Proteção
Constitucional dos Direitos Humanos
no Brasil: Evolução Histórica e Direito
Atual
José Afonso
da Silva
1. Direitos
humanos no constitucionalismo brasileiro
1.
A questão técnica que se apresentou na evolução
das declarações de direitos foi a de assegurar
sua efetividade através de um conjunto de
meios e recursos jurídicos, que genericamente
passaram a chamar-se garantias constitucionais
dos direitos humanos.
Tal
exigência técnica determinou que o reconhecimento
desses direitos se fizesse segundo formulação
jurídica positiva, mediante sua inscrição
no texto das constituições.
2.
Assim, como nota Biscaretti di Ruffia, se
deu a subjetivação e a positivação
dos direitos dos indivíduos com sua enunciação
constitucional, imprimindo às suas fórmulas,
até então abstratas, o caráter concreto
de normas jurídicas positivas, válidas
para os indivíduos dos respectivos Estados,
com previsão também de outras normas destinadas
a atuar uma precisa regulamentação jurídica,
de modo a não requerer ulteriormente, a
tal propósito, a intervenção do legislador
ordinário.1 Daí por diante, as constituições
democráticas passaram a trazer um capítulo
em que são subjetivados e positivados
os direitos fundamentais do homem.
3.
À Constituição Política do Império do Brasil,
outorgada por D. Pedro I em 25.3.1824, cabe
um lugar de destaque nesse processo de positivação
dos direitos do homem, que ela enunciou,
com as garantias pertinentes, no art. 179
e seus trinta e cinco incisos, onde se declarava
garantida a inviolabilidade dos direitos
de liberdade, igualdade, segurança individual
e propriedade, mas, como disse Pimenta Bueno,
nosso melhor constitucionalista do Império,
não só cada um daqueles direitos se dividia
em diversos ramos, mas também eles se combinavam
entre si, e formavam outros direitos igualmente
essenciais.2 Aí encontramos, em enunciado
claro e preciso, os direitos humanos da
primeira geração até então conhecidos no
constitucionalismo americano e europeu.
É notória, porém, a influência das declarações
que acompanhavam as Constituições francesas
do final do século XVIII. É de ressaltar
o conjunto de garantias constitucionais
da liberdade, da dignidade e da privacidade
que ela estatuía como direito de segurança
dos indivíduos. Em face desse conjunto de
garantias, Pimenta Bueno adiantou-se no
tempo e nos brindou com a seguinte concepção
do direito de segurança: "no estado
social é o direito que o homem tem de ser
protegido pela lei e sociedade em sua vida,
liberdade, propriedade, sua saúde, reputação
e mais bens seus. É finalmente o direito
de não ser sujeito senão à ação da lei,
de nada sofrer de arbitrário, de ilegítimo".3
Mas
a Constituição ia além da previsão dos direitos
tipicamente individuais, pois garantia também
o socorro público, que mereceu do citado
Pimenta Bueno a concepção de que, desde
que a sociedade é fundada, a idéia da proteção
é como que sinônima da de governo em favor
dos associados, pois, o poder público tem
o dever de proteger a vida da pessoa, sua
segurança social e a de seus bens e direitos.4
A Constituição não parava aí, avançava adiante,
para garantir a todos o direito à instrução
primária gratuita, assim como o ensino médio
e as universidades onde seriam ensinadas
as ciências e as artes.
4.
Seguramente, a Constituição do Império do
Brasil de 1824, que vigorou até 15 de novembro
de 1889, continha uma das mais avançadas
declarações dos direitos humanos do século
passado. Não se pode, porém, ocultar o fato
de que os direitos reconhecidos e garantidos
só serviam à elite aristocrática. De fato,
prometia a Constituição um regime liberal,
mas o liberalismo, que se expressava na
Europa da época "as aspirações da
burguesia interessada em organizar a sociedade
em bases novas, empenhada em rever valores
tradicionais, em atacar os privilégios da
nobreza e do clero, o poder absoluto dos
reis e organizar o Estado em forma a ter
o seu controle direto", no Brasil
de então significava apenas "a liqüidação
dos laços coloniais. Não se pretendia reformar
a estrutura colonial de produção, não se
tratava de mudar a estrutura da sociedade:
tanto é assim que em todos os movimentos
revolucionários se procurou garantir a propriedade
escrava".5
É
certo, como se afirmou acima, que a Constituição
do Império acolheu os direitos individuais
básicos que se encontravam inscritos na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
de 1789, mas esses direitos só serviam à
elite aristocrática que dominava o regime.
Como bem exprime Emília Viotti da Costa:
"Para
estes homens, educados à européia, representantes
das categorias dominantes, a propriedade,
a liberdade, a segurança garantidas
pela constituição eram reais. Não lhes
importava se a maioria da nação se constituía
de uma massa humana para a qual os preceitos
constitucionais não tinham a menor eficácia.
Afirmava-se a liberdade e a igualdade
de todos perante a lei, mas a maioria
da população permanecia escrava. Garantia-se
o direito de propriedade, mas 19/20
da população, segundo calculava Tollenare,
quando não era escrava, compunha-se
de ‘moradores’ vivendo nas fazendas
em terras alheias, podendo ser mandados
embora a qualquer hora. Garantia-se
a segurança individual, mas podia-se
matar impunemente um homem. Afirmava-se
a liberdade de pensamento e de expressão,
mas não foram raros os que como Davi
Pamplona ou Líbero Badaró pagaram caro
por ela. Enquanto o texto da lei garantia
a independência da justiça, ela se transformava
num instrumento dos grandes proprietários.
Aboliam-se as torturas, mas nas senzalas,
os troncos, os anjinhos, os açoites,
as gargalheiras, continuavam a ser usadas,
e o senhor era o supremo juiz decidindo
da vida e da morte de seus homens."
E
concluía: "A fachada liberal
construída pela elite europeizada ocultava
a miséria e escravidão da maioria dos
habitantes do país."6
5.
De fato, o regime monárquico não era democrático.
Embora se tratasse de monarquia constitucional
e representativa, a verdade é que os mecanismos
centralizadores e definidores do poder pessoal
do monarca não possibilitavam a vigência
do princípio democrático. Sistema eleitoral
censitário, deputados e senadores eleitos
indiretamente. Senado vitalício. Organização
dos poderes segundo a formulação de Benjamin
Constant, ou seja: poder legislativo, poder
moderador, poder executivo e poder judiciário,
onde o poder moderador era definido como
a chave de toda a organização política;
cabia ao Imperador que também exercia o
poder executivo por intermédio de seus Ministros.
O drama dos direitos humanos no Brasil sempre
residiu na falta de vigência da democracia,
como regime de garantia geral da efetiva
realização dos direitos fundamentais da
pessoa humana. Tivemos muito poucos momentos
democráticos ao longo de nossa história.
6.
A proclamação da República, em 15.11.1889,
não melhorou muito essa situação. A respectiva
Constituição, promulgada a 24.2.1891, estabeleceu
que a Nação brasileira adotava como forma
de governo a República Federativa,
constituída, pela união perpétua e indissolúvel
das suas antigas províncias, em Estados
Unidos do Brasil. Cada província virou
Estado da Federação instituída já pelo Decreto
n.1, de 15.11.1891. Perfilhou-se o regime
democrático representativo. Optou-se pelo
presidencialismo à moda norte-americana.
Rompeu com a divisão quadripartita dos poderes
da Constituição do Império, agasalhando
a doutrina tripatita de poderes(legislativo,
executivo e judiciário). Firmou a autonomia
dos Estados. Previu a autonomia dos Municípios.
Enfim, a Constituição era um belo arcabouço
formal, tecnicamente bem feita e sintética
(91 artigos, enquanto a do Império tinha
179). Era, no dizer de Amaro Cavalcânti,
o "texto da Constituição norte-americana
completado com algumas disposições das Constituições
suiça e argentina". Faltou-lhe,
porém, vinculação com a realidade do país.
Por isso, não teve eficácia social. Não
regeu o meio social para o qual fora feita.
Isso vale também para sua famosa Declaração
de Direitos, constante da Seção II do
Título IV, onde assegurava a brasileiros
e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade
dos direitos concernentes à liberdade,
à segurança e à propriedade na
forma discriminada nos 31 parágrafos do
art. 72, acrescidos de algumas garantias
funcionais e militares nos arts. 73 a 77,
indicando no art. 78 que a enumeração não
era exaustiva, regra que passou para as
constituições subseqüentes. Não apresentou
ela grande diferença em relação à Constituição
do Império. Acrescentou o direito de associação
e de reunião e incluiu o habeas corpus
como garantia constitucional, mas já não
previu o direito ao socorro público, nem
à resistência nem à instrução pública gratuita.
Só reconheceu os direitos e garantias
individuais, que, no entanto, também
não tiveram efetividade. O país era dominado
por uma política de governadores de Estado,
que se sustentavam no coronelismo,
que foi o poder real e efetivo, apesar das
normas constitucionais traçarem esquemas
formais de organização nacional com base
na teoria da divisão de poderes. O coronelismo
era um fenômeno político-social complexo.
O coronel, no caso, não é um título militar.
Mas proveio da influência da Guarda Nacional
que existiu durante certo período do Império.
"Com efeito, além dos que realmente
ocupavam nela tal posto, o tratamento de
‘coronel’ começou desde logo a ser dado
pelos sertanejos a todo e qualquer chefe
político, a todo e qualquer patenteado."
7
O
coronel era o chefe político local, mas
não era só isso. Bem o diz Vítor Nunes Leal:
"Dentro da esfera própria de influência,
o ‘coronel’ como que resume em sua pessoa,
sem substituí-las, importantes instituições
sociais. Exerce, por exemplo, uma ampla
jurisdição sobre seus dependentes, compondo
rixas e desavenças e proferindo, às vezes,
verdadeiros arbitramentos, que os interessados
respeitam. Também se enfeixam em suas mãos,
com ou sem caráter oficial, extensas funções
policiais, de que freqüentemente se desincumbe
com a sua pura ascendência social, mas que
eventualmente pode tornar efetivas com o
auxílio de empregados, agregados ou capangas."8
É nesse mesmo sentido a lição de Edgar Carone:
"O fenômeno do coronelismo tem suas
leis próprias e funciona na base da coerção
da força e da lei oral, bem como de favores
e obrigações. Esta interdependência é fundamental:
o coronel é aquele que protege, socorre,
homizia e sustenta materialmente os seus
agregados; por sua vez, exige deles a vida,
a obediência e a fidelidade. É por isso
que coronelismo significava força política
e força militar."9
O
regime formava uma pirâmide oligárquica,
cujo sistema de dominação se apoiava em
mecanismos eleitorais que deformavam a vontade
popular. O coronel, como liderança
local, arregimentava os eleitores e os fazia
concentrar perto dos postos de votação,
vigiados por sentinelas. Esses locais de
concentração dos eleitores passaram a ser
conhecidos como currais ou quartéis
eleitorais, de onde os eleitores saiam
conduzidos por prepostos do coronel para
votar no candidato por ele indicado. Como
o voto era a descoberto (a bico de pena,
como se dizia), o eleitor não tinha como
escapar da vigilância, até porque as mesas
eleitorais eram também formadas de elementos
do coronel. Outro elemento do sistema era
o cabo eleitoral, ainda hoje existente
com menor significação. Seu papel consistia
(e consiste) em angariar votos para os candidatos,
não por exposição de doutrina, mas à base
de distribuição de empregos ou favores pessoais.10
O sistema partidário era unipartidista,
ou seja, havia em cada Estado um partido
político apenas, que se denominava Partido
Republicano. Como cada Estado tinha
o seu, tomava ele o patronímico do respetivo
Estado: Partido Republicano Paulista
(o do Estado de São Paulo), Partido Republicano
Mineiro (o do Estado de Minas Gerais)
etc. A Comissão Executiva do Partido,
geralmente composta de cinco membros, dominada
pela oligarquia ou por prepostos dela é
que decidia quem seria candidato a deputado
ou senador. Se eventualmente alguém não
apoiado nas oligarquias dominantes conseguia
candidatar-se e eleger-se, escapando das
atas eleitorais falsas e outras barreiras,
por certo seria degolado pelo sistema
de reconhecimento de poderes, "feito
em conjunto pela Câmara dos Deputados e
Senado, para apurar a legalidade da eleição,
examinar as atas eleitorais e somar tudo
de novo, pois não havia naquela época Tribunais
Eleitorais." 11 Pois, como disse
Certório de Castro: "Eram eleitos,
diplomados e reconhecidos os candidatos
que as comissões executivas dos Partidos
houvessem indicado em seus boletins. Seções
eleitorais ao abandono, livros manipulados
nas casas dos coronéis que dirigiam a política
municipal, no dia seguinte cada jornal inseria
um resultado." 12
Enfim,
para concluir esse aspecto da organização
sócio-política da primeira República, vale
a pena transcrever mais esta passagem da
lavra de Leôncia Basbaum, que retrata, em
síntese, o regime, que estava muito longe
de ser uma democracia, a despeito da existência
de uma Constituição que formalmente garantia
os direitos individuais e firmava uma estrutura
de poder liberal e limitado, mas que, no
fundo e em seu funcionamento, formava uma
pirâmide oligárquica:
"Era
uma pirâmide em cujo ápice se encontrava
o Presidente da República, vindo logo
abaixo o Partido Republicano Paulista
e os partidos estaduais; e na base do
arcabouço, o coronel e sua família,
amigos, parentes e dependentes, constituindo
as famosas oligarquias estaduais, pequenos
Estados dentro do Estado, que centralizavam
em suas mãos os poderes fundamentais
da República: legislavam, julgavam e
governavam."13
Aí,
a democracia representativa era puramente
formal e a possibilidade de representação
política de outros setores sociais, que
não as oligarquias, bastante reduzidas.
E nenhuma possibilidade de vigência efetiva
dos direitos fundamentais inscritos na Carta
Magna.
7.
A revolução de 1930 foi uma esperança do
povo que logo se frustrou, com a supressão
do regime constitucional, que só foi reconquistado
mediante a convocação de Assembléia Constituinte
que elaborou a Constituição de 1934,
que vigorou por pouco mais de
três anos, sobrevindo o golpe de Estado
de 1937 com sua Carta ditatorial, que durou
até a promulgação da Constituição dos
Estados Unidos do Brasil, de 18.9.1946,
a qual trouxe um título sobre
a declaração de direitos, com capítulos
sobre os direitos de nacionalidade, os
direitos políticos e os direitos e garantias
individuais. Incorporou ela, como a
de 1934, os chamados direitos humanos de
segunda geração, consubstanciados num título
sobre os direitos econômicos, sociais e
culturais. Ela regeu o período de grande
liberdade democrática. É verdade
que o País já estava em franca urbanização,
com razoável desenvolvimento industrial,
que reunia um operariado sindicalizado que
foi tomando consciência de sua própria expressão
política. Sob sua égide, contudo, sucederam-se
inúmeros conflitos constitucionais que encontraram
um laboratório na Escola Superior de Guerra,
onde se formulou, por influência dos Estados
Unidos, a doutrina da segurança nacional
que fundamentou o golpe militar de 1964,
que produziu duas Constituições, nas quais
também se previa uma declaração de direitos,
mas o princípio da segurança nacional sobrepairava
sobre a eficácia das demais normas constitucionais,
pela criação de uma normatividade excepcional
sem contemplação para com os direitos humanos
mais elementares, sufocados durante vinte
anos. Tudo poderiam fazer os detentores
do poder: fechar as Casas Legislativas,
cassar mandatos eletivos, demitir funcionários,
aposentar magistrados, suspender direitos
políticos, invadir domicílios, encarcerar
e até sumir com as pessoas.
8.
A dialética dos fatos, contudo, é mais forte
do que as formas dos regimes, pois, foi
justamente sob esse regime fechado que o
povo foi aprendendo que direitos humanos
não devem constituir-se numa concepção imprecisa
e abstrata, cumprindo mera função de retórica
política, mas hão que ser tidos como sinônimos
de interesses populares, significando moradia,
terra, sindicalização, resistência à violência
policial cotidiana, e que as vítimas das
violações de direitos humanos são procedentes
das classes populares. Refletira sobre o
tema da utopia e da justiça de maneira nova,
não como simples ideal, mas como prática,
pois a "utopia das classes populares
não é o que elas pensam, é o que elas fazem,
é o seu movimento real e concreto de luta.
Sem luta a utopia não existe, como não existe
a justiça. A luta travada em vários níveis
pelos movimentos de direitos humanos criou
novas arenas políticas e novos atores: envolveu
o Judiciário, que parecia pairar acima de
tudo, confrontou o Executivo ao reivindicar
verbas públicas para os chamados bens de
consumo coletivo (escolas, creches,
postos de saúde, etc.)".14 Não
se reivindicava nem mesmo a positivação
de situações novas. Tratava-se de compreender,
em primeiro lugar, que as declarações de
direitos individuais e sociais não constituem
apenas bons conselhos, e, em segundo lugar,
o reconhecimento de que as garantias dos
direitos humanos não estão apenas na sua
positivação, mas no modo como se aplicam
as normas constitucionais e as leis.
Esses movimentos sociais postularam
por uma nova ordem constitucional em que
os direitos humanos fossem reconhecidos
numa Constituição democrática, mas sobretudo
que esses direitos declarados tivessem uma
tradução concreta no cotidiano de milhões
de pobres e minorias discriminadas, conscientes
que ficaram de que os direitos humanos,
até então positivados em nossas Constituições,
não tinham sido ainda capazes de responder
às demandas formuladas pelas classes populares
e de que esta dificuldade não era acidental,
mas parte de um conjunto de relações econômicas
e políticas, que constituem no Brasil -
e na América Latina em geral - um sistema
social feito para funcionar apenas para
uma parcela da população.15 Buscava-se não
tanto a construção de um direito novo, mas
uma forma de uso alternativo das formulações
jurídicas existentes, convertendo seu vetor
elitista no rumo da satisfação dos interesses
gerais do povo
2. Constituição
de 1988
9.
A Constituição de 1988 resultou dessa luta
pela construção de um Estado Democrático
onde se assegurasse o exercício dos direitos
humanos fundamentais. Formalmente, ela cumpre
integralmente esse objetivo. Seu Título
II contém a declaração dos direitos fundamentais
do homem, expressão que ela emprega
em sentido abrangente daquelas prerrogativas
e instituições que se concretizam em garantias
de uma convivência digna, livre e igual
de todas as pessoas. Nela se sintetizam
todas as manifestações modernas dos direitos
fundamentais da pessoa humana.
10.
Não desceremos a pormenores, que o tempo
não nos permite, basta uma síntese, para
lembrar que a Constituição consagra: a)
os direitos fundamentais do homem-indivíduo,
que são aqueles que reconhecem autonomia
aos particulares, garantindo iniciativa
e independência aos indivíduos diante dos
demais membros da sociedade e do próprio
Estado; por isso são reconhecidos como direitos
individuais, ou seja: direitos à vida,
à privacidade, à igualdade, à liberdade
e à propriedade, especificados no
art. 5º, mas, de acordo com o § 2º desse
mesmo artigo, os direitos e garantias nele
previstos não excluem outros decorrentes
dos princípios e do regime adotado pela
Constituição e dos tratados internacionais
em que a República Federativa do Brasil
seja parte; b) os direitos fundamentais
do homem-nacional, que são os que
têm por objeto a definição da nacionalidade
e suas prerrogativas (art. 12); c) os
direitos fundamentais do homem-cidadão,
que são os direitos políticos (arts.
14-17), os direitos de participação
política; d) os direitos fundamentais do
homem-social, que constituem os direitos
assegurados ao homem em suas relações sócio-econômicas
e culturais, de acordo com os arts. 6º a
11, que podem ser agrupados em três classes:
1) direitos sociais relativos ao trabalhador
(art. 7º e seus incisos), com regras sobre
direito ao trabalho e garantia do emprego,
direitos sobre as condições de trabalho
(negociações coletivas), direitos relativos
ao salário (salário mínimo, salário noturno
superior ao diurno, irredutibilidade do
salário), direitos relativos ao repouso
e à inatividade do trabalhador, direitos
relativos aos dependentes do trabalhador,
participação nos lucros e co-gestão; direito
de associação sindical e direito de greve
(arts. 8º e 9º); 2) direitos sociais
relativos à seguridade (art. 6º), compreendendo
os direitos à saúde, à previdência e à assistência
social (arts. 6º e 194 a 204); 3)
direitos sociais relativos à educação
e à cultura (arts. 6º); d) direitos
fundamentais do homem-membro da coletividade,
de que participam alguns tradicionais direitos
de expressão coletiva como os de associação
e de reunião, mas os direitos coletivos
como espécies dos direitos fundamentais
do homem começam a forjar-se e a merecer
consideração constitucional, assim são os
direitos coletivos à informação (art. 5º,
XIV e XXXIII, o qual não se confunde com
a liberdade de informação, direito individual)
e à representação associativa; direitos
do consumidor (arts. 5º, XXXII, e 170, VI)
e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida (art. 225).
11.
Vê-se, por essa síntese apertada, que a
Constituição incorporou também os chamados
direitos humanos de terceira geração, integrados
com os de segundo e os de primeira. Ela
suplanta a tendência para entender os direitos
individuais como contrapostos aos direitos
sociais e coletivos, que as Constituições
anteriores, de certo modo, justificavam.
Tratava-se de deformação de perspectiva,
pois só o fato de estabelecer-se um rol
de direitos econômicos, sociais e culturais
já importava em conferir conteúdo novo àquele
conjunto de direitos chamados liberais.
Ela agora fundamenta o entendimento de que
as categorias de direitos humanos, nela
previstos, integram-se num todo harmônico,
mediante influências recíprocas, com o que
se transita de uma democracia de conteúdo
basicamente político-formal para uma democracia
de conteúdo social, pois a antítese inicial
entre direitos individuais e direitos sociais
tende a resolver-se numa síntese de autêntica
garantia da vigência do princípio democrático,
na medida em que os últimos forem enriquecendo-se
de conteúdo e eficácia.
3. Garantias
constitucionais
12.
A afirmação dos direitos humanos no direito
constitucional positivo reveste-se de transcendental
importância, mas não basta que um direito
seja reconhecido e declarado, é necessário
garanti-lo, porque virão ocasiões em que
será discutido e violado. Ruy Barbosa já
dizia que uma coisa são os direitos,
outra as garantias, pois devemos
separar, "nos textos da lei fundamental,
as disposições meramente declaratórias,
que são as que imprimem existência legal
aos direitos reconhecidos, e as disposições
assecuratórias, que são as que, em defesa
dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem
os direitos; estas, as garantias: ocorrendo
não raro juntar-se, na mesma disposição
constitucional, ou legal, a fixação da garantia,
com a declaração do direito".16
13.
Não cabe aqui uma discussão teórica sobre
o tema. Basta observar que o sistema brasileiro
define como garantias todas as prescrições
constitucionais que conferem, aos titulares
dos direitos fundamentais, meios, técnicas,
instrumentos ou procedimentos para impor
o respeito e a exigibilidade desses direitos,
compreendendo garantias individuais, coletivas,
sociais e políticas, tendo em vista a natureza
do direito garantido. Seria fastidioso arrolar
aqui todos os princípios de proteção dos
direitos humanos que a Constituição prescreve,
cujo conjunto constitui os direitos constitucionais
de segurança, como os princípios da
legalidade, da proteção judiciária e do
contraditório; o direito de ampla defesa
nos processos judiciais e administrativos,
o direito ao devido processo legal, a
estabilidade dos direitos subjetivos
(art. 5º), e as diversas garantias penais
etc.17 até porque não raro a eficácia de
algumas dessas garantias depende do uso
de outros remédios constitucionais, parecendo,
assim, mais proveitoso passar ao exame daqueles
que nossa Constituição acolheu. Alguns são
de natureza política que revelam importante
faceta da democracia participativa, como
a iniciativa legislativa popular, o referendo
e o plebiscito. Mais relevantes, porém,
são as garantias constitucionais de natureza
processual, como a justiça constitucional
e os meios da chamada jurisdição constitucional
da liberdade, que nos merecerão um pouco
de atenção em seguida.
14.
Antes porém, cumpre dizer que expressiva
é a garantia constante do art. 5o., § 1º,
segundo o qual as normas definidoras
dos direitos e garantias fundamentais têm
aplicação imediata, o que consagra a
vinculação positiva das autoridades públicas
às normas e investe o Judiciário no dever
de aplicar diretamente as normas constitucionais
em matéria de direitos fundamentais ainda
quando se refiram a uma normatividade posterior.18
4. Justiça
constitucional
15.
A justiça constitucional consiste
na entrega, a órgão do Poder Judiciário,
da missão de solucionar conflitos constitucionais.
Compreende toda atuação dos tribunais judiciários
destinados a assegurar a observância das
normas constitucionais, ou, como preleciona
o Mestre Fix-Zamudio, "compreende
los diversos instrumentos calificados como
‘garantias constitucionales’, y que en su
conjunto son objeto de estudio de la disciplina
que se denomina "Derecho Procesal Constitucional".19
16.
Só nos ateremos a dois aspectos do tema,
que assumiram destacada importância na defesa
dos direitos humanos no Brasil: o do
controle da constitucionalidade dos atos
do Poder Público e aquele setor que
Cappelletti denominou de jurisdição constitucional
da liberdade.
17.
O controle de constitucionalidade,
no Brasil, hoje, é o resultado da experiência
histórica que propiciou o surgimento de
um sistema peculiar que combina os critérios
de controle difuso e de controle
concentrado. Este último se apresenta
mais adequado à defesa dos direitos humanos,
por via de ação direta de inconstitucionalidade
perante o Supremo Tribunal Federal, que,
embora não seja um Tribunal Constitucional
segundo o modelo europeu, passou a ter competência
apenas de jurisdição constitucional, competindo-lhe,
precipuamente, a guarda da Constituição.
Só isso, porém, não seria suficiente para
a organização de um sistema eficaz de proteção
aos direitos humanos, pois tal competência
já lhe cabia no regime das Constituições
anteriores, e não raro, lamentavelmente,
suas decisões sustentaram o arbítrio do
regime militar. Por outro lado, anteriormente,
a legitimação para a ação direta de inconstitucionalidade
pertencia apenas ao Procurador-Geral da
República, que era de livre nomeação e,
pior, de livre exoneração pelo Presidente
da República, de sorte que só promovia as
ações de conveniência do regime. Isso mudou.
Hoje, a legitimação para propor a ação direta
de inconstitucionalidade compete a várias
autoridades e instituições: I - o Presidente
da República; II - a Mesa (Comissão Diretora)
do Senado Federal; III - a Mesa (Comissão
Diretora) da Câmara dos Deputados; IV -
a Mesa (Comissão Diretora) de Assembléia
Legislativa, que é o nome do órgão do poder
legislativo dos Estados-membros; V - o Governador
do Estado; VI - o Procurador-Geral da República;
VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados
do Brasil; VIII - partido político com representação
no Congresso Nacional; IX - confederação
sindical ou entidade de classe de âmbito
nacional. Essas instituições, especialmente,
a Ordem dos Advogados, têm utilizado esse
instrumento na defesa da legalidade em geral
e da Constituição em particular. Mas, o
que é mais importante, é que a Procuradoria-Geral
da República adquiriu autonomia, de modo
que, já por várias vezes, propôs ação direta
de inconstitucionalidade de medidas da Presidência
da República com relativo êxito, a despeito
de o Supremo Tribunal Federal ainda não
ter assumido plenamente a sua nova missão
constitucional.
19.
Inovação da Constituição na matéria foi
a previsão da inconstitucionalidade por
omissão, por influência da Constituição
portuguesa, que é tema relacionado
com a problemática da eficácia e aplicabilidade
das normas constitucionais. Tem mesmo por
objetivo tornar efetiva a aplicação da Constituição
contra a inércia dos Poderes Constituídos.
Como a omissão constitucional só se
caracteriza pela falta ou insuficiência
de medidas legislativas e de adoção de medidas
políticas ou de governo, normalmente exigidas
em normas constitucionais definidoras
da ação positiva do Estado em favor das
classes desfavorecidas, bem se pode aquilatar
da importância do seu controle para a efetivação
de ponderável categoria dos direitos humanos.
Nossa experiência ainda é pequena nesse
campo.
5. Jurisdição
constitucional da liberdade
20.
Mais rica é nossa experiência no uso dos
instrumentos da chamada jurisdição constitucional
da liberdade. Além dos meios tradicionais
como o habeas corpus, o mandado de segurança,
a ação popular, a nova Constituição
brinda-nos com novidades, como o mandado
de segurança coletivo, o mandado de injunção,
o habeas-data e a ação civil pública.
São meios processuais constitucionais
que objetivam o amparo dos direitos humanos.
21.
Habeas corpus - Segundo o art. 5º,
LXVIII, da Constituição, "conceder-se-á
habeas corpus sempre que alguém sofrer ou
se achar ameaçado de sofrer violência ou
coação em sua liberdade de locomoção, por
ilegalidade ou abuso de poder".
Constitui meio de invocar a atividade jurisdicional,
portanto é uma ação judicial, que visa salvaguardar
o direito fundamental de ir, vir
e ficar, em que se consubstancia
a liberdade de locomoção.
Admite-se,
na doutrina como na jurisprudência, que
o habeas corpus é meio processual
idôneo para invocar a jurisdição constitucional,
objetivando a declaração de inconstitucionalidade
de lei ou ato que servir de base à atuação
restritiva da liberdade de locomoção.
22.
O mandado de segurança surgiu
como evolução da doutrina brasileira do
habeas corpus, realizada pela jurisprudência,
sob a égide do Supremo Tribunal Federal,
na Primeira República, para não deixar sem
remédio certas situações jurídicas que não
encontravam no quadro das nossas ações a
proteção adequada.20 Evolução interrompida
pela reforma constitucional de 1926. Então,
já se desenvolvia a idéia de um remédio
apto a amparar direitos lesados pelo
poder público, similar ao recurso de amparo
mexicano. Foi assim que o mandado de
segurança foi instituído pelo art. 113,
nº 23, da Constituição de 1934, perdurando
nas posteriores, como um remédio processual-constitucional
destinado a proteger direito individual,
líquido e certo, lesado ou ameaçado de lesão
por autoridade.
A
Constituição de 1988 deu-lhe nova formulação,
concebendo dois tipos: o mandado de segurança
individual e o mandado de segurança
coletivo. O primeiro consta do art.
5º, LXIX: "conceder-se-á mandado
de segurança para proteger direito líquido
e certo, não amparado por habeas corpus
ou habeas data, quando o responsável pela
ilegalidade ou abuso de poder for autoridade
pública ou agente de pessoa jurídica no
exercício de atribuições públicas".
O segundo está previsto no inciso LXX
do mesmo art. 5º: " o mandado de
segurança coletivo pode ser impetrado por:
a) partido político com representação no
Congresso Nacional; b) organização sindical,
entidade de classe ou associação legalmente
constituída e em funcionamento há pelo menos
um ano, em defesa dos interesses de seus
membros ou associados". O conceito
de mandado de segurança coletivo assenta-se
em dois elementos: a) um institucional
caracterizado pela atribuição da legitimação
processual a instituições associativas para
a defesa de interesses de seus membros ou
associados; outro objetivo consubstanciado
no uso do remédio para a defesa de interesses
coletivos.
Em
qualquer caso, o mandado de segurança é
uma ação pela qual o lesado defende seu
direito líquido e certo ou direito coletivo
ou individual do associados e, nessa defesa,
pode argüir a inconstitucionalidade da lei
ou ato ofensivo ao direito em causa. Então,
sim, o mandado pode ser concedido, declarando-se
a inconstitucionalidade da lei ou decreto
em que a autoridade fundamentou o ato ou
o provimento impugnado.
23.
O mandado de injunção é um instituto
novo no sistema brasileiro consubstanciado
no art. 5º, LXXI, com o seguinte enunciado:
"conceder-se-á mandado de injunção
sempre que a falta de normas regulamentadoras
torne inviável o exercício de direitos e
liberdades constitucionais e das prerrogativas
inerentes à nacionalidade, à soberania e
à cidadania". Constitui, pois,
uma ação constitucional posta à disposição
de quem se considere titular de qualquer
daqueles direitos, liberdades ou prerrogativas,
inviáveis por falta de norma regulamentadora
exigida ou suposta pela Constituição. Sempre
sustentamos que o direito reclamado teria
que ser concreto e pessoal. Também
sempre sustentamos que o reconhecimento
da falta de normas regulamentadoras do direito,
liberdade ou prerrogativa reclamados
teria que ser diretamente suprida pelo Judiciário.
No entanto, julgados do Supremo Tribunal
Federal reduziram o mandado de injunção
a uma espécie de ação de inconstitucionalidade
por omissão, de sorte que a decisão simplesmente
recomenda a elaboração das normas reguladoras
prevista na Constituição, o que é, no nosso
sentir, tornar praticamente inútil o instituto.21
24.
O objeto do habeas data consiste
em assegurar: a) o direito de acesso e conhecimento
de informações relativas à pessoa do impetrante,
constantes de registros ou bancos de dados
de entidades governamentais e de entidades
de caráter público; b) o direito à retificação
desses dados, importando isso em atualização,
correção e até a supressão, quando incorretos.
Consta do art. 5º, LXXII, da Constituição.
25.
A ação popular brasileira consta
do art. 5º, LXXIII, nos termos seguintes:
qualquer cidadão é parte legítima para
propor ação popular que vise a anular ato
lesivo ao patrimônio público ou de entidade
de que o Estado participe, à moralidade
administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio
histórico e cultural, ficando o autor, salvo
comprovada má-fé, isento de custas judiciais
e do ônus da sucumbência. É, como se
nota, um instrumento de defesa de direitos
coletivos.
26.
Outro meio processual importante é a ação
civil pública, que fora disciplinada
em uma lei de 1985, mas agasalhada pela
Constituição, quando, no art. 129, III,
prevê, como um das funções institucionais
do Ministério Público, promover a ação civil
pública, para a proteção do patrimônio público
e social, do meio ambiente e de outros interesses
difusos e coletivos, sem prejuízo
da legitimação de terceiros. A Lei 7347/85
prevê a legitimação das pessoas jurídicas
estatais, autárquicas e paraestatais, assim
como das associações destinadas à proteção
do meio ambiente ou à defesa do consumidora,
além do Ministério Público, para proporem
a ação civil pública, que, segundo a mesma
lei, é o instrumento processual adequado
para reprimir ou impedir danos ao meio ambiente,
ao consumidor, a bens e direitos de valor
artístico, estético, histórico e paisagístico.22
Percebe-se que esta ação, assim como a ação
popular, são meios processuais constitucionais
de defesa dos chamados direitos humanos
de terceira geração, o que os retira do
limbo das normas constitucionais puramente
programáticas.
6. Proteção
especial
27.
Não esqueceu a Constituição de consignar
proteção especial: a) à família fundada
no casamento, mas também à união estável
entre homem e mulher como entidade familiar
(art. 226); b) à mulher com afirmar
sua insofismável igualdade aos homens (arts.
5º, I, e 226, § 3º; c) aos portadores
de deficiência (arts. 203, V, e 227,
II); d) aos idosos (arts. 203, V,
e 230); e) aos índios,
reconhecendo sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las,
proteger e fazer respeitar todos os seus
bens; f) à criança e aos adolescente,
em termo expressivos que veremos adiante.
7. Apreciação
28.
Essa síntese mostra que a Constituição formula
e garante os direitos humanos de maneira
ampla e moderna. Mas, como já acenamos antes,
a questão dos direitos humanos não está
apenas em sua formulação constitucional.
Já não basta sua positivação e subjetivação
para que sejam efetivados no cotidiano da
maioria do povo, pois a experiência brasileira
tem demonstrado que sua reiterada afirmação
nos textos constitucionais não tem sido
garantia necessária e suficiente de sua
efetividade.23 O povo tem enorme confiança,
por exemplo, no mandado de segurança. Mas
muitos raramente têm a oportunidade de usá-lo,
pois milhões de pessoas estão tão à margem
da ordem jurídica que nunca dispõem de direito
líquido e certo a ser defendido por aquele
instrumento. A estrutura social do País
não favorece a existência real dos direitos
humanos. Estamos vivendo, sim, um momento
histórico de amplas liberdades políticas,
o que é extraordinariamente saudável e condição
necessária para a luta pela a efetivação
da promessa de nossa Constituição, quando,
no preâmbulo, se propõe a instituir um Estado
Democrático, destinado a assegurar o exercício
dos direitos sociais e individuais, a liberdade,
a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento,
a igualdade e a justiça como valores supremos
de uma sociedade fraterna, pluralista e
sem preconceitos, e quando afirma, no art.
1º, que a República Federativa do Brasil
se constitui em Estado Democrático de Direito
que tem como fundamento, entre outros, a
dignidade da pessoa humana.
29.
Essa dignidade não será, porém, autêntica
e real, enquanto não se construírem as condições
econômicas, sociais, culturais e políticas
que assegurem a efetividade dos direitos
humanos, num regime de justiça social. O
País vive, sim, num regime de amplas liberdades,
mas não vive ainda num regime democrático,
se entendermos por democracia um processo
de realização de valores essenciais de convivência
humana, que se traduzem basicamente nos
direitos humanos, regime que não pode existir
verdadeiramente num país de grandes misérias,
mormente quando este país é o quarto produtor
de alimentos do mundo, regime que não pode
tolerar a extrema desigualdade, as enormes
distâncias sociais, onde os 10% mais ricos
se apropriam da metade da renda nacional,
os 50% mais pobres ficam com apenas 13,6%
dessa riqueza, 1% mais rico tem participação
praticamente igual (13,13%), onde 65% vivem
na pobreza ou miséria, dos quais 54% são
crianças, 24 milhões de crianças vivem na
miséria, 23 milhões na pobreza, 33% das
famílias ganham menos que um salário mínimo,
e este fica em torno da quantia de 100 dólares
mensais.24 O empobrecimento da população
cresce assustadoramente na medida em que
uma forte política recessiva é aplicada,
inicialmente, para atender a exigência de
instituições financeiras internacionais
e credores de uma dívida externa, contraída
irresponsavelmente durante a ditadura militar
e por estímulo dos próprios prestadores
de dinheiro, e mais recentemente para manter
a estabilidade da moeda, com taxas de juros
elevadas, que dificultam os investimentos
e criação de empregos. A mortalidade infantil
aumenta na razão direta da queda dos salários,
do desemprego em massa: na década de 80
eram 100 por 1000, hoje a taxa atinge a
cerca 170 mortes para cada 1000 nascidos
vivos,25 ainda que com o programa do real
haja uma tendência de melhora.
30.
Um triste capítulo do desrespeito aos direitos
humanos, no país, sempre foi a violência
policial. Durante a ditadura militar essa
violência foi instrumentada, especialmente
pela ação das polícias militares dos Estados,
já que as Secretarias de Segurança estaduais
eram dirigidas por representantes das forças
armas, do exército principalmente, com a
incumbência de manter a ordem nos Estados
em função do regime. A violência contra
civis era estimulada, criaram-se mecanismos
ou unidades policiais com o propósito de
eliminar delinqüentes civis. Em São Paulo,
os Secretários de Segurança que dirigiram
o aparelho policial nos anos de 1970 e início
de 1980 estimularam a violência da polícia
militar mediante atribuição de prêmios de
bravura, quando o policial eliminava civis,
geralmente pobres e negros. Há ex-policiais
daquele tempo que ainda se gabam de ter
matado mais de 50 civis, tidos como bandidos,
não raro por mera execução, e se orgulham
das promoções por bravura que receberam.
Os anos de 1987 a 1994 foram de grande violência
da polícia militar em São Paulo. Só para
dar alguns números estarrecedores: no ano
de 1991, a polícia militar de São Paulo
eliminou mais de 900 civis, cerca de 75
por mês; no ano de 1992, essa média subiu
para cerca de 100 por mês, sem contar os
111 mortos, de uma só vez, na Casa de Detenção
de São Paulo. Quando assumimos a Secretaria
de Segurança do Estado de São Paulo, a 1°
de janeiro de 1995, a média estava em torno
de 50. Empreendemos ali, desde o início,
uma luta árdua para reverter esse quadro.
Propusemos ao Governador, no primeiro dia
de gestão, a criação da Ouvidoria da Polícia
Paulista, uma espécie de Ombudsman, destinada
a receber denúncias, reclamações e queixas
contra abuso de autoridade e corrupção das
polícias civil e militar do Estado, o que
foi feito por decreto publicado no primeiro
dia de governo (1º.1.1995). O Ouvidor assumiu
em novembro do mesmo ano. Embora combatido
pelos maus policiais e por todos aqueles
que defendem a violência policial, já se
reconhece que vem prestando enorme serviços
ao aperfeiçoamento da ação policial. Criamos,
em setembro de 1995, o PROAR-Programa de
Acompanhamento de Policial Militar envolvidos
em ocorrências de Alto-Risco, que consiste
em retirar do policiamento de rua o policial
que tenha eliminado um civil, submetendo-o
a uma acompanhamento psicológico e a uma
reciclagem profissional, para que se refaça
do trauma em que esteve envolvido. Com isso,
a morte de civis que era por volta de 34
mensais (na Capital), passou a ser em torno
de 8,5. Do mesmo modo, caiu substancialmente
o número de policiais mortos em ação. Outra
providência de grande alcance de nossa gestão
foi a criação de um seguro, pago inteiramente
pelos cofres públicos, para amparar a família
de policiais mortos ou invalidados em serviço.
O prêmio do seguro está em torno de 50.000
mil dólares.
31.
Outra questão constrangedora, para quem
sustenta os valores da dignidade da pessoa
humana, está no sistema carcerário. Em São
Paulo, sob a responsabilidade de uma Secretaria
especializada (a Secretaria de Administração
Penitenciária), temos 43 penitenciárias
que comportam cerca de 24.000 condenados,
incluindo os sistemas fechado e semi-aberto,
mas abrigam hoje cerca de 34.000 presos.
Pior do que isso, porém, são as carceragens
dos distritos policiais e cadeias públicas,
sob a administração da Secretaria de Segurança
Pública, que dispõem de cerca de 14.000
vagas para presos processuais, presos provisórios,
mas têm hoje quase 34.000 presos, dos quais
cerca de 17.000 são condenados, e, portanto,
deveriam estar no sistema penitenciário.
Há distritos policiais e cadeias com até
cinco vezes mais a sua lotação. Tudo isso
são problemas que se acumularam nesses últimos
30 anos, sem que se construíssem estabelecimentos
adequados para o cumprimento de penas impostas
pelo Judiciário. Para corrigir isso, o Governador
Mário Covas, do Estado de São Paulo, por
nossa proposta conjuntamente com o Secretário
da Administração Penitenciária, está empreendendo
um vasto programa de construção de penitenciárias.
Talvez um dos programas mais arrojados no
mundo nessa matéria, pois só se tem notícia
de coisa semelhante na França, onde um programa
desses construiu estabelecimentos prisionais
para cerca de 13.000 vagas. Pois, o Governo
de São Paulo está construindo 21 penitenciárias
com mais de 17.000 vagas, e o Governo Federal
promete construir mais 13, com cerca de
5.000 vagas. Com isso, estaremos propiciando
melhores condições de vida carcerária aos
presos, que têm direito a que sua pena não
seja agravada com as péssimas condições
de encarceramento.
32.
É justo ressaltar o esforço que o Governo
Federal e alguns Governos Estaduais (como
o de São Paulo) vêm desenvolvendo no sentido
de criar mecanismos de proteção aos direitos
humanos. O Governo Federal lançou um importante
Programa Nacional dos Direitos Humanos e
criou no Ministério da Justiça uma Secretaria
Nacional de Direitos Humanos, que vem trabalhando
com afinco na efetivação daquele Programa.
O Governo de São Paulo também, por sua Secretaria
da Justiça e Defesa da Cidadania, também
lançou o Programa Estadual dos Direitos
Humanos, que vem implementando inclusive
com medidas reparatórias de danos pessoais
decorrentes de violação de direitos humanos.
33.
Vale ainda o texto que escrevemos há algum
tempo, ou seja: "A Constituição
estrutura um regime democrático consubstanciando
esses objetivos de igualização por via dos
direitos sociais e da universalização de
prestações sociais (seguridade, saúde, previdência
e assistência sociais, educação e cultura).26
A democratização dessas prestações, ou seja,
a estrutura de modos democráticos (universalização
e participação popular), constitui fundamentos
do Estado Democrático de Direito, instituído
no art. 1º. Resta, evidentemente, esperar
que essa normatividade constitucional se
realize na prática".27
34.
A Constituição tem um dos mais expressivos
textos sobre os direitos da criança (art.
227), segundo o qual "É
dever da família, da sociedade e do Estado
assegurar à criança e ao adolescente, com
absoluta prioridade, o direito à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao lazer,
à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-la
a salvo de toda a forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade
e opressão". Belo texto, que se
lê com tristeza diante do quadro que acabamos
de mostrar. Assegura o direito à alimentação
e milhões vivem na extrema desnutrição;
garante o direito à vida e à saúde, mas
a cada minuto no Brasil morre uma criança
que não completou um ano de vida, por deficiência
de saneamento básico e por desnutrição.28
Coloca a criança e o adolescente a salvo
da violência, da crueldade e da opressão,
mas, para sentir o contraste, nem é necessário
referir-se à violência policial e de grupos
de extermínio, basta essa violência silenciosa
da miséria que destrói milhões.
35.
Mas, Senhores, a criança brasileira não
precisa de lágrimas, como lembram Drexel
e Iannone: ela precisa de comida,
remédio, escola, casa,
salário justo para
os pais e respeito,
como ser humano que é. A criança brasileira
não precisa de piedade! Ela necessita, isto
sim, que lhe sejam devolvidos seus direitos
e, como não pode reclamá-los sozinha, precisa
de todos nós, na posse de nossos deveres
e obrigações de cidadãos, para que reivindiquemos
por ela.29 Precisa, sobretudo, que a comunidade
financeira internacional nos deixe trabalhar
e produzir para dar vigência ao dispositivo
constitucional que declara que a ordem econômica
tem por fim assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social,
observado, entre outros princípios, a redução
das desigualdades regionais e sociais.
8. Conclusão
36.
Gostaria muito, Senhores, de trazer aqui
um quadro dos direitos humanos que refletisse,
com precisão, a formosa e rica formulação
que deles faz a Constituição de 1988. Seria
lindo se me ativesse apenas às suas formas
que nos confortam na previsão de uma sociedade
fraterna. Seria mesmo extasiante se eu já
pudesse dizer que está inteiramente cumprido
o objetivo fundamental da República Federativa
do Brasil, previsto no art. 3º, I, da Constituição,
o de construir uma sociedade livre, justa
e solidária. Seria, porém, falso dizê-lo
agora, mas a utopia é um exercício da mente
humana que impulsiona movimentos capazes
de atingir metas aparentemente inatingíveis.
E os dez anos de vigência da Constituição
Federal de 5.10.1988 têm propiciado enorme
desenvolvimento da cidadania. Essa consciência
cidadã é a melhor garantia de que os direitos
humanos passaram a ter consideração popular,
a fazer parte do cotidiano das pessoas,
o que é o melhor instrumento de sua eficácia,
mais cedo ou mais tarde, com repulsa conseqüente
do arbítrio e do autoritarismo. Se é certo
que ainda há bolsões de desrespeito dos
direitos fundamentais do homem e que muitas
manifestações desses direitos ainda não
se efetivam na prática, a consciência popular
deles constitui, indubitavelmente, a melhor
garantia de sua vigência.
37.
Muitos perguntam: "O que significa
cidadania num país onde a vida humana perdeu
a dignidade?" "Que valor pode
ter para um homem o direito de voto, a liberdade
de expressão e locomoção, se seus filhos
estão raquíticos e sem perspectivas de vida?"30
A essas indagações é preciso responder,
sem vacilação, que a previsão constitucional
dos direitos humanos, ainda que não efetivados
satisfatoriamente, vale como conjunto de
normas jurídicas fundamentais com base nas
quais se pode invocar a atividade jurisdicional
em busca de amparo efetivo; vale como pauta
de valores de convivência humana que orienta
e fundamenta movimentos sociais reivindicatórios
da construção da prometida sociedade livre,
justa e solidária; vale para que o Ministério
Público e outras instituições tenham instrumentos
jurídicos em que fundamentem suas ações
em favor de categorias desfavorecidas ou
discriminadas. Vale para que esse mesmo
Ministério Público, a Câmara dos Deputados,
as Assembléias Legislativas dos Estados,
a Ordem dos Advogados e outras entidades,
como as Universidades de São Paulo e de
Brasília, possam criar Comissões e Núcleos
de defesa dos direitos humanos e contra
a violência, não apenas para estudos teóricos,
mas para ação prática, como vem acontecendo,
às vezes até com sacrifícios de vida. Sem
luta, como vimos antes, a utopia não existe,
como não existe a justiça, não a justiça-princípio
absoluto, mas a justiça concreta, o fazer
justiça, a justiça como relação justa. Nada
mais.
|