Livros
Direitos Humanos
Direitos
Humanos
Direitos
Humanos em Moçambique
Josué
Bila
Parte
II
Capítulo
V
Entrevistas
Ericino
de Salema: Jornalismo ‘pão
e manteiga’ descapitaliza direitos
humanos
O
jornalista moçambicano Ericino
de Salema9
é o sétimo entrevistado
no bantulândia, desde Abril último.
A ciência teológica diz que
sete é o algarismo da perfeição.
Será que o entrevistado traz um
debate perfeito sobre direitos humanos
no jornalismo? Não quero teologizar
e nem mitologizar algo, aqui. Apenas deixar
Salema filosofar do que teologizar. Nas
infralinhas, o entrevistado lembra que
os jornalistas, na sua luta existencial
pelas necessidades básicas a exemplo
de ‘pão e manteiga’,
não deixam sobrar tempo de ler
a Constituição da República
de Moçambique e a Lei de Imprensa,
para multifacetar abordagens, a exemplo
de direitos humanos. Porém, sublinha:
“Os jornalistas até desenvolvem
o seu trabalho de forma razoável,
geralmente falando. Do meu canto, noto
que a qualidade do jornalismo está
a melhorar; os profissionais de comunicação
social procuram se formar... em jornalismo,
sociologia, antropologia, economia, direito
e até engenharia e farmácias”.
Bantulândia
- Qual tem sido o papel dos jornalistas
moçambicanos na defesa de direitos
humanos?
Salema - Tem sido muito
modesto, talvez por o tema direitos humanos
não ser assim tão simples
como às vezes erradamente se pensa.
Em rigor, os jornalistas têm reportado
acontecimentos sobre direitos humanos,
não se assumindo, nisso, como activistas
de direitos humanos; para sê-lo,
não basta ser-se conhecedor dos
critérios de noticiabilidade; conhecer
a Constituição da República
é, nisso, de capital importância.
Mas isso ainda é um devir. É
importante que o jornalista saiba que
direitos humanos constituem um campo muito
amplo da vida humana, somente possível
em sociedade. É importante denunciar
que o polícia A ou B atingiu mortalmente
um cidadão indefeso, somente por
este não lhe ter exibido o seu
bilhete de identidade; é essencial,
creio eu, questionar se um polícia
que não tenha perfil para tal não
será um atentado aos direitos humanos;
se não será um atentado
à dignidade humana o facto de os
agentes da PRM andarem pelas ruas com
armas de grande calibre; se o Estado é
flexível na assumpção
da responsabilidade pelos danos causados
pelos seus agentes, sem, obviamente, prejuízo
de regresso, conforme estabelece a Constituição
da República; discutir direitos
humanos é, pois, discutir direitos
e/ou liberdades básicas de todos
os seres humanos.
Bantulândia
- Em Moçambique, é comum
que os jornais cubram o baleamento mortal
de um cidadão pela Polícia
numa perspectiva de direitos humanos e
dificilmente reportam uma simples falta
de pão e manteiga num foco (de
violação) de direitos humanos.
Por que os jornalistas agem dessa forma?
Salema - A vida é,
e sempre o será, o mais precioso
‘bem’ que se pode ter e de
que se pode usufruir. Retirar a vida a
outrem é, realmente, muito mais
que grave. É comum, como bem dizes,
os jornalistas se cingirem mais no baleamento
mortal de um cidadão por um polícia,
que no pão que existe porque disponível,
mas que é inacessível à
maioria. O meu amigo Edson da Luz, popularmente
conhecido por Azagaia, diz numa das suas
músicas que não sabe quem
matou mais, ‘se a guerra ou a fome’;
os jornalistas, não vivendo eles
numa ilha social, acabam se guiando pela
teoria de reconstrução social
da realidade nos seus textos; isso significa
que, nas suas estórias, está
muitas vezes reflectido o seu ego, nem
que eles não se apercebam disso;
que eu saiba, nem sempre o próprio
jornalista tem pão; se o tem, a
manteiga deve ‘resistir sair’
das prateleiras dos supermercados.
Bantulândia
- Porque é difícil encontrar,
nos textos jornalísticos, referência
aos instrumentos internacionais de direitos
humanos?
Salema - Acho que a sua
pergunta está a tentar levar-me
para uma resposta que já tens construída
no seu íntimo. Brincadeira! Deixa-me
colocar aqui uma questão: não
estará a exigir muita sofisticação
ao jornalista moçambicano? Creio
que, em lendo a Constituição
da República e a Lei de Imprensa,
é fácil o jornalista ver-me
‘mais aberto’ a outras abordagens.
Mas não é o que sucede;
esses dois instrumentos são muito
acessíveis aos jornalistas, mas
a luta pelo ‘pão e manteiga’
nem sempre faz sobrar tempo. Recentemente,
fiquei a saber que uma pesquisa encomendada
pelo Ministério da Justiça
chegou à triste e penosa conclusão
de que 90% dos juízes não
tem Constituição da República
nos seus gabinetes…os jornalistas
até desenvolvem o seu trabalho
de forma razoável, geralmente falando;
para se ser especialista em direitos humanos,
é crucial que se tenha alguma formação
específica. Mas se nos esforçássemos,
nós os jornalistas, em ler documentos
como
a Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Com isso, ganhava, por
exemplo, o debate sobre os direitos humanos…
Bantulândia
- As questões ambientais, a exemplo
do desmatamento de florestas, poluição
de rios ou atmosférica, não
figuram como direitos humanos. Que explicação?
Salema - Sabe, para que
algumas coisas sejam ‘notícia’
ou ‘assunto’ é necessário
que algumas questões básicas
já não constituam problema.
Ainda não somos assim tão
sofisticados como país, daí
que ainda estamos mais preocupados com
as questões imediatamente existenciais,
tipo quanto milho produzimos para não
morrermos de fome; como podemos não
nos limitar somente à produção,
o que pressupõe uma preocupação
pela produtividade; e por ai além.
Como diria o outro, há questões
que apenas dominam a agenda dos pós-materialistas.
Bantulândia - Por
que há dificuldades de encontrarmos
jornalistas decididos com os direitos
humanos?
Salema - O problema da
especialização atravessa
vários ‘sectores’ do
jornalismo, e não somente o dos
direitos humanos. Temos jornalistas que
escrevem sobre tudo e em diferentes formados.
Às sete um jornalista pode estar
a cobrir ocorrências policiais,
para às nove estar na Presidência,
a reportar a acreditação
de um embaixador; três horas depois,
o mesmo já está a cobrir
uma conferência de imprensa de um
partido qualquer, em que os temas são
revolução verde, empreendedorismo,
lei eleitoral, combate à pobreza,
educação e desenvolvimento,
e por ai além. As coisas são
assim, quer gostemos ou não. Agora,
a questão é saber como mudar
o status quo!
Bantulândia
- Que propostas avança para que
os jornalistas possam contribuir para
que os moçambicanos possam conhecer
os seus direitos?
Salema - Ultimamente,
como bem sabe, sou mais activista da liberdade
de imprensa, de expressão e do
direito à informação,
que jornalista nos moldes tradicionais.
Do meu canto, noto que a qualidade do
jornalismo está a melhorar; os
profissionais da comunicação
social procuram se formar cada vez mais,
o que é positivo; muitos se formam
em jornalismo, mas temos os que fazem
sociologia, antropologia, economia, direito
e até engenharia e farmácias.
Lendo atentamente os jornais, ouvindo
a rádio e vendo a TV, nota-se facilmente
que o jornalista é, hoje, cada
vez mais voz dos que não têm
voz. Creio que, pouco e pouco, a situação
vai melhorando.
Bantulândia
- Qual é o comportamento editorial
quanto aos direitos humanos?
Salema - Confesso que
ainda não me ative a essa questão.
Mas creio que os editores não são
aversos aos direitos humanos. Se o fossem,
talvez estivessem noutras.
Bantulândia
- Quem tem tomado a iniciativa de divulgar
e discutir temas sobre direitos humanos
reportados pelos jornais (sociedade civil,
governo ou jornalistas)?
Salema - A sociedade
civil e os jornalistas – ou os media,
em termos mais precisos – acabam
se destacando mais, talvez por o Estado
ser o sujeito activo dos crimes de direitos
humanos. À sua maneira, todos vão
fazendo a sua parte. O ideal, creio eu,
é que o tema direitos humanos seja
capitalizado, pois sem eles jamais teríamos
dignidade, liberdade, igualdade, fraternidade,
aqueles valores todos cimentados pela
Revolução Francesa de 1789.
Bantulândia
- Qual tem sido o incipiente contributo
do jornalismo investigativo em relação
às políticas públicas?
Salema - Não sei
se estou certo, mas esta pergunta me parece
arregimentadora. Seja como for, a falta
de acompanhamento é o maior problema
na cobertura da implementação
de políticas públicas no
país; foi noticiado, há
anos, que um ministro da Educação
desviou dinheiro para financiar os estudos
dos seus filhos no estrangeiro, mas ninguém
conhece o desfecho desse caso; numa altura
em que o discurso do poder político
é dominado pela ‘revolução
verde’, nada se reporta sobre o
PROAGRI; há três/quatro anos,
falou-se de corrupção na
reabilitação do edifício
da PIC na cidade de Maputo, mas o assunto
parece ter ‘morrido de morte matada’;
e tanta outra coisa.
Bantulândia - A
luta pelos direitos humanos está
mais vinculada à sociedade civil.
Em que momento o governo vai assumir a
postura de também lutar por eles?
Salema - Creio que o
governo responderia melhor a esta questão.
Olha que, nos dias 29 e 30 de Junho passado,
realizou-se aqui em Maputo uma conferência
internacional sobre o Estatuto de Roma,
que criou, em 2002, o Tribunal Penal Internacional.
O nosso governo subscreveu o documento
em 2000, mas, passados nove anos, ainda
não o ratificou. Intervindo nessa
conferência, a ministra da Justiça,
Benvinda Levy, somente falou de “esforços”
que estão a ser desenvolvidos para
tal, não tendo dado prazos. Isto
mostra que eu sou muito incompetente para
dizer quando “o governo vai assumir
a postura de também lutar pelos
direitos humanos”.
São
Paulo, 13 de Maio de 2009
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Nota:
9
- Ericino de Salema é jornalista-editor
moçambicano. Actualmente presta
o seu saber no Instituto da Comunicação
da África Austral – Moçambique.
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