Educando
para a Cidadania
Os
Direitos Humanos no Currículo Escolar

EDUCAÇÃO MATEMÁTICA
COMO FORMAÇÃO
NECESSÁRIA
À CIDADANIA
Na busca desinteressada da verdade, no
estudo incessante para compreender a realidade, Descartes, ao negar
tudo, chegou à afirmação primeira e maior princípio de sua
filosofia: “Penso, logo existo”. As decorrências são implicações
lógicas que se podem deduzir mesmo que, em muitos momentos, tenham
mesclado teorias sobre a natureza do mundo com doutrina ética ou
político quanto à melhor maneira de se viver. Se essa tendência (a
negação de tudo) influenciou de Platão a William James, também Santo
Tomás e Kant negaram seus antecessores ao produzir suas próprias
teorias sobre as “provas” da imortalidade da alma, mesmo que para
isso tivesse que falsificar a lógica.
Não pastasse isso, as indagações sobre
a condição humana e o mundo levaram Copérnico e Kepler a duvidar da
noção de um universo finito e geocêntrico – noção essa conservada
pelos homens desde tempos remotos -, fazendo, dessa forma, o
conhecimento humano do “mito” e “magia” à compreensão da
natureza, descobrindo, criando e usando as referidas indagações e
descobertas na busca de maior enriquecimento e prazer.
As ciências têm evoluído, desde os
princípios da humanidade, pelos mais estranhos caminhos e, em todas as
etapas históricas, a filosofia tem influído nas elucubrações
especulativas do conhecimento científico, que, por sua vez, tem feito
avançar todo o conhecimento humano.
“A teoria da relatividade e a mecânica
quântica, a cosmonáutica e a energética nuclear, a radioeletrônica e
a cibernética, a química dos polímeros e outros ramos da ciência,
não só mudam o panorama científico do mundo, como também transformam
radicalmente o próprio fundamento técnico da vida da sociedade”.
Entremeada na base de todas as ciências,
a matemática – palavra de origem grega que significa “ciência que
ensina” – surgiu da necessidade de se entender e saber lidar com o
mundo. Desde a Aritmética, a simples arte de contar, passando pela
álgebra, geometria, até a astronomia, buscando, quem sabe, entender
outros planetas e civilizações, a trajetória é permanente. Se o
mundo era povoado de “deuses” e “demônios”, o homem aprendeu a
compreendê-lo e dominá-lo e hoje os anseios nos remetem para além do
universo e do próprio homem como ser normal.
Mesmo sem perceber, a necessidade nos
coloca num convívio íntimo e permanente com a lógica da matemática.
Senão, vejamos:
-
A matemática das probabilidades nos indica parâmetros, desde os
jogos de azar aos preços de uma apólice de seguros de vida ou às
pesquisas de opiniões eleitorais;
-
As estratégias militares de guerra, a curva de queda de uma
bomba para atingir o alvo ou raio de ação dos efeitos químicos de uma
explosão, são matematicamente mensuráveis;
-
Os olhos azuis, castanhos ou verdes, os cabelos lisos ou crespos,
a herança genética que produz tal ou qual característica passam
necessariamente pelas experiências matemáticas de Mendel;
-
A música, traduzida nas expressões sonoras de inteiros ou
frações de um comprimento de corda, desperta na humanidade sentimentos
de amor, desejo, revolta, protesto, busca ou prazer ao longo dos tempos;
-
A escolha da marca de um carro com potência “X” é uma
questão matemática;
-
O erguer de uma parede exige o domínio das dimensões, do
equilíbrio;
-
No plantio de alimentos, a quantidade de adubo e a irrigação
necessária definirão o êxito ou não do empreendimento;
-
As posições dos jogadores numa partida de futebol, o ângulo
preciso para se chutar uma bola ao gol, a distância adequada para o
arremesso de uma bola ao cesto no basquete, a quantidade de calorias
necessárias para se manter a forma física, são condicionantes para a
conquista da vitória;
-
A velocidade necessária para se percorrer determinada distância
sem se atrasar para o encontro marcado, como fazer uma refeição para
cinco pessoas a partir de uma receita para quatro, onde colocar os
móveis ou um quadro na parede para que seja esteticamente agradável
aos olhos, adequado ao espaço e confortável à utilização; isto tudo
indica que, sem perceber, aplicamos a lógica Matemática ao cotidiano;
-
O trato com o saldo bancário, a decisão por aplicar em
poupança, a conferência da correção ou não do cálculo de nossos
salários, são questões com as quais nos defrontamos que, quando
tratados de maneira inadequada, podem nos trazer surpresas ao final do
mês.
Muitos outros, na verdade, seriam os
exemplos que mostrariam o quanto a lógica Matemática está presente em
nosso cotidiano. Mas não foi por acaso que o homem buscou desenvolver
esta Ciência. Com o avanço das descobertas, ele percebeu que
necessitava poder expressar e sintetizar logicamente os fenômenos que
observava, sendo inclusive condição para que pudesse prosseguir suas
investigações. Desta forma, podemos afirmar, com toda segurança, que
a matemática foi e continua sendo o núcleo propulsor do conhecimento.
Se hoje nos parece claro que o mundo se
apóia na ciência, sabemos que esta, necessariamente, se expressa e
evolui pela linguagem e lógica matemática. Se em outros tempos era uma
questão de poder sintetizar o que se observava, o ritmo da humanidade,
neste momento, exige que o homem seja capaz de condensar o movimento da
vida em expressões lógicas a serem introduzidas nos computadores. Daí
sairão as soluções, projetos, simulações e toda sorte de resultados
para o estudo sistemático das complexas relações e necessidades
sociais.
Pode parecer simples e óbvio que tudo
isto deva ocorrer. Porém, mesmo que o nosso cotidiano esteja permeado
de aplicações da lógica matemática, a realidade nos tem demonstrado
que o seu estudo gera, hoje, na quase totalidade das pessoas, imutável
sentimento de pavor e de frustração. Inevitável é indagarmos o papel
que a atividade escolar estará cumprindo nesse processo de desestímulo
frente ao mundo quando deveria ser uma atividade catalisadora para o
desenvolvimento do indivíduo em sua plenitude, buscando fazê-lo
apoderar-se da vida e ajudando a definir seus rumos como sempre buscou
fazer desde os primórdios da humanidade
Mesmo entendendo que não poderíamos
analisar a questão mais no âmbito da atividade social, pois
acreditamos que não é sem razão que a escola, hoje, mesmo sendo
exigência social indispensável a qualquer um de nós, na maioria das
vezes pouco ou nada tem a ver com a realidade da vida de seus
indivíduos. É comum vermos estudantes desenvolvendo no seu dia-a-dia,
com exímia habilidade, cálculos, aplicações percentuais,
mensurações e tantas outras relações lógicas matemáticas, enquanto
na escola são alunos frustados e derrotados ao abordar estas mesmas
questões.
No trato dado à questão educacional em
nosso país, a realidade político-social tem levado aos professores a
reproduzir em sala de aula práticas de ensino caracterizadas pela
passividade frustrante, imposta pelo próprio sistema educacional.
Acreditamos que muitas vezes, mesmo rejeitando intimamente esta
sistemática, muitos profissionais acabam, com sentimento derrotista,
aceitando esses fatos como realidade dada. Percebe-se também que,
freqüentemente, esse fenômeno ocorre devido a uma grande frustração
gerada pelo sentimento de impotência frente às mudanças entendidas
como necessárias e não realizadas. Às vezes é o receio da
desacomodação, outras é o não saber por onde ir.
A efetiva vontade de alterar o que está
posto pode encontrar caminhos em algumas importantes experiências que
divulgam práticas eficientes para o trabalho escolar, a começar pela
alfabetização. Paulo Freire e Emília Ferreiro são exemplos bastante
marcantes neste sentido. Mudar, entretanto, requer vencer as barreiras
criadas pelos padrões atuais e, sobretudo, acreditar no indivíduo e na
sociedade.
Neste aspecto é fundamental destacar a
contribuição trazida por Paulo Freire quando coloca a questão da
liberdade como essencial ao processo de aprendizagem. É preciso
construir uma pedagogia de homens livres e queremos educar para a
liberdade, coisa que só se dará se pudermos traduzir esta vontade em
atos concretos, sem confundir “liberdade” com as concepções
abstratas do liberalismo. Diz Freire, e nisto poderá existir uma
postura que mude os rumos do “ensino tradicional” em sala de aula,
que existir é um conceito dinâmico e que é “a dialogação do homem
sobre seu contorno e até sobre seus desafios que o faz histórico”.
É necessário olhar o indivíduo como um ser que está com o mundo e não no mundo, pois “o homem é um ser de relação e não só de
contato”. São concepções que se apoiam neste entendimento que
poderão modificar a prática que se estabelece nas salas-de-aula. E se
entendemos que mudanças são necessárias, é porque que hoje a escola
muito mais tem servido para coibir o potencial de nossos alunos do que
para cumprir sua real tarefa, que é desenvolvê-lo. O aluno, na
verdade, não deveria ser ensinado.
A sala de aula deveria ser o espaço onde ele, desafiado, buscasse a sua
própria superação numa pluralidade que não se esgota num tipo
padronizado de resposta.
Já desde cedo, quando o convívio
coletivo nas séries iniciais deveria ser uma experiência espontânea
de sucesso, o que ocorre é a frustração, pois o nosso sistema de
ensino está baseado nisto, sendo, na verdade, inadequado e pouco
saudável para a maioria de nossas crianças.
Sabemos que a interação social é
condição necessária para o desenvolvimento intelectual. Mesmo assim,
nossa formação nos ensinou, e assim reproduzimos, que a boa aula é
alcançada quando os alunos estão quietos, sentados e obedecendo o
mestre. Quantas vezes, na condição de alunos – e todos fomos –
questionamos e repudiamos internamente esta opressão a que éramos
submetidos? Entretanto, a grande maioria de nós reproduz esta prática
em sala de aula.
Modificar o que está dado, ou o simples
querer mudar, exige, porém, uma reflexão profunda sobre todas essas
questões. Se o homem sempre definiu os rumos da humanidade, certamente
hoje não será diferente. Cada indivíduo tem uma parcela significativa
neste processo, mesmo que esta parcela seja apenas delegar aos outros a
responsabilidade de definir os rumos, ou reproduzir as coisas exatamente
como elas estão.
O homem,
certamente, já foi bem mais senhor de si quando aprendeu a conhecer e
dominar o mundo. Por ora, no entanto, está cada vez mais envolto numa
espécie de penumbra que despreza o individual, onde carências,
direitos, deveres ou responsabilidades são de menor importância.
A questão é
saber o quanto a nossa prática pedagógica está contribuindo para
perpetuar a negação do direito à cidadania, enquanto gozo da
plenitude dos direitos e deveres civis e políticos do indivíduo.
Os próprios
currículos escolares parecem ter sido construídos com este objetivo.
Os livros escolares são estanques, série a série, na apresentação
dos conteúdos, como se o conhecimento acontecesse em “gavetas”
isoladas.
Minha
experiência pedagógica levou-me a ser muito avesso aos livros
didáticos de matemática que se propõem a ser bibliografia para o
aluno. gostaria de saber quem definiu, por exemplo, que o conteúdo
sobre números relativos deve ser trabalhado na Quinta série do
primeiro grau, pois a quase totalidade dos autores assim o coloca. Outro
exemplo que poderia mencionar é a inadequação, pela artificialidade,
com que a numeração e as operações são apresentadas nos livros para
os alunos. contar é um ato natural, assim como juntar e tirar
quantidades faz parte do cotidiano da criança, desde antes de idade
escolar. Mesmo assim, a forma com que estes assuntos são apresentados,
nas mais diversas bibliografias, consegue realizar a “magia” de
reproduzir dificuldades no raciocínio que o aluno já exercitava
naturalmente.
Por tudo que
já disse neste texto, gostaria de, sem a pretensão dos que se crêem
donos da verdade, defender a necessidade urgente de repensar o trabalho
da matemática nas escolas. Aprendi, lendo Piaget, que desde as séries
iniciais é possível fazer do ensino da matemática um momento de
conquista do conhecimento e realização pessoal, bastando para isso
acreditar no potencial latente da criança e respeitar os seus vários
estados de desenvolvimento.
Na prática,
por exemplo, o ensino de frações e números relativos pode iniciar na
Segunda ou terceira série do primeiro grau. Sem formalismos, mas, no
concreto, dividindo inteiros, comparando quantidades e criando com as
próprias crianças a simbologia adequada a sua compreensão. Saber até
onde avançar com cada criança ou grupo exige conhecê-la, ouvi-la e
descobrir como ela aprende melhor. Trabalhar neste sentido, entretanto,
só será possível quando pudermos nos despregar das bibliografias
seriadas e, ainda, quando ousarmos promover na sala de aula a liberdade
para que as individualidades se expressem.
Um outro
aspecto fundamental é saber lidar adequadamente com o coletivo e o
individual. Estabelecer regras de convivência e respeito, para e pelo
próprio grupo, é condição para que o trabalho possa prosseguir de
modo a que o individual não se desfaça de suas características, ao
mesmo tempo em que o coletivo sobrevive sem cair na anarquia e sem
tornar-se massa manobrável.
Criando um
ambiente adequado e estabelecendo uma maior flexibilidade no trato dos
conteúdos, estamos em condições de poder transformar a sala de aula
num ambiente de descoberta, realização e prazer. Paralelamente,
estamos aprendendo a conviver com respeito, dando um salto qualitativo
para o crescimento do indivíduo e das relações sociais, sem que isto
precise significar investimento material de grande custo, pois a
questão está centrada no método de trabalho.
Não podemos,
ainda, deixar de enfocar a questão do modo de introduzir um determinado
conteúdo junto a um grupo de alunos. na maior parte das vezes, os
conceitos são definidos e inicia-se a sua aplicação em questões
extremamente abstratas, que buscam meramente exercitar o que foi
definido. Este tipo de tarefa tem demonstrado ser completamente
enfadonha para a maioria dos alunos, que acabam buscando apenas “saber
fazer” até o momento da avaliação. A partir daí, o mecanismo
natural é procurar esquecer algo que não faz nenhum sentido. A
realidade com que nos defrontamos, então, é que, a cada série que o
aluno é promovido, ele encontra-se mais defasado dos pré-requisitos
para o trabalho do momento seguinte. Por decorrência, para o próprio
aluno, o trabalho passa a ser frustrante, cansativo e desanimado. Além
disso, os procedimentos que tratam o aluno como objeto e não sujeito do
processo que se dá “de dentro para fora”, e não de modo inverso
Acredito que
um dos problemas reside exatamente na questão do conceito matemático a
ser desenvolvido. Na prática, o conceito é dado pronto, como uma
verdade absoluta que deve ser aceita. Não tratamos aqui dos axiomas,
conceitos como ponto, reta e plano, que são premissas necessárias para
o desenvolvimento de outras formulações. Tratamos, sim, dos demais
conceitos lógicos, matemáticos. Certamente, seremos bem mais
eficientes se pudermos partir de desafios de ordem prática, permitindo
ao aluno chegar à formulação do conceito que se quer trabalhar. Desta
forma, assumindo a postura de quem busca a verdade, o momento de síntese do conceito, além de trazer
a realização da descoberta, assume uma configuração lógica de tal
sorte que passa a ser um aprendizado permanente, servindo certamente de
base sólida para o prosseguimento do trabalho.
É importante
que se diga, também, que, mesmo sem querer negar o idealismo que
possibilita a mudança dos rumos em direção à sociedade que se quer,
a realidade que hoje enfrentamos torna extremamente difícil implementar
esta forma de ação pedagógica.
Analisemos
algumas das razões:
a)
O excessivo número de alunos na sala de aula na quase totalidade
das nossas escolas torna praticamente inviável o diálogo necessário
para a implantação de um trabalho participativo. A organização de
grupos, a disponibilidade dos materiais didáticos, o ambiente
necessário são condicionamentos de difícil solução com os quais nos
defrontamos;
b)
A quase inexistência de bibliografia de apoio para esta forma de
trabalho exige dos professores uma permanente postura de criação de
procedimentos didáticos, que o próprio sistema praticamente
impossibilita, pois não se dedica tempo à pesquisa;
c)
A seriação dos conteúdos é uma exigência social. Muitos
alunos e pais desmerecem aquela escola que não exige o desenvolvimento
de tal ou qual conteúdo na série em que “deveria ser dado”;
d)
Um trabalho de criação desenvolvido numa ou noutra série por
apenas um ou alguns professores é, na prática, frustrante. O efeito
sucessivo deste procedimento pedagógico exige um prosseguimento
harmonioso ano a ano, para que o aluno se defronte com uma permanente
postura de desafio ao conhecimento. Isto é tarefa para toda uma escola
e não somente para alguns professores.
Estas são, a
meu ver, não as únicas, mas algumas questões de extrema relevância a
serem consideradas. Foi a tentativa permanente de superar os problemas
com os quais me defrontava em sala de aula que me levaram a fazer
tentativas noutros rumos. Mas mesmo sendo uma tarefa difícil, gostaria
de reafirmar a necessidade de se buscar e acreditar em mudanças.
Tenho como
princípio que é imprescindível propiciar-se o desenvolvimento
integral do ser humano. Cumpre à escola uma parte desta tarefa e ao
professor de cada disciplina também.
Acreditar que
isto é possível exige uma análise profunda do contexto social em que
hoje vivemos, pois é necessário que se olhe a realidade projetando as
condições econômicas e políticas necessárias para a construção da
sociedade que se quer.
A partir daí,
teoria e prática se fertilizam, numa permanente relação dialética,
buscando a consciência crítica para uma atuação responsável de cada
indivíduo. É preciso assegurar-lhe a cidadania, propiciando o
desenvolvimento de todas as suas potencialidades, tornando-o sujeito de
sua própria história com a consciência de quem se sabe detentor de
direitos e obrigações frente à sociedade.
Se a
matemática é propulsora do conhecimento e a realização da cidadania
tem a carência do saber, certamente, enquanto não resolvemos os
grandes desafios pedagógicos com os quais nos defrontamos neste campo,
não estaremos criando as condições para que se desenvolvam homens
verdadeiramente livres, que determinem com justiça a sua história.
Lígia Kauer
Educadora na Escola Estadual
Rio Branco e no Colégio Anchieta, em Porto Alegre, e ex-Secretário
Geral do Sindicato dos Professores do Estado do RS – SINPRO.
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