Direitos
Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e
Ambientais: Construção, Ação e Debate
Valéria
Getúlio de Brito e Silva
A
temática dos direitos humanos tem galgado espaços inimagináveis.
As portas do novo milênio, velhos problemas continuam a exigir a
adoção de medidas capazes de. no limite. amainar os conflitos
gestados pelas ações ou omissões do passado e do presente, que
poderão comprometer dramaticamente o futuro. Pensar direitos
humanos, portanto, não é um mero esforço acadêmico ou
militante; e, sobretudo. um exercício dialético. na medida em
que diversos fatores históricos, políticos, culturais e econômicos
colaboram para a conflitualidade da matéria. Parafraseando os
ambientalistas, seria um exercício do pensar e agir localmente
para, acumulativamente. construir as condições necessárias
para pensar e atuar de forma global.
Nesse
prisma, a compreensão do processo histórico constitutiva do
pensamento filosófico, jurídico e político da humanidade assume
significativa relevância, na medida em que os direitos humanos
podem ser concebidos como direitos utópicos. de cunho filosófico
ou ideológico. uma vez que se constituem em valores que permeiam
dado tecido social em determinado período histórico,
adquirindo conotações oriundas das demandas sociais e políticas
afeitas àquele momento. Podem ser percebidos, a exemplo de
Bobbio (1992:16). como coisas desejáveis, fins que merecem ser
perseguidos. que. no entanto, apesar desta desejabilidade. ainda não
foram reconhecidos”.
Herkenhoff(1994:33-50),
ao analisar a influência existente na constituição dos princípios
éticos que se encontram presentes no conteúdo da Declaração
Universal dos Direitos Humanos (1948), resgata os elementos originários
de religiões e sistemas filosóficos da humanidade, como o
Cristianismo. o Judaísmo, o Islamismo, o Budismo, o Taoísmo, o
Confucionismo. além daqueles dos povos indígenas da América
Latina, possibilitando, assim, compreender o grau de influência
de cada um, na formulação da concepção de direitos humanos
conhecida na atualidade. Nesse sentido, registra que os valores
que permeiam os direitos humanos são milenares.
A
contribuição de cada religião e sistema filosófico aos valores
éticos constitutivos dos direitos humanos proporciona a formação
de uma teia de significados e expressões culturais e jurídico-políticas
que, no decorrer da história, caracterizam a luta por direitos
de forma individual ou coletiva. Os conflitos. frutos de
perspectivas individuais ou coletivas, podem ser percebidos como
o grande pano de fundo histórico de sua constituição ou divisão,
em níveis distintos de direitos.
Nesse
prisma, Herkenhoff (1994: 36-37) compreende como um dos
contributos do Cristianismo (em especial de São Paulo), a visão
do homem como o templo do Espírito Divino, tendo como decorrência
a idéia de que não pode ser torturado, morrer de fome ou ficar
desabrigado. No Judaísmo, os valores referentes à igualdade
entre as pessoas, o direito ao alimento, à sacralização do salário,
tendo como modelo o homem como a imagem de Deus, podem ser
encontrados nos principais textos sagrados. tais como a Bíblia
Hebraica, o Deuteronômio, o Ofinesis e os Salmos.
Herkenhoff
(1994: 38) faz a leitura do Islamismo. através do Corão.
atribuindo sua influencia para a compreensão ética dos
direitos humanos aos valores nele presentes como a fraternidade, a
idéia da universalidade do gênero humano e de sua origem
comum, a pregação da liberdade dos escravos, a liberdade
religiosa. Além disso, a visão de ser humano (homem, como vigário
de Deus) que transporta, possui uma estreita relação) com a idéia
cristã, ensinada por São Paulo (homem, templo de Deus) e com a
percepção) judaica de homem como imagem de Deus.
Em
contrapartida, na análise de Boularès (apud Herkenhoff, 1994:
39). representaria o Islamismo uma concepção) totalitária,
que apregoa a estreita relação entre a religião, o mundo e o
Estado, não permitindo assim espaço para a democracia, para a
laicização) e a tolerância, o que caracterizaria uma negação
dos direitos humanos.
Segundo
Herkenhoff(1994: 40- 45), o Budismo pressupõe a realização
plena da natureza humana e a formulação de uma sociedade pacífica
e perfeita, e o Taoísmo afirma a liberdade das pessoas,
reprovando qualquer coação. O governante, nesse último sistema
filosófico e religioso, deve governar pela persuasão dos corações
e não pelo uso da força. O Confucionismo ensina a fraternidade,
o respeito entre as pessoas. o humanismo, a busca da virtude e da
paz.
Os
direitos humanos vistos a partir da tradição religiosa e filosófica
dos povos indígenas da América Latina não foram relegados nos
estudos de Herkenhoff (1994: 47-49). Ao contrário, o autor
apresenta uma análise importante do verdadeiro processo de
destruição ocorrido à época da ocupação do território
latino-americano, demonstrando que a civilização Asteca (México),
mesmo ensinando o respeito ao próximo, a dignidade humana. o
culto à bondade e à justiça como um princípios gerais,
convivia com a divisão de classes, escravidão e admitia sacrifícios
humanos, o que não a distinguia, nesse aspecto, de seus
colonizadores europeus. Em contrapartida, a civilização Inca
(Peru) teria alcançado um elevado grau de compreensão dos
direitos humanos, pois mantinha urna organização social na qual
a propriedade era vista corno direito de todos, adotando uma visão
socialista do trabalho, de amor à cultura. de repulsa a escravidão,
além de definir a função pública Como serviço à coletividade.
Os
elementos originários de visões religiosas e de sistemas filosóficos
informam a existência de condutas e padrões sociais de caráter
milenar, que têm sido buscados pelos seres humanos. Isso nos
permite dizer que valores e direitos podem ser tratados de forma
intrínseca, a exempIo da negativa a atos como tortura e uso da
torça por parte dos aparatos públicos. Por outro lado, as exigências
como a igualdade entre as pessoas, a fraternidade, a propriedade
corno direito de todos, o direito ao alimento, corno também o de
não ficar desabrigado pressupõem a realização plena da
natureza humana e uma sociedade pacífica e perfeita. O grau de
influência exercido por essas noções de valores e busca de
direitos pode ser percebido nos debates que ocorrem no
transcorrer do século XVI até o século X, tal como
apresentado por Bussinger (1997: II): “se as origens mais
remotas da fundamentação filosófica dos direitos fundamentais
da pessoa humana se
encontram no mundo antigo, o maior movimento de idéias em torno
de sua a/inflação esta intrinsecamente vinculado
à formação do Estado moderno"
Nessa
perspectiva, a secularização da política se constitui cm
fator determinante dos direitos fundamentais, uma vez que
possibilitou o rompimento com a idéia de que a lei humana e os
poderes políticos estavam subordinados ao direito divino, atribuídos
por Deus ao soberano. A construção de um referencial político
que possibilitasse a constituição de uma nova relação
Estado/cidadão ou soberano/súdito, sobretudo na Europa do século
XVI em diante, tornou-se possível em decorrência de fatores de
ordem econômica, cultural e ideológica. O combate travado
contra o cristianismo contou como mote principal a questão da
liberdade religiosa, portanto, com a reivindicação de
desatrelamento entre Igreja e Estado, o que resultaria na
secularização e autonomia política frente à religião
(Bussinger, 1997: 11).
Surge.
nesse contexto, no século XVII, um grande movimento de idéias
denominado Iluminismo, que, na Europa do século XVIII, leve
lugar privilegiado, favorecendo a constituição de uma nova
mentalidade cultural e espiritual. “O ideário iluminista
expressa uma confiança sem limites na razão e, a partir dela, na
libertação do conhecimento humano das amarras, sobretudo, da
tradição” (Bussinger, 1997: 11-12). O respeito à consciência
individual passa a constituir-se no tema central, a partir do
qual o fundamento das leis deve se ater, e a razão torna-se a
fonte dos direitos e deveres. Compreende-se ser necessário o
estabelecimento do respeito por parte da autoridade pública dos
denominados direitos naturais do homem, entendidos como inatos
ao homem por sua própria natureza, independentemente de sua
positivação. Desse modo, os direitos naturais têm como base a
racionalidade humana e não o direito divino.
Pode-se
dizer que o reconhecimento dos direitos humanos como inerentes
ao homem, ou constitutivos de sua própria natureza, surgem a
partir do ideário iluminista, como direitos naturais e inalienáveis
do homem. Nessa concepção, o elemento preponderante para a
efetivação dos direitos humanos é a desvinculação entre o
Estado e o indivíduo, devendo, portanto, ocorrer em detrimento
da ação estatal.
O
Jusnaturalismo, corrente teórica fundamentada com base nos
conceitos de direitos inatos, estado de natureza e contrato
social, reivindica o respeito, por parte da autoridade política,
aos direitos inerentes ao homem. O Contratualismo, ao defender que
o fundamento do poder político reside no contrato, ou seja, em
um acordo, assinala o fim do estado natural e o início do estado
social e político. Esses elementos constituíram-se em
diretrizes fundamentais do pensamento filosófico moderno
(Bobbio, apud Bussinger, 1997: 12) e, por sua vez, influenciaram
sobremaneira os acontecimentos que aqui passaremos a registrar.
A
primeira formulação de direitos humanos e liberdades
fundamentais do indivíduo que recebeu caráter de lei
constitucional ocorreu nos Estados Unidos da América, em 1787
quando da promulgação do “BilI of Rights”, seguida pelas
“Dez Emendas“, aprovadas em 1791. Nesse sentido, a primeira
formulação dos direitos do homem foi a “Declaração dos
Direitos do Estado de Virgínia “, de 1776, que foi seguida
pelos demais Estados, dando origem à “Declaração da
Independência” dos Estados Unidos (Lesbaupin. 1984: 59).
Foi
provavelmente a declaração francesa que, por sua vez, motivou o
elenco das “Dez Emendas” dos Estados Unidos da América. A
origem comum das declarações americana e francesa reside na
ascensão da burguesia e cm sua ideologia, o Liberalismo. (Leshaupin,
1984: 62).
Segundo
Bobbio,
Ambas
as Declarações partem dos homens considerados singularmente; os
direitos que elas proclamam pertencem aos indivíduos considerados
um a um, que os possuem antes de ingressarem em qualquer sociedade.
Mas, enquanto a ‘utilidade comum’ é invocada pelo documento
francês unicamente para justificar eventuais ‘distinções
sociais’ quase todas as cartas americanas fazem referência
direta à finalidade da associação política, que é a do common
benefit (Virgínia), do good of whole (Maryland) ou do common good
(Massachussets). Os constituintes americanos relacionaram os
direitos do indivíduo ao bem-comum da sociedade, Os constituintes
franceses pretendiam afirmar primeira e exclusivamente os
direitos dos indivíduos
(Bobbio, 1992: 90).
A
conformação desses níveis de valores humanos, a partir da
Revolução Francesa e da Constituição Americana, receberam a
denominação de Declaração dos Direitos do Homem, no âmbito
das garantias individuais – séculos XVII e XIX – e dos
direitos sociais, econômicos e culturais a partir do século XIX
até a atualidade.
Deve
ser lembrado que. ao lado das Revoluções Industrial e
Francesa, Outros fatores foram de substancial importância para o
avanço desses direitos humanos, a exemplo da Encíclica Papal
Rerum Novarun (1891}, que deu origem à moderna Doutrina Social da
Igreja: os ideais socialistas; as revoluções Mexicana (1910) e
Russa (1917); a Constituição da República de Weimar na Alemanha
(/9 19) e o Tratado de Versalhes, que propiciou a formação da
Organização do Trabalho. em 1919.
Entretanto,
o ideário liberal, expresso pela visão individualista, e com a
pretensão de dirigir-se a todos os povos, e ter alcance
universal, constante nas declarações americana e francesa, é
refutado pelas análises de cunho marxista:
Na
Declaração de1789, todos os homens são procIamados iguais,
mas se subordina a igualdade à utilidade social (art.1º), A
igualdade é estritamente mantida ao nível da igualdade dos
direitos: a desigualdade recorrente da riqueza é intangível
(art. 1” e 17), o que deixa entrever que a igualdade perante a
lei (art. 62) é apenas formal. Defende o direito de propriedade
(art. 2º e 17), mas nada diz sobre os que não possuem
propriedades a grande maioria. A liberdade religiosa é declarada
mas ao mesmo tempo limitada: os cultos dissidentes só serão
tolerados a medida em que as manifestações não infrinjam a
ordem estabelecida pela lei (art. 10). Todo cidadão pode falar,
escrever e imprimir livremente, mas há casos determinados em
que a lei poderá reprimir os abusos dessa liberdade
(art. 11). (Lesbaupiu. 1984:65).
Herkenhoff
(1994:45-47) afirma que o Marxismo contribuiu para a formulação
dos direitos humanos, pois propôs um sistema social e econômico
fundamentado na dignidade da pessoa humana e na exigência da
libertação do homem, que se daria à proporção em que a
dignidade fosse assegurada. Teses, como a da liberdade baseada na
união e na solidariedade entre as pessoas, educação pública e
gratuita para todos e liberdade da ciência foram defendidas por
Marx. A separação entre a Igreja e o Estado, por Lenine e
Engels, além de o próprio Lenine ter lutado pelos direitos políticos
da mulher, sufrágio universal, liberdade de reunião, associação
e greve, que são também contribuições que podem ser
mencionadas.
Nesse
sentido, vaie destacar que, no texto A Questão Judaica, Marx
(1991: 44-45) compreende que:
os
direitos do homem, ao contrário dos direitos do cidadão, nada
mais são do que direitos do membro da sociedade burguesa, isto é,
do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade. A
liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique a
ninguém <Constituição de 1791); a liberdade é o poder próprio
do homem de fazer tudo aquilo que não conflite com os direitos
dos outros (Constituição de 1793). Trata-se da liberdade do
homem como uma mônada isolada, dobrada sobre si mesmo. A aplicação
prática do direito humano à liberdade é o direito humano à
propriedade privada, diz, ainda, que o direito à propriedade é o
direito de desfrutar de seu patrimônio e dele dispor arbitrariamente,
sem atender aos demais homens, independente da sociedade: é o
interesse pessoal. A igualdade é a faculdade reconhecida a
todos de gozar egoisticamente o direito de propriedade [...] A
segurança consiste na proteção conferida pela sociedade a
cada um de seus membros para a conservação de sua pessoa, de
seus direitos e de suas propriedades (Constituição de 1795). A
segurança é o conceito social supremo da sociedade burguesa, o
conceito social supremo da sociedade burguesa, o conceito de polícia.
Os
direitos humanos de liberdade, fraternidade e igualdade são
questionados por Marx, por serem como postulados abstratos e
irrealizáveis. em face da realidade forjada por indivíduos egoístas
e em decorrência do contexto social, político e jurídico que os
fundamentam. Segundo Mészáros (1993: 207), não existiria uma
“oposição apriorística entre o marxismo e os direitos
humanos“, pois Marx sempre defendeu “o desenvolvimento livre
das individualidades”. que se daria em “uma sociedade de
indivíduos associados e não de antagonicamente opostos”.
Para
Mészáros, Marx não teria como crítica o objeto denominado
direitos humanos, mas o uso dos declarados direitos do homem, uma
vez que são racionalidades “pré-fabricadas das estruturas
predominantes de desigualdade e dominação”. Marx insistida na
análise de que “qualquer sistema determinado de direitos deve
ser avaliado em termos das determinantes concretas a que estão
sujeitos os indivíduos”. Não sendo assim, visto que “se
transformaram em esteios da parcialidade e da exploração”. O
ponto culminante da crítica marxista aos direitos do homem, reside
no questionamento do direito à propriedade privada. A partir da
formulação dessa crítica, Marx passou a ser encarado como
inimigo dos direitos humanos. Ressalta ainda o autor que a
propriedade privada, base de sustentação dos direitos humanos,
é um
fato
histórico desumanizado, na medida em que separa aqueles que têm
e aqueles que não têm, os despoja de qualquer conteúdo
significativo e os transforma. seja em nome do consenso tácito ou
de suas recentes verdades mais sofisticadas, em uma justificativa
clamorosa da realidade crueI do poder, da hierarquia e do privilégio
(Mészáros. 1993:208).
Com
a eclosão de conflitos entre o proletariado e a burguesia
ocorridos dentro do contexto de desenvolvimento da sociedade
capitalista, a proposta liberal, que deu sustentação aos
direitos humanos individuais, foi sendo colocada em xeque. O
Estado, que exercia o papel de não-intervenção nas relações
sociais e econômicas, passou a ser requisitado para uma intervenção
direta.
A
conquista dos direitos humanos políticos representa o
reconhecimento, por parte do Estado, dentre outros. do direito á
associação humana, seja esta sindical, popular ou partidária.
Nesse sentido, as garantias individuais do ser humano passaram a
ser requisitadas coletivamente. Esses direitos foram sendo
incorporados ao sistema capitalista, principalmente no decorrer do
século XX, à medida em que ao Estado está posto o papel de
agente promotor das relações sociais, econômicas e políticas.
Vale
ressaltar que os direitos coletivos, econômicos, sociais e
culturais passam a expressar os direitos individuais em uma nova
perspectiva, qual seja. o titular do direito coletivo de
participar do bem-estar social é o indivíduo. Assim,
são
direitos de crédito do indivíduo em relação à coletividade.
Tais direitos - como o direito ao trabalho, à saúde, a educação
têm como sujeito passivo o Estado porque, na interação entre
governantes e governados, foi a coletividade que assumiu a responsabilidade
de atendê-los
(Lafer, 1.99 1:127).
Portanto,
a constituição da compreensão atual dos direitos humanos
guarda valores milenares oriundos de fontes religiosas e filosóficas,
que propiciaram a constituição de relações humanas distintas
no decorrer da história. Nesse prisma, as visões de direitos
humanos presentes na atualidade não podem ser encaradas de forma
estanque, mas como decorrentes do processo dialético de construção
de valores, normas jurídicas e posturas políticas. Ao seu
tempo, determinam a prevalência ou não de determinados
direitos, em face aos interesses econômicos. sociais e políticos
que, em determinado momento) histórico, se encontram em
conflito. A noção de conflito de interesses, na configuração
da concepção dos direitos humanos, não pode ser desmerecida,
uma vez que é parte constitutiva do processo social.
Torna-se
importante realçar alguns elementos que, na atualidade, têm
permeado a discussão dos direitos humanos, especialmente no que
concerne ao papel do Estado na proteção e promoção desses
direitos.
O
exercício do poder, pelos órgãos do Estado, não deve coibir ou
impedir o efetivo gozo dos direitos humanos. Em um Estado democrático,
os direitos humanos devem se constituir no esteio de sua formulação
jurídico-normativa e no alicerce de suas políticas voltadas para
a implementação dos direitos de cidadania: direitos civis, políticos
e, também, a satisfação dos direitos econômicos, sociais e
culturais.
Ao
realizar uma comparação entre os elementos constitutivos da
cidadania, para Marshall (apud Barbalet, 1989: 12-13) e o
entendimento de direitos humanos, expresso nos estudos de Nikken
(1994), constata-se a grande similitude existente entre os dois
pontos de vista. Na compreensão elaborada por Marshall, estão
presentes os elementos dos direitos civis, expressos pela
liberdade de ir e vir, de pensamento e de fé, direito de
propriedade e de concluir contratos válidos e de acesso à justiça;
e políticos, relacionados à participação no exercício do
poder político como membro do sistema/organismo e/ou eleitor.
Para Nikken, a compreensão de direitos civis e políticos
inerentes e constantes do colorário dos direitos humanos, tem por
objetivo
La
tutela de la libertad, la seguridad y la integridade física y
moral de la persona, así como de su derecho a participar en la
vida pública. Por lo mismo, ellos se oponem a que el Estado
invada o agreda ciertos atributos de la persona, relativos a su
integridad, libertad y seguridad (Nikken, 1994: 29).
No que
tange aos direitos sociais, referidos ao direito mínimo de
bem-estar social, econômico e de segurança, de participar por
completo na herança social e de levar uma vida civilizada, de
acordo com os padrões que prevalecem em uma determinada
sociedade, encontramos a seguinte similitude com Marshall:
los
derechos econômicos, sociais v culturais, se refierem a la
existencia de condiciones de vida y acceso a los bienes materiales
y culturales en términos adecuados a la digninidad inherente a la familia
humana. La realización de los derechos econômicos, saciales y
culturais no depende, en general, de la sola instauración de un
orden jurídico ni de la mera decisión política de los órganos
gubernamentales, sino de la conquista un orden social donde impere
la justa distribución de los bienes, lo cual solo puede
alcanzarse progressivamente. Su exigibilidade está condicionada a
la existencia de recursos apropiados para su satisfacción, de
modo que las obligaciones que asumen los Estados respecto de ellos
esta vez son de medi e de comportamiento)
(Nikken, 1994: 3 1).
Os
direitos humanos, como no Jusnaturalismo, são entendidos como
direitos inerentes à pessoa humana, uma vez que toda pessoa é
possuidora de direitos inalienáveis como, por exemplo, à vida,
pois todos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
As
concepções de Nikken (direitos humanos) e de Marshall
(cidadania), podem ainda ser encontradas na analise de Lafer
(1991) a respeito de gerações de direitos. Nessa abordagem, os
direitos humanos estão assim divididos: de primeira geração,
quais sejam, os direitos civis e políticos, entendidos como
direitos de liberdade, segurança, integridade física e moral
da pessoa, e de participar da vida pública, considerados direitos
de titularidade individual, inerentes ao indivíduo perante o
Estado. Os de segunda geração são os direitos econômicos,
sociais e culturais referentes à existência de condições de
vida e de acesso aos bens materiais e culturais adequados à
dignidade humana, direitos de créditos do indivíduo em relação
à coletividade. E o autor continua:
Daí a
complementaridade, entre os direitos de primeira e segunda gerações,
pois estes últimos buscam assegurar as condições para o pleno
exercício dos primeiras, eliminando ou atenuando os impedimentos
ao pleno uso das capacidades humanas. Por isso, os direitos de crédito,
denominados direitos econômico-sociais e culturais, podem ser
encarados como direitos que tornam reais direitos formais: procuraram
garantir a todos o acesso aos meios de vida e de trabalho num
sentido amplo [...] (Lafer, 1991:127).
Lafer
(1991:129) afirma, ainda, que os direitos de primeira geração
buscam limitar os poderes do Estado, definindo a fronteira entre o
Estado e a sociedade. Já os de segunda geração requerem a
ampliação dos poderes do Estado. Neste prisma, compete ao
indivíduo, no que tange aos direito. de primeira geração, no
campo jurídico, o papel de tomar a iniciativa; ao Estado, na
esfera do Poder Executivo, a polícia administrativa, de controle
das lesões individuais e, no que se refere ao Poder Judiciário,
esse deve aplicar as normas e, quanto ao Poder Legislativo, a
formulação das leis. O atendimento da segunda geração de
direitos depende do Estado e se deve exigir que ele desempenhe a
função de promovê-los junto à sociedade, através da ampliação
dos serviços públicos.
Com
o crescimento e desenvolvimento humanos, outras gerações de
direitos surgem dentro dos organismos internacionais, fruto de
novas exigências de preservação da humanidade, do habitat, da
vida em sua totalidade.
Nesse
sentido, dentro da cadeia das gerações de direitos humanos,
encontram-se os direitos de terceira e quarta gerações. São
titulares destes direitos, não os indivíduos singularmente, mas
os grupos humanos como a família, o povo, a nação,
coletividades regionais ou étnicos e a própria humanidade. São
os direitos relativos à autodeterminação dos povos; ao
desenvolvimento; à paz; ao meio ambiente; ao reconhecimento dos
fundos oceânicos como patrimônio comum da humanidade (Lafer
1991: 131).
O
processo de definição conceitual do que sejam os direitos
humanos tem refletido os interesses e necessidades presentes em
cada contexto histórico. Exemplos das ampliações processadas
no decorrer da história humana são muitos, no entanto, a noção
de igualdade é de fundamental importância, pois a igualdade do
direito à posse e à sua aquisição trouxe à luz a contradição
da estrutura social burguesa, dada a abstração formal presente
na teoria liberal, cuja averiguação é percebida quando tratada
no terreno da prática social (Mészáros, 1993: 205).
Percebe-se
que, ainda na atualidade, a força do pensamento liberal na
definição do que sejam os direitos humanos é irrefutável,
especialmente no que tange aos direitos civis e políticos; da
mesma forma, a influência do pensamento marxista também guarda
especial importância, principalmente quando se trata dos direitos
econômicos, sociais e culturais.
Em
decorrência das distinções existentes entre o pensamento
liberal e o marxista e, por outro lado, tendo em vista os aspectos
culturais de cada povo, é possível reconhecer a existência de
posições distintas acerca da abrangência da Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948 e, consequentemente. do
que sejam os direitos humanos.
Para
Bobbio (1992: 27-28), a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, tendo sido aprovada por 48 Estados em 10 de dezembro de
1948, na Assembléia da Organização das Nações Unidas (ONU),
representa toda humanidade partilhando valores comuns, e uma
crença na universalidade dos valores, subjetivamente acolhidos
pelo universo dos homens. Já para Santos (1997: 113), a Declaração
Universal traz a marca ocidental por ter sido elaborada se, a
participação da maioria dos povos do mundo; pelo reconhecimento
exclusivo de direitos individuais, com a única exceção do
direito coletivo à autodeterminação - que teria sido
restringido aos povos subjugados pelo colonialismo europeu pela
prioridade concedida aos direitos civis e políticos sobre os
direitos econômicos, sociais e culturais e pelo reconhecimento do
direito de propriedade como o primeiro e, durante muitos anos, o
único direito econômico.
Santos
(1997: 113-116) aponta para a necessidade de superação da falsa
noção de universalidade e relativismo culturais, com a adoção
de posturas filosóficas que fortaleçam essas posturas. Desse
modo, aponta para a existência de um certo pensamento hegemônico,
que determina o entendimento do que sejam os direitos humanos.
Para ele, a cultura ocidental criou um conceito universal para
direitos humanos. ou seja. a partir dos seus topoi forres -
premissas de argumentação - tem buscado incorporar em outras
culturas os valores, os direitos e os deveres que definem como
direitos humanos. Para esse autor os topoi forres tornam-se
altamente vulneráveis e problemáticos quando usados em uma
cultura diferente, deixando de representar premissas de argumentação
e passando a ser meros argumentos. Entende que na área dos
direitos humanos e da dignidade humana, a mobilização de apoio
social para as possibilidades e exigências emancipatórias que
eles contêm só serão possíveis de concretização à medida em
que forem absorvidas e apropriadas pelo contexto cultural local,
o que não pode ocorrer pela canibalização cultural, mas através
de um diálogo intercultural e uma hermenêutica diatópica.
O
autor analisa que a existência de rígidas dicotomias entre o
indivíduo e a sociedade favorece, na cultura ocidental, o
aparecimento de posturas individualistas, narcisistas,
alienadoras e de anomias. Os aspectos de fragilização. dentro da
concepção de direitos humanos de origem hindu e islâmica,
caracterizada pelo não-reconhecimento do sofrimento na dimensão
individual do sofrimento humano. Só podem ser considerados em uma
sociedade não-hierarquizada. O reconhecimento dessas
incompletudes significaria o primeiro passo para o diálogo
intercultural (Santos,
1997:118).
Compreende-se
que a busca do reconhecimento de tais incompletudes tem levado
governo e sociedade civil organizada a buscarem a construção de
espaços de diálogo, a exemplo das duas Conferências Mundiais de
Direitos Humanos. realizadas em 1968 e 1993.
Nesse
sentido, a noção de indivisibilidade dos direitos humanos.
constituída a partir da 1ª Conferência Mundial de Direitos
Humanos, de 1968, contribui para o início da superação da
separação expressa na concepção de gerações de direitos
entre os direitos civis e políticos e os direitos econômicos,
sociais e culturais, uma vez que
a teoria
das chamadas gerações de direitos é historicamente incorreta e
juridicamente infundada, tendo apenas fomentado uma visão
atomizada dos direitos humanos. O direito de todo ser humano de não
ser privado arbitrariamente de sua vida, assim como o direito de
todo ser humano de dispor dos meios apropriados de subsistência e
de um padrão de vida decente
pertencem, pois, a um tempo, ao domínio dos direitos civis
e políticos, e dos direitos econômicos, sociais e culturais,
ilustrando assim a indivisibilidade de todos os direitos humanos
(Trindade. 1994: XVII - XIX).
Portanto,
de acordo com o processo histórico de formulação dos direitos
humanos, pode-se dizer que os direitos humanos são integrados
pelos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e
culturais, entendidos, não de forma hierárquica, mas universais,
interdependentes e indivisíveis.
Retomando
o questionamento de Santos (1997) acerca da universalidade do
conceito de direitos humanos, e das dificuldades de aceitação,
em outras culturas, de valores, direitos e deveres tidos como
ocidentais, na atualidade, pode-se dizer que
foi um
tento extraordinário da Conferência de Viena conseguir superar o
relativismo cultural e religioso ao afirmai no artigo 1º da
Declaração: “A natureza universal de tais direitos e liberdades
não admite dúvidas”. Quanto às peculiaridades de cada
cultura, são elas tratadas adequadamente no artigo 5º,
em que se registra que as particularidades históricas,
culturais e religiosas devem ser levadas em consideração, mas os
Estados têm o dever de promover e proteger todos os direitos
humanos, independentemente dos respectivos sistemas (Alves,
1994: 27).
Dentro
do prisma de universalidade, interdependência e indivisibilidade
pode-se reportar as deliberações da Conferência Mundial de
Direitos Humanos de Viena, em 1993, em que se declara que
a
democracia, o desenvolvimento e a proteção dos direitos humanos
e liberdades fundamentais são conceitos interdependentes que se
reforçam mutuamente. A democracia se baseia na vontade livremente
expressa pelo povo de determinar seus próprios sistemas políticos,
econômicos, sociais e culturais e em sua plena participação
em todos os aspectos de sua vida. Nesse contexto, a promoção e
proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais, em níveis
nacionais e internacionais, devem ser universais e incondicionais
[...] (Alves, 1994: 153, grifo nosso).
A
incorporação da dimensão dos direitos humanos em plano
horizontal nos órgãos internacionais, e, no plano vertical, no
direito interno e nas medidas nacionais trazem, a partir de Viena,
na visão da inter-relação entre direitos humanos, a democracia
e o desenvolvimento, situando o ser humano como sujeito central
deste ultimo “ (Trindade, 1994: XIX).
Nesse
sentido, o processo de formulação conceitual (promoção e proteção
pelos Estados) leva, a partir da II Conferência Mundial dos
Direitos Humanos (1993), ao entendimento dos direitos humanos
como onipresentes, uma vez que,
no plano
horizontal, a incorporação da dimensão dos direitos humano em
todas as atividades e programas dos organismos que compõem o
sistema das Nações Unidas, e, em plano vertical, a incorporação
no direito interno e as medidas nacionais de implementação dos
instrumentos internacionais de proteção (Trindade,
1994: XVII).
Em
uma análise final, a realidade brasileira nos leva a perceber que
a noção de direitos humanos mais adequada e que exija a adoção
imediata de compromissos e ações no Brasil, como no mundo, não
pode ser tratada de forma estanque, hierárquica. Como se para
vivenciá-los o ser humano tivesse que se sujeitar a aceitá-los
em doses homeopáticas, primeiro tendo o direito de votar e ser
votado, de ir e vir e. depois, inclusive muito depois, passar a
ter direito a moradia, trabalho, lazer, felicidade, paz, dentre
outros. Os direitos humanos representam um conjunto maior de
direitos, espelham a própria vida individual e coletiva de uma
dada comunidade, de um povo. São os reflexos da cidadania, da visão
de mundo e relações sociais, econômicas e políticas presentes
na humanidade e passíveis de serem vivenciadas por todos os seres
humanos, independentemente de sua raça, credo, opção política
e idade.
Outro
aspecto relevante desse debate refere-se a urgente e necessária
adoção de medidas governamentais, em parceria com a sociedade
civil, no sentido da superação da equivocada noção programática
adotada quando se trata dos direitos humanos.
Constitui-se
um grande equívoco afirmar que somente após a plena vivência
dos direitos políticos e civis é possível implementar, de
forma gradual, os direitos econômicos, sociais, culturais e
ambientais. Essa visão, a que creio devemos nos opor, é
reducionista e se opõe à noção de universalidade,
indivisibilidade e integralidade dos direitos humanos. Essa noção
gradualista parece estar reduzida apenas ao plano formal, como
se, para vívenciar os direitos humanos, fosse suficiente apenas
o estabelecimento de uma lei que gerasse a obrigação; no
entanto, quando o assunto é o “como”, qual a política pública
e social, com quais meios econômicos, financeiros e estruturais
devem ser assegurados esses direitos, os governos dizem que os
direitos humanos devem ser implementados de forma programática,
a partir da disponibilidade orçamentária. O que não dizem é
que toda disponibilidade orçamentária depende da disposição
política, da vontade política de implementar uma cidadania
plena.
Em
que pese a grande força desse pensamento. dessa forma de
encarar os direitos humanos na atualidade, pode-se dizer que já
existe uma compreensão majoritária, construída a partir dos
esforços de inúmeras organizações civis, e até mesmo
governamentais em todo o mundo, que busca colocar o ser humano
como prioridade, que percebe que só poderemos ter democracia e
desenvolvimento se os direitos humanos não estiverem subjugados
aos interesses do mercado. Torna-se necessário o
estabelecimento de um rígido controle sobre o mercado, para que
este não mais possa determinar os rumos da humanidade. Temos que
inverter a lógica, os seres humanos devem passar a ser a
prioridade.
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