Livros
Direitos Humanos
Direitos
Humanos
Direitos
Humanos em Moçambique
Josué
Bila
Parte
II
Capítulo
V
Entrevistas
Cantor
Dick Niggaz: “Os deficientes devem
elevar auto-estima e lutar pelos seus
direitos
Uma
voz defensora dos direitos de pessoas
portadoras de deficiência física,
por meio da música, nasceu em Moçambique,
há quase 30 anos. Seu nome de registo
é Severino Diquissone. Reside na
capital provincial de Niassa, Lichinga.
Cantou, recentemente, em Maputo, em duas
edições de programas da
Televisão de Moçambique:
“Convívio de Amizade”
e “+ Jovem”. Os convidados
ao programa não esconderam o ânimo
pelo seu cantar e dançar contra
a discriminação a que ele
e os co-portadores de dificiência
física sofrem. Uma parte da letra
de sua música está abaixo
desta entrevista,18
que nos concedeu antes de seu regresso
a Lichinga. Seu nome artístico
é Dick Niggaz.
ZAMBEZE
- Quem é Dick Niggaz
DN - Dick Niggaz é
este jovem com quem está a conversar.
Nasci no distrito de Cuamba, província
de Niassa, aos 30 de Novembro de 1978.
Muito cedo, com três anos de idade,
vou residir em Lichinga, junto de meu
irmão.
ZAMBEZE
- Por que muito cedo foste viver em Lichinga?
DN - Começo a
residir em Lichinga, porque fiquei orfão
de pais aos três anos, quando ainda
residia no distrito de Cuamba.
ZAMBEZE
- Em que ano começou a ir à
escola?
DN - Comecei a estudar
no ano de 1985, na Escola Primária
Heróis Moçambicanos, onde
fiz até 3ª Classe. Continuei
a estudar em Lichinga até que conclui
a 12ª classe, na Escola Secundária
Paulo Samuel Khankomba, em 1997. O meu
sonho é continuar.
ZAMBEZE
- Onde e como contraiste a deficiência
física?
DN - Contrai a deficiência
em Lichinga, quando estavámos nalgum
lugar a tirar mangas. Claro, eu não
subia às árvores, sempre
permanecia ao chão. De repente,
a minha perna do lado esquerdo, ficou
paralisado e comecei a cochear. Dai, fomos
ao hospital, onde disseram que sofria
de poliomienite.
ZAMBEZE
- Já portando a deficiência,
como é que na família eras
tratado?
DN - Recebi o melhor
carinho da família. Nunca sofri
discriminação, como acontece
com outras crianças portadoras
de deficiência que são irracionalmente
escondidas pelas suas famílias,
alegando vergonha.
ZAMBEZE
- E na comunidade?
DN - Ah, sim, na comunidade
sofri discriminação...até
estigmatização. Quando algumas
pessoas me vissem, afastavam-se de mim.
Às vezes, andando na rua, caso
uma senhora trouxesse uma criança
ao colo que estivesse a chorar, apontava
a mim, para que a criança se aquietasse,
dizendo: “está a ver aquele
momomo ali, vai morderte. É melhor
portar-se bem”.
ZAMBEZE
- Vejo que és um jovem extrovertido.
Como é que consegues?
DN - Desde criança,
fui um indivíduo que criei auto-estima
e percebi que tenho dignidade humana,
como qualquer um. Se for a ler com atenção
a letra de minha música perceberás
muito bem o que estou a dizer. A letra
reclama os direitos de que, individualmente,
sou titular e não mais ninguém.
E dedico a letra e a música a todas
as pessoas portadoras de deficiência.
Voltando a auto-estima. Veja que eu, sendo
portador de deficiência física,
andando de muletas, fui o melhor defesa
da equipe de futebol a que pertencia,
na 4ª e 5ª Classes, na Escola
Primária de Sanjala.
ZAMBEZE
- Como é que eras tratado na escola?
DN - Também sofri
discriminação. Recordo-me
que era mal reparado, mas a auto-estima
ajudou-me a superar isso. Mas, devo dizer
que nem todos discriminavam. Existem pessoas
de bem e que sabem viver com o semelhante
no espírito humano e solidário.
ZAMBEZE
- Quando é que começas a
cantar?
DN - Comecei a cantar
em 1994, fantasiando...
ZAMBEZE
- O que é isso de fantasiar?
DN - Imitar músicas
de cantores ou músicos. Olha, em
1997, houve, em Lichinga, um programa
chamado “Fantasia”. Concorri
e fiquei em primeiro lugar.
ZAMBEZE
- O que ganhou?
DN - Fui premiado com
1.200,00MTn (USD 45)
ZAMBEZE
- Qual é o cantor que mais gostava
de imitar?
DN - O sul-africano Peny-Peny.
ZAMBEZE
- Depois de ganhar o prémio, o
que foi feito de ti?
DN - Fiz uma digressão
por Niassa e Nampula, cantando e imitando
Peny-Peny... Foi apaixonante ver como
o público ficava encantado com
o meu cantar e dançar. À
medida que ia cantando, as pessoas iam
me despertando, dizendo que tenho talento.
Aconselharam-me - e muito bem recebi o
conselho – para fazer minhas próprias
letras e não mais imitar Peny-Peny.
Assim, em 1999, termino de imitar Peny-Peny.
Em 10 de Janeiro de 2000, surge o grupo
“Mad Black”, constituido por
Dick Niggaz, No-c John e Quest Man.
ZAMBEZE
- Por que o grupo chama-se Mad Black?
DN - Primeiro: Mad Black
quer dizer negros furiosos. Este nome
é uma resposta às frustrações
que estou a passar – desemprego,
falta de oportunidades e discriminação
- por ser pessoa portadora de deficiente.
Tenho vindo a aprender que enquanto houver
injustiça, temos de ser revoltados.
Não revolta de criar estragos,
mas, sim, lutar e lutar pelos nossos direitos.
ZAMBEZE
- Quem fez a letra de sua música
“diferença”, que cantaste
na Televisão de Mocambique?
DN - Eu, pessoalmente,
sou quem a fez, em 2001.
ZAMBEZE
- Quantas músicas tem o grupo?
DN - O Mad Black tem
mais de 20 músicas.
ZAMBEZE
- Qual é a mensagem que deixa para
as pessoas portadoras de deficiência
física?
DN - Minha mensagem é
simples: os portadores de deficiência
devem elevar a auto-estima, lutar pelos
seus direitos humanos, estudar e estudar,
revelando o que sabem fazer e passar por
cima das discriminações;
mostrando que também têm
dignidade. A letra de minha música
mostra tudo isso.
Letra
de música
PRIMEIRA
PARTE
Introdução
Ai meu Deus
Será que adquirimos a deficiência
pra sofrer
Há muita discriminação
e humilhação
Isto é demais.
Afinal
de contas, quem somos nós
Nesta sociedade que vivemos
Será discrminação
ou não merecemos
Pergunto com tanta dor
A vós que sois governo
Será que não temos chance
em nenhum sector
Na sociedade hoje ninguém olha
por nós
É por esta razão que pergunto
a vós
Qual é a razão de passarmos
tanta discriminação e humilhação
Na rua ninguém nos presta atenção
Não seve pra nada a nossa sugestão
nem opinião
Fala-se de igualdade, mas tudo em vão
Será que um deficiente não
pode servir à nação
Pode servir, mas pra passar tanta humilhação
Custa dizer, mas é assim que o
deficiente é visto
Pergunto com tanto sentimento
Quando acabarão com isto
Pra um deficiente ser visto como humano
E quando deixará de ser leviano
O que fez o deficiente pra pagar desta
forma
Os dias passam, mas nunca acabam com este
drama
Mesmo com nível pra trabalhar
anda anos a busca de emprego
Mas, ninguém por ele vai olhar
CORO
O ser humano deve entender a vida que
o outro humano está a viver
Sinto na pele o que me faz sofrer
Eu te abraço meu amigo
Disto não duvida
Nossa amizade sobrevive sem diferenças
SEGUNDA
PARTE
Vamos atrás do job* olham-nos como
anormais
A resposta que nos dão é
pra não voltar nunca mais
O deficiente não tem chance de
mostrar o que é capaz
Na rua olham-nos como animais irracionais
Saibam que o deficiente também
é um cidadão normal
Essas são lágrimas de quem
passou por algo igual
Já andei demais e ninguém
aprovou o meu curriculum vitae
Passei e vivi tantos preconceitos
Pra ver um deficiente longe do job criam
maus pretextos
Fala-se de uma lei que defende o deficiente
Mas, são os primeiros a maltratar
o pobre inocente
E agora peço ao Senhor Omnipotente
para que ilumine nosso caminho
Quando falo do Omnipotente falo da primeira
instância
Antes do Senhor dos Céus
Façam alguma coisa pelo deficiente
Pelo amor de Deus
O deficiente recebe maus-tratos do berço
à sepultura
Acham que para servir à nação
ele não está à altura
É por isso que é discriminado
nos convívios até na cultura
É na escola e no trabalho é
vítima de maus-tratos
Parecem especulações, mas
são factos reais.
TERCEIRA
PARTE
Um caso mais triste
Fingem que não existe
Na escola é discriminado com seu
melhor amigo
A humilhação que se passa
na rua não digo
Quanto mais tempo passa o deficiente perde
mais espaço na sociedade
Onde irá mostrar a sua dignidade
Afinal de contas somos iguais ou não
Se somos iguais por que tanta discriminação
Na sociedade é olhado como vagabundo
irracional
Se fosse pra escolher ser deficiente
ninguém seria no mundo
Acabem com isto
Pra ver se ganha o alento
A humilhação deixa de ser
nosso alimento
Esta
música é dedicada pra toda
pessoa portadora de deficiência
Amor e Paz onde ele esteja
*Trabalho/emprego
^
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Nota:
18
- Moçambique - Maputo - Jornal
ZAMBEZE, 20 de Marco de 2008, pags 30
e 31, nr.287, Ano VI
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