Livros
Direitos Humanos
Direitos
Humanos
Direitos
Humanos em Moçambique
Josué
Bila
Parte
I – Artigos
Capítulo
II
EUA, UE e direitos humanos
(Ir)relevância
dos direitos humanos2
Creio
que muitos cosmopolitas e nacionais participativos
sejam como eu. Sofro de um tipo de desconfiança
racional, quando os direitos humanos são
defendidos ou discursados, de dentro para
fora, pelos países hegemónicos,
particularmente Estados Unidos da América
(EUA) e União Europeia (UE). Minha
desconfiança racional parte do
pressuposto de que, depois da proclamada
Declaração Universal dos
Direitos Humanos, em 1948, os direitos
humanos, em vários casos, foram
usados para estabelecer-manter e alargar-perpetuar
interesses geo-ideológicos, políticos
e económicos dos países
hegemónico-capitalistas.
Talvez
os leitores pensem que, além da
desconfiança racional, padeço
de frustração racional e
de cidadania pessimista. Até pode
ser verdade. Explico-me: em meus 31 anos
de vida, já conheci muitas falcatruas
ideológicas, vícios políticos,
crises institucionais, corrupção
humano-moral e económica, no sistema-mundo.
Por isso, avento a possibilidade de que
não é menos verdade que,
no mínimo, esteja apontando o óbvio.
Estabeleler e manter interesses geo-ideológicos,
políticos e económicos,
como mecanismo de estabelecer e perpetuar
a hegemonia, torna, em essência,
os direitos humanos irrelevantes? Claro
que não. Os direitos humanos são
relevantes enquanto um discurso ético
e paradigma de dignidade humana para o
exercício pleno de cidadania, mantendo
as pessoas a usufruirem dos seus legítimos
direitos sociais, económicos, culturais,
ambientais, políticos e civis.
Reparem
que em meio ao cinismo, utopia e crença
ideológica, quando em 1948, 48
Estados aprovaram a Declaração
Universal dos Direitos Humanos (DUDH)
havia o discurso-esperança de que
a humanidade e as pessoas, individualmente,
poderiam, num futuro à vista, usufruir
de direito à alimentação,
água, habitação,
emprego, segurança social, lazer,
educação, saúde,
respeito aos cidadãos pelas autoridades
governamentais, agentes e instituições
policiais e judiciais, participação
política e demais direitos de cidadania
que trazem proximidade e completude à
justiça social e direitos humanos.
Contrariamente
às expectativas, 62 anos depois,
o cinismo, utopia e crença ideológica
nos discursos de direitos humanos revelam
ter cumprido a sua profecia de desgraça
social: o crescimento de injustiças
e da pobreza - e todos os males similares
a elas que ocorrem, particularmente, nos
países pobres e/ou empobrecidos
– está estruturado e previamente
programado nos centros e periferias das
elites ou grupos hegemónicos do
mundo. Desta última colocação
pode-se ressaltar que o uso manipulador
dos conteúdos de direitos humanos
não é somente uma marca
registada dos EUA e da UE, mas também
de muitos países e/ou blocos regionais,
quando almejam tirar vantagens na opinião
pública (inter)nacional e ganhar
financiamentos de doadores. Países
que, nos últimos 25 anos, instituíram
normas de direitos humanos em suas constituições
são exemplo disso.
Na
verdade, a desgraça social a que
se encontram submetidos os milhares e
milhares de seres humanos no mundo contradiz,
seguramente, as intenções
discursivas proclamadas nos instrumentos
internacionais de direitos humanos. A
DUDH, por exemplo, no artigo 25 discursa:
“Toda pessoa tem direito a um padrão
de vida capaz de assegurar a si e a sua
família saúde e bem-estar,
inclusive alimentação, vestuário,
habitação, cuidados médicos
e os serviços sociais indispensáveis,
o direito à segurança, em
caso de desemprego, doença, invalidez,
viuvez, velhice e outros casos de perda
dos meios de subsistência, em circunstâncias
fora de seu controlo”.
Convém
sublinhar que em vários cantos
do mundo, particularmente nos terminais
mundiais da pobreza, o artigo 25 da DUDH
não passa de uma intenção
declarativa internacional, por falta de
uma atitude ético-moral (inter)nacional
coerente e permanente de distribuição
da riqueza, com vista à implementação
integral de justiça social e direitos
humanos. Consequentemente, dados recentes
da agência das Nações
Unidas para Agricultura e Alimentação
(FAO), dos cerca de 6.4 biliões
de seres humanos, 1 bilhão passa
fome; 1.1 bilião não tem
acesso à água potável
e 2.6 biliões careçam de
saneamento básico, segundo a Organização
Mundial da Saúde (OMS) e Fundo
das Nações Unidas para a
Infância (Unicef); mais de 2 biliões
não têm acesso a medicamentos
essenciais (OMS); um bilião não
tem moradia adequada (relatório
das Nações Unidas para o
direito à moradia) e 2 biliões
vivem sem electricidade. Os dados revelam
ainda que duas em cada cinco crianças
do mundo em desenvolvimento têm
crescimento atrofiado, uma em cada três
está abaixo do peso e uma em cada
dez está fadada à morte
(Unicef). Os números indicam ainda
que mais de 179 milhões de crianças
com menos de 18 anos realizam piores formas
de trabalho infantil, inclusive actividades
agrícolas, construção
civil, escravidão, tráfico,
servidão por dívida e outras
formas de trabalho forçado, recrutamento
forçado de crianças para
o uso em conflitos armados, prostituição,
pornografia e actividades ilícitas
(UNIFEF). Os dados não param por
aqui. São muitos que revelam o
quão injusto é o mundo em
que vivemos.
Ainda
que não seja factor único
e exclusivo que propicia as injustiças
no mundo, descritas em parágrafo
anterior, o clima internacional de manipulação
discursiva de direitos humanos ao gosto
dos Estados capitalistas mergulhou em
países pobres, sob conivência
das elites dos Estados não centrais,
a exemplo de Moçambique - meu país
de única e exclusiva nacionalidade.
Em Estados não centrais se desenvolveu
a ideia e a prática de supervalorização
pública e midiática de direitos
civis e políticos, em detrimento
de sua contraparte: direitos económicos,
sociais e culturais, ainda que estes últimos
direitos também estivessem instituídos
em Constituições e leis
locais.
As
consequências dessa supervalorização
ideológica de direitos civis e
políticos são desesperadoras,
pois há uma tendência internacional
de se observar, por exemplo, a realização
de eleições, garantias e
liberdades individuais, para legitimar
governos, mesmo que estes não tenham
interesse primário de serem servidores
públicos, que materializarão
os direitos económicos, sociais
e culturais. Qualquer defesa de realização
de eleições e publicitação
de garantias e liberdades individuais
que desqualifica a implementação
paralela de direitos económicos,
sociais e culturais é uma farça
democrática e falácia contemporânea.
Por
outro, o discurso ideológico dos
direitos humanos atrofia a percepção
de que a erradicação das
injustiças e desigualdades sociais
ultrapassa a mera legislação
em Constituições nacionais
( e por que não pensar nas previsíveis
constituições regionais,
a exemplo dos recentes debates sobre a
Constituição Europeia).
Assim, a materialização
de todas as categorias de direitos humanos
transcende a institucionalidade normativa
de direitos humanos, em quadros jurídico-constitucionais
e na legislação avulsa.
Dito de outra forma, o reconhecimento
discursivo jurídico-constitucional
de direitos humanos para todos é
mera demagogia doméstica e internacional,
se vários segmentos populacionais
não estão inseridos - e
nem há um esforço político-governamental
e internacional visível - no sistema
de exercício de cidadania integral,
para uma vida de dignidade humana.
O
discurso da DUDH, e consequentemente repercutido
em quase todas as constituições
nacionais, institui, ao lado de direitos
sociais, as liberdades e garantias individuais
e realização de eleições.
A realização de eleições
e a aparente materialização
de outros direitos civis e políticos
fertiliza a legitimação
do poder político e económico
que, não raras vezes, está
a serviço dos grupos hegemónicos
internacionais (Banco Mundial e FMI),
cujos interesses obscuros criam e alimentam
uma grandíssima variedade de paisagens
de injustiças. Lamentável.
Este leque de considerações
não é apenas uma demonstração
de minha frustração racional,
mas referência de uma realidade
conhecida e lembrada por muitos cosmopolitas
e nacionais participativos. Sabe-se que,
nos últimos 25 anos, países
vários renderam-se à democracia
eleitoral e a governos democráticos.
Mas não é menos verdade
que instituições democráticas,
constitucionalmente reconhecidas, vivam
despreparadas e distantes da realidade
de vida diária dos segmentos populacionais,
por o discurso ideológico dos direitos
humanos estar a encobrir o seu lado manipulador:
não tem um interesse objectivo
e comensurável de erradicar as
injustiças e a pobreza. Aliás,
paralelamente à aprovação
do quadro jurídico-constitucional
que institui eleições democráticas
e outras liberdades civis e políticas,
países pobres ou em vias de desenvolvimento
foram obrigados, pelo Consenso de Washington,
a introduzir programas de (re)ajustamento
estrutural, cujas consequências
macro-económicas e sociais são
contrárias aos direitos humanos.
Quem não se lembra dos desastres
sociais, económicos e financeiros
em países pobres causados pelo
Fundo Monetário Internacioal e
Banco Mundial, instituídas e legitimadas
pelo Consenso de Washington, desde 1989?
Não se pode também esquecer
que o discurso ideológico dos direitos
humanos revela as injustiças, que
ocorrem dentro de determinadas fronteiras,
como se fossem consequências exclusivamente
de falhas de políticas nacionais,
encobrindo hipocritamente a manipulação
ideológica internacional de direitos
humanos.
A
arquitetura ideológica dos direitos
humanos dos países desenvolvidos
e capitalistas se assenta, dentre vários
factores, na expansão internacional
de capitais e de multinacionais, sob a
alegação retórica
de desenvolver os Estados pobres ou em
vias de desenvolvimento. Porém,
quando os países pobres, ainda
que se deixem reger pela democracia eleitoral
e liberal, reagem contra a manipulação
ideológica de direitos humanos
são politicamente atacados por
Estados capitalistas. Estes atacam os
países pobres para fins geopolíticos
e económicos de manipulação
ideológica e social. Se apontar
os Estados Unidos da América e
a União Europeia que muito mostraram
ao resto do mundo o quão talentosos
foram no uso do discurso ideológico
de direitos humanos como arma de defesa
de sua economia e política externa,
estarei dando um exemplo categórico
e contemporâneo.
Minha
memória parece fértil por
este tempo em que escrevo o presente texto
sobre a manipulação ideológica
de direitos humanos, por lembrar o pedaço
seguinte. Depois de Timor-leste alcançar
a sua Independência em 1975 da administração
colonial portuguesa, foi retrogradamente
invandida pela Indonésia, sob silêncio
dos EUA e União Européia
que comandam a comunidade internacional.
Como se isso não bastasse, o povo
timorense, segundo escreve o professor
americano Richard Falk, citado por Boaventura
de Sousa Santos (2004)**, sofreu um trágico
genocício que ceifou cerca de 300
mil vidas, cujas informações
foram ocultadas pela mídia ocidental,
como se de violação de direitos
humanos não se tratasse, por duas
razões: 1) imperativos da política
externa norte americana e 2) facilitação
de continuação do próspero
comércio ocidental com a Indonésia.
Minha
desconfiança racional continua,
em forma de perguntas. Quem não
se lembra do apoio camuflado e silencioso
dos EUA e da UE ao Apartheid na África
do Sul? Quem não ficou indignado
pelo facto de o mais famoso líder
sul africano, Nelson Mandela, ter sido
apelidado de terrorista pelo poder político
estadunidense, durante e depois do Apartheid?
Quem não colocou a mão no
seu queixo, quando da divulgação
da notícia segundo a qual somente
em 2009, o Senado estadunidense decidiu
retirar o nome de Nelson Mandela da lista
dos considerados terroristas pelo seu
alto órgão dos senadores?
Afinal, também é terrorista
quem luta pela liberdade e democracia
do seu povo? Quem não se lembra
do apoio financeiro, humano, moral e logístico
dos EUA a movimentos de Angola e Moçambique
(Unita e Renamo, respectivamente), para
destruírem vidas humanas e infraestruturas
sociais e económicas, em nome de
direitos humanos? Quem não ficou
indignado quando da recusa do apoio dos
EUA ao então movimento de libertação
de Moçambique (Frelimo), que lutava
contra a administração colonial
portuguesa, nos anos 1964 a 1974? Quem
não sabe que, em nome dos direitos
humanos, os EUA e alguns países
da UE usam indiscriminadamente a força
bélica e financeira, causando mortes
injustificáveis e nudez social
e humana em vários cantos do globo?
Se fizer fé à consideração
segundo a qual os EUA não invadiram
o Iraque para derrubar o (regime do) Saddam
Hussein, mas, sim, pelos interesses petrolíferos
e exibição do poderio militar,
estaria errado?
A
professora brasileira Danielle Annoni
(2001), criticando o facto de os EUA intervirem
nos outros Estados, quando os seus interesses
estão em pauta, lembra o ex-primeiro-ministro
iraniano Mohamed Mossadegh, que foi deposto
em 1953, por um golpe da CIA, por ter
nacionalizado o complexo petrolífero
anglo-americano. O lugar de Mohamed Mossadegh
foi ocupado pela sangrenta ditatura de
Xá Reza Pahlevi. Na Guatemala,
em 1954, a CIA depôs o presidente
Jacobo Arbenz, por ter nacionalizado a
empresa United Fruit e impulsionado a
reforma agrária. Nos anos anos
60 e 70, em razão da guerra fria
e na briga pela hegemonia ideológica
do mundo, os EUA despejaram milhares de
toneladas de bombas sobre as populações
de Vietname e Indochina (2.5milhões),
Camboja (600 mil mortes) e Laos (350 mil
mortes).
Irrelevância
dos direitos humanos?
Se respondesse que os direitos humanos
são irrelevantes pelo simples facto
de os países e grupos hegemónicos
os defenderem quando almejam ganhar resultados
geo-ideológicos, políticos
e económicos, estaria a ser incoerente.
Como jornalista, decidi defender direitos
humanos há sete anos. Da minha
singela experiência fui percebendo
que não há defesa de direitos
humanos que sobreviva se não estiver
ancorada na defesa dos socialmente oprimidos,
injustiçados e excluídos
que vivem dentro e fora das fronteiras
de minha nacionalidade. Assim, afirmo
que os direitos humanos são relevantes,
porque exorcizam positivamente o exercício
pleno de cidadania política, económica,
social, cultural e ambiental.
Posto
isto, os países hegemónicos
são chamados a largar – e
não alargar - a sua arrogância,
assentando-se sobre o paradigma de ética
de justiça social, para um mundo
em que as pessoas, individual ou colectivamente,
vivam dentro dos mínimos direitos
básicos: alimentação,
água, habitação,
emprego, segurança pública
e social, lazer, educação,
saúde, respeito aos cidadãos
pelas autoridades governamentais, agentes
e instituições policiais
e judiciais, participação
política e demais direitos de cidadania
que trazem proximidade e completude à
justiça social e direitos humanos.
Sou
também da crença de que
reuniões do Fórum Social
Mundial, organizações não
governamentais domésticas e internacionais
e alguma mídia de intervenção
política e social têm vindo
a surtir seus efeitos enquanto espaços
de activismo, debate e defesa de direitos
humanos, em muitos lugares do planeta.
Porém, se comparados com a força
e influência que Estados hegemónicos
e suas multinacionais exercem para desbaratar
direitos humanos, seus resultados podem
causar frustração.
Por
isso, precisamos de um mundo que se baseie
na ética de direitos humanos e
solidariedade norte-sul, sul-sul e sul-norte,
na esperança de que erradiquemos
o discurso hegemónico e manipulador
de direitos humanos, implementando a justiça
e inclusão sociais. A ONU é
chamada a “intervir intervindo”.
Assim, cosmopolitas e nacionais participativos
não duvidarão da relevância
dos direitos humanos, enquanto inspirados
pela dignidade humana e padrão
de exercício de cidadania.
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Nota:
2
- São Paulo, Março de 2010
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