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        A Função
        de julgar e os Mitos do Direito 
        
         
        Rogério Viola Coelho *
        
         
        O
        Poder Judiciário surge corno um poder autônomo depois da Revolução
        Francesa. Antes, era um simples órgão do poder único existente, o
        poder do rei ou do monarca. Em nome dele as Controvérsias eram julgadas
        e as sentenças expressavam oficialmente sua vontade, que encarnava a
        vontade divina.
        
         
        Com
        o advento da Revolução, a origem divina invocada pelo Estado Monárquico
        foi renegada, foram separados os poderes, e a lei, posta pelo
        parlamento, passou a ser a fonte única do direito.
        
         
        No
        início, acreditava-se que a lei — entendida Corno expressão da
        Vontade geral do povo — seri	u?l»a obra perfeita, sem lacunas ou contradições,
        e o seu texto não se prestaria a leituras divergentes. Nessas condições,
        o juiz cumpriria uma tarefa simples; não seria mais do que “a boca
        que pronuncia a vontade da lei” — um simples funcionário, portanto.
        Em consequência, a legitimação social das decisões judiciais
        decorria direta e imediatamente da legitimidade da lei.
        
         
        A
        evolução da vida social, no entanto, mostrou em seguida que a obra do
        legislador real — resultando do embate político dos grupos sociais
        representados no parlamento e padecendo das limitações humanas — não
        tinha os atributos anunciados, cabendo ao julgador, ao aplicá-la no
        caso concreto, uma tarefa de interpretação que implicava, na prática,
        “reconstruir a vontade posta no conjunto dos textos produzidos pelo
        parlamento que eram capazes de incidir no caso concreto.
        
         
        O
        trabalho do juiz evidenciou-se muito mais complexo do que o previsto
        inicialmente, e o seu grau de liberdade se ampliou cada vez mais, não só
        na escolha da norma a aplicar, no emaranhado crescente de normas do
        sistema, como também na leitura dos textos, que foram se tornando mais
        abstratos e ambíguos na medida em que a realidade a ser disciplinada se
        tornava mais complexa.
        
         
        Hoje
        se sabe e reconhece que, nas múltiplas escolhas que o juiz faz, influem
        decisivame	u?l»nte o seu próprio sistema de valores, as suas convicções
        sobre o mundo e a sociedade, ainda que ele não tenha consciência disso
        no ato de julgar.
        
         
        Em
        face da evolução descrita, a legitimação das decisões judiciais não
        poderia ser mais uma decorrência direta da legitimidade da lei — por
        maior que fosse a legitimidade desta. A solução encontrada para
        garantir essa legitimação foi estabelecer a ficção de que o juiz
        revela, no ato de julgar, não a vontade do legislador real, mas a
        vontade da lei, que deve ser “descoberta” através de múltiplas
        operações mentais. Vontade que se deve supor unívoca, sem contradições,
        perfeitamente ordenada e completa, isto é, capaz de produzir um
        ordenamento isento de lacunas. Instaura-se, assim, um legislador imaginário,
        que seria dotado de uma vontade plenamente racional. A vontade perfeita
        desse ser imaginário, que estava imperfeitamente expressa nas normas
        postas pelo legislador real, seria revelada gradativamente nos raciocínios
        lógicos desenvolvidos pelo juiz.
        
         
        Ficava
        assim assegurado que a sentença seria a vontade da lei no caso
        concreto, como repete hoje a ciência jurídica e ensinam todas as
        faculdades de direito do País. Não a vontade encontrada diretamente na
        literalidade dos textos produzidos pelo legislador real, mas aquela que
        está “atrás” e “acima” do texto da lei. Vontade que só se
        revela no “entrechoque dos textos contraditórios. De qualquer sorte,
        uma vontade que não seria em nenhuma medida do julgador, mas sim 	u?l»da própria
        lei. O juiz vasculharia a legislação posta, como um computador recorre
        à sua memória para lançar na tela o texto capaz de solucionar cada
        caso concreto.
        
         
        Ante
        o argumento de que as coisas não se passam bem assim, responde a ciência
        jurídica oficial que, embora essa crítica seja verdadeira, devemos
        posicionar-nos como se fossem exatamente assim, para que a ordem jurídica
        possa funcionar.
        
         
        Desta
        forma, instaura-se o mito de que existe um legislador racional; um ser
        imaginário a cuja vontade, considerada perfeita, só o juiz tem acesso.
        Assim, instaura-se, também, um outro mito, o mito do juiz-oráculo, que
        ocupa nesta mitologia, engendrada pelo positivismo, a posição de um
        sacerdote. Ao dizerem que a sentença expressa a vontade da lei no caso
        concreto, todos os compêndios e manuais escritos pelos juristas estão
        dizendo; 1º) que devemos encarar a sentença como se a lei tivesse
        sempre uma vontade para o caso concreto, o que equivale a dizer que há
        um legislador onisciente que prevê e soluciona todos os casos concretos
        por antecipação; 2º) que devemos ver a decisão judicial como se
        fosse uma explicitação dessa vontade preexistente. Vale dizer, como se
        ela não expressasse, em nenhuma medida, a nenhuma influência do seu
        sistema de valores éticos e de suas concepções de mundo e de
        sociedade.
        
         
        É,
        assim, com base nesta filosofia do como se que se instauram o mito do
        legislador racional e o mito do juiz-oráculo. Mitos que permitem hoje
        aos tribunais superiores proferir decisões injustas, flagrantemerite
        contrárias ao direito, com total desprezo pelo ordenamento
        constitucional, sem assumir a responsabilidade pela escolha que fizeram.
        Os membros desses tribunais (que vestem trajes imitantes dos que usam os
        membros dos Conselhos Cardinalícios), nos momentos em que atentam
        gravemente contra o direito) e praticam as maiores iniquidades,
        geralmente assumem o ar piedoso dos cardeais. Isto ocorre justamente
        porque se escondem sob a máscara de grandes sacerdotes, investidos no
        poder de auscultar a vontade daquele ente imaginário, onipotente e
        onisciente, que é o legislador-racional. E esse mito, propagado pela ciência
        oficial, que permite dizer que o direito está separado da moral e dos
        valores éticos. Remetendo a vontade posta nas normas jurídicas para um
        ser imaginário, onisciente e onipotente, essas normas se
        independentizam das normas éticas e das normas morais, que emanam da
        sociedade, e se cristalizam nas constituições contemporâneas,
        inclusive na nossa, que consagrou os direitos fundamentais, o princípio
        da justiça social, a função social da propriedade, entre outros,
        reiteradamente postergados. E também essa mitologia que permite manter
        OS procedimentos que buscam estabelecer que o sentido da lei — o seu
        significado — constitui algo inacessível ao cidadão comum.
        
         
        É
        necessário quebrar essa visão mitológica, proclamando que no aro de
        julgar o juiz é um sujeito atuante, que interpreta a lei a partir 	u?l»das
        suas concepções de mundo e dos valores que assume. Um sujeito que faz
        opções, que escolhe a norma a aplicar, quando duas ou mais normas têm
        incidência sobre um fato. Que escolhe entre as leituras possíveis de
        uma mesma norma. Que elege o princípio prevalente quando dois ou mais
        princípios concorrem sobre os mesmos fatos e, assim procedendo, afasta
        uma norma para dizer que outra está incidindo.
        
         
        Obrando
        com essas possibilidades de escolha, os juizes fazem opções políticas
        e muitas vezes relegam os princípios dominantes postos na Constituição,
        optando por princípios menores. Negam força normativa material a
        preceitos e normas que a própria Constituição declara terem incidência
        imediata. E, quando assim procedem reiteradamente, como estão fazendo
        os tribunais superiores em nosso País, passam a constituir-se em obstáculos
        à construção do Estado Democrático de Direito, à democratização
        da sociedade e ao exercício da cidadania. Dão uma contribuição
        decisiva para perpetuar a concentração de renda, legitimando todas as
        medidas provisórias adotadas autoritariamente, em nome da lógica da
        governabilidade sobreposta à lógica da Constituição.
        
         
        A
        sociologia contemporânea reconhece hoje a eficácia simbólica da
        atividade jurisdicional na conformação do imaginário coletivo.
        Cumprindo um papel relevante na afirmação dos valores veiculados pelo
        direito, contribui para a construção de uma ética racional.
        
         
        Trata-se
        de uma ética racional na medida em que a atividade judicante pode
        afirmar valores que não são herdados, mas emergentes da própria
        sociedade segundo critérios definidos pela razão. Valores incorporados
        conscientemente, como condição e fundamento da ação do homem na
        sociedade.
        
         
        PAULO
        DOURADO GUSMÃO propõe uma compreensão alternativa da lei e do ato de
        julgar, que podem servir de ponto de partida para a reconstrução da
        instituição judiciária:
        
         
        “Para
        nós, a lei é urna vontade ou um pensamento objetivado. Desde que
        objetivado, torna-se livre de seu criador, tornando-se um ‘objeto’
        do mundo da cultura, suscetível de compreensão, de interpretação.
        Cada ato de interpretação ‘repensa esse objeto, que é um pensamento
        objetivado. Nesse ‘repensar’ exerce influência decisiva a
        personalidade do intérprete, que, entretanto, não existe fora da História,
        de uma sociedade, de uma civilização, de uma cultura. Categorias lógicas,
        axiológicas, necessidades sociais, formam urna mentalidade, que, por
        sua vez, corresponde a uma época, a urna sociedade, a uma civilização,
        a uma cultura. Além desse substrato cultural, comum a todos que estão
        situados em idêntica coordenada espaço-temporal e sócio-cultural,
        ternos a intuição criadora, a capacidade criadora dos indivíduos.
        Corno essas instituições e essa capacidade variam, divergem, também,
        as interpretações. Por	u?l»tanto, cm toda interpretação temos urna
        pequena criação, pois o sujeito nunca é passivo” (Introdução à
        ciência do direito. Editora Forense, 2ª ed., 1960. p. 136).
        
         
        A
        afirmação dos juizes como agentes da sociedade, investidos dos seus
        valores e cânones de justiça, como agentes capazes de fazer da prestação
        jurisdicional uma expressão cultural da sociedade, certamente não é
        favorecida pela estrutura piramidal do aparelho judiciário,
        crescentemente concentradora de poder decisório nos tribunais
        superiores.
        
         
        Também
        não conduz à formação desse magistrado modelar o poder disciplinar
        verticalizado, “produtor de individualidades”, ou a edição das súmulas
        e enunciados preventivos pelos tribunais superiores, impostos e
        absorvidos como atos de fé pelas instâncias inferiores. Tais
        mecanismos, a toda evidência, produzem continuamente um deslocamento do
        poder jurisdicional de baixo para cima, fortalecendo o controle ideológico
        das cortes cardinalícias sobre as instâncias inferiores, o que tende a
        converter toda a prática judicante dos juizes situados na base da pirâmide
        em uma atividade puramente técnica, silogística, alienada, desprovida
        de reflexão teórica, empobrecedora. Converge para o mesmo resultado a
        exacerbação da demanda de produtividade, imposta pela necessidade de
        dar conta de uma avalanche sempre crescente de processos, fenômeno este
        que se verifica com particular intensidade da Justiça do Trabalho, em
        face do estímulo crescente à prática massiva do ilícit	u?l»o trabalhista
        pelo patronato. Nestas condições, se afigura como uma fatalidade a
        tecnificação dos indivíduos, valendo as exceções para confirmar a
        regra.
        
         
        Essas
        premissas apontam a necessidade de urna outra instituição judiciária
        laica, desburocratizada, desverticalizada, transparente e democrática.
        Uma instituição descorporificada, de cuja administração participe a
        sociedade, ficando aos juizes o exercício da função jurisdicional,
        com todas as garantias necessárias frente ao poder político e
        administrativo, livres de todas as formas de ingerência do econômico e
        das forças hegemônicas da sociedade.
        
         
        Nesta nova
        instituição, os templos positivistas, inseridos numa estrutura
        constituída à imagem e semelhança da Igreja Católica, cederão o
        lugar para cortes de Justiça representativas da sociedade, viabilizando
        a realização do triunfo do direito na vida social, concretamente,
        enquanto gesto de resistência do Homem às determinações da
        objetividade. Vale dizer, como uma trincheira de resistência à lógica
        férrea da economia; lógica esta particularmente perversa nos países
        periféricos. 
        *
        Advogado de sindicatos de trabalhadores do serviço público no Rio
        Grande do Sul 
        
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