O Judiciário
e os Tratados Internacionais Sobre Direitos Humanos (*)
Doutor DYRCEU AGUIAR
DIAS CINTRA JÚNIOR
Juiz de Direito Titular da 2ª Vara da Capital
Juiz da 1ª Zona Eleitoral de São Paulo
Membro da Associação Juízes para a Democracia
Em primeiro lugar, gostaria de
agradecer o gentil convite feito pela Dra. Lucia Figueiredo e pela
Professora Flávia Piovesan, para que eu expusesse as minhas reflexões
sobre essas questões relacionadas com Tratados Internacionais de
Direitos Humanos a uma platéia tão qualificada, de Juízes
Federais.
Tenho imensa satisfação em estar
aqui falando a vocês, aos Drs. Homar Cais e Newton de Lucca, ao
querido amigo Dr. Antonio Carlos Malheiros, velho companheiro de
lutas pelos Direitos Humanos na Associação Juízes para a
Democracia e no Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, que fez
hoje tão interessantes ponderações sobre a questão dos direitos
humanos no que toca às liberdades públicas e, particularmente, com
relação ao depositário infiel.
Começaria a minha exposição
citando aquela frase de Bobbio, no sentido de que, hoje, os direitos
humanos estão muito mais relacionados a uma questão política do
que a uma questão filosófica; ou seja, hoje, não se trata mais de
justificar os direitos humanos filosoficamente, senão de,
politicamente, cobrar a aplicação das normas relacionadas com os
direitos humanos.
Então, nesse novo nível de que
estamos falando &emdash ou seja, no nível de instrumentalizar a
proteção aos direitos humanos &emdash, não seria o caso,
aqui, de entrar em considerações explicativas
a respeito das diversas concepções
da natureza daqueles direitos.
O conteúdo básico dos direitos
fundamentais da pessoa humana e o seu caráter universal são
realidades assentadas. Uma ordem jurídica que aspire à justiça só
pode ser construída com a incorporação dos direitos humanos, que
foram sistematizados e expandidos a partir da Declaração dos
Direitos Humanos. O último lance desta incorporação se deu,
efetivamente, com a conferência da ONU de Viena, em 1993.
As normas básicas de direitos
humanos entram no direito interno por proclamações constitucionais
e pela adesão do País aos pactos internacionais. O Brasil é
signatário dos principais pactos sobre o assunto: Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos, Pactos sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção para Prevenção e
Repressão do Crime de Genocídio, convenções sobre discriminação
racial, sobre discriminação contra a mulher, sobre tortura e sobre
direitos da criança; o Pacto de São José, tão mencionado pelo
Dr. Malheiros aqui; a Convenção Interamericana para Prevenir e
Punir a Tortura.
A Constituição articulou todo um
sistema adequado de proteção aos direitos humanos. E diz, também,
que um dos fundamentos da República é exatamente a dignidade da
pessoa humana, que constitui, em verdade, o suporte de todos os
direitos humanos consagrados. De maneira que qualquer interpretação
que se fizer a respeito de garantias deve ter sempre em mente que é
a dignidade do ser humano, fundamento da República, que deve
orientar esta interpretação.
Por outro lado, os direitos e
garantias fundamentais constitucionalmente previstos não excluem
outros decorrentes dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte. Isto está no artigo 5º, parágrafo
2º da Constituição Federal, a qual proclama, ainda, que a prevalência
dos direitos humanos é um dos princípios reitores das relações
internacionais do Brasil, isto no artigo 4º, inciso II.
Entretanto, a eficácia deste
complexo de normas depende muito da sua promoção pelo próprio
Estado, através dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, e
também de um sistema internacional de fiscalização, que freqüentemente
é feita com o auxílio das chamadas ONGs, Organizações Não-Governamentais.
Convém lembrar que o Estado pode ser
responsabilizado internacionalmente pela violação de direitos
humanos por parte do Estado, ou por omissão dos Poderes Executivo,
Legislativo ou Judiciário.
O Brasil ainda não reconheceu a
competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos
Humanos e do Comitê de Direitos Humanos do Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos da ONU. Portanto, em nível
jurisdicional internacional, não existe a possibilidade do Brasil
ser questionado. A adesão àqueles sistemas jurisdicionais
internacionais tem sido cobrada por diversas entidades que tratam da
proteção dos direitos humanos. Em diversos congressos o assunto
tem sido discutido. Recentemente, por exemplo, houve, aqui em São
Paulo, um Congresso Internacional de Juízes, que foi organizado
pela Associação Juízes para a Democracia, e nesse congresso foram
tiradas algumas conclusões, uma das quais é, exatamente, a de que
o Brasil deveria aderir às duas Cortes Internacionais, ou seja,
aceitar a jurisdição delas. Foi feita, inclusive, uma moção
especial ao Presidente da República, no sentido de que o País
reconhecesse a jurisdição daqueles tribunais internacionais.
De toda forma, ainda que não haja,
em nível jurisdicional, essa possibilidade, existem outros meios de
monitoramento internacional da questão dos direitos humanos. Há os
chamados procedimentos confidenciais e os procedimentos de relatoria
temática, no âmbito da ONU, ou seja, sistemas de acompanhamentos
que não são jurisdicionais, mas que geram sanções em nível de
reprovação do país, quando ocorrem episódios de violação dos
direitos humanos.
O Brasil, sob o regime militar, em
1974 e 1975, já foi considerado em procedimento confidencial. Nunca
foi monitorado por relator especial, mas isso tem sido falado
ultimamente. Várias ONGs têm cobrado que a ONU mande um relator
especial para verificar a questão de direitos humanos no Brasil,
sobretudo tendo em vista a questão da violência, que implica violação
de direitos humanos de forma disseminada.
O Brasil já foi citado e já foi
objeto de controle, também, por parte da ONU, pelo sistema de
relatoria temática, quanto às questões dos desaparecidos,
assassinatos de menores e tratamento de presos. A relatoria temática
toma um determinado tema e diversos países são investigados quando
violam direitos humanos atinentes àquele tema.
No âmbito da OEA também é possível
a sanção política, através da Comissão Interamericana. Essa
Comissão monitora os direitos humanos, verifica casos de violação
por qualquer Estado parte da OEA e inclui o nome do país num índice
de países violadores de direitos humanos, de países em que o
Estado não trata adequadamente de punir os casos de violação de
direitos humanos. Isto causa, evidentemente, um desgaste muito
grande ao país, porque se trata de uma sanção política que tem
influência nas relações internacionais do país. E até mesmo países
que não tenham aderido à chamada Convenção Americana de Direitos
Humanos, ou Pacto de São José, podem ser monitorados pela OEA
quando forem acusados de violação de princípios consagrados na
Declaração Americana dos Direitos do Homem, que é de 1948. A
Comissão Interamericana inclui no informe que apresenta à Assembléia-Geral
da OEA, anualmente, a lista dos países que são considerados
violadores dos direitos humanos.
Como já disse, os pactos sobre
direitos humanos assinados pelo Brasil passam a vigorar como lei
interna. Mais que isso, adquirem internamente o status de norma
constitucional. Também concordo com o Dr. Malheiros quando diz que
o pacto internacional, entrando em vigor no Brasil, se incoerente
com outra norma constitucional, tem prevalência sobre esta. É que,
por vontade constitucional manifestada no artigo 5º, parágrafo 2º,
o pacto passa a ser norma constitucional, sem dúvida alguma.
Entretanto, a verdade é que as autoridades do Executivo e do próprio
Judiciário, até por falta de afinidade com a aplicação de normas
de Direito Internacional, com freqüência têm se equivocado, em
detrimento dos princípios que devem reger as boas relações
internacionais.
Nós sabemos, hoje, que prevalece a
doutrina monista internacionalista para a regência da relação
entre o Direito Interno e o Direito Internacional. Isso gera uma espécie
de limitação da soberania dos países que assinam pactos
internacionais. Na Conferência de Viena, de 1993, isso ficou claro:
os direitos humanos foram considerados inderrogáveis, de natureza
universal, indivisíveis e interdependentes. O objetivo prioritário
das Nações Unidas, segundo a Conferência, constitui a proteção
dos direitos humanos. Esta deve constituir a preocupação legítima
da comunidade internacional e, com isto, ficou reafirmada a colocação
antiga de Norberto Bobbio, no sentido de que os sujeitos dos
direitos humanos, em nível internacional, não são propriamente os
Estados, e sim os homens, como verdadeiros cidadãos do mundo.
Portanto, já não se trata de matéria
de exclusiva competência das jurisdições nacionais. Sua observância
é, hoje, exigência universal. Sendo assim, surpreende, desde logo,
que, em passado recente, quando se falou em introduzir a pena de
morte no Brasil, algumas autoridades tenham manifestado o grave
entendimento de que os pactos sobre direitos humanos geram uma certa
"vinculação moral", apenas. Isto é muito grave e
compromete até a imagem de seriedade do país em face dos
compromissos que ele assume internacionalmente.
Do Supremo Tribunal Federal, nós não
temos uma posição recente a respeito do assunto. O leading case,
que nós citamos aqui, é de 1977, em questão que não envolvia
propriamente Direitos Humanos, mas, simplesmente, a questão dos
tratados internacionais. Esse leading case afirma a convicção de
que tratados internacionais são equivalentes a leis, ou seja, que
aqueles não têm status constitucional. Este julgado tem sido alvo
de diversas críticas, críticas contundentes e procedentes, no meu
modo de pensar, sobretudo por parte do Professor Antônio Augusto
Cançado Trindade, que considerou esta posição ainda antiga do
Supremo Tribunal Federal &emdash esperamos que nós tenhamos uma
posição mais moderna hoje &emdash uma verdadeira negação do
Direito Internacional, capaz de colocar sob suspeita a boa-fé do
Estado ao contrair obrigações em nível internacional.
Mas gostaria de colocar, agora,
alguns problemas mais prosaicos relacionados com a proteção dos
direitos humanos no Brasil, que, de uma forma ou de outra, têm
influxo na atuação institucional do Judiciário, ou no cotidiano
funcional dos Magistrados.
Para análise desses problemas, farei
uma breve referência à questão do controle da violência, que tem
sido alvo de tantas referências desabonadoras ao Brasil, no
exterior. Começo por aí porque, segundo entendo, as respostas
institucionais, que têm sido dadas pelo Legislativo, quanto à
questão da violência, têm sido inadequadas. O assunto tem sido
tratado de forma superficial, especialmente no que se refere à
criminalidade comum das grandes cidades. As respostas legislativas
ignoram ideologicamente as verdadeiras causas da violência,
procurando enfrentar, apenas, as conseqüências dela, a realidade
objetiva, sem um aprofundamento maior.
Nós sabemos que a violência, nestes
níveis que nós temos no Brasil, não é uma característica
exclusivamente de nosso País. Neste final de milênio, a violência
parece embalada por uma necessidade dos povos e grupos de se
eliminarem uns aos outros, cada um procurando reservar o seu espaço
de uma forma um tanto egoísta, fazendo com que prolifere aquilo que
Erick Hobsbaum chamou de "ideologias não-iluministas": as
manifestações de nacionalismo xenófobo, racismo, intolerância étnica
e religiosa, que nós podemos notar nos diversos conflitos armados
da atualidade: na Bósnia, no Oriente Médio, etc.
O que preocupa mais no Brasil,
entretanto, é a disseminação de uma intolerância um pouco mais
sutil, com base em preconceitos arraigados, que preside a formação
de uma perversa ideologia de desrespeito sistemático aos direitos
humanos. Ela parece mais nítida em momentos eleitorais. Nota-se então
uma sutil reprovação, uma intolerância latente com relação a
determinados candidatos, por suas origens. Isso não ocorre no
discurso político, em cima do palanque; fica um pouco no contato
mais íntimo entre as pessoas e acaba gerando uma sensação de
permanente desrespeito aos direitos humanos, parecendo que se trata
de um pacto entre algumas pessoas, sobretudo das elites e da classe
média. A velha expressão "os direitos humanos dos
bandidos" &emdash como se fosse possível a distinção
entre "direitos humanos dos bandidos" e "direitos
humanos dos não-bandidos" &emdash é um exemplo de como se
dá esta sutil prática de desrespeito aos direitos humanos.
Este preconceito dissimulado, no meu
modo de pensar, é muito mais grave, porque o tratamento jurídico-penal
é mais difícil. Quando o desrespeito é frontal, nós temos leis
que podem ser aplicadas para a reprovação jurídica do ato. Agora,
quando esse preconceito é tão sutil, o tratamento jurídico-penal
é impossível ou menos óbvio.
Já disse que o Estado tem
interferido na realidade social, por meio do Legislativo, de forma
desastrosa, porque acaba não resolvendo nada a respeito da questão
da violência. Por um lado, o Estado agrava a situação da população
pobre, insistindo num modelo econômico que a exclui do desfrute das
riquezas e acentua um apartheid social desejado pela maioria hegemônica.
Por outro lado - estou falando aqui da questão da falta de políticas
públicas para cumprir os objetivos da República, nos quais está a
eliminação da miséria e, enfim, fazer com que toda a população
tenha acesso às riquezas que produz - parece que o Estado insiste
em que o Direito Penal resolva todos os problemas que, na verdade,
ele não pode resolver. A solução não está, propriamente, na
repressão.
E o mais grave, no que se refere,
agora, particularmente, ao Judiciário, é que o Juiz freqüentemente
é chamado a resolver problemas que não pode resolver, em
detrimento do papel dele enquanto garantidor da legalidade e dos
direitos fundamentais.
Existe uma certa legislação que
procura envolver o Juiz na atividade repressiva. Ora, o papel do
Judiciário não é exercer a repressão; o Estado tem outros órgãos
que são encarregados disto. O Juiz é um juiz de limites: deve pôr
limites à intervenção estatal sobre a pessoa.
Passemos um pouco à questão social.
O Brasil vive uma situação
tormentosa. Deu satisfação à Comunidade Internacional quando
aprovou uma Constituição democrática e fez eleições livres.
Passou, inclusive, pela experiência significativa de um impeachment
no Presidente da República, feita normalmente, sem golpes e com a ação
do povo. Provou, então, que é possível a democracia formal.
Democracia formal nós temos. Entretanto, no que se refere à proteção
dos direitos humanos, nota-se que a ação do Estado tem se limitado
ao discurso. Persistem aqueles grandes problemas relacionados com a
violência &emdash inclusive praticada por agentes do Estado
&emdash e com a miséria: a) a falta de moradias para a população
mais pobre (o problema dos sem-teto); b) a falta de terra para os
camponeses (problema dos sem-terra); c) a questão do trabalho
infantil inconstitucional, quer pela pouca idade, quer pela falta de
garantias sociais compatíveis com a situação do adolescente, como
exige a Constituição; d) a questão da prostituição infantil; e)
a questão do trabalho escravo e outras mais, relacionadas com a
questão social.
Não há políticas públicas de peso
dirigidas à realização dos objetivos fundamentais da República,
no que se refere a essas questões agora mencionadas.
O Judiciário Brasileiro, na área
civil, quando enfrenta esta realidade, não o faz de maneira
adequada. Existem, em primeiro lugar, especialmente nas regiões
mais pobres do País, graves dúvidas quanto à independência do
Judiciário, relativamente às oligarquias rurais, que estão,
obviamente, interessadas na manutenção dos seus privilégios e na
exploração da pobreza. Nós temos situações em que, nitidamente,
se vê estrutura feudal na relação entre as pessoas, em
determinadas áreas do país, e o Judiciário se amolda a esta situação
de maneira acrítica. Questiona-se em alguns Estados da Federação,
se, realmente, o Judiciário está agindo com independência quando
tem de resolver conflitos informados por tal realidade.
Por outro lado, prevalece entre os Juízes
uma certa visão tecnicista, de quem foi formado para lidar com o
conflito intersubjetivo despolitizado e não para a abordagem do
conflito coletivo. Nós fomos acostumados desde a academia a ler
leis para aplicação mais imediata e a Constituição sempre fica
de lado. Parece que, felizmente, essa prática está acabando. Isto
gerou uma visão tecnicista do direito: a aplicação da lei passou
a ser uma coisa muito mais singela do que deveria ser; os recursos
interpretativos sempre foram limitados, na medida em que quase nunca
se recorreu à Constituição. As lides sempre foram encaradas como
lides que resolvem problemas localizados entre sujeitos bem
determinados, quando nós sabemos que hoje o conflito é muito mais
politizado. O conflito que nós temos a resolver, que o Judiciário
é chamado a resolver, é o conflito coletivo e difuso, muitas
vezes.
As reivindicações que envolvem os
chamados interesses coletivos constituem verdadeiras cobranças
feitas pela sociedade civil com relação à sociedade política,
com relação às promessas da lei. E a questão da Justiça e dos
direitos humanos é sempre fundamental na abordagem desses problemas
modernos.
Uma consideração mais abrangente
das necessidades fundamentais e reais do homem define os direitos
humanos como o acesso aos bens indispensáveis à sobrevivência da
espécie humana, como entidade biológica, espiritual e cultural
&emdash como já disse o grande penalista italiano Alessandro
Baratta &emdash e esta colocação, de certa forma, desmitifica
aquela tendenciosa desqualificação que identifica os direitos
humanos como instrumento de proteção de criminosos, como é
divulgado pelas pessoas que se opõem às mudanças substanciais na
iníqua estrutura social. Por outro lado, esta colocação imprime
ao Judiciário uma função mais nobre, que é aquela de
instrumentalizar a proteção aos direitos humanos, dentro de uma ótica
de dar corpo, também, à função promocional do Direito. A
sociedade cobra a aplicação do Direito, no sentido de que as
promessas do legislador sejam cumpridas, e é o Judiciário que é
chamado a fazer esta aplicação da lei. Trata-se, sem dúvida
alguma, de uma função nobre que o Judiciário adquire a partir da
visão da lei enquanto instrumento de mudança social.
O conceito de Estado democrático não
pode se esgotar na democracia formal. Até no discurso oficial do
Presidente da República, a palavra "democracia" tem o
nome bem claro de "direitos humanos." Não pode haver
Estado democrático que viole ou compactue com a violação dos
direitos humanos.
No que se refere às lides de novo
perfil a que me referi agora, o modelo tradicional de cultura jurídica
dos Juízes está desatualizado.
Vejam o que ocorre, por exemplo, com
a ocupação de terras rurais que não cumprem a função social,
por movimentos organizados de pessoas que reivindicam o direito à
moradia e ao trabalho na terra. As decisões técnicas de Juízes
que elaboram uma operação silogística de subjunção do fato às
leis garantidoras da propriedade civil acabam não resolvendo a
questão e são socialmente desconfirmadas. É que não se pode
apartar aquelas leis antigas, garantidoras da propriedade civil, de
sua dimensão constitucional atual, tendo em vista que um dos
atributos básicos da propriedade, hoje, está na chamada "função
social" que, além de ser uma garantia constitucional do artigo
5º, inciso XXIII, também foi erigida como um dos princípios
gerais da atividade econômica no artigo 170, inciso III, da
Constituição. Justamente por isso, nós temos que ter em mente que
a Constituição garante muito mais o direito "à
propriedade" do que o "direito de propriedade".
Fato é que o Judiciário, aplicando
as leis automaticamente, sem fazer uma espécie de reconhecimento da
validade dessas leis em face do Direito e de seus princípios
informadores, sobretudo no que se refere a garantias
constitucionais, tem falhado muito. Ele não tem observado que, em
verdade, a decisão judicial é o único produto do Estado em que
aquela premissa de Hobbes se inverte. Hobbes disse que auctoritas
non veritas facit legem. Para a decisão judicial, a premissa se
inverte. Ela se caracteriza por ser o único produto do Estado em
que se pode dizer que a verdade, e não a autoridade, é que faz a
justiça: veritas non auctoritas facit judicium.
No mesmo equívoco incorre o Judiciário
quando considera "casos de polícia" conflitos que são
informados claramente pela questão social. Tratar líder de
sem-terra como se fosse quadrilheiro é um absurdo.
Identifiquemos, agora, algumas questões
em que o Judiciário tem falhado no que se refere à proteção dos
direitos humanos.
Houve em São Paulo o massacre do
Carandiru. Os responsáveis ainda não foram punidos. Claro que o
Judiciário tem extremas dificuldades para equacionar esse tipo de
coisa. Mas, mais grave que isto é que a base determinante daquele
episódio &emdash a superpopulação carcerária, que gera a
promiscuidade, o conflito entre os encarcerados e o sistema
prisional &emdash continua existindo. O Judiciário não tem
atuado adequadamente para equacionar a questão penitenciária.
Existe entre nós, envolvendo o
Judiciário &emdash que reflete, na verdade, um conceito
disseminado no meio jurídico e na população &emdash, uma
certa tendência de alijar o sistema penitenciário da sociedade, de
segregar o preso, de ilhar a população carcerária num espaço físico.
Os problemas do cárcere são abordados de forma reducionista, ou
seja, se encaram os problemas do cárcere como se fossem os
problemas do cárcere, e os problemas sociais como se fossem os
problemas sociais, como se não houvesse uma relação muito íntima
entre uma coisa e outra. Na verdade as coisas não são assim. Era
preciso que o Judiciário fizesse uma reflexão mais clara sobre
esta questão.
Os problemas do encarceramento, nesta
ótica, acabam sendo coisa que se resolve entre a própria
administração penitenciária e o preso. Não existe uma efetiva
intervenção judicial, porque os procedimentos de verificação
interna com relação às faltas e à quebra de disciplina são
apresentados prontos ao Judiciário. Este exerce uma jurisdição
meramente episódica, quebrando, em verdade, aquele princípio
fundamental da jurisdicionalização da execução penal. E,
evidentemente, pode-se identificar aí a violação de diversos
princípios fundamentais que estão em tratados internacionais, e
menciono, aqui, um documento a respeito de regras mínimas para
tratamento de presos, da ONU, que é completamente ignorado pelos
meios jurídicos, em geral.
No que se refere às diversas
chacinas, há, ainda, o problema das polícias militares. Aqui não
tecerei maiores comentários a respeito da violência que é atribuída
às polícias militares, senão referir-me-ia à questão da Justiça
Militar. Evidentemente, uma Justiça calcada no corporativismo, que
tem sido apontada como ineficaz para reprovar os atos de violência
da Polícia Militar, não é, propriamente, um modelo de Judiciário
que se espera num país democrático. E, infelizmente, o projeto de
lei que previa uma modificação substancial da competência da
Justiça Militar Estadual, o chamado "Projeto Hélio
Bicudo", não foi aprovado pelos nossos legisladores em Brasília.
E o mais significativo é que o Governo deu apoio a este projeto,
incluiu-o no Plano Nacional de Direitos Humanos, e não se empenhou
em fazer com que ele fosse aprovado; ele foi rejeitado pelas próprias
bases do Governo no Congresso Nacional, de forma absolutamente
incoerente, o que demonstra o descaso com que o Poder Executivo
Federal trata essa questão dos direitos humanos.
Há também a questão da tortura. O
Brasil tem grandes problemas no trato internacional pelo fato da
tortura ainda não estar definida como crime, no Brasil. Apesar de
constar da Constituição que a lei considerará imprescritível e
insuscetível de graça ou anistia, não temos ainda um crime
definindo a tortura. Os casos de tortura só podem ser abordados ao
nível de lesões corporais &emdash quando há lesões corporais
&emdash ou abuso de autoridade, figuras jurídicas essas que não
têm a reprovabilidade, em termos de pena, compatível com o grave
crime de tortura.
Já foi aprovado, na Câmara, um
projeto de lei tipificando penalmente a tortura. Este projeto se
encontra no Senado. É preciso que as entidades que lidam com a
questão dos direitos humanos fiquem bem atentas para que não
aconteça, também, o que aconteceu com o "Projeto Hélio
Bicudo" no Senado. É preciso que se cobre dos nossos Senadores
uma definição legal urgente do crime de tortura, aprovando o
projeto que já foi aprovado pela Câmara. Afinal, o Brasil é
signatário da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis,
Desumanos ou Degradantes.
Ainda com relação à tortura é de
se notar que o Judiciário tem sido, de certa forma, omisso na apuração
dos casos que vêm à luz nos processos de presos que se dizem
torturados para confissão extrajudicial. O Judiciário, muitas
vezes, não leva a sério isto, como se fosse uma coisa secundária,
e não manda apurar.
Já disse, aqui, que as respostas
institucionais dadas para a questão da criminalidade violenta não
são satisfatórias. Lembro, nesta linha, que foi aprovada, por
exemplo, uma lei de crimes hediondos e uma lei de combate ao crime
organizado que não resolveram absolutamente nada no tocante a
diminuir a violência cotidiana em que vivemos. Na verdade, esta
legislação tem origem numa política criminal meramente simbólica,
que não enfrenta os graves problemas resultantes da sociedade
partida em que vivemos no Brasil.
Nós sabemos que o Direito Penal é
um terreno propício à proliferação daquilo que eu chamaria de
"demagogos da mídia", que passam a idéia de que penas
mais altas, menos benefícios no cumprimento das penas acabariam por
minorar o número de crimes. Pede-se sempre mais punição. Em
virtude desta pressão, muitos desatinos têm sido cometidos pelo
legislador que, freqüentemente, extrapola os limites da Constituição.
Cabe ao Judiciário colocar limites, analisando tais leis sob o
filtro da Constituição, para verificar da constitucionalidade de
diversos pontos delas.
No que se refere à presunção de
inocência, princípio constitucional, também constante do Pacto de
São José, têm sido identificados alguns problemas envolvendo o
Judiciário. Muitas vezes, a presunção de inocência não é
considerada na aplicação de alguns institutos de Direito Penal. A
presunção de inocência está entre os chamados "direitos
judiciais" dos artigo 8º a 12 da Declaração dos Direitos
Humanos da ONU e está também no Pacto de São José. Muitas vezes,
o Judiciário tem reduzido a abrangência deste princípio da presunção
de inocência, tomando-o como uma mera "presunção de não-culpabilidade"
ou de algo que alguns chamam de "princípio do estado da inocência",
ou seja, faz com que esse princípio tenha apenas uma incidência no
Processo Penal, de forma a que o preso seja considerado não-culpado
até que o Ministério Público prove que ele é culpado, quando, na
verdade, o princípio da presunção de inocência tem uma abrangência
maior, relacionando-se, sobretudo, com a questão do tratamento do réu
no processo. O réu deve ser tratado como inocente porque ele é
presumivelmente inocente.
Na oportunidade do interrogatório,
por exemplo, há Juízes que, antes de iniciá-lo, dizem ao preso
que ele não precisa responder às perguntas que lhe forem feitas,
mas que seu silêncio pode ser interpretado em prejuízo de sua
defesa. É inconstitucional esta advertência, prevista, ainda, no Código
de Processo Penal. Como é que o silêncio pode ter influência no
processo, pode ter consideração jurídica, diante do princípio da
presunção de inocência( Calar jamais pode ser considerado
prejudicial à defesa de alguém. Portanto, nesta questão do
interrogatório, identifico ainda, nesta velha frase do Código de
Processo Penal, repetida no dia-a-dia da atividade jurisdicional,
uma violação ao princípio da presunção de inocência. Na
verdade, o Juiz deve dizer o seguinte ao réu: "O Senhor vai
ser interrogado. A Constituição garante que o Senhor silencie, se
preferir, e isto não terá influência alguma no seu
julgamento". E ele falará se quiser.
Por outro lado, o artigo 594 do Código
de Processo Penal não pode ter hoje a abrangência pensada pelo
legislador, que elaborou o texto muito antes da Constituição.
Qualquer prisão tem que levar em conta o princípio da presunção
de inocência e tem que ser fundamentado. Não basta que o réu não
seja primário e não tenha bons antecedentes para que se negue a
ele o apelo em liberdade. O Juiz deve fazer, quando profere uma
sentença, um juízo a respeito da necessidade da prisão. Só com
base neste juízo determinará a prisão. E mais: apelar é sempre
um direito porque o duplo grau de jurisdição é garantido; estar o
réu preso ou não jamais pode ser um argumento para que não se
conheça o recurso.
O recurso deve ser sempre conhecido.
São duas coisas distintas: uma é o juízo fundamentado da
necessidade da prisão e a expedição do mandato; outra é a questão
do conhecimento da apelação, que deve sempre ser conhecida,
independentemente de estar o réu foragido ou não, porque a
garantia do duplo grau de jurisdição não pode ser condicionada.
Ainda no que se refere ao tema, diria
que muitos cidadãos são, hoje, submetidos a humilhações pela polícia,
no dia-a-dia da sua vida, em evidente violação ao princípio da
presunção de inocência. E o Judiciário não tem interferido
adequadamente nessa questão, quer para coibir práticas ilegais,
quer para desqualificar provas obtidas com violação de direitos básicos
dos cidadãos. Isto ficou, sobretudo, marcado no final do ano
passado, quando, no Rio de Janeiro, houve aquela intervenção das
Forças Armadas para enfrentar a questão do crime organizado. A
atuação do Judiciário foi objeto de severas críticas, na medida
em que, em violação ao princípio do juiz natural, foram
designados Juízes especialmente para acompanhar a movimentação
das Forças Armadas em direção ao morro. E suspeita-se que os Juízes
estavam ali muito mais para expedir mandados de prisão e de busca
que, propriamente, para zelar pela preservação dos direitos
individuais das pessoas, largamente afrontados.
Uma questão interessante da Lei
9.034, de 1995, de combate ao crime organizado, é que ela contém
um dispositivo que afeta diretamente o Judiciário e que pode ser
muito caro ao Estado democrático. Trata-se de incrível idéia de
que o Juiz possa colher provas pessoalmente. É, evidentemente, um
grande equívoco envolver o Juiz na atividade repressiva. Mais
absurdo é o fato de a lei dispor que o Juiz pode manter essas
provas secretas, no processo. Criou-se a figura do processo secreto,
fora dos autos. Um absurdo total! Violador do princípio
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