
Novas
perspectivas no acesso à justiça
José
Renato Nalini
1
INTRODUÇÃO
Por acesso
à Justiça vinha-se entendendo, até recentemente, o
acesso aos tribunais. Uma Constituição cujo preâmbulo
abriga a intenção de instituir um Estado Democrático,
destinado a assegurar o exercício dos direitos e elege a
justiça como um dos valores supremos de uma sociedade que
se pretende fraterna e pluralista, não poderia também
deixar de assegurar a inafastabilidade do controle
jurisdicional.
Todas as
Constituições brasileiras enunciaram o princípio
da garantia da via judiciária. Não como mera gratuidade
universal no acesso aos tribunais, tão cara aos ideais
românticos do individualismo liberal e que, por toda a
parte, se tem, em absoluto, por utópica, mas a garantia,
essa sim universal, de que a via judiciária
estaria franqueada para defesa de todo e qualquer direito,
tanto contra particulares, como contra poderes públicos,
independentemente das capacidades econômicas de cada um.
Essa concepção,
embora ainda dominante, já não satisfaz. Pode parecer
ilusória a garantia do acesso ao Judiciário, quando
tantos os obstáculos que se antepõem ao foro, ao efetivo
pleito dos direitos vulnerados.
.
A
complexidade e ambivalência do tema já foi acentuada por
Canotilho: ... se, por um lado, a defesa dos direitos e
o acesso de todos aos tribunais tem sido reiteradamente
considerado como o coroamento do Estado de
Direito, também, por outro lado, se acrescenta
que a abertura da via judiciária é um direito
fundamental formal.
Parece mais
nítida a feição de mera formalidade desse direito,
contraposta à dimensão dos óbices postos à consecução
da justiça. São tamanhas as dificuldades enfrentadas
para a obtenção da prestação jurisdicional, que poucos
– no Brasil – a conseguem. São os privilegiados com a
solução oportuna e definitiva da lide.
Nação que
conseguiu em poucas décadas multiplicar a legião dos
excluídos, hoje contados aos milhões, que ostenta quadro
dos mais cruéis do universo na distribuição de sua
renda, que assiste à impunidade dos fortes, ao genocídio
das etnias e ao medo crescente da violência, é modelo
singular para a presente reflexão.
O Judiciário
se vê acusado de atender a uma faixa cada vez mais
estrita da comunidade. Os despossuídos encontram suas
portas cerradas. Os poderosos não ser curvam à lentidão
dos processos convencionais. O povo desacredita de sua
justiça.
A proclamação
dos direitos constitucionais, inclusive o do acesso à
Justiça, reveste máscara retórica. Pois há, por
vezes, uma hipócrita tranqüilidade de consciência,
quando se remetem os cidadãos para os tribunais que, em
derradeiro percurso, farão justiça. Não
desconhecendo que, para isso, os lesados deverão arcar
com excessivo dispêndio para alcançar solução.
Tornando concreta a advertência do mestre Joaquim Canuto
Mendes de Almeida, de que não há direito de ação,
mas na verdade ônus de ação.
Em lugar da
orgulhosa proclamação da vítima: "Vou procurar por
meus direitos", o que se vê aqui é a ironia do
infrator: "Vá procurar por justiça". Sabem
todos como funciona a Justiça: A proliferação de
decisões ilegais e de arbitrariedades significa que a
administração e outros centros de poder (incluindo os
privados) se sentem relativamente impunes em face das suas
irregularidades.
Não é o
Estado o maior produtor de demandas, sufocando os
tribunais com sua resistência em reconhecer seus
desmandos? Compreende-se, após examinar as estatísticas
da produção pretoriana em todas as instâncias
brasileiras, porque Canotilho afirmou, talvez
exageradamente: O Estado de Direito transformou-se em
direito do Estado; fez do Poder Judiciário um serviço ao
serviço do Estado. E o Judiciário, braço estatal
com vocação para poder moderador, não contribui
de certa forma para o recrudescimento desse quadro,
recusando-se a aceitar soluções como as súmulas
vinculantes, em nome de uma independência também
meramente formal? Ou travando desgastantes batalhas, na
autofágica discussão sobre competência de órgãos de
uma só e mesma Justiça?
Já está
superada a cultura do repasse, caracterizada por
lançar por sobre os outros poderes, ou atribuir a contingências,
a responsabilidade pelas deficiências do Judiciário. A
hora de reagir era ontem. Os integrantes do Poder Judiciário
devem assumir o desafio do momento histórico e produzir
algo de concreto para multiplicar a sua capacidade de
resolver conflitos, pacificar a sociedade e ampliar as
alternativas para a solução harmônica das diferenças.
Isso será, verdadeiramente, ampliar o acesso à Justiça.
O propósito
do presente trabalho é o exame de três causas, apenas,
dentre as muitas que representam obstáculo à ampliação
do acesso à Justiça. São elas: o desconhecimento do
Direito, a pobreza e uma visão bastante singular da
lentidão do processo.
2 ACESSO
À JUSTIÇA OU ACESSO AO DIREITO?
Os juízes
não têm a chave para resolver os problemas do mundo. Mas
integram o Estado e não podem considerar-se
descomprometidos da tarefa de contribuir para a consecução
de seus objetivos.
A advertência
de Canotilho, sinceramente convicto de que a realização
da justiça estará mais dependente da extensão do
pensamento da igualdade material à ordem dos bens
(patrimoniais e culturais) e ao "mundo do
trabalho", do que numa abstrata defesa de direitos,
não deve desanimar. Dentro de suas limitações, no espaço
que o sistema lhe reservou para atuar, o juiz poderá
alargar a porta para o eficaz reconhecimento dos direitos.
Basta despir-se de uma roupagem arcaica de magistrado e
impregnar-se da vontade de mudar o presente estado de
coisas.
As pessoas
não poderão usufruir da garantia de fazer valer seus
direitos perante os tribunais, se não conhecem a lei nem
o limite de seus direitos. Se a aplicação
do direito é, normalmente, tarefa de especialistas
(juristas em sentido lato), muitas vezes pela via do Poder
Judiciário (porque a sua aplicação também é
conflitual), não se coloca, por isso, a necessidade de um
amplo ou generalizado interesse no conhecimento da forma
(técnica) como o direito é aplicado. Mas já em relação
ao seu conhecimento a situação é
outra porque, aqui, o acesso ao conhecimento do direito
deve ser generalizado, até como pressuposto da sua própria
aplicação. Hoje, encara-se este conhecimento como um
direito – o direito aos direitos.
O primeiro
compromisso do juiz empenhado em ampliar o acesso à Justiça,
portanto, será com a disseminação do conhecimento do
direito. O Direito, resolvido em direitos,
terá que se abrir, que se quotidianizar, de perder o seu
sopro de mágica não humana.
Como é que
um juiz pode tornar o direito conhecido?
Duas, ao
menos, as vertentes a serem examinadas. Uma institucional,
outra pessoal.
Na vertente
institucional, os tribunais e associações de magistrados
podem desempenhar – e muita vez já desempenham –
relevante papel. Poderiam, assim, imprimir toda a sorte de
informações, a partir de folhetos simples, com explicações
facilitadoras do acesso à Justiça. A experiência
estrangeira é muito rica nesse campo. É simples informar
o cidadão a respeito de problemas por ele enfrentados
para litigar. Nada impede se divulgue, por exemplo,
"Como obter assistência judiciária",
"Como pedir alimentos", "Como regularizar a
separação", "Como regularizar a sua
propriedade", "Como retificar o seu nome",
"Como receber de volta o empréstimo compulsório",
"Como litigar nas Pequenas Causas", "Como
abrir o inventário", dentre muitas outras hipóteses.
Os
tribunais devem manter serviço de atendimento facilitado,
para fornecer informações sobre andamento de processo,
sobre o endereço da assistência judiciária, sobre
problemas jurídicos concretos de toda ordem. E isso por
meio de telefone, de fac-símile, de guichês com
funcionários treinados e conscientes de que o povo é seu
patrão. Somente o pobre brasileiro sabe explicar o quão
é maltratado nas repartições públicas. O Judiciário
poderia reverter esse quadro, desenvolvendo um programa de
transparência, dando-se a conhecer ao cidadão através
de ações de caráter essencialmente informativo.
Os
tribunais e associações têm o dever de manter a população
informada. Divulgando os endereços dos foros, e dos
organismos vinculados à realização da Justiça, os horários
de realização das audiências, o funcionamento dos
juizados especiais, e outros dados de interesse, inclusive
prestando contas da produtividade do Judiciário.
Projetos
mais ambiciosos poderiam sugerir as Cartilhas de
Cidadania, contendo o elenco dos direitos que
consubstanciam o direito a ter direitos. Em
linguagem acessível, de compreensão por qualquer do
povo, com forma atraente e suscetível de operacionalização
mediante recurso à prestigiada classe dos publicitários
brasileiros. Não é demasia pensar-se em uma série de
folhetos, sob a denominação "Eu e a Justiça",
subdividindo-se em "Eu e a Constituição",
"Eu e o Direito da Família", "Eu e
o Direito de Propriedade", "Eu e o meu
emprego", "Eu e o Direito Penal",
além de outros títulos. A denominação com ênfase no
pronome pessoal da primeira pessoa tem o intuito de
prestigiar a consciência da cidadania.
Além dessa
divulgação operacional, as entidades promoveriam
a divulgação institucional, propiciadora de
informações sobre o funcionamento do Judiciário no
Brasil. Não se pode nutrir afeição por aquilo que não
se conhece. Isso explica os índices de comprometimento
afetivo demonstrado pela população brasileira a seu
Judiciário, em qualquer pesquisa realizada nesta década.
A
assessoria de mídia, anexa a cada organismo, deve
desempenhar sua parte e fazer a aproximação entre mediática
e Justiça, decodificando o hermetismo da linguagem e o
distanciamento que o Judiciário sóe nutrir em relação
aos mass media.
Tais
propostas e muitas outras, que poderiam surgir mediante
consulta ao pessoal da área, incluindo os funcionários,
poderiam atuar na dignificação das instituições da
Justiça e no restabelecimento da confiança no
sistema da Justiça. É a tentativa de resgate da
imagem do Judiciário junto ao cidadão, com ênfase na
essencialidade do serviço público por ela prestado.
Em caráter
pessoal, o juiz também é provido de exepcionais condições
de disseminar o conhecimento do Direito. Primeiro,
exercendo de maneira adequada o seu compromisso de maior
relevo: a outorga da prestação jurisdicional. Cada juiz,
quando julga, exerce função docente. Está ensinando
Direito, está divulgando o correto, está demonstrando
qual o verdadeiro sentido e alcance da lei.
A decisão
é uma aula. E como aula de Direito, pode ser clara,
atraente e eficaz. Ou obscura, aborrecida e destituída de
relevo, circunscrevendo-se aos limites do processo em que
exarada.
A clareza
é a cortesia do filósofo, dizia José Ortega Y Gasset. E
a clareza, à qual é necessário reconhecer um caráter
de primazia na matéria, porta em si mesma uma força de
persuasão inegável. E ela não é menos útil quando o
advogado quer convencer o juiz do que quando este quer
justificar sua sentença.
Faz-se
necessário reconhecer que o hermetismo da linguagem
dificulta o acesso à Justiça. Pois a linguagem judiciária
tem, na opinião pública, má reputação. Não se
confunda a necessidade de utilização escorreita de
termos técnicos com o apego ao arcaísmo, à excessiva
repetição das mesmas expressões, ao caráter
rebarbativo que ainda se encontra em grande número de peças
processuais.
Não são
os juízes os responsáveis por essa linguagem. Ela deriva
da lei e das tradições. Mas o juiz pode adotar outra
estrutura, sem abandonar a correção, onde se encontre lógica,
teórica simplicidade e elegância vernacular. Demos as mãos
à palmatória: A decisão de justiça não é uma
dissertação acadêmica, mas um ato de caráter utilitário,
de aplicação concreta. É necessário, de início, que
ela seja perfeitamente inteligível e que aqueles aos
quais interessa possam compreendê-la sem recorrer ao Gran
Larousse em dezenove volumes.
A clareza
pode fazer muito para ampliar o acesso à Justiça, pois
facilitará o acesso ao Direito. E Direito acessível é,
primeiro, Direito inteligível. A clareza é o ponto de
convergência de todas as recomendações que podem ser
feitas a quem se utiliza da linguagem jurídica. É
imprescindível uma perfeita clareza: ao mesmo tempo
que ela deve ser atendida em relação às palavras, ela
deve estar na exposição do pensamento. É lícito
concluir que aquilo que não é claramente exprimido não
foi claramente pensado.
A esse
empenho todos os juízes podem-se devotar, porque
igualmente produtores de sentenças. Outros juízes, já não
a integralidade da Magistratura, podem contribuir de
maneira diversa para divulgar o Direito e a administração
da Justiça. Lecionando, e são muitos os professores nas
Faculdades de Direito e nas Escolas da Magistratura,
escrevendo artigos em jornais e participando de debates
nos mass media, publicando trabalhos e livros. Não
se furtando a esclarecer o funcionamento da Justiça,
quando a isso chamados.
Muitos
conservadores poderão dizer que essa não é a função
do julgador, preordenado a apreciar o conflito e a
solucioná-lo de acordo com a lei. Mas as configurações
antigas já não estão servindo para o resgate da imagem
da Justiça. Já não basta ser apenas cumpridor dos
deveres. O momento histórico exige um plus do
juiz. Talvez até como antecipação do papel que lhe está
reservado no próximo milênio. O de um administrador de
situações conflituosas, um aconselhador, um conciliador,
um pacificador social, distanciado do perfil clássico do
profissional que apenas diz o Direito.
Antes de dizer
o Direito, incumbe ao juiz fazer conhecer o Direito.
Pois na medida em que o conhecimento daquilo que está
disponível constitui pré-requisito da solução do
problema da necessidade jurídica não atendida, é
preciso fazer muito mais para aumentar o grau de
conhecimento do público a respeito dos meios disponíveis
e de como utilizá-los.
Deixa de
atender à missão para a qual preordenado, o juiz que se
limita a nomear um advogado para a parte necessitada de
assistência judiciária. Em acepção ampla, a assistência
judiciária tem o sentido de assistência jurídica em juízo
e fora dele, com ou sem conflito específico, abrangendo
inclusive serviço de informação e de orientação, e até
mesmo de estudo crítico, por especialistas de várias áreas
do saber humano, do ordenamento jurídico existente,
buscando soluções para sua aplicação mais justa e,
eventualmente, sua modificação e inclusive revogação.
É só mediante a informação e pleno conhecimento do
Direito que se alcançará esse instrumento de acesso
à ordem jurídica justa, na linguagem de Kazuo
Watanabe, única legitimidade para a existência de juízes
e do Poder Judiciário.
Está
subjacente a essa discussão a questão comunicacional do
Judiciário e do juiz. Se o principal operador jurídico não
encontrar formas de se comunicar com o povo, com a
comunidade, com a media, com as organizações e os
sindicatos, com a universidade e com o governo, estará
apressando o projeto de sua substituição por
alternativas outras – mais eficazes, céleres e acessíveis
– na solução dos conflitos.
3 A
POBREZA
A
dificuldade no custeio das despesas necessárias ao litígio
sempre foi considerada em todos os estudos sobre o acesso
aos tribunais. A primeira onda nas soluções práticas
para os problemas de acesso à Justiça, segundo Mauro
Cappelletti, era justamente a assistência judiciária
para os pobres. Hugo Mazzilli, depois de reconhecer que o
acesso à Justiça é um dos valores fundamentais da própria
democracia, constata: Entretanto, a possibilidade de
acesso à Justiça não é efetivamente igual para todos:
são gritantes as desigualdades econômicas, sociais,
culturais, regionais, etárias, mentais.
Ainda que
por ora circunscrevendo-se o exame à questão do acesso
aos tribunais, não é suficiente a extinção das custas.
A necessidade de um advogado encarece a parte quando tem
de litigar na Justiça. A nomeação de advogado gratuito
possui inconvenientes. Primeiro, por criar-se um préstimo
de segunda classe. Quase sempre é nítida a distinção
entre o trabalho do advogado constituído e o do dativo.
Depois, o causídico encarregado de patrocinar a causa de
um pobre corre o risco de fazê-lo de maneira diferente de
como o faria se tivera sido contratado. Problema que não
é só brasileiro, mas já foi detectado em países de
primeiro mundo, onde muitas pessoas entendem, com
alguma razão, que um advogado, ao colocar-se na posição
de advogado dos pobres e, de fato, ao tratar os pobres
como se fossem incapazes de perseguir seus próprios
interesses, é muito paternalista. Tratem-se os pobres,
dizem elas, simplesmente como indivíduos comuns, com
menos dinheiro.
A barreira
da pobreza impede a submissão de todos os conflitos à
apreciação de um juiz imparcial. Mas é verdadeiramente
trágica se considerada a dimensão do acesso do pobre aos
direitos. Os despossuídos são privados até dos direitos
fundamentais de primeira geração, para eles meras
declarações retóricas, sem repercussão em sua vida prática.
O ideal da
igualdade, a inovação revolucionária resultante dos
movimentos do século XVIII, não passou de uma proclamação
bombástica e estéril. Pois a igualdade
assim atingida era mais freqüentemente uma fachada que
uma realidade, era uma derrisão em face daqueles a quem
se poderia aplicar a frase cáustica segundo a qual eram
todos "livres de dormir debaixo das pontes".
Foi justamente a mais alta Corte desse país (a
Inglaterra) que, nos anos 30, declarou que "a pobreza
é uma desgraça pela qual o Direito nenhuma
responsabilidade pode assumir".
Não se
admite hoje esse alheamento. Vencer a pobreza é dever
positivado na Constituição da República. Ninguém está
liberado desse compromisso. E se a cruzada contra a miséria
é a única alternativa para redesenhar o futuro do
Brasil, dela não pode estar excluído o juiz.
Como
servidor do povo, precisa estar atento à intenção do
pacto fundamental: a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária, com erradicação da pobreza e da
marginalização e redução das desigualdades sociais e
regionais. Que isso não sirva para neutralizar,
singelamente, a imparcialidade, mas atue no sentido de
reclamar adequada aplicação do princípio da isonomia,
de molde a conferir desigualdade de tratamento aos
naturalmente desiguais. Insistir no mito da igualdade
formal é aprofundar o fosso que separa despossuído e
poderoso. Além de manter o juiz na sua rigidez mental,
que não permite ao menos enxergar, quanto mais entender,
a crise com que o Judiciário se defronta.
Num estado
como o Brasil, de muitos milhões de miseráveis, o juiz
precisa refletir continuamente se ele está sendo fator de
resgate de seus semelhantes ou instrumento de mais
intensamente afligir o aflito. Poderá ser um e outro,
utilizando-se da mesma técnica de julgamento. Os
estudiosos conscientes sabem que a lei é matéria plasmável
e fluida, a conformar-se com a ideologia de quem a aplica.
O juiz
nunca pode perder de vista a realidade concreta em que
atua. Antonio Celso Aguillar Cortez, invocando o
testemunho de Mozart Costa de Oliveira, menciona que,
baseado em dados da Unesco, cerca de 40% da população
brasileira vive em situação tida tecnicamente como de
miséria, para enfatizar que em face das regras
programáticas, de natureza social e de solidariedade,
assim do Direito das Gentes (Declaração Universal, ONU,
1948), c/c pactos de 1967 e 76), como da CF/88 (preâmbulo,
artigo 1º, artigo 3º) — todas elas regras jurídicas,
não recomendações morais — temos de interpretar as
necessidades sociais dessa gente como interesses difusos,
soltos e perdidos, no âmbito dessa imensa massa social,
disforme, indefinida.
O problema
da pobreza, a primeira onda do movimento do acesso
à Justiça, na formulação de Cappelletti, não só
deixou de ser solucionado, como intensificou-se neste
final de milênio. Ele ainda está presente e suscita a
constatação de que as liberdades civis e políticas
tradicionais são uma promessa fútil, na verdade um
engodo para aqueles que, por motivos econômicos, sociais
e culturais, de fato não são capazes de atingir tais
liberdades e tirar proveito delas.
Se a
distribuição de renda não sobrevier, se a miséria não
for amenizada com urgência, já não se justificará a
preservação do equipamento estatal chamado Justiça.
Escapa-lhe rapidamente das mãos o poder de restabelecer o
justo concreto, pois assim como o capital internacional
– e sem pátria – se subrai à incidência da
autoridade judicial, o crescimento da miséria reduz ainda
mais o universo de sua atuação. O pobre tem seus
problemas resolvidos na polícia, nos postos de saúde ou
nas seitas evangélicas. É raro o seu dia na Corte.
4 A
LENTIDÃO DO PROCESSO
A demora na
prestação jurisdicional não é privilégio brasileiro.
Sidnei Beneti recentemente afirmou que, a despeito,
especialmente, da demora, causada pelo entulhamento dos
grandes números, o processo brasileiro não precisa
humilhar-se no mundo. De qualquer forma, ninguém
deixa de reconhecer que a demora da Justiça é também
uma forma de injustiça.
Esse, porém,
não é o enfoque a ser considerado nessas reflexões. A
temática tem sido tratada à exaustão. O juiz pode, pese
embora as limitações pessoais, os defeitos de estrutura,
a má produção da lei processual, tornar a justiça mais
eficiente. Inúmeras propostas têm sido formuladas na
doutrina. Em relação à reforma processual, a Escola
Nacional da Magistratura, comandada pelo notável Ministro
Sálvio de Figueiredo Teixeira, vem produzindo inequívoco
trabalho no sentido de conferir ao Judiciário
instrumental idôneo a otimizar a outorga do justo
concreto.
Uma
vertente distinta a ser devidamente analisada é a da responsabilidade
civil do Estado, resultante da demora na prestação
jurisdicional.
Juízes há
— e são minoria — que se não sensibilizam com a
doutrina, que não se aproveitam das inovações
normativas processuais e que, reiteradamente, atrasam a
prestação jurisdicional. O fenômeno existe em todas as
instâncias. Não apenas magistrados novos, mas também
antigos, conferem o seu próprio ritmo à profissão.
Raras as
providências correicionais para reconduzi-los ao ritmo da
lei e das necessidades do jurisdicionado. Para esses
casos, valeria à pena o desenvolvimento do tema da responsabilidade
civil do Estado, com ênfase na possibilidade de ação
regressiva contra o causador do dano.
Yussef Said
Cahali procedeu a uma percuciente análise em sua obra Responsabilidade
Civil do Estado, recentemente revista. E chega à
conclusão de que a realidade constitucional tornou possível
essa responsabilização.
Cita o
exemplo da França, com a Lei nº 72.620, de 5/7/72 e Lei
nº 79/43, de 18/1/79 e o da Itália – Lei nº 117, de
13/4/88, que adotam um sistema de responsabilidade estatal
exclusiva: apenas o Estado responde perante o
jurisdicionado, ressalvado àquele o direito de regresso
contra o magistrado faltoso. Na Itália, a lei resultou de
um referendum: Estado responde exclusivamente por
ato judicial ilícito: dolo, culpa grave ou denegação de
justiça. Na França, fala-se em fonctionnement défectueux
du service de la justice, muito mais abrangente.
Pode-se
concluir que o Direito brasileiro também adota esse princípio,
dada a amplitude do disposto no art. 37, § 6º, da CF.
Afinal, O serviço judiciário consiste,
incontestavelmente, em um serviço público, imposto aos
cidadãos pelo Estado, que deve zelar por um certo grau de
perfeição tanto na sua organização quanto no seu
funcionamento, bem como responder pelos danos acaso daí
provenientes.
Hipóteses
como as citadas recaem na letra do art. 133 do Código de
Processo Civil e admitem responsabilização, sem qualquer
dúvida. Mas sem falar em desídia, o atraso excessivo
pode gerar prejuízo à parte e esse é perfeitamente
ressarcível.
Não se
esgota no dolo a possibilidade de o juiz prejudicar alguém,
salienta o juiz José Guilherme de Souza. Pois o
magistrado incompetente (no sentido técnico, mas não
processual), desidioso, desinteressado, sem aplicação
aos estudos, venal, corrupto, tendencioso, etc., acaba por
causar danos, numa reação em cadeia, embora não
necessariamente nesta ordem de prioridades: aos
jurisdicionados e à sociedade como um todo, por extensão:
ao Estado, que ele representa e que é avocado em juízo
para dar contas, às custas do erário, dos atos de seus
agentes; extensivamente, à justiça, enquanto estrutura
organizada de proteção aos direitos do cidadão; por último,
à sua corporação, enquanto órgão de aglutinação e
de defesa dos interesses da classe, bem como aos colegas
profissionais tomados individualmente.
Para esse
magistrado catarinense, a cada vez que um magistrado,
havendo cometido uma falta profissional no desempenho de
suas funções, viesse a ser condenado a repetir ao Estado
o que este despendeu com o ressarcimento dos danos
sofridos pelo particular em razão daquela falta, um passo
a mais teria sido dado no rumo de uma justiça mais séria,
mais humana e mais justa.
A condenação
ressarcitória, para o juiz responsável por má prestação
jurisdicional, constituiria estímulo a que todos os
demais se motivassem à adequada outorga. É uma forma de
se ampliar o acesso à justiça convencional.
Para todos
os juízes, porém – aqui incluídos aqueles que
investem na autoformação continuada e procuram vencer a
sobrecarga de trabalho resultante da contingência, o
Judiciário precisa oferecer melhores condições de
trabalho.
A
multiplicação dos cargos de juiz não é a solução. As
estatíticas invocadas não servem para justificar a
necessidade de criação de cargos, pois as situações
entre os Estados cotejados é completamente diferente.
Importa é
conferir ênfase à responsabilidade do juiz, o
principal operador jurídico na presente concepção de
Justiça. Basta de reducionismo na visão do servo e
aplicador inerte da lei. Essa concepção está em
conflito com um enfoque moderno do Direito e da interpretação
jurídica, aliás em geral com a teoria moderna da hermenêutica:
a interpretação sempre deixa algum espaço para opções,
e portanto para a responsabilidade.
Onde se
aprende interpretar com responsabilidade?
As Escolas
da Magistratura são o laboratório gerador de uma nova
visão do Judiciário. Incentivando a criatividade,
estimulando a eficiência, repensando as técnicas de
trabalho, conferindo ao processo toda a sua potencialidade
como instrumento suficiente à realização do justo.
As Escolas
precisam, mais do que nunca, enfatizar o aspecto ético
da profissionalização, pois o juiz consciente se
condói da situação dos excluídos da justiça e
se preocupa com a técnica facilitadora da eficiência no
desempenho.
É o
momento de se ensinar o juiz a conviver com alternativas
diversas de realização da justiça, humilde na convicção
de que não é só ele o concretizador do justo, mas
precisará coexistir com as tendências de solução pacífica
dos conflitos, sejam elas a conciliação, a mediação, a
arbitragem ou mesmo certas formas incipientes de justiça
privatizada.
Quem não
se aperceber de que os tempos são outros e que o acesso
à Justiça é algo de muito mais sério do que
garantir a institucionalização do conflito mediante o
processo, poderá ser surpreendido com a substituição da
Justiça convencional por outras formas de maior eficiência
na mitigação da sede de justiça de que padece a
humanidade aflita, mas participante, deste final de milênio.
5
CONCLUSÕES
1.
Insatisfatória a estrita visão do acesso à Justiça
como acesso aos tribunais. Se este é o coroamento
do Estado de Direito, é também – e simultaneamente
– um direito meramente formal, tantos são os
obstáculos antepostos ao acesso da pessoa à ordem jurídica
justa.
2. A única
proposta desta reflexão é examinar, superficialmente
embora, três dentre as causas que dificultam o acesso à
ordem jurídica justa: o desconhecimento do Direito, a
pobreza e a lentidão na outorga da prestação
jurisdicional.
3. As
pessoas não poderão usufruir da garantia de fazer valer
seus direitos perante os tribunais, se não conhecem a
lei, nem o limite de seus direitos. A aplicação do
Direito é tarefa de juristas e, portanto, natural
certo desconhecimento de sua técnica operacional. Já o conhecimento
do Direito constitui pressuposto à sua aplicação e
se traduz como o direito a ter direitos.
4. O
primeiro compromisso do juiz é com a disseminação do
Direito. O Direito deverá quotidianizar-se, perder sua
magia para ingressar na realidade concreta de cada ser
humano. O juiz pode atuar na ampliação do acesso ao
conhecimento do Direito de forma institucional ou pessoal.
5. A atuação
institucional incumbe ao Poder Judiciário e às Associações
de Classe, que devem atuar no sentido de divulgar o
Direito e as formas de usufruí-lo e de defendê-lo quando
vulnerado. Todas as informações jurídicas são
pertinentes e mesmo a edição de uma Cartilha da
Cidadania se faz recomendável, para uso do brasileiro
despertado para essa vertente constitucional a partir de
1988.
6. Todo
juiz, pessoalmente, pode contribuir para disseminar o
Direito, pois ao decidir está exercendo função docente.
As decisões devem revestir clareza, assim
entendida a cortesia do intelectual para com os destinatários
de sua produção. Se os leigos compreenderem o Direito,
afeiçoar-se-ão a ele e ao valor que exprime.
7. Muitos
juízes também contribuem para tornar o Direito melhor
conhecido quando lecionam, escrevem trabalhos doutrinários
e artigos para os mass media, não se recusam a
entrevistas e a debates. O momento histórico exige
magistrado mais atuante, menos distanciado da comunidade.
Presente e transparente, não mais o asséptico e inatingível
aplicador da letra fria da lei.
8. A pobreza
é um dos maiores obstáculos do acesso ao Direito e
atinge cerca de um terço da população brasileira. Já não
basta dizer que a pobreza é uma desgraça não imputável
ao jurista. O juiz é também destinatário do comando
constitucional direcionado a transformar o Brasil numa
sociedade fraterna, justa e solidária.
9. Combater
a miséria é a única forma de redesenhar o Brasil e que
tal truísmo, além de contribuir para o juiz repensar o
dogma da imparcialidade, reclame-lhe adequada aplicação
do princípio da isonomia, de maneira a reduzir o fosso
que separa o poderoso do despossuído.
10. Num
Estado como o Brasil, de muitos milhões de miseráveis, o
juiz precisa refletir continuamente se ele está sendo
fator de resgate de seus semelhantes ou instrumento de
mais intensamente afligir o aflito. Poderá ser um e
outro, utilizando-se da mesma técnica de julgamento.
11. A
lentidão do processo não é fenômeno brasileiro, mas
admite tratamento apropriado, a partir da consciência do
juiz. A despeito da falta de estrutura material e da
multiplicação de demandas, pode conferir celeridade aos
feitos, desde que se sirva adequadamente do raciocínio
constitucional e confira ao processo a sua destinação
instrumental.
12. Para
reduzido número de juízes insensíveis à doutrina e às
reformas processuais, responsáveis por tramitação
defeituosa que resulta de um ritmo próprio conferido ao
processo, a responsabilização civil do Estado, na
via regressiva, poderia constituir terapêutica.
13. Importa
é conferir ênfase à responsabilidade do juiz, o
principal operador jurídico na presente concepção de
Justiça. Basta de reducionismo na visão do servo e
aplicador inerte da lei. E assumir as
responsabilidades sociais e históricas também se
aprende. Especialmente nas Escolas da Magistratura.
14. As
Escolas precisam, mais do que nunca, enfatizar o aspecto ético
da profissionalização, pois o juiz consciente se
condói da situação dos excluídos da justiça e
se preocupa com a técnica facilitadora da eficiência no
desempenho. E com isso garantirá efetiva ampliação do
acesso de todos ao Direito e à Justiça.
José Renato Nalini
é juiz do Tribunal de Alçada Criminal de São
Paulo e diretor adjunto da Escola Nacional da
Magistratura.
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