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3 - Petição do Centro Santo Dias à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA

 

Em 6 de setembro de 1994, o Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo encaminhou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA uma petição, denunciando nove casos de violência policial que não mereceram a atenção devida dos órgãos competentes no Brasil. A íntegra da petição1 é essa:

 

Exma. Sra. Embaixadora

Edith Márquez Rodriguez

Secretária executiva da

Comissão Interamericana de Direitos Humanos

1889 F. Street, N.W.

Washington, D.C. 2006

Estados Unidos

 

Brasil, 6 de setembro de 1994

 

Senhora embaixadora,

O Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo, representado por seus diretores Fermino Fechio Filho - Coordenador; Benedito Domingos Mariano - Secretário Geral; Therezinha Brandão Machado - Tesoureira, vem, respeitosamente, submeter a presente petição perante essa Comissão Interamericana de Direitos Humanos, através da qual denuncia nove casos de violações de direitos humanos fundamentais cometidos pela Estado do Brasil, fazendo-o de acordo com os artigos 44 a 51 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

1- Da natureza dos casos e justificativas para a petição

Os casos denunciados referem-se a vítimas civis mortas ou mutiladas por policiais militares, agentes do Estado do Brasil, sem motivo justificado, violando assim os artigos 4 e 5 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o artigo 1 da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem.

Todos os casos ora apresentados foram, no âmbito interno do Estado, processados perante a Justiça Militar do Estado de São Paulo, sem que até a presente data tenha havido uma solução, decorridos, no caso mais recente, cinco anos da data dos fatos e até doze anos, nos casos mais antigos (o único caso em que já houve decisão definitiva, Celso Bonfim de Lima, cumpre o disposto no artigo 46.1.b, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Em todos os processos as vítimas (ou seus parentes) atuam na qualidade de assistentes de acusação, representados, legalmente, pelos advogados desta entidade.

Ocorre que, desde 1977, sempre que policiais militares cometem quaisquer crimes contra civis, as investigações são feitas pela própria Polícia Militar e os policiais acusados são julgados, quando o são, por seus pares, por um Tribunal que se tem mostrado parcial, dependente e ineficaz para assegurar a justiça e  punição dos culpados.

Não obstante a previsão constitucional da Justiça Militar, essa Justiça deveria julgar apenas crimes propriamente militares como acontecia até 1977, quando prevalecia o entendimento uniforme no sentido de que “oficiais e praças das milícias dos Estados, no exercício de função policial civil não são considerados militares para efeitos penais, sendo competente a justiça comum para julgar os crimes cometidos por ou contra eles” (Supremo Tribunal Federal, Súmula 297).

Casos de corrupção, de lesões corporais, de homicídios cometidos por policias militares, em atividade de policiamento comum ou de trânsito, eram, até então, objeto de apreciação da justiça comum, uma vez que a competência da justiça militar “...somente abrange os crimes militares, praticados nos estabelecimentos militares, na qualidade de militares” (Supremo Tribunal Federal, conflito de jurisdição n. 2.800, Rio Grande do Sul, Diário da Justiça da União, de 18.06.64, p. 362). Aliás, o Decreto-lei Federal nº 667, de 02.07.69 era expresso ao estabelecer que “o foro militar é competente para processar e julgar o pessoal das Polícias Militares nos crimes definidos em lei como militares” (art. 1, parágrafo único).

Em 1977, a Emenda Constitucional nº 7, baixada por um governo militar e de exceção, mudou o entendimento sobre a matéria, passando o Supremo Tribunal Federal a decidir que a competência para o julgamento de quaisquer crimes praticados por policiais militares, nas atividades de policiamento, caberia, onde houvesse, às Justiças Militares Estaduais.

Instaurou-se, então, uma verdadeira competência de exceção dos Tribunais Militares garantidores  de impunidade e fortalecidos pelo seu corporativismo.

Em março de 1982, a Ordem dos Advogados do Brasil - São Paulo afirmava que a causa principal do aumento do número de mortes praticadas por policiais militares era a impunidade gerada pelo sistema de julgamento a que eles são submetidos (Folha de S. Paulo, 07.03.82).

Na edição do dia 20 de agosto de 1982 do jornal O Estado de S. Paulo, publicou-se: “A impunidade, e a prepotência, a cobertura da Justiça Militar do Estado, transformaram um grupo de policiais chamados de “vingadores da sociedade”, em vingadores que passaram a cometer excessos, a matar pessoas inocentes, a espancar trabalhadores, com a resposta de que quem enfrenta o crime está arriscado a cometer erros”.

Ainda assinalando a relação entre os crimes praticados por policiais militares e a atuação da Justiça Militar, a edição do dia 10 de janeiro de 1983 do Jornal da Tarde trazia a público extensa reportagem sobre o desempenho da Justiça Militar Estadual assinalando que: “...a Justiça Militar começou a receber todo os casos (referia-se à Emenda Constitucional n. 7/77) e absolveu maciçamente os soldados e oficiais que matam. Em conseqüência dessa impunidade, quase quatrocentos homens morreram no ano passado, nem todos delinqüentes - as vítimas em sua maioria, são jovens, meninos que cometeram uma ou duas infrações, pobres da periferia, oriundos das camadas mais miseráveis da população...”

As assertivas publicadas pela imprensa são confirmadas por vários dados estatísticos.

Pesquisa realizada pelo Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo, a partir de 380 processos relativos ao período de 1977 a 1983, encerrados e arquivados no Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo, revelou que dos 82 policiais militares julgados por homicídio doloso, apenas 14 foram condenados.

Recente publicação (1993), intitulada “Os Direitos Humanos no Brasil”, organizada pela Universidade de São Paulo, Núcleo de Estudos da Violência e Comissão Teotônio Vilela, indicou que “...tais tribunais (militares) raramente condenam policiais militares, mesmo pelos piores crimes. De acordo com um promotor do sistema judiciário militar do Rio de Janeiro, de cinqüenta e três policiais militares que foram levados a julgamento em 1992, 70% foram absolvidos”. E ainda: “A conseqüência desse virtual foro militar é a impunidade: os processos são tão lentos que a justiça não atua como dissuasória ou como punição para as execuções criminais”.

Os casos ora denunciados referem-se, na sua maioria, a vítimas jovens, trabalhadoras, sem antecedentes criminais e residentes na periferia da cidade de São Paulo, local onde moram as classes sociais economicamente mais desfavorecidas. Essa caracterização das vítimas está presente também em grande parte de crimes cometidos por policiais militares, em geral, o que pode sugerir um delineamento institucional informal na repressão de alguns setores sociais, tornando ainda mais inadequado o  julgamento desses crimes pelos Tribunais Militares.

Assim se manifestou essa digna Comissão em um de seus informes:

“La independência de los tribunales y jueces del poder político es una de las condiciones fundamentales de la administracion de justicia (...) limitaciones derivadas de la estructura y composición de los tribunales, solo puedem ser juridicamente justificadas por la naturaleza verdaderamente excepcional de las situaciones en que estos tribunales deben actuar, la intervencion generalizada y praticamente rutinaria de los tribunales militares de tiempo de paz en la consideración de una muy amplia categoria de conductas constituye necessariamente, una extralimitación de los fines para los cuales elle son contemplados” (Informe Chile, 1985, p. 199 e 200).

Nos casos apresentados a seguir nota-se a presença de vários estratagemas revestidos, por vezes, de aparência legal, que visam, em última instância, tumultuar a apuração dos casos (caso Marcos Almeida Ferreira, por exemplo, em que se tentou transformar a vítima em algoz) e procrastinar o feito, em uma série sucessiva de audiências designadas e adiadas que arrastam o processo por vários anos, levando, em alguns casos, à prescrição e ao esquecimento dos fatos nas páginas de jornais e na memória das pessoas. Com o correr do tempo, provas se esmaecem, tornando-se extremamente difícil a sua preservação. Testemunhas, não raro já intimidadas e amedrontadas, mudam de endereço ou não «conseguem» recordar-se do que viram com exatidão.

Casos que vão a julgamento, muitas vezes têm a imputação inicial desclassificada para um delito menos grave, a fim de que o réu possa beneficiar-se da prescrição da pena em concreto (caso de Celso Bonfim de Lima, por exemplo). Outras vezes, os réus são simplesmente absolvidos e a sentença fica anos sem ser formalizada, inviabilizando, assim, o recurso de apelação (caso de Wanderlei Gallati, por exemplo). Em alguns casos, ainda, a morosidade da Justiça Militar no quediz respeito ao andamento processual acaba por acarretar a decretação da extinção da punibilidade por prescrição da pretensão punitiva do Estado (por exemplo, caso de Carlos Eduardo Gomes Ribeiro).

Casos processados não garantem um futuro julgamento. Julgamentos marcados são sucessivamente adiados (são os casos, por exemplo, de Delton Gomes da Mota, Clarival Xavier Coutrim, Aluísio Cavalcante Junior). Há, claramente, atraso injustificado nas decisões sobre os processos em andamento, motivo pelo qual deve se excetuar a exigência do prévio esgotamento dos recursos internos, segundo o disposto na letra “c”, do artigo 37, do Regulamento da Comissão.

O descaso da Justiça do Estado do Brasil em apurar e julgar adequadamente os crimes cometidos por policiais militares contra civis, fere o disposto nos artigo 8.1 e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e os artigos XVIII e XXIV da Declaração Americana dos Direitos do Homem.

Com relação ao direito da vítimas de serem indenizadas - o que também se pretende seja, ao final, garantido por essa Comissão Interamericana - é preciso ressaltar que em quatro dos casos ora denunciados (Marcos Almeida Ferreira, Marcos de Assis Ruben, Celso Bonfim de Lima e Wanderlei Gallati) as vítimas já ganharam, pelo menos, em primeira instância, a ação de indenização por responsabilidade civil proposta contra o Estado.

Segundo a legislação brasileira, a Ação de Indenização por Responsabilidade Civil contra o Estado pode ser proposta na esfera civil, em ação de conhecimento em que não se discute a culpa do agente do Estado (responsabilidade civil objetiva), ou em ação de execução de título executivo judicial, qual seja da sentença condenatória transitada em julgado, na esfera criminal. Em ambos os casos o direitos de ação prescreve em cinco anos.

Pelo fato da Justiça Militar ser, como demonstrado, extremamente morosa e corporativa, algumas das vítimas preferem exercer seu direito à indenização em ação civil independente, em princípio, do processo-crime militar.

Ressalte-se que mesmo nos casos em que o direito à indenização já está em vias de ser definitivamente garantido (o que ocorre apenas com o trânsito em julgado da decisão), a violação de direitos humanos fundamentais não foi de todo corrigida. A impunidade dos prepostos do Estado, violadores dos direitos à vida e à integridade física é determinante na manutenção e reprodução da violência policial e do abuso de poder. Revelar-se-ia significativa, nesse aspecto, a leitura das folhas de antecedentes criminais dos agentes do Estado que figuram como réus, nos casos ora denunciados.

Se a “Justiça Pública” é a autora dos processos criminais, é para a sociedade brasileira que o Estado deve assegurar a efetividade de remédios jurídicos propostos perante juiz ou tribunal competente, independente e imparcial que visem protegê-la contra atos que violem seus direitos fundamentais... “mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais”.

A certeza da impunidade e da ineficácia da Justiça Militar é um convite à reiteração da violência pelos agentes do Estado, motivo pelo qual, mister que se condene o Estado do Brasil a processar e punir os seus agentes violadores do direito à vida e à integridade física dos cidadãos, bem como a indenizar as vítimas das violações, nos casos em que essas ainda não o tenham sido.

2- Apresentação dos casos

São os seguintes os casos ora denunciados:

1- Oséias Antonio dos Santos

2- Clarival Xavier Coutrim

3- Celso Bonfim de Lima

4- Wanderlei Gallati

5- Delton Gomes da Mota

6- Aluísio Cavalcante Jr.

7- Marcos de Assis Ruben

8- Carlos Eduardo Gomes Ribeiro

9- Marcos Almeida Ferreira

Cada caso, individualmente apresentado, segue acompanhado de uma ficha com dados sumariados relativos à vítima, aos agentes do Estado violadores dos direitos fundamentais e aos fatos; histórico dos fatos e das medidas judiciais adotadas; e de cópias de alguns documentos relevantes dos processos.

Os endereços referidos nos dados sumariados não foram confirmados recentemente, de maneira que podem, eventualmente, ter sido alterados.

 

3- O pedido

Considerando que o Brasil, Estado-membro da Organização dos Estados Americanos, ratificou, voluntariamente e de boa-fé, a Convenção Americana de Direitos Humanos;

Considerando, à luz das evidências descritas nos relatos dos casos ora denunciados, que policiais militares, agentes do Estado brasileiro, estão diretamente envolvidos em crimes contra a vida e contra a integridade física de cidadãos comuns;

Considerando, à vista de todo o exposto nesta petição, que o Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo tem se mostrado ineficaz para assegurar a justa punição dos envolvidos nas referidas violações;

A entidade peticionária requer que os casos ora denunciados sejam admitidos por essa Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de acordo com o disposto nos artigos 44 a 51 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, condenando-se, ao final, o Estado do Brasil:

a- Pelas mortes e agressões à integridade física das vítimas da violação policial, por violação dos artigos 4 e 5 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos;

b- A conduzir os processos-crimes que apuram os fatos, de forma eficaz e capaz de assegurar retidão de procedimentos e provimentos justos, a fim de que sejam respeitados os artigos 8.1 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos e artigos XVIII e XXIV da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem;

c- A indenizar as vítimas da violência policial que ainda não tiverem sido indenizadas

Sendo o que se apresenta para o momento, aproveitamos a oportunidade para expressar sentimentos da mais alta consideração.

 

Fermino Fechio Filho

Benedito Domingos Mariano

Therezinha Brandão Machado 

   

[1] Essa petição foi elaborada pela assessoria jurídica do Centro Santo Dias, coordenada pela doutora Lígia Maria Daher Gonçalves.

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