sua palavra” e “como devo fazer para que eles se assumam como sujeitos de seus discursos”. As metodologias, as estratégias e os conteúdos, vão depender das respostas que dermos às últimas perguntas.

Para nós, só a interação construída em sala de aula, num “encontro em que se solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos, endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado” (Paulo Freire), numa relação em que professor e aluno se respeitam no direito que cada um tem, sem opressão de um sobre o outro, sem posse antecipada da verdade e do saber, de buscar pronunciar o mundo, para nós essa interação dialógica desafiadora de sujeitos que constróem os seus discursos criará uma nova escola: uma escola livre e cidadã.

Arcanjo Pedro Briggmann

Educador no Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Mestre em Educação

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