
EDUCAÇÃO
POPULAR NO BRASIL: ENTRE A EXCLUSÃO E A INCLUSÃO
Afonso
Celso Scocuglia
INTRODUÇÃO
No
momento em que os efeitos devastadores de uma globalização
tecno-informática são acrescidos às justificativas econômicas
da “necessidade imperiosa” de um ajuste nas contas públicas
para a consecução de um Estado mínimo - crescentemente
descompromissado com o provimento da educação (da saúde, da
moradia, da segurança....) - constatamos, uma vez mais, a
perpetuação “natural” da exclusão social no Brasil.
Avolumam-se os amplos contingentes dos “sem”:
“sem-teto”, “sem-escolarização”, “sem-emprego”,
“sem-terra”, “sem-informação” ..... . O mesmo
governo que comemora a abertura da escola fundamental a todos
- de 3 a 4 % das crianças em idade escolar, segundo estatísticas
oficiais do MEC, ainda não foram à escola -, sabe que
estamos longe de possuir uma escolarização que garanta a
permanência das crianças através de um ensino de qualidade.
Em outras palavras, a escola está aberta a quase todos mas não
garante a sua continuidade e a sua qualidade. Certamente, essa
é uma escola que tende a produzir/reproduzir o fracasso de
grande parte dos alunos provenientes das camadas populares da
sociedade. Tal fracasso conduz à formação continuada de
grandes contingentes de jovens e adultos desescolarizados e
virtualmente alijados da batalha pelo emprego e pela conquista
da cidadania. Como sabemos, esse é um dos elos mais fortes da
cadeia da exclusão social brasileira.
Foi,
precisamente, contra as várias fases (e faces) desse estado
letárgico da sociedade e da educação no Brasil que
batalharam (e batalham) vários movimentos de educação
popular na última metade do “breve século XX” (Hobsbawm,
1998).
É
esse elo excludente que enfocamos neste trabalho e o fazemos
tendo como contraponto as histórias da educação popular no
Brasil-500.
HISTÓRIAS
DA EXCLUSÃO
CONTINUADA E AÇÕES NO CAMPO DA EDUCAÇÃO POPULAR
Desde
a vinda da Companhia de Jesus para prover e dirigir a religião
e a educação no Brasil, em 1549, construiu-se uma das marcas
registradas da nossa escolarização: a exclusão.
A catequese foi, aos poucos, cedendo espaço para a educação
“de classe”, a educação da aristocracia rural. Durante
mais de dois séculos, a continuidade dos estudos para além
da escola “de primeiras letras” só foi possibilitada para
os filhos (não para as filhas) dos senhores “de terra e de
gente” que continuavam sua escolarização para o sacerdócio
ou destinavam-se à Europa em busca da educação superior.
Sabemos que o ensino jesuítico moldou-se perfeitamente a uma
sociedade escravocrata e aos desejos de sua elite. Importante
notar que, mesmo depois da expulsão da Companhia de Jesus
(1759), essa tendência foi mantida.
No
século XIX, já com a presença da Família Real portuguesa,
a ênfase elitista continuou a ser concretizada na implementação
dos primeiros cursos superiores e no ensino médio preparatório
para o ingresso nesses cursos.
Escolarizar-se era sinônimo de “distintivo de
classe”.
Na
Primeira República (chamada “dos fazendeiros”) essa marca
excludente permaneceu. Não obstante, somente nas primeiras décadas
do atual século com o insipiente desenvolvimento industrial e
formação dos primeiros contingentes de operários (e, com
estes as primeiras reivindicações pela escolarização de
seus filhos) é que as elites brasileiras “descobriram”
que havia um “povo” e que este precisava ser escolarizado
- pelo menos nas primeiras séries da chamada educação
fundamental. Afinal, como desenvolver industrialmente um país
de analfabetos?
Durante
o Estado Novo (1930-1945), apesar de todo apelo do populismo
que se construía, pouco mudou. Reformas foram promovidas, o
escolanovismo
projetou-se como solução, mas a parte da população que
conseguiu escolarizar-se por completo continuou ínfima. Fácil
perceber que, por não possuir escolas suficientes ou pela via
da evasão/expulsão escolar, o nosso sistema educacional
tornou-se um impulsionador de quantidades crescentes de
analfabetos jovens e adultos.
No
chamado período de “redemocratização” (1946-1964) várias
campanhas de combate ao analfabetismo foram encetadas e a
escola pública brasileira cresceu qualitativamente.
Certamente, esse período constituiu o que de melhor fizemos
em termos educacionais e um sopro de esperança tomou conta de
muitos no sentido das mudanças
sociais, econômicas, culturais, políticas que, em
concomitância, construiriam um novo patamar educacional nos
anos 40 e 50. As campanhas de erradicação do analfabetismo
falharam e o equilíbrio entre o acesso crescente à
escolarização pública e sua qualificação não alcançou
os frutos desejados.
Assim,
chegamos ao final dos anos cinqüenta, início dos sessenta e,
nesse momento, a educação é definitivamente atrelada às
condições sociais e políticas que definiam o nacionalismo e
o desenvolvimentismo brasileiros. O que, até então, foi
tratado com uma ênfase técnica e neutra
cede espaço para o entendimento da educação como
algo eivado/carregado de um conteúdo político inseparável.
Tal visão ficou patente, por exemplo, nos encontros nacionais
de educação de adultos, especialmente no de 1958, onde se
sobressaíram os documentos preparados por educadores
pernambucanos e, entre eles, seu relator, Paulo Freire. A
partir daí, a conotação política da prática educativa foi
ganhando adeptos e numerosos grupos começaram a trabalhar no
sentido da promoção de uma educação voltada aos interesses
e necessidades das camadas populares. Não se pode esquecer
que, ambiguamente, como parte do populismo em vigor, esses
grupos eram conduzidos por estudantes e professores dos
extratos médios da nossa sociedade e tinha, como pano de
fundo, os interesses do Estado (populista) que pretendia
perpetuar-se. Com efeito, no final de 1963, setenta quatro
desses grupos se reuniram em Recife, no I Encontro Nacional de
Cultura e Educação Popular, sendo que dois terços deles
trabalhava com educação de adultos. Nesse tempo, ganha vigor
o que ficou conhecido como “Método Paulo Freire” e sua
disseminação é assumida pelo Governo Goulart através do
Plano Nacional de Alfabetização (PNA) que pretendia
alfabetizar seis milhões de pessoas no ano de 1964.
Importante notar: o PNA tinha forte conotação político-eleitoral,
pois “fabricar” seis milhões de alfabetizado seria
aumentar em 50% o contingente de eleitores que havia votado na
eleição presidencial de 1960 (11,7 milhões, numa população
de 70 milhões). Supostamente,
a maioria desses novos eleitores (alfabetizados e
“conscientizados” pelo “Método Paulo Freire”)
votariam em candidatos e partidos
“progressistas” e, assim, as reformas “de base”
poderiam ser aprovadas no Congresso e implementadas na direção
da construção de um país menos injusto e mais igualitário
ou, como pretendiam alguns grupos, na direção do socialismo
e do comunismo. Aqui está surgindo uma concepção de educação
das camadas populares - educação popular -, diretamente
ligada à tentativa de emancipação social e política dos
extratos que tradicionalmente foram alijados dos processos
decisórios no Brasil, somando esforços de setores médios
(estudantis, intelectuais, artísticos etc) às necessidades básicas
da imensa maioria dos brasileiros. Nesse instante, fazer
“educação popular” significava investir nas demandas de
milhões de indivíduos que não tinham tido acesso à escola
ou a tinham abandonado, ou seja, na educação dos adultos
que, ao se alfabetizarem/conscientizarem, poderiam - através
de seus votos e de sua participação em inúmeras organizações
da sociedade civil - alterar a estrutura social de um país
marcado pela norma da exclusão continuada.
Este
esforço foi barrado pelos golpistas civis e militares -
nacionais e internacionais - que em 1964 depuseram o governo
constitucional e implementaram o Estado da força bruta, da
repressão e da tortura institucionalizadas. As numerosas
organizações “progressistas”, entre elas os grupos que
trabalhavam com a educação das camadas populares, foram
extintas/proibidas. Durante vários anos, os grupos que
conseguiram sobreviver contaram com a explícita proteção
dos setores progressistas da Igreja Católica
ou foram gestados em seu próprio interior (a exemplo
dos grupos da “Igreja Viva” embriões das Comunidades
Eclesiais de Base). Simultaneamente, tudo o que era ligado à
educação formal, à escola, era tido como
“reprodutivista” (Althusser, Bordieu etc) em função do super
controle que o Estado exercia sobre a educação e todos os
seus agentes (estrutura, professores, alunos, currículos
etc). Com a lenta “abertura política” do Estado Militar, após a Anistia (1979),
fazer “educação popular” passou a significar o trabalho
político-educativo junto aos movimentos sociais organizados,
aos sindicatos “progressistas”, aos municípios
conquistados pelos partidos políticos “de esquerda”. E,
continuou a significar o trabalho com jovens e adultos, em
suas várias modalidades.
Os
anos oitenta trouxeram como “novidade” mais significativa
no campo da “educação popular” a crescente compreensão
de que a escola pública, nos seus diversos graus, constituía
espaço fundamental para o desenvolvimento de tal concepção
político-educativa. Ao mesmo tempo, trouxeram à tona a
necessidade de uma revisão crítica sobre suas teorias e suas
práticas, como assinalam as preocupações
indicadas a seguir:
“(...)
Como tendencia general, la educación popular fue construyendo
un discurso ligado a una lectura de las dimensiones
estruturales de la dominación y el funcionamiento de la
sociedad que dejó poco espacio para analizar, teóricamente,
problemas de la vida cotidiana y de los procesos de constitución
de la subjetividad de los sujetos. En efecto, los objetivos de
cambio social llevaron rápidamente a adherir a una serie de
premisas originadas en el marxismo para dar cuenta de las
estructuras de poder económicas y políticas. Se descuidó,
en cambio, la comprensión de la naturaleza simbólica de las
práticas educativas, su especificidad pedagógica y las
características de los escenarios y procesos cotidianos en
los cuales éstas transcurrían. Por outra parte, y en relación
a la acción práctica de los procesos educativos, el seminário
subrayó la necesidad de revisar su especificidad y
rigorosidad interna. Por un lado, se constató la diversidad
de prácticas que se identifican como educación popular, lo
que indica la variedad rica de experiencias que se desarrollan
y también la poca especificidad que assume el concepto. Por
outro, y en cuanto a su rigurosidad interna, se subrayó el
desconocimiento existente sobre la calidad de los procesos de
aprendizaje que transcurren en estas experiencias; y la falta
de sistematización y de investigación sobre las estrategias
educativas implementadas y sobre sus resultados y impacto en
los grupos populares com los cuales se trabaja.”
Com
efeito, no presente, mesmo eivada das preocupações acima
assinaladas, a educação popular abrange um grande espectro
de práticas, cada uma a seu modo, voltada para os interesses,
as necessidades, os valores, a cultura e os desejos da grande
maioria da nossa população: seja trabalhadora ou não,
homens e mulheres, crianças, jovens e adultos, sindicalizados
ou não, do campo e da cidade - todos com suas múltiplas
diferenças a serem respeitadas nas numerosas possibilidades
de trabalhos pontuais, ou em conjunto, que podem ser
realizados.
Concretizando
esse enfoque ampliado da educação popular, destacam-se várias
experiências que estão sendo realizadas em todo país.
Alguns exemplos podem ser elencados: em prefeituras de orientação
do Partido dos Trabalhadores e em várias outras que não
seguem tal orientação; no trabalho com mulheres na construção
de sua cidadania; em escolas públicas que estão conseguindo
minimizar ou eliminar a repetência e a expulsão escolar;
na alfabetização de jovens e adultos; no ensino
noturno público; em universidades que tem cursos e programas
voltadas à promoção e consolidação da cultura popular;
nas múltiplas experiências com saúde pública; nos diversos
movimentos sociais como o dos “sem-terra”; na continuidade
do trabalho dos grupos da igreja católica progressista, além
de tantos outros. Não mais importa se são formais ou não-formais,
institucionais ou não, não importa suas modalidades. O que
está no centro das atenções é a permanência de um
trabalho educativo anti-elitista e anti-excludente. Um
trabalho que ajude a construir cidadãos que busquem seus
direitos básicos à sobrevivência digna, ao trabalho
garantido, à uma escola de qualidade com acesso e permanência
de todos, à uma moradia razoável, à alimentação e à saúde
plenas. Penso que todas formas de educação que busquem esses
parâmetros - básicos para qualquer país que pretende
reduzir ao máximo suas disparidades -, devam ser incluídas
no rol da educação popular.
A
educação popular, que já foi “de adultos”, “de
igreja”, “de sindicato” e de tantos outros “de” e
que, finalmente, sem perder seus horizontes anteriores,
encampou a escola como importante espaço contraditório de
combates por uma sociedade melhor e mais justa - impossível
sem a educação para todos e de qualidade -, deve se abrir
cada vez mais, como instrumento da anti-exclusão social (econômica,
política, cultural...) e do anti-elitismo. No momento em que
as seculares amarras da sociedade brasileiras forem quebradas,
aí sim, poderemos notar a educação popular realizando-se em
sua inteireza. Enquanto isso não acontece, a educação
popular continua a ser um múltiplo espaço político-pedagógico,
em (re)construção permanente, no qual deve grassar um
trabalho de resistência, de “paciência impaciente”
(Freire,1987) e de esperança construtora.
Certamente,
nessa (re)construção merece destaque a obra prático-teórica
de Paulo Freire e, nesse sentido, concordamos com Puiggrós
(1994) quando coloca:
“Uno
dos grandes aciertos de Paulo Freire fué destacar la
presencia del elemento político en los procesos educacionales
de nuestras sociedades no como simple reflejo de la lucha de
clases, sino avanzando hacia el analisis de la forma específica
que adquire la opresión social en el interior del proceso
educativo, en el lugar de transmisión-creación del saber. A
partir de postular la posibilidad del vínculo dialógico,
dando por tierra con las teorías reproductivistas, Freire
proporcionó elementos que nos permiten estudiar en el sujeto
pedagógico las expresiones simbólicas de las diferentes
posiciones relativas de educador y educando, y sus
consecuencias para la produción, reprodución y/o
transformación de la cultura. Ese ha sido probablemente el
descubrimiento más importante del pensamiento educativo
popular latinoamericano en la segunda mitad del siglo.” (p.17)
Destarte,
a educação popular - enquanto teoria e prática -, nutriu-se
do “descubrimiento” de uma politicidade que, ao invés de
insistir no vetor da elitização/exclusão, concentrou-se na
valorização dos elementos político-culturais que lograssem
construir, cotidianamente, a difícil emancipação das
camadas amplamente majoritárias da nossa sociedade. Podemos
afirmar que a educação popular - embora marcada pela
heterogeneidade e pela multiplicidade de suas formas, práticas
e teorias -, identifica-se
através de um núcleo comum (bipolar, mas inseparável)
constituído pelo binômio educação-política.
Ora,
durante séculos, a educação e a política se entrecruzaram
a favor dos interesses dos mandatários das terras, da produção,
do comércio e de toda a gente. A partir dos 1950 e 1960, a
essa concepção e a essa prática se opuseram grupos de
estudantes, professores, católicos, comunistas, socialistas,
sindicalistas... utilizando-a em favor do que acreditavam ser
os interesses e as necessidades das camadas populares.
Após
três/quatro décadas, segundo Freire (1993, pp.101/102), a
educação popular como “um nadar contra a corrente”, é a
que: a) “substantivamente democrática, não separa do
ensino dos conteúdos o desvelamento da realidade”; b)
“estimula a presença organizada das classes populares... no
sentido da superação das injustiças sociais”; c)
“respeita os educandos... e por isso mesmo leva em consideração
seu saber de experiência feito, a partir do qual trabalha o
conhecimento com o rigor de aproximação dos objetos”; d)
“trabalha, incansavelmente, a boa qualidade do ensino”; e)
“capacita suas professoras cientificamente à luz dos
recentes achados em torno da aquisição da linguagem, do
ensino da escrita e da leitura”; f) “em lugar de negar a
importância da presença dos pais, da comunidade, dos
movimentos populares na escola, se aproxima dessas forças com
as quais aprende para a elas poder ensinar também”;
“supera preconceitos de raça, de classe, de sexo e se
radicaliza na defesa da substantividade democrática”; “ao
realizar-se assim, como prática eminentemente política, tão
política quanto a que oculta, nem por isso transforma a
escola onde se processa em sindicato ou partido” .
Fazendo
nossas as palavras de Freire, apostamos na consolidação
dessa concepção político-educativa no nascimento do próximo
século. Deste modo, a educação poderá contribuir para a
instituição de uma sociedade mais justa e menos desigual, na
qual a conquista dos direitos básicos da cidadania
concretizar-se-ia, em definitivo, para a imensa maioria dos
que fazem o Brasil.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS - SOBRE OS INTELECTUAIS/EDUCADORES E SUAS AÇÕES
Além
de contar com a inspiração de reflexões, como as citadas -
ou de outras, cuja brevidade deste texto não nos permitiu
destacar -, penso que existem múltiplas tarefas e diversas
“frentes” a construir para aqueles e aquelas que trilham
os caminhos da educação popular. Entre elas, são prioritárias
as que nos fazem avançar na busca da competência e da eficácia
técnico-profissional (educativa-pedagógica, prática e teórica),
sem abdicar dos nossos ideais e das nossas ações pró-mudanças
em todos os níveis da extrema desigualdade social que preside
nosso tempo histórico.
No
espaço da Universidade, avançar nessa direção significa,
por exemplo, melhorar nossa docência, encetar pesquisas
socialmente relevantes, aproximarmo-nos de outros segmentos
sociais com nossos cursos e trabalhos de extensão universitária,
além de efetivarmos nosso compromisso com quem nos sustenta:
a sociedade, que arrecada impostos - especialmente aqueles
pagos por quem nunca teve acesso ao ensino superior, ou seja,
a grande maioria.
Nesse
sentido, isso também significa, a meu ver, repensarmos nossos
papéis enquanto intelectuais/educadores. E, com tal intuito,
vale destacar a idéia do “intelectual
específico”, advogada por Foucault (1979), em
contraponto ao “intelectual
universal”. Conforme suas palavras:
“Durante
muito tempo o intelectual dito ‘de esquerda’ tomou a
palavra e viu reconhecido o seu direito de falar enquanto dono
da verdade e da justiça. (...) Ser intelectual era um pouco
ser a consciência de todos. Creio que aí se acha uma idéia
transposta do marxismo e de um marxismo débil: assim como o
proletariado, pela necessidade de sua posição histórica, é
portador do universal (mas portador imediato, não refletido,
pouco consciente de si), o intelectual, pela sua escolha
moral, teórica e política, quer ser portador desta
universalidade, mas em sua forma consciente e elaborada. O
intelectual seria a figura clara e individual de uma
universalidade da qual o proletariado seria a forma obscura e
coletiva (...). Parece-me que o que deve ser levado em
consideração no intelectual não é, portanto, ‘o portador
de valores universais’; ele é alguém que ocupa uma posição
específica, mas cuja especificidade está ligada às funções
gerais do dispositivo de verdade em nossas sociedades.
Em
outras palavras, o intelectual tem uma tripla especificidade:
a especificidade de sua posição de classe (pequeno burguês
a serviço do capitalismo, intelectual ‘orgânico’ do
proletariado); a especificidade de suas condições de vida e
de trabalho, ligadas à sua condição de intelectual (seu domínio
de pesquisa, seu lugar no laboratório, as exigências políticas
a que se submete, ou contra as quais se revolta, na
universidade, no hospital, etc); (e)... a especificidade da
política de verdade das sociedades contemporâneas.” ( pp.
8 e 13)
Torna-se
pertinente a reflexão sobre essas idéias de Foucault,
especialmente quanto às especificidades dos papéis
desempenhados pelos intelectuais
e a virtual extinção do intelectual-condutor “que
sabe e deve ser seguido” - tão próprio a alguns
grupamentos “de esquerda” no Brasil, ainda acostumados a
se apropriar e a conduzir movimentos populares “em nome”
da Revolução, do Partido ou de Deus.
No
caminho acima proposto, os intelectuais que contribuem para a
construção de uma educação emancipatória das camadas
populares no Brasil teriam que (ao mesmo tempo): a) tornar-se
“orgânicos” às expectativas, às necessidades, aos
desejos e às ações desses extratos da nossa população; b)
fazer da especificidade do seu trabalho universitário um
campo permanente de pesquisa e produção de conhecimento
sobre a educação popular; c) estar permanentemente
preocupados em buscar as verdades sociais, políticas, econômicas,
pedagógicas etc, mesmo que essas contrariem seus
posicionamentos ideológicos ou as determinações do seu
Partido, da sua Igreja, do seu sindicato.
E,
finalmente, esses intelectuais precisariam se dispor a ouvir
críticas, ao debate, enfim, ao exercício de uma democracia
que, sem pressupor a sua liderança “enquanto donos da
verdade e da justiça”, requer o seu trabalho específico
como fundamental à construção de uma educação popular com
a “cara” do nosso tempo histórico. Tempo marcado pela
fragmentação social, pela heterogeneidade, pela
multiplicidade de vivências interculturais e, principalmente,
pela persistência do flagelo da exclusão - adotada como
regra histórica da própria constituição da sociedade
brasileira, desde a invasão portuguesa - há 500 anos.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ARROYO,
Miguel. “Fracasso-sucesso: o peso da cultura escolar e do
ordenamento da educação básica” in Para
Além do Fracasso Escolar. Abramowicz, A . e Moll, J.
Campinas, Papirus, 1996, p.13.
FOUCAULT,
Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979.
FREIRE,
Paulo et al. Medo e
ousadia - o cotidiano do professor. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1987.
FREIRE,
Paulo. Política e Educação. São Paulo, Cortez, 1993.
HOBSBAWN,
Eric. A era dos
extremos - O breve século XX (1914-1991). São Paulo,
Companhia das Letras, 1998.
PUIGGRÓS, Adriana. “Historia y prospectiva de la educación popular
latinoamericana” in Educação
popular - utopia latino-americana. Gadotti,
M. e Torres C. São Paulo, Cortez/EDUSP, 1994, pp.13/22.
SCOCUGLIA,
Afonso C. A história
das idéias de Paulo Freire e a atual crise de paradigmas.
João Pessoa, Editora Universitária - UFPB, 1997.
_____________________.
A história da
alfabetização política na Paraibrasil dos anos sessenta.
Recife, UFPE (Tese de Doutorado, mimeo.), 1997.
Segundo Arroyo (1996), no Brasil generalizou-se uma
“cultura da exclusão”:
“Cultura que não é desse ou daquele colégio,
desse ou daquele professor, nem apenas do sistema escolar,
mas das instituições sociais brasileiras, geradas e
mantidas, ao longo deste século republicano, para reforçar
uma sociedade desigual e excludente. Ela faz parte da lógica
e da política de exclusão que permeia todas as instituições
sociais e políticas, o Estado, os clubes, os hospitais,
os partidos, as igrejas, as escolas... Política de exclusão
que não é própria dos longos momentos de administração
autoritária e de regimes totalitários. Ela perpassa
todas as instituições, inclusive aquelas que trazem no
seu sentido e função a democratização de direitos
constitucionalmente garantidos como a saúde e a educação”
(p.13).