Comentário
Geral n.º 3 (5ª sessão , 1990)
UN
doc.E/1991/23 do Comitê dos Direitos
Econômicos
,Sociais e Culturais.
Tradução:
Adriana Carneiro Monteiro
A
natureza das obrigações dos Estados- partes.
art.
2º , parágrafo 1º do Pacto
1.
O artigo 2º é de particular importância para um
completo entendimento do Pacto e deve ser visto como tendo
uma relação dinâmica com todas as outras provisões do
Pacto. Descreve a natureza das obrigações legais de um
modo geral assumidas pelos Estados- partes ao Pacto. Essas
obrigações incluem tanto o que pode ser designado
(seguindo o trabalho da Comissão de Direito Internacional
) como obrigações de conduta quanto obrigações de
resultado. Enquanto grande ênfase tem algumas vezes sido
colocada na diferença entre as formulações usadas nesta
provisão e aquela contida no equivalente artigo 2º do
Pacto dos Direitos Civis e Políticos, não é sempre
reconhecido que há também significantes similaridades.
Em particular, enquanto o Pacto prevê a realização
progressiva e admite restrições devido aos limites de
recursos disponíveis, também impõe várias obrigações
que são de efeito imediato. Dessas, duas são de
particular importância no entendimento da natureza
precisa das obrigações dos Estados- partes. Um desses,
que é tratado num Comentário Geral específico, e que
será considerado pelo Comitê em sua sexta sessão, é a
tarefa de comprometer-se a garantir que direitos
relevantes serão exercidos sem discriminação.
2.
O outro é o compromisso no artigo 2(1) de adotar medidas
(take steps), o que, por si só, não é qualificado ou
limitado por outras considerações. O completo
significado da frase pode também ser avaliado
observando-se algumas das diferentes versões lingüísticas.
Em inglês, o compromisso é “to take steps”, em francês
é “s’engage à agir” ( agir ) e em espanhol é
“adoptar medidas”. Assim, enquanto a completa realização
de direitos relevantes pode ser alcançada
progressivamente, providências em direção ao objetivo
devem ser tomadas dentro de um tempo razoavelmente curto
depois da entrada em vigor do Pacto para os Estados
envolvidos. Tais providências devem ser deliberadas,
concretas e dirigidas às metas tão claramente quanto
possível em direção à realização da obrigação
reconhecida no Pacto.
3.
Os meios que devem ser usados para satisfazer a obrigação
de tomar providências são estabelecidos no artigo 2(1) a
saber: “todos os meios apropriados incluindo
particularmente a adoção de medidas legislativas.” O
Comitê reconhece que em muitos momentos a legislação é
altamente desejável e em alguns casos pode ser até
indispensável. Por exemplo, pode ser difícil combater
efetivamente a discriminação na ausência de um
fundamento legislativo para as medidas necessárias. Em
campos como a saúde, a proteção de crianças e mães e
educação, assim como em relação às matérias tratadas
dos artigos 6 a 9, a legislação pode também ser um
elemento indispensável para muitos objetivos.
4.
O Comitê nota que os Estados- partes têm, geralmente,
sido conscientes em detalhar pelo menos algumas das
medidas legislativas que têm tomado sob esse aspecto. O
Comitê deseja enfatizar, porém, que a adoção de
medidas legislativas, como especificamente previstas pelo
Pacto, não esgota as obrigações dos Estados- partes.
Preferivelmente, a expressão “ por todos os meios
apropriados” deve ser tomada em seu sentido próprio e
integral. Enquanto cada Estado- parte deve decidir por si
próprio que meios são os mais apropriados de acordo com
as circunstâncias com relação a cada um dos direitos, a
“adequação” dos meios escolhidos não será sempre
auto - evidente. É portanto desejável que os relatórios
dos Estados- partes devam indicar não apenas as medidas
que têm sido tomadas, mas também a base em que são
consideradas “as mais apropriadas” de acordo com as
circunstâncias. Porém, a determinação definitiva
quanto a se todas as medidas
apropriadas têm sido tomadas, permanece a cargo do
Comitê.
5.
Entre as medidas que devem ser consideradas apropriadas,
além da legislação, é a previsão de remédios
judiciais, em relação a direitos que podem, em concordância
com o sistema legal nacional, serem considerados justiciáveis.
O Comitê nota, por exemplo, que a fruição dos direitos
reconhecidos, sem discriminação, será muitas vezes
apropriadamente promovida, em parte, através da previsão
de remédios judiciais ou de outra natureza igualmente
efetiva. De fato, esses Estados- partes que são também
partes no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
já são obrigados ( em virtude dos artigos 2 ( parágrafos
1 e 3), 3 e 26 ) do Pacto a assegurar que qualquer pessoa
cujos direitos ou liberdades (incluindo o direito à
igualdade e à não - discriminação) reconhecidos no
Pacto tenham sido violados, “ devam
ter um remédio efetivo” (art. 2º (3) (a)). Além
disso, há um número de outras provisões no Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, incluindo os artigos 3, 7 (a) (i), 8, 10, (3),
13 (2) (a), (3) e (4) e 15 (3) que pareceriam capazes de
aplicação imediata por órgãos judiciais ou de outra
natureza em muitos sistemas legais nacionais. Qualquer
sugestão de que as provisões indicadas são
inerentemente não auto- aplicáveis pareceriam serem difíceis
de sustentar.
6.
Onde políticas públicas específicas visando diretamente
à realização dos direitos reconhecidos no Pacto têm
sido adotados sob forma de legislação, o Comitê
desejaria ser informado, entre outros, quanto a se tais
leis criaram qualquer direito de ação em nome de indivíduos
ou grupos que sintam que seus direitos não estão sendo
completamente realizados. Em casos onde o reconhecimento
constitucional tem sido concedido a específicos direitos
econômicos, sociais e culturais ou onde as provisões do
Pacto têm sido incorporadas diretamente ao Direito
Nacional, o Comitê desejaria
receber informações quanto ao alcance do caráter
“justiciável” desses direitos (i.e.
capazes de serem invocados perante as Cortes). O
Comitê também desejaria receber informação específica
quanto a exemplos em que provisões constitucionais
existentes relativas a direitos econômicos, sociais e
culturais tenham sido enfraquecidas ou significativamente
mudadas.
7.
Outras medidas que podem também ser consideradas
apropriadas para os propósitos do artigo 2(1) incluem
medidas administrativas, financeiras, educacionais e
sociais, embora a elas não se limitem.
8.
O Comitê nota que o compromisso “de tomar medidas...
por todos os meios apropriados incluindo particularmente a
adoção de medidas legislativas” nem requer nem
impossibilita qualquer forma particular de governo ou
sistema econômico sendo usado como veículo para as
medidas em questão, na condição de que apenas seja
democrático e de que todos os direitos humanos sejam com
isso respeitados. Assim, em termos de sistemas políticos
e econômicos, o Pacto é neutro e seus princípios não
podem ser precisamente descritos como sendo afirmados
exclusivamente sobre a necessidade ou a conveniência de
sistema capitalista ou socialista ou misto, centralmente
planejado ou liberal, ou sobre qualquer outra abordagem
particular. Sob esse aspecto, o Comitê reafirma que os
direitos reconhecidos no Pacto são suscetíveis de
realização dentro do contexto de uma ampla variedade de
sistemas econômicos e políticos , com a única condição
de que a interdependência e a indivisibilidade dos dois
grupos de direitos humanos, como afirmado entre outros no
preâmbulo do Pacto, sejam reconhecidas e refletidas no
sistema em questão. O Comitê também nota a relevância
sob esse aspecto de outros direitos humanos e em
particular o direito ao desenvolvimento.
9.
A principal obrigação de resultado refletida no artigo 2º
(1) é tomar medidas “com vistas a alcançar
progressivamente a plena realização dos direitos
reconhecidos” no Pacto. O termo “progressiva realização”
é muitas vezes usado para descrever a intenção dessa
expressão. O conceito de progressiva realização
constitui um reconhecimento do fato de que a plena realização
de direitos econômicos, sociais e culturais não é possível
de ser alcançada num curto espaço de tempo. Nesse
sentido, a obrigação difere significativamente daquela
contida no artigo 2º do Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos que inclui uma obrigação imediata de
respeitar e assegurar todos os direitos relevantes.
Contudo, o fato de a realização ao longo do tempo ou, em
outras palavras, progressivamente, ser prevista no Pacto,
não deve ser mal interpretada como excluindo a obrigação
de todo um conteúdo que lhe dê significado. De um lado,
a frase demonstra a necessidade de flexibilidade,
refletindo as situações concretas do mundo real e as
dificuldades que envolve para cada país, no sentido de
assegurar plena realização dos direitos econômicos,
sociais e culturais. Por outro lado, a expressão deve ser
lida à luz do objetivo global, a verdadeira
razão de ser, do Pacto que é
estabelecer obrigações claras para os Estados- partes no
que diz respeito à plena realização dos direitos em
questão. Assim, impõe uma obrigação de agir tão rápida
e efetivamente quanto possível em direção àquela meta.
Além disso, qualquer medida que signifique deliberado
retrocesso haveria de exigir a mais cuidadosa apreciação
e necessitaria ser inteiramente justificada com referência
à totalidade dos direitos previstos no Pacto e no
contexto do uso integral do máximo de recursos disponíveis
.
10.
Com base na vasta experiência obtida pelo Comitê, assim
como pelo organismo que o precedeu, ao longo de um período
de mais de uma década de exame dos relatórios dos
Estados- partes, o Comitê é da opinião de que um núcleo
mínimo de obrigações para assegurar a satisfação de níveis
mínimos essenciais de cada um dos direitos é incumbência
de cada Estado- parte. Assim, por exemplo, um Estado-
parte em que qualquer número significativo de indivíduos
é privado de gêneros alimentícios essenciais, de
cuidados essenciais de saúde, de abrigo e habitação básicos
ou das mais básicas formas de educação está, à
primeira vista,
falhando para desincumbir-se de suas obrigações em relação
ao Pacto. Se o Pacto fosse interpretado no sentido de não
estabelecer tal núcleo mínimo de obrigações, seria
largamente privado de sua razão de ser. Além disso, deve
ser observado que em relação a qualquer avaliação no
sentido de verificar se o Estado se desincumbiu desse núcleo
mínimo de obrigações, deve-se também levar em conta as
restrições de recursos disponíveis no país
considerado. O artigo 2º (1) obriga cada Estado- parte a
tomar as medidas necessárias “até o máximo de seus
recursos disponíveis”. Para que um Estado- parte
atribua seu fracasso em cumprir seu núcleo mínimo de
obrigações à falta de recursos disponíveis, ele deve
demonstrar que todo esforço foi feito para usar todos os
recursos que estão à disposição num empenho para
satisfazer, como matéria de prioridade , essas obrigações
mínimas.
11.
O Comitê deseja enfatizar, porém, que até onde os
recursos disponíveis são demonstravelmente inadequados,
a obrigação do Estado- parte permanece no sentido de se
esforçar para assegurar o mais amplo gozo possível de
direitos relevantes de acordo com as circunstâncias
predominantes. Além disso, as obrigações para monitorar
a extensão da realização, ou mais especialmente da não
realização, de direitos econômicos, sociais e culturais
e para planejar estratégias e programas para promoção
desses direitos, não são de modo algum eliminadas como
resultado das restrições de recursos .O Comitê já
tratou dessas matérias no Comentário Geral n.º 1
(1989).
12.
De igual modo, o Comitê destaca o fato de que até em
tempos de severas restrições de recursos disponíveis,
se causadas por um processo de ajustamento, de recessão
econômica ou por outros fatores, os membros vulneráveis
da sociedade podem e de fato devem ser protegidos pela adoção
de programas relativamente de baixo custo para o alcance
das metas almejadas. Em sustentação dessa abordagem, o
Comitê nota a análise preparada pela UNICEF entitulada
“Ajuste com uma face humana: protegendo os vulneráveis
e promovendo o crescimento”,
a análise pelo PNUD
em seu Relatório sobre o Desenvolvimento Humano de
1990 e a análise pelo Banco
Mundial no Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de
1990 .
13.
Um elemento final do artigo 2º (1), para o qual atenção
deve ser dirigida é que o compromisso assumido por todos
os Estados- partes é “adotar medidas, tanto por esforço
próprio como pela assistência e cooperação
internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico...”.O
Comitê nota que a expressão “até o máximo de
recursos disponíveis” foi entendida pelos redatores do
Pacto como referindo-se tanto aos recursos existentes
dentro de um Estado quanto àqueles disponíveis na
comunidade internacional através da cooperação e assistência
internacionais. Além disso, o papel essencial de tal
cooperação em facilitar a completa realização dos
direitos relevantes é ainda mais realçado pelas disposições
específicas contidas nos artigos 11, 15, 22 e 23. Com
respeito ao artigo 22, o Comitê já chamou a atenção,
no Comentário Geral n.º 2(1990), para algumas das
oportunidades e responsabilidades
que existem em relação à cooperação
internacional. O artigo 23 também especificamente
identifica “o fornecimento de assistência técnica”,
assim como outras atividades, como sendo
“medidas de ordem internacional, para a conquista
efetiva dos direitos reconhecidos...”.
14.
O Comitê deseja enfatizar que em concordância com os
artigos 55 e 56 da Carta das Nações Unidas, com princípios
estabelecidos de Direito Internacional e com as provisões
do próprio Pacto, a cooperação internacional para o
desenvolvimento e assim para a realização dos direitos
econômicos, sociais e culturais é uma obrigação de
todos os Estados- partes. Está particularmente a cargo
daqueles países que estão em situação de ajudar os
outros sob esse aspecto. O Comitê nota em particular a
importância da Declaração do Direito ao Desenvolvimento
adotada pela Assembléia Geral em sua Resolução 41/128
de 4 de Dezembro de 1986e a necessidade dos Estados-
partes de levar em conta todos os princípios aí
reconhecidos. O Comitê enfatiza que, na ausência de um
programa efetivo de assistência e cooperação
internacionais por parte de todos aqueles Estados em condição
de empreendê-lo, a plena realização dos direitos econômicos
sociais e culturais irá permanecer uma aspiração
incumprida em muitos países. A esse respeito, o Comitê
também recorda os termos de seu Comentário Geral n.º 2
(1990).
International Law Commission
justiciable ( no original ). Também pode ser
traduzido como demandáveis em juízo ou exigíveis
judicialmente.
"raison d'être", no original.
"prima facie", no original.
G. A . Cornia , R. Jolly and F. Stewart , eds., Oxford
, Clarendon Press , 1987
Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento
Oxford , Oxford University Press, 1990.
Oxford , Oxford University Press, 1990.