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Direitos Humanos
Direitos
Humanos
Direitos
Humanos em Moçambique
Josué
Bila
Parte
I – Artigos
Capítulo
IV
Debatendo fora da caixinha
Crianças
de Pebane nunca sonham...3
Nunca...Nunca
é o advérbio de negação
que mais soa da boca da maioria das crianças
de lá do distrito de Pebane, província
da Zambézia, quando perguntadas
se os pais falam livremente com elas.
“Nunca” também escutaram
e participaram de um programa infantil
de Rádio e “nunca”
ouviram falar da Organização
dos Continuadores de Moçambique
e muito menos do Parlamento Infantil (PI).
“Nunca” foram ouvidas pelo
Governo, nem distrital, nem provincial
e nem central sobre as políticas
públicas, desenhadas para o desenvolvimento
integral de sua personalidade. A Rádio
local opera 77 horas, por semana. Destas
horas, apenas duas são destinadas
a um programa infantil. O núcleo
do PI, com 50 deputados, existe há
apenas 2 anos e já reclama a subestimação
cívico-política a que está
sujeito pelos órgãos governamentais
locais. É neste ambiente que crescem
as crianças. Para se chegar lá,
via terrestre, da capital Quelimane, percorre-se
350 Km. O censo último, em dados
preliminares, contabiliza 186,330 habitantes.
Entrando
em Pebane
De mochila às costas, o jornal
ZAMBEZE desembarca próximo da Pensão
Pebane, ao sopro e sol quente de tarde
de terça-feira (8). Da capital
provincial, Quelimane, para Pebane, percorreu
350Km, ido de Maputo. Viagem essa nada
humana, nem urbana, nem rural. Talvez,
será inesquecível, por isso.
Feita num camião médio,
de marca toyota canter. Cuidem-se: o camião
ensardinhou, das quatro de madrugada às
12 horas, 45 pessoas – crianças,
mulheres, jovens e homens, para além
de bagagens rurais. É desta maneira
que se viaja até lá, ida
e volta, naquele transporte. E, muito
provavelmente, lá se chega e se
vive, quando o interesse não tenha
sido possível satisfazê-lo
em um outro lugar. Assim é Pebane:
na falta do melhor, o pior serve... Pebane.
A
estrada é, em mais de 200km, de
terraplenada; poeirenta e representando
a pobreza e ruralidade de seu destino.
Pebane é provinciano demais. Verdadeiramente
rural. Nada lembra a dinâmica de
urbanidade e de desenvolvimento rural,
em moldes do Sec. XXI. É um distrito
não-infraestruturado, para (re)toques
de desenvolvimento. Pobre, do cabelo até
às unhas das suas gentes. De um
modo geral, as paredes externas dos edifícios
(coloniais) da rua principal, quando perguntadas
a sua cor inicial, não respondem.
Se quiserem responder, dirão que
estão pálidos e sujos. Só
quem viveu no tempo colonial pode lembrar-lhes
a cor. Ou, talvez quem tenha prazer em
abstrações e lucubrações,
pode referenciar a sua cor. Fora das suas
praias, mariscos e fama das “lindas
mulheres”, que colocam amuletos
em suas lombas, para, segundo crença
local, atraírem os homens aos delírios
turístico-sexuais, em meio às
prováveis depravações
morais, o que leva e marca as pessoas
em e para Pebane? Pelo menos, as escolas
e os centros de saúde mostram que
sonhos sociais há em Pebane.
Fala
de Helena
Primeiros passos. Ao desembarcar, o ZAMBEZE
palmilha o pedaço de terra da rua
principal da vila distrital. Doutra faixa,
esquerda, passam mais de uma dezena de
crianças da escola primária
local (24 de Julho). Elas inspiram-no.
Galga, ao encontro delas. Ao meio, uma
há, sem uniforme. Brota-lhe a curiosidadade
de trocar um dedinho de conversa específica,
com ela. Aliás, é para isso
que escalou aquele micro-terráqueo
moçambicano. Ouvir, escutar e falar
com as crianças, para saber até
que ponto elas gozam do direito à
opinião e liberdade de expressão,
na família, escola e instituições
cívicas, democráticas e
políticas.
Num ápice, ignora o cansaço
de uma viagem de 350 km. Deixa os traços
macambúzios de viagem. Vai fitando
os seus olhos à menina, sem uniforme
escolar, no meio de crianças uniformizadas.
Apressa-se. Embrenha-se. E sauda-a. Olá!
Cumprimenta o repórter.
Com
olhar tímido e aparentemente desconfiada,
não responde. Insistência:
Olá!!! “Ela não gosta
de falar, tio”, usa da palavra Flora
Jaime, 7 anos. “Ela não gosta
de falar, quando é perguntada em
língua portuguesa”, conta
a menina Flora. Nisso, o ZAMBEZE lembra
da lição lapidar do prof.
moçambicano Brazão Mazula,
segundo a qual “uma língua
é expressão de uma cultura”.
A frase controla o comportamento seguinte.
Pede, imediatamente, que fale em sua própria
língua. Para o efeito, Flora traduz,
para a língua e cultura (muniga),
com que aprende e apreende o mundo e deleita-se
perante a sua rica cosmovisão.
Flora
vai traduzindo. Mas, não é
extrovertida. Apesar disso, cumpriu a
missão de arrancar os pensamentos,
expressões e sentimentos de Helena,
que, em língua portuguesa, não
sairiam. Assim, os nervos e o desconforto
que uma língua desconhecida traz
se tranquilizam: “Meu nome é
Helena Manuel”, responde, em expressão
titubeante. Curiosamente, desconhece a
sua idade. Mas, pelo cálculo aleatório,
embora traiçoeiro, porque baseado
na conveniência não técnica,
tem, mais ou menos, 11 anos. Estava descalça.
O estado misantrópico do pé,
dos dedos e das unhas denuncia duas hipóteses:
ou não gosta do chinelo/calçado
ou não o possui. Trazia uma saia
preta e blusinha azul. A blusa tinha falta
de um dos botões. Vive empenhada,
com afazeres domésticos de sua
família. Nada suaves. Helena está
a ser preparada para ser mulher, aos moldes
de ruralidade pebanensa.
Helena
não vai à escola. “Eu
vivia com a minha avó e ela nunca
me matriculou”. Hoje, vive com os
pais em Pebane. “Tenho sonho de
estudar, para além de brincar na
escola com(o) minhas amigas”.
Tal
como o ZAMBEZE constatou, em conversa
com Helena, o facto de não ir à
escola e nem falar a língua portuguesa
concorre para que não participe
de actividades cívicas e político-infantis,
experimentando o exercício ao direito
à opinião e liberdade de
expressão, através da Rádio
Comunitária Muniga, Organização
dos Continuadores, Parlamento Infantil
e outros fóruns públicos,
em resposta ao quase mundializado Estado
de Direito Democrático. Outra:
a socialização escolar poderia
concorrer para a formação
da personalidade da menina Helena, que
o espaço escolar, as brincadeiras
infantis com outras raparigas e rapazes
e a relação professor-aluno
proporcionam.
Mais:
“nunca fui convidada a falar e participar
de uma edição de Rádio
Comunitária, nem do parlamento
infantil”, para além de que
“não sei da existência
dos mesmos”.
Se fosses à Rádio ou ao
Parlamento Infantil, hoje, que gostaria
de dizer ou propor? Por duas vezes, foi
dirigida esta pergunta e não emitiu
palavra alguma. Já ouviu falar
do PI, por exemplo? “Nunca”.
E da Organização dos continuadores
de Moçambique? “Nunca”.
Aparentemente,
é uma menina traumatizada, cuja
expressividade, mesmo em língua
de sua cultura, é hesitante. O
presente e o futuro de nossa interlocutora
mostra o não gozo de direito à
opinião e expressão (e outros
direitos interdependentes) a que tem direito,
em sua dimensão humana. Os traços
faciais de suas respostas e marcas de
seu semblante estão destituídos
de entusiasmo e ventura.
No
parlamento infantil, organização
dos continuadores de Moçambique
e Rádio comunitária, no
caso moçambicano, fala-se em língua
portuguesa, salvo raras e honrosas excepções.
Esta realidade dá azo à
colocação do também
prof. moçambicano Armindo Ngunga
segundo o qual a língua portuguesa
é língua de exclusão
social, porque, quem não a escreve
e nem a fala, é, pela lógica
das circunstâncias, excluído
dos “jogos de integração
social e nacional”. Assim, dá-se
cartão vermelho e tranca-se o pensamento,
sentimento e boca da pebanensa Helena,
para que não se expresse em espaços
constitucionalmente consagrados e (simbolicamente)
nacionais, por não saber falar
em língua portuguesa, imposta à
sua realidade sócio-cultural e
histórico-ancestral.
Família
As
coisas não começam na escola
e nem terminam no Parlamento Infantil
e na Rádio Comunitária de
Muniga. Passemos, então, para o
que conta sobre a família, sobre
a liberdade de conversa entre ela e os
pais. “Os meus pais não têm
o hábito de conversar comigo”.
Já perguntaram o que tu gostarias
de comer, num almoço, por exemplo?
“Nunca”. Na verdade, esta
pergunta foi feita a todas as crianças
entrevistas. E a resposta é “nunca”,
salvo pouquíssimas excepções.
O
ZAMBEZE deu oportunidade a Helena, para
que expressasse algo que gostaria de falar
aos seus pais, mas que nunca o disse.
Ela permaneceu muda, entretanto.
Carbono
João, o guia
Dia seguinte é 9. Pela manhã,
o frio e o nevoeiro vão estremecendo
os ossos dos Homens e crianças.
Mas, o dia reclama a produtividade em
Pebane. O sol solta raios quase raivosos.
E, com força, vai animando os pebanenses.
O ZAMBEZE aproveita a força dos
raios. Anda à caça dos outros
“nuncas” das crianças,
quanto ao seu direito à opinião
e liberdade de expressão. Não
é propositado. Momentos há
em que o negativo dá curiosidade.
Em menos de 24 horas, em conversa com
dezenas de crianças, percebeu que
usam muito o advérbio de negação
“nunca”. O “nunca”
das dezenas de crianças está
mesmo sumarizado em primeiro parágrafo
deste texto: “Nunca” falam
livremente com os pais. Também
“nunca” escutaram e participaram
de um programa infantil de Rádio
e “nunca”, a maioria, ouviram
falar da Organização dos
Continuares de Moçambique e muito
menos do Parlamento Infantil (PI). “Nunca”
foram ouvidas pelo Governo, nem distrital,
nem provincial e nem central sobre as
políticas públicas, desenhadas
para o desenvolvimento integral de sua
personalidade.
Entra
na Escola Secundária de Pebane.
Os meninos já terminaram os testes.
Descansarão alguma rotina. Saltitam.
Outros sentam nos bancos distribuídos
no recinto escolar e vão apanhando
os escassos raios solares. Conversa com
um deles. Carbono João Nomeado
é seu nome. Tem 17 anos. Frequenta
a 9ª Classe. Tem comportamento infanto-juvenil,
à mistura de ruralidade e urbanidade
pebanense.
Carbono
conta que os seus pais falam com ele,
quando têm interesse de lhe mandar
algo ou sempre que o interesse lhes favorecer.
“Coisas há que gostaria de
falar aos meus pais, que nunca disse”.
Por
que não falas? “Não
me dão espaço e nunca me
dão tempo pra falar”, reclama.
Alguma vez, foste perguntado o quer quer
comer, no almoço ou no jantar,
por exemplo? “Nunca”, assim
respondia Carbono, cujo sonho é
ser professor. Carbono é um adolescente
de porte forte de, mais ou menos, 150
metros.
Já
na escola, Carbono diz que os professores
têm sido abertos, dando-lhe(s) espaço
e tempo para expressar(em) suas opiniões.
Ele
acompanha de perto o funcionamento do
Parlamento Infantil, apesar de que não
é deputado. É colega de
escola e amigo de alguns deputados. E
diz: “O PI é muito fraco,
porque as suas actividades não
são sistemáticas e nem conhecidas
por milhares de crianças de Pebane”.
Carbono afirmou que “nunca”
as autoridades do governo distrital ouviram
as crianças sobre o que gostariam
que fosse feito para o desenvolvimento
integral de suas personalidades, limitando-se
somente a fazer o que lhes convém.
Carbono,
que aceitou gentilmente ser nosso guia
por 2 dias, diz que, caso fosse possível
falar ou propor algo em relação
ao desenvolvimento de Pebane, através
da Rádio, PI ou Continuadores,
gostaria de apelar a construção
de uma escola pré-universitária.
Flora
Jaime, a tradutora
Flora, 7 anos, frequenta a Escola Primária
24 de Julho. Traduziu... Também,
disse “nunca” ter participado
da Continuadores, PI e de uma edição
de programa infantil da RCM. “Em
casa ‘nunca’ os papás
perguntaram o que desejo comer”.
Dara,
Olida e Nove
Duas meninas também aceitaram conversar.
Dara Fernandes, 12, diz lembrar que seus
pais perguntaram que gostaria de comer
só uma vez. Olida Justina, 14,
respondeu “nunca” ter sido
perguntada pelos pais o que gostaria de
comer, mesmo em meio à fartura
de alimentos em sua casa.
Dara
é aluna de 7ª Classe na Escola
Primária Josina Machel. E Olida
é aluna da 8ª Classe, na Escola
Secundária de Pebane. As duas felizmente
já ouviram falar do PI, mas não
sabem para que existe e nem tão
pouco conhecem os seus representantes.
À
semelhança de Carbono, Dara e Olida
afirmam “nunca” terem sido
ouvidos pelos “titios” governamentais
sobre as suas vidas: escola, alimentação,
jardim e programa radiofónico infantis,
saúde, pais.
Para
além das cinco crianças
supremencionadas, que deixaram as suas
ricas falas, o ZAMBEZE conversou com mais
nove crianças. São elas,
nomeadamente: Marcos Mateus (16 anos),
Benedito Fernando (16), Lídia Marcelino
(15), Amilton Fernando (17), Carlito Inácio
(16), Ivânia Nobre (14), Alima Issa
(14), Urbai Nobre (15), todas alunas da
Secundária local. A outra é
Joaquim Gabriel, 9 anos, 5ª Classe
e é aluno de Escola Primária
24 de Julho.
De
um modo geral, as crianças lamentam
o facto de os pais não criarem
espaço familiar para que falem
livremente. Outra lamentação
prende-se com os políticos distritais
que não criam oportunidades para
que gozem, efectivamente, do direito à
fala e liberdade de expressão.
Factores
culturais
A professora da Escola Secundária
de Pebane, Guilhermina da Lídia
Francisco, aponta factores culturais locais
como “grandes impeditivos”
de liberdade de expressão em Pebane.
“Os
pais de Pebane e não só
não aprenderam e nem foram socializados
para valorizar as crianças em sua
dimensão humana”, afirma.
Da
Lídia Francisco redimensiona sua
afirmação dizendo que é
por isso que os pais chegados à
idade adulta dificilmente poderão
ouvir e conversar com seus filhos, num
ambiente livre de preconceitos. “Estou
a falar de comportamentos e atitudes intergeracionais
de relação pais e filhos.
Em nossa cultura, a visão e a palavra
das crianças é subestimada”.
Sublinhou
ainda que os professores, não raras
vezes, têm esse comportamento desajustado:
subestimar a opinião das crianças,
daí algum acanhamento que elas
apresentam.
Por
outro lado, Da lídia Franscisco,
que é, igualmente, coordenadora
de programa radiofónico infantil
da Rádio local, sublinha que as
autoridades governamentais, sejam de base
ou de topo, não deixarão
de ser “preconceituosas” para
com crianças, por apenas serem
governantes. “Preconceito não
tem status”.
“Temos
de mudar a estrutura sócio-cultural
de relações sociais e de
poder familiar, para que os adultos, gradualmente,
em esferas várias, possam compreender
a dignidade humana das crianças”.
Da
Lídia Francisco é dinamizadora
de programas e actividades infantis ao
nível do distrito de Pebane: Organização
dos Continuadores de Moçambique,
Parlamento Infantil e Programa Radiofónico
da Rádio Comunitária Muniga.
Esta opera 11 horas por dia e só
dedica duas horas, por semana, para programa
infantil. Este programa, segundo soube
o ZAMBEZE, versa sobre direitos da criança,
servindo também para que as crianças
saibam cantar.
Parlamento
Infantil
O presidente do Parlamento Infantil de
Pebane, Abáss Sapueira, lamentou
ao ZAMBEZE o facto de o governo distrital
“não cooperar” com
o órgão que dirige, em várias
actividades sobre crianças.
“Temos
visto, com alguma constância, actividades
para o desenvolvimento das crianças.
Mas, nunca fomos consultados sobre as
mesmas, para que antes de serem implementadas
tenhamos alguma opinião”.
Sapueira
diz nunca terem sido ouvidos pelo governo
distrital sobre políticas públicas
para o desenvolvimento integral de suas
vidas.
Critica
ainda o facto de o governo distrital ter
subestimado a cerimónia de abertura
do PI em Março último, “por
não ter comparecido convenientemente".
O nosso entrevistado adiantou que o governo
distrital delegou o director de Saúde,
quando “havia maior necessidade
de o administrador estar presente”.
Sapueira,
14 anos, 8ª Classe, Escola Secundária
de Pebane, é uma criança
extrovertida que, no mínimo, conhece
os seus direitos e deveres de cidadania.
O
PI de Pebane reúne-se aos sábados
na Escola Primária 24 de Julho,
onde discute direitos da criança,
situação da criança
órfã e vulnerável
e como fazer pressão ao Governo
para garantir e materializar os seus direitos.
Governo
Distrital
O
secretário permanente do distrito
de Pebane, Dúlio Nobre, reconhece
que as crianças sejam minimizadas
pelos adultos, em nossa estrutura familiar.
“Mas,
penso que, ao nível da estrutura
governamental, os governos de Moçambique
sempre valorizaram as crianças,
razão pela qual o primeiro governo
de Moçambique Independente criou
a Organização dos Continuadores
e hoje existe o PI”.
Nobre
referiu que a reclamação
do PI de o Governo distrital subestimar
auscultá-lo significa que elas
(crianças) têm consciência
de seu direito à opinião.
“Que continuem a lutar, pelos seus
direitos à expressão, para
que a luta pela democracia avance”,
sublinhou.
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Nota:
3
- Agradeço o apoio financeiro do
UNICEF-Moçambique e o apoio técnico
do MISA-Moçambique, para a feitura
desta reportagem, publicada no jornal
ZAMBEZE a19 de Setembro de 2008
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