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O Judiciário e os Tratados Internacionais Sobre Direitos Humanos (*)

Doutor DYRCEU AGUIAR DIAS CINTRA JÚNIOR
Juiz de Direito Titular da 2ª Vara da Capital
Juiz da 1ª Zona Eleitoral de São Paulo
Membro da Associação Juízes para a Democracia

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer o gentil convite feito pela Dra. Lucia Figueiredo e pela Professora Flávia Piovesan, para que eu expusesse as minhas reflexões sobre essas questões relacionadas com Tratados Internacionais de Direitos Humanos a uma platéia tão qualificada, de Juízes Federais.

Tenho imensa satisfação em estar aqui falando a vocês, aos Drs. Homar Cais e Newton de Lucca, ao querido amigo Dr. Antonio Carlos Malheiros, velho companheiro de lutas pelos Direitos Humanos na Associação Juízes para a Democracia e no Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, que fez hoje tão interessantes ponderações sobre a questão dos direitos humanos no que toca às liberdades públicas e, particularmente, com relação ao depositário infiel.

Começaria a minha exposição citando aquela frase de Bobbio, no sentido de que, hoje, os direitos humanos estão muito mais relacionados a uma questão política do que a uma questão filosófica; ou seja, hoje, não se trata mais de justificar os direitos humanos filosoficamente, senão de, politicamente, cobrar a aplicação das normas relacionadas com os direitos humanos.

Então, nesse novo nível de que estamos falando &emdash ou seja, no nível de instrumentalizar a proteção aos direitos humanos &emdash, não seria o caso, aqui, de entrar em considerações explicativas

a respeito das diversas concepções da natureza daqueles direitos.

O conteúdo básico dos direitos fundamentais da pessoa humana e o seu caráter universal são realidades assentadas. Uma ordem jurídica que aspire à justiça só pode ser construída com a incorporação dos direitos humanos, que foram sistematizados e expandidos a partir da Declaração dos Direitos Humanos. O último lance desta incorporação se deu, efetivamente, com a conferência da ONU de Viena, em 1993.

As normas básicas de direitos humanos entram no direito interno por proclamações constitucionais e pela adesão do País aos pactos internacionais. O Brasil é signatário dos principais pactos sobre o assunto: Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, Pactos sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção para Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, convenções sobre discriminação racial, sobre discriminação contra a mulher, sobre tortura e sobre direitos da criança; o Pacto de São José, tão mencionado pelo Dr. Malheiros aqui; a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura.

A Constituição articulou todo um sistema adequado de proteção aos direitos humanos. E diz, também, que um dos fundamentos da República é exatamente a dignidade da pessoa humana, que constitui, em verdade, o suporte de todos os direitos humanos consagrados. De maneira que qualquer interpretação que se fizer a respeito de garantias deve ter sempre em mente que é a dignidade do ser humano, fundamento da República, que deve orientar esta interpretação.

Por outro lado, os direitos e garantias fundamentais constitucionalmente previstos não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Isto está no artigo 5º, parágrafo 2º da Constituição Federal, a qual proclama, ainda, que a prevalência dos direitos humanos é um dos princípios reitores das relações internacionais do Brasil, isto no artigo 4º, inciso II.

Entretanto, a eficácia deste complexo de normas depende muito da sua promoção pelo próprio Estado, através dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, e também de um sistema internacional de fiscalização, que freqüentemente é feita com o auxílio das chamadas ONGs, Organizações Não-Governamentais.

Convém lembrar que o Estado pode ser responsabilizado internacionalmente pela violação de direitos humanos por parte do Estado, ou por omissão dos Poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário.

O Brasil ainda não reconheceu a competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Comitê de Direitos Humanos do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU. Portanto, em nível jurisdicional internacional, não existe a possibilidade do Brasil ser questionado. A adesão àqueles sistemas jurisdicionais internacionais tem sido cobrada por diversas entidades que tratam da proteção dos direitos humanos. Em diversos congressos o assunto tem sido discutido. Recentemente, por exemplo, houve, aqui em São Paulo, um Congresso Internacional de Juízes, que foi organizado pela Associação Juízes para a Democracia, e nesse congresso foram tiradas algumas conclusões, uma das quais é, exatamente, a de que o Brasil deveria aderir às duas Cortes Internacionais, ou seja, aceitar a jurisdição delas. Foi feita, inclusive, uma moção especial ao Presidente da República, no sentido de que o País reconhecesse a jurisdição daqueles tribunais internacionais.

De toda forma, ainda que não haja, em nível jurisdicional, essa possibilidade, existem outros meios de monitoramento internacional da questão dos direitos humanos. Há os chamados procedimentos confidenciais e os procedimentos de relatoria temática, no âmbito da ONU, ou seja, sistemas de acompanhamentos que não são jurisdicionais, mas que geram sanções em nível de reprovação do país, quando ocorrem episódios de violação dos direitos humanos.

O Brasil, sob o regime militar, em 1974 e 1975, já foi considerado em procedimento confidencial. Nunca foi monitorado por relator especial, mas isso tem sido falado ultimamente. Várias ONGs têm cobrado que a ONU mande um relator especial para verificar a questão de direitos humanos no Brasil, sobretudo tendo em vista a questão da violência, que implica violação de direitos humanos de forma disseminada.

O Brasil já foi citado e já foi objeto de controle, também, por parte da ONU, pelo sistema de relatoria temática, quanto às questões dos desaparecidos, assassinatos de menores e tratamento de presos. A relatoria temática toma um determinado tema e diversos países são investigados quando violam direitos humanos atinentes àquele tema.

No âmbito da OEA também é possível a sanção política, através da Comissão Interamericana. Essa Comissão monitora os direitos humanos, verifica casos de violação por qualquer Estado parte da OEA e inclui o nome do país num índice de países violadores de direitos humanos, de países em que o Estado não trata adequadamente de punir os casos de violação de direitos humanos. Isto causa, evidentemente, um desgaste muito grande ao país, porque se trata de uma sanção política que tem influência nas relações internacionais do país. E até mesmo países que não tenham aderido à chamada Convenção Americana de Direitos Humanos, ou Pacto de São José, podem ser monitorados pela OEA quando forem acusados de violação de princípios consagrados na Declaração Americana dos Direitos do Homem, que é de 1948. A Comissão Interamericana inclui no informe que apresenta à Assembléia-Geral da OEA, anualmente, a lista dos países que são considerados violadores dos direitos humanos.

Como já disse, os pactos sobre direitos humanos assinados pelo Brasil passam a vigorar como lei interna. Mais que isso, adquirem internamente o status de norma constitucional. Também concordo com o Dr. Malheiros quando diz que o pacto internacional, entrando em vigor no Brasil, se incoerente com outra norma constitucional, tem prevalência sobre esta. É que, por vontade constitucional manifestada no artigo 5º, parágrafo 2º, o pacto passa a ser norma constitucional, sem dúvida alguma. Entretanto, a verdade é que as autoridades do Executivo e do próprio Judiciário, até por falta de afinidade com a aplicação de normas de Direito Internacional, com freqüência têm se equivocado, em detrimento dos princípios que devem reger as boas relações internacionais.

Nós sabemos, hoje, que prevalece a doutrina monista internacionalista para a regência da relação entre o Direito Interno e o Direito Internacional. Isso gera uma espécie de limitação da soberania dos países que assinam pactos internacionais. Na Conferência de Viena, de 1993, isso ficou claro: os direitos humanos foram considerados inderrogáveis, de natureza universal, indivisíveis e interdependentes. O objetivo prioritário das Nações Unidas, segundo a Conferência, constitui a proteção dos direitos humanos. Esta deve constituir a preocupação legítima da comunidade internacional e, com isto, ficou reafirmada a colocação antiga de Norberto Bobbio, no sentido de que os sujeitos dos direitos humanos, em nível internacional, não são propriamente os Estados, e sim os homens, como verdadeiros cidadãos do mundo.

Portanto, já não se trata de matéria de exclusiva competência das jurisdições nacionais. Sua observância é, hoje, exigência universal. Sendo assim, surpreende, desde logo, que, em passado recente, quando se falou em introduzir a pena de morte no Brasil, algumas autoridades tenham manifestado o grave entendimento de que os pactos sobre direitos humanos geram uma certa "vinculação moral", apenas. Isto é muito grave e compromete até a imagem de seriedade do país em face dos compromissos que ele assume internacionalmente.

Do Supremo Tribunal Federal, nós não temos uma posição recente a respeito do assunto. O leading case, que nós citamos aqui, é de 1977, em questão que não envolvia propriamente Direitos Humanos, mas, simplesmente, a questão dos tratados internacionais. Esse leading case afirma a convicção de que tratados internacionais são equivalentes a leis, ou seja, que aqueles não têm status constitucional. Este julgado tem sido alvo de diversas críticas, críticas contundentes e procedentes, no meu modo de pensar, sobretudo por parte do Professor Antônio Augusto Cançado Trindade, que considerou esta posição ainda antiga do Supremo Tribunal Federal &emdash esperamos que nós tenhamos uma posição mais moderna hoje &emdash uma verdadeira negação do Direito Internacional, capaz de colocar sob suspeita a boa-fé do Estado ao contrair obrigações em nível internacional.

Mas gostaria de colocar, agora, alguns problemas mais prosaicos relacionados com a proteção dos direitos humanos no Brasil, que, de uma forma ou de outra, têm influxo na atuação institucional do Judiciário, ou no cotidiano funcional dos Magistrados.

Para análise desses problemas, farei uma breve referência à questão do controle da violência, que tem sido alvo de tantas referências desabonadoras ao Brasil, no exterior. Começo por aí porque, segundo entendo, as respostas institucionais, que têm sido dadas pelo Legislativo, quanto à questão da violência, têm sido inadequadas. O assunto tem sido tratado de forma superficial, especialmente no que se refere à criminalidade comum das grandes cidades. As respostas legislativas ignoram ideologicamente as verdadeiras causas da violência, procurando enfrentar, apenas, as conseqüências dela, a realidade objetiva, sem um aprofundamento maior.

Nós sabemos que a violência, nestes níveis que nós temos no Brasil, não é uma característica exclusivamente de nosso País. Neste final de milênio, a violência parece embalada por uma necessidade dos povos e grupos de se eliminarem uns aos outros, cada um procurando reservar o seu espaço de uma forma um tanto egoísta, fazendo com que prolifere aquilo que Erick Hobsbaum chamou de "ideologias não-iluministas": as manifestações de nacionalismo xenófobo, racismo, intolerância étnica e religiosa, que nós podemos notar nos diversos conflitos armados da atualidade: na Bósnia, no Oriente Médio, etc.

O que preocupa mais no Brasil, entretanto, é a disseminação de uma intolerância um pouco mais sutil, com base em preconceitos arraigados, que preside a formação de uma perversa ideologia de desrespeito sistemático aos direitos humanos. Ela parece mais nítida em momentos eleitorais. Nota-se então uma sutil reprovação, uma intolerância latente com relação a determinados candidatos, por suas origens. Isso não ocorre no discurso político, em cima do palanque; fica um pouco no contato mais íntimo entre as pessoas e acaba gerando uma sensação de permanente desrespeito aos direitos humanos, parecendo que se trata de um pacto entre algumas pessoas, sobretudo das elites e da classe média. A velha expressão "os direitos humanos dos bandidos" &emdash como se fosse possível a distinção entre "direitos humanos dos bandidos" e "direitos humanos dos não-bandidos" &emdash é um exemplo de como se dá esta sutil prática de desrespeito aos direitos humanos.

Este preconceito dissimulado, no meu modo de pensar, é muito mais grave, porque o tratamento jurídico-penal é mais difícil. Quando o desrespeito é frontal, nós temos leis que podem ser aplicadas para a reprovação jurídica do ato. Agora, quando esse preconceito é tão sutil, o tratamento jurídico-penal é impossível ou menos óbvio.

Já disse que o Estado tem interferido na realidade social, por meio do Legislativo, de forma desastrosa, porque acaba não resolvendo nada a respeito da questão da violência. Por um lado, o Estado agrava a situação da população pobre, insistindo num modelo econômico que a exclui do desfrute das riquezas e acentua um apartheid social desejado pela maioria hegemônica. Por outro lado - estou falando aqui da questão da falta de políticas públicas para cumprir os objetivos da República, nos quais está a eliminação da miséria e, enfim, fazer com que toda a população tenha acesso às riquezas que produz - parece que o Estado insiste em que o Direito Penal resolva todos os problemas que, na verdade, ele não pode resolver. A solução não está, propriamente, na repressão.

E o mais grave, no que se refere, agora, particularmente, ao Judiciário, é que o Juiz freqüentemente é chamado a resolver problemas que não pode resolver, em detrimento do papel dele enquanto garantidor da legalidade e dos direitos fundamentais.

Existe uma certa legislação que procura envolver o Juiz na atividade repressiva. Ora, o papel do Judiciário não é exercer a repressão; o Estado tem outros órgãos que são encarregados disto. O Juiz é um juiz de limites: deve pôr limites à intervenção estatal sobre a pessoa.

Passemos um pouco à questão social.

O Brasil vive uma situação tormentosa. Deu satisfação à Comunidade Internacional quando aprovou uma Constituição democrática e fez eleições livres. Passou, inclusive, pela experiência significativa de um impeachment no Presidente da República, feita normalmente, sem golpes e com a ação do povo. Provou, então, que é possível a democracia formal. Democracia formal nós temos. Entretanto, no que se refere à proteção dos direitos humanos, nota-se que a ação do Estado tem se limitado ao discurso. Persistem aqueles grandes problemas relacionados com a violência &emdash inclusive praticada por agentes do Estado &emdash e com a miséria: a) a falta de moradias para a população mais pobre (o problema dos sem-teto); b) a falta de terra para os camponeses (problema dos sem-terra); c) a questão do trabalho infantil inconstitucional, quer pela pouca idade, quer pela falta de garantias sociais compatíveis com a situação do adolescente, como exige a Constituição; d) a questão da prostituição infantil; e) a questão do trabalho escravo e outras mais, relacionadas com a questão social.

Não há políticas públicas de peso dirigidas à realização dos objetivos fundamentais da República, no que se refere a essas questões agora mencionadas.

O Judiciário Brasileiro, na área civil, quando enfrenta esta realidade, não o faz de maneira adequada. Existem, em primeiro lugar, especialmente nas regiões mais pobres do País, graves dúvidas quanto à independência do Judiciário, relativamente às oligarquias rurais, que estão, obviamente, interessadas na manutenção dos seus privilégios e na exploração da pobreza. Nós temos situações em que, nitidamente, se vê estrutura feudal na relação entre as pessoas, em determinadas áreas do país, e o Judiciário se amolda a esta situação de maneira acrítica. Questiona-se em alguns Estados da Federação, se, realmente, o Judiciário está agindo com independência quando tem de resolver conflitos informados por tal realidade.

Por outro lado, prevalece entre os Juízes uma certa visão tecnicista, de quem foi formado para lidar com o conflito intersubjetivo despolitizado e não para a abordagem do conflito coletivo. Nós fomos acostumados desde a academia a ler leis para aplicação mais imediata e a Constituição sempre fica de lado. Parece que, felizmente, essa prática está acabando. Isto gerou uma visão tecnicista do direito: a aplicação da lei passou a ser uma coisa muito mais singela do que deveria ser; os recursos interpretativos sempre foram limitados, na medida em que quase nunca se recorreu à Constituição. As lides sempre foram encaradas como lides que resolvem problemas localizados entre sujeitos bem determinados, quando nós sabemos que hoje o conflito é muito mais politizado. O conflito que nós temos a resolver, que o Judiciário é chamado a resolver, é o conflito coletivo e difuso, muitas vezes.

As reivindicações que envolvem os chamados interesses coletivos constituem verdadeiras cobranças feitas pela sociedade civil com relação à sociedade política, com relação às promessas da lei. E a questão da Justiça e dos direitos humanos é sempre fundamental na abordagem desses problemas modernos.

Uma consideração mais abrangente das necessidades fundamentais e reais do homem define os direitos humanos como o acesso aos bens indispensáveis à sobrevivência da espécie humana, como entidade biológica, espiritual e cultural &emdash como já disse o grande penalista italiano Alessandro Baratta &emdash e esta colocação, de certa forma, desmitifica aquela tendenciosa desqualificação que identifica os direitos humanos como instrumento de proteção de criminosos, como é divulgado pelas pessoas que se opõem às mudanças substanciais na iníqua estrutura social. Por outro lado, esta colocação imprime ao Judiciário uma função mais nobre, que é aquela de instrumentalizar a proteção aos direitos humanos, dentro de uma ótica de dar corpo, também, à função promocional do Direito. A sociedade cobra a aplicação do Direito, no sentido de que as promessas do legislador sejam cumpridas, e é o Judiciário que é chamado a fazer esta aplicação da lei. Trata-se, sem dúvida alguma, de uma função nobre que o Judiciário adquire a partir da visão da lei enquanto instrumento de mudança social.

O conceito de Estado democrático não pode se esgotar na democracia formal. Até no discurso oficial do Presidente da República, a palavra "democracia" tem o nome bem claro de "direitos humanos." Não pode haver Estado democrático que viole ou compactue com a violação dos direitos humanos.

No que se refere às lides de novo perfil a que me referi agora, o modelo tradicional de cultura jurídica dos Juízes está desatualizado.

Vejam o que ocorre, por exemplo, com a ocupação de terras rurais que não cumprem a função social, por movimentos organizados de pessoas que reivindicam o direito à moradia e ao trabalho na terra. As decisões técnicas de Juízes que elaboram uma operação silogística de subjunção do fato às leis garantidoras da propriedade civil acabam não resolvendo a questão e são socialmente desconfirmadas. É que não se pode apartar aquelas leis antigas, garantidoras da propriedade civil, de sua dimensão constitucional atual, tendo em vista que um dos atributos básicos da propriedade, hoje, está na chamada "função social" que, além de ser uma garantia constitucional do artigo 5º, inciso XXIII, também foi erigida como um dos princípios gerais da atividade econômica no artigo 170, inciso III, da Constituição. Justamente por isso, nós temos que ter em mente que a Constituição garante muito mais o direito "à propriedade" do que o "direito de propriedade".

Fato é que o Judiciário, aplicando as leis automaticamente, sem fazer uma espécie de reconhecimento da validade dessas leis em face do Direito e de seus princípios informadores, sobretudo no que se refere a garantias constitucionais, tem falhado muito. Ele não tem observado que, em verdade, a decisão judicial é o único produto do Estado em que aquela premissa de Hobbes se inverte. Hobbes disse que auctoritas non veritas facit legem. Para a decisão judicial, a premissa se inverte. Ela se caracteriza por ser o único produto do Estado em que se pode dizer que a verdade, e não a autoridade, é que faz a justiça: veritas non auctoritas facit judicium.

No mesmo equívoco incorre o Judiciário quando considera "casos de polícia" conflitos que são informados claramente pela questão social. Tratar líder de sem-terra como se fosse quadrilheiro é um absurdo.

Identifiquemos, agora, algumas questões em que o Judiciário tem falhado no que se refere à proteção dos direitos humanos.

Houve em São Paulo o massacre do Carandiru. Os responsáveis ainda não foram punidos. Claro que o Judiciário tem extremas dificuldades para equacionar esse tipo de coisa. Mas, mais grave que isto é que a base determinante daquele episódio &emdash a superpopulação carcerária, que gera a promiscuidade, o conflito entre os encarcerados e o sistema prisional &emdash continua existindo. O Judiciário não tem atuado adequadamente para equacionar a questão penitenciária.

Existe entre nós, envolvendo o Judiciário &emdash que reflete, na verdade, um conceito disseminado no meio jurídico e na população &emdash, uma certa tendência de alijar o sistema penitenciário da sociedade, de segregar o preso, de ilhar a população carcerária num espaço físico. Os problemas do cárcere são abordados de forma reducionista, ou seja, se encaram os problemas do cárcere como se fossem os problemas do cárcere, e os problemas sociais como se fossem os problemas sociais, como se não houvesse uma relação muito íntima entre uma coisa e outra. Na verdade as coisas não são assim. Era preciso que o Judiciário fizesse uma reflexão mais clara sobre esta questão.

Os problemas do encarceramento, nesta ótica, acabam sendo coisa que se resolve entre a própria administração penitenciária e o preso. Não existe uma efetiva intervenção judicial, porque os procedimentos de verificação interna com relação às faltas e à quebra de disciplina são apresentados prontos ao Judiciário. Este exerce uma jurisdição meramente episódica, quebrando, em verdade, aquele princípio fundamental da jurisdicionalização da execução penal. E, evidentemente, pode-se identificar aí a violação de diversos princípios fundamentais que estão em tratados internacionais, e menciono, aqui, um documento a respeito de regras mínimas para tratamento de presos, da ONU, que é completamente ignorado pelos meios jurídicos, em geral.

No que se refere às diversas chacinas, há, ainda, o problema das polícias militares. Aqui não tecerei maiores comentários a respeito da violência que é atribuída às polícias militares, senão referir-me-ia à questão da Justiça Militar. Evidentemente, uma Justiça calcada no corporativismo, que tem sido apontada como ineficaz para reprovar os atos de violência da Polícia Militar, não é, propriamente, um modelo de Judiciário que se espera num país democrático. E, infelizmente, o projeto de lei que previa uma modificação substancial da competência da Justiça Militar Estadual, o chamado "Projeto Hélio Bicudo", não foi aprovado pelos nossos legisladores em Brasília. E o mais significativo é que o Governo deu apoio a este projeto, incluiu-o no Plano Nacional de Direitos Humanos, e não se empenhou em fazer com que ele fosse aprovado; ele foi rejeitado pelas próprias bases do Governo no Congresso Nacional, de forma absolutamente incoerente, o que demonstra o descaso com que o Poder Executivo Federal trata essa questão dos direitos humanos.

Há também a questão da tortura. O Brasil tem grandes problemas no trato internacional pelo fato da tortura ainda não estar definida como crime, no Brasil. Apesar de constar da Constituição que a lei considerará imprescritível e insuscetível de graça ou anistia, não temos ainda um crime definindo a tortura. Os casos de tortura só podem ser abordados ao nível de lesões corporais &emdash quando há lesões corporais &emdash ou abuso de autoridade, figuras jurídicas essas que não têm a reprovabilidade, em termos de pena, compatível com o grave crime de tortura.

Já foi aprovado, na Câmara, um projeto de lei tipificando penalmente a tortura. Este projeto se encontra no Senado. É preciso que as entidades que lidam com a questão dos direitos humanos fiquem bem atentas para que não aconteça, também, o que aconteceu com o "Projeto Hélio Bicudo" no Senado. É preciso que se cobre dos nossos Senadores uma definição legal urgente do crime de tortura, aprovando o projeto que já foi aprovado pela Câmara. Afinal, o Brasil é signatário da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

Ainda com relação à tortura é de se notar que o Judiciário tem sido, de certa forma, omisso na apuração dos casos que vêm à luz nos processos de presos que se dizem torturados para confissão extrajudicial. O Judiciário, muitas vezes, não leva a sério isto, como se fosse uma coisa secundária, e não manda apurar.

Já disse, aqui, que as respostas institucionais dadas para a questão da criminalidade violenta não são satisfatórias. Lembro, nesta linha, que foi aprovada, por exemplo, uma lei de crimes hediondos e uma lei de combate ao crime organizado que não resolveram absolutamente nada no tocante a diminuir a violência cotidiana em que vivemos. Na verdade, esta legislação tem origem numa política criminal meramente simbólica, que não enfrenta os graves problemas resultantes da sociedade partida em que vivemos no Brasil.

Nós sabemos que o Direito Penal é um terreno propício à proliferação daquilo que eu chamaria de "demagogos da mídia", que passam a idéia de que penas mais altas, menos benefícios no cumprimento das penas acabariam por minorar o número de crimes. Pede-se sempre mais punição. Em virtude desta pressão, muitos desatinos têm sido cometidos pelo legislador que, freqüentemente, extrapola os limites da Constituição. Cabe ao Judiciário colocar limites, analisando tais leis sob o filtro da Constituição, para verificar da constitucionalidade de diversos pontos delas.

No que se refere à presunção de inocência, princípio constitucional, também constante do Pacto de São José, têm sido identificados alguns problemas envolvendo o Judiciário. Muitas vezes, a presunção de inocência não é considerada na aplicação de alguns institutos de Direito Penal. A presunção de inocência está entre os chamados "direitos judiciais" dos artigo 8º a 12 da Declaração dos Direitos Humanos da ONU e está também no Pacto de São José. Muitas vezes, o Judiciário tem reduzido a abrangência deste princípio da presunção de inocência, tomando-o como uma mera "presunção de não-culpabilidade" ou de algo que alguns chamam de "princípio do estado da inocência", ou seja, faz com que esse princípio tenha apenas uma incidência no Processo Penal, de forma a que o preso seja considerado não-culpado até que o Ministério Público prove que ele é culpado, quando, na verdade, o princípio da presunção de inocência tem uma abrangência maior, relacionando-se, sobretudo, com a questão do tratamento do réu no processo. O réu deve ser tratado como inocente porque ele é presumivelmente inocente.

Na oportunidade do interrogatório, por exemplo, há Juízes que, antes de iniciá-lo, dizem ao preso que ele não precisa responder às perguntas que lhe forem feitas, mas que seu silêncio pode ser interpretado em prejuízo de sua defesa. É inconstitucional esta advertência, prevista, ainda, no Código de Processo Penal. Como é que o silêncio pode ter influência no processo, pode ter consideração jurídica, diante do princípio da presunção de inocência( Calar jamais pode ser considerado prejudicial à defesa de alguém. Portanto, nesta questão do interrogatório, identifico ainda, nesta velha frase do Código de Processo Penal, repetida no dia-a-dia da atividade jurisdicional, uma violação ao princípio da presunção de inocência. Na verdade, o Juiz deve dizer o seguinte ao réu: "O Senhor vai ser interrogado. A Constituição garante que o Senhor silencie, se preferir, e isto não terá influência alguma no seu julgamento". E ele falará se quiser.

Por outro lado, o artigo 594 do Código de Processo Penal não pode ter hoje a abrangência pensada pelo legislador, que elaborou o texto muito antes da Constituição. Qualquer prisão tem que levar em conta o princípio da presunção de inocência e tem que ser fundamentado. Não basta que o réu não seja primário e não tenha bons antecedentes para que se negue a ele o apelo em liberdade. O Juiz deve fazer, quando profere uma sentença, um juízo a respeito da necessidade da prisão. Só com base neste juízo determinará a prisão. E mais: apelar é sempre um direito porque o duplo grau de jurisdição é garantido; estar o réu preso ou não jamais pode ser um argumento para que não se conheça o recurso.

O recurso deve ser sempre conhecido. São duas coisas distintas: uma é o juízo fundamentado da necessidade da prisão e a expedição do mandato; outra é a questão do conhecimento da apelação, que deve sempre ser conhecida, independentemente de estar o réu foragido ou não, porque a garantia do duplo grau de jurisdição não pode ser condicionada.

Ainda no que se refere ao tema, diria que muitos cidadãos são, hoje, submetidos a humilhações pela polícia, no dia-a-dia da sua vida, em evidente violação ao princípio da presunção de inocência. E o Judiciário não tem interferido adequadamente nessa questão, quer para coibir práticas ilegais, quer para desqualificar provas obtidas com violação de direitos básicos dos cidadãos. Isto ficou, sobretudo, marcado no final do ano passado, quando, no Rio de Janeiro, houve aquela intervenção das Forças Armadas para enfrentar a questão do crime organizado. A atuação do Judiciário foi objeto de severas críticas, na medida em que, em violação ao princípio do juiz natural, foram designados Juízes especialmente para acompanhar a movimentação das Forças Armadas em direção ao morro. E suspeita-se que os Juízes estavam ali muito mais para expedir mandados de prisão e de busca que, propriamente, para zelar pela preservação dos direitos individuais das pessoas, largamente afrontados.

Uma questão interessante da Lei 9.034, de 1995, de combate ao crime organizado, é que ela contém um dispositivo que afeta diretamente o Judiciário e que pode ser muito caro ao Estado democrático. Trata-se de incrível idéia de que o Juiz possa colher provas pessoalmente. É, evidentemente, um grande equívoco envolver o Juiz na atividade repressiva. Mais absurdo é o fato de a lei dispor que o Juiz pode manter essas provas secretas, no processo. Criou-se a figura do processo secreto, fora dos autos. Um absurdo total! Violador do princípio

 

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