Polícia: modelo
militar x modelo civil
Elói
Pietá*
As avós das
atuais polícias militares, os corpos permanentes ou guardas
municipais, criados nas províncias logo após a Independência, já
se miravam no modelo colonial português representado pelos exércitos
de segunda linha (as milícias, ordenanças, ou corpos
auxiliares), complementares ao exército principal, de primeira
linha.
Com o advento da
República, cresceram as forças militares dos estados,
transformando-se em exércitos regionais, chegando a rivalizar com
o exército nacional. Estas forças militares estaduais serviam às
oligarquias regionais na disputa com o restante do país, ao mesmo
tempo que serviam de polícia de dois tipos: de controle da ordem
interna estabelecida (por exemplo, contra os grevistas e
opositores políticos), e de polícia contra a criminalidade comum
das classes pobres (ladrões, assaltantes de estradas, assassinos,
arruaceiros). Não é de surpreender portanto que problemas hoje
existentes tenham o peso de séculos.
O modelo militar
de segurança
No modelo militar
vigente de segurança, o crime não é visto como algo que se
encontra em toda a sociedade. Ele é situado apenas como um
problema de setores sociais bem definidos. Basta então reprimir
aqueles setores, fazê-los recuar com ações exemplares que os
atemorizem e, se possível, eliminar seus integrantes.
Na sociedade
colonial e imperial, os principais inimigos eram mais
explicitamente identificados: os índios e os negros. Os negros até
hoje constituem um setor privilegiado para a repressão. A eles
fazem companhia, nesta discriminadora preferência policial e
judiciária, os homens pobres em geral – especialmente jovens
–, os favelados, os grevistas, os sem-terra. Para reprimi-los, a
polícia tem liberdades especiais e o Judiciário atua
rigorosamente. As cadeias são feitas só para eles.
É de grande
importância dentro deste modelo militar de segurança a noção
de território a ser defendido ou atacado. O território a
defender situa-se principalmente nas partes ricas ou de classe média
das cidades e nos seus centros comerciais. É aí que os efetivos
das forças policiais públicas são concentrados, com o auxílio
das forças de vigilância privada. O território do inimigo está
principalmente nas favelas, nos bairros de periferia, nas portas
de fábrica.
As ações no
território inimigo são mais elásticas no que diz
respeito à legalidade. Elas resultam sempre em violências contra
os delinqüentes e muitas vezes contra inocentes (parentes,
amigos, vizinhos). Assim como na guerra, os exércitos atingem a
população civil do território onde se move o inimigo. Os
habitantes destes territórios são suspeitos em princípio. Eles
são invariavelmente abordados e revistados quando a polícia faz
uma blitz. As estatísticas mostram o tamanho dos constrangimentos
para a obtenção de resultados policiais ridículos. Em setembro
de 1997, em São Paulo, foram abordadas 15.136 pessoas e, destas,
apenas 88 foram levadas aos distritos policiais para averiguações.
PMs como forças
auxiliares e reservas do Exército
O Exército
conserva, em última instância, a função de polícia no Brasil,
ao contrário de boa parte dos países democráticos, que definem
como função das Forças Armadas apenas a defesa externa. Por
intermédio da Inspetoria Geral das Polícias Militares, ele as
mantém sob um controle permanente, à distância, cabendo-lhe
autorizar o aumento de efetivos, o tipo e a quantidade de
armamentos, a forma de organização e as normas gerais de
funcionamento. Seu interesse em conservá-las como reserva tem a
ver também com a idéia de preservar-se de desgastes,
utilizando-as como intermediárias no exercício de sua
possibilidade constitucional de impor a lei e a ordem interna.
A organização
das polícias militares é exatamente adequada ao modelo militar
de segurança. Elas reproduzem a organização do Exército. São
divididas em batalhões, companhias e pelotões. Há um comando de
área a cada três batalhões, formando uma espécie de regimento.
Acima dos comandos de área estão os comandos de grandes regiões,
como se fossem exércitos. Finalmente, na cúpula de todo o
sistema, fica o comando geral, com seu estado-maior.
Para compor as
tropas desta organização militar, seus integrantes são
divididos em duas grandes partes, com escala hierárquica e com as
mesmas denominações do exército: os praças (soldados, cabos,
sargentos, subtenentes) e os oficiais. Suas fardas reproduzem a
farda militar clássica. O regulamento disciplinar das PMs,
semelhante ao do Exército, é bastante rígido e faltas cometidas
nas relações internas podem ser punidas com prisão. Quando
cometem crimes e indisciplinas, os policiais militares são
julgados por conselhos militares, formados por quatro oficiais
mais um juiz. Cada conselho forma uma auditoria da Justiça
Militar. A investigação de seus crimes fica a cargo dos colegas
de farda. São também militares os que desenvolvem tarefas
administrativas, burocráticas e médicas, como é praxe nos exércitos.
Um exemplo da
ideologia militar
O novo comandante
da PM de São Paulo, coronel Carlos Alberto de Camargo, escreveu,
em 1993, um pequeno livro chamado Estética Militar,
publicado em abril de 1997. Nele, expõe com audácia sua tese,
autoritária, elitista e antidemocrática, de que os militares
constituem uma instituição separada do povo, destinada a
corrigi-lo e a pôr ordem na vida coletiva.
Para ele, a
solenidade, o rito, o formalismo, a ordem unida, a farda, os
sinais visíveis de subordinação, o culto à bandeira são
essenciais para a criação de uma psicologia especial, o brio
militar, e de uma ética própria, expressa no sentimento exaltado
do dever, da hierarquia e da disciplina. Ele considera que a
cultura brasileira, de individualismo e indisciplina, estimula a
desobediência às regras sociais, levando à prática de
transgressões e ao descrédito do povo nas instituições. Os
pobres, mais do que os outros, pelo seu inconformismo com a
sociedade, segundo o coronel, tendem a não acatar as suas regras.
Sua lógica maniqueísta conclui que, se houver deformação do
policial durante sua atividade, não será pela formação militar
(que é boa), mas pela influência do ambiente social em que ele
vive, trabalha e de onde vem (que é mau), ambiente que ele chama
de "o esgoto do mundo". Com tais idéias, não
surpreende quando ele, sob uma linguagem enigmática, defende a
independência estrutural das polícias militares em relação ao
poder civil eleito nos estados.
Numa das
passagens do livro, referindo-se à uniformidade entre si das polícias
militares nos diversos estados brasileiros, diz: "Os valores
éticos que cultivam, fruto de sua formação policial-militar,
proporcionam-lhes o mesmo ideal, estejam onde estiverem, a
despeito da dispersão territorial dificultar a unidade de
pensamento, à medida que os expõe às influências políticas
locais que, se prevalecessem, poderiam colocar em risco os
interesses sociais".
Traduzindo, vê-se
que os governos civis dos estados não podem dirigir efetivamente
as polícias militares, que por si mesmas já têm uma orientação
definida...
Para o coronel,
sem as polícias de caráter militar haveria a catástrofe:
"A supressão da estética militar nas polícias fardadas
estaduais ocasionará danos irreversíveis ao aparelho do Estado e
colocará em risco a integridade da sociedade e de cada indivíduo".
A capitulação
dos governos civis
Os governos civis
têm aceitado a autonomia das organizações militares. A começar
pelo governo federal. O general Alberto Cardoso, chefe da Casa
Militar do presidente Fernando Henrique Cardoso, considera que a
lealdade das Forças Armadas é com o Estado (que é estrutural),
e não com o governo (que é conjuntural).
Daí a sua
possibilidade de continuar tutelando o país e de intervir no
poder civil, conforme diz na Folha de S. Paulo de 17/03/96:
"Nenhuma das tentativas ou concretizações de intervenção
no processo político se deveu a interesses corporativos de
caserna. Todas decorreram de avaliações (não cabe aqui discutir
se certas ou não) sobre as duas lealdades – a presidencial e a
castrense – à nação, em período histórico de imaturidade
política e em espaço vazio de providências
institucionais".
Por sua vez, os
comandantes das polícias militares – que são funcionários públicos
de cada estado, subordinados ao respectivo governador – agem
como uma confederação, reúnem-se no Conselho Nacional de
Comandantes Gerais e fazem pronunciamentos coletivos à população
brasileira.
Os partidos de
direita adotam integralmente em suas propostas as concepções
conservadoras predominantes nas polícias. Os partidos de centro
ou de esquerda não têm uma proposta consistente, abrangente e
assimilada por suas lideranças e bases. De todos os lados surgem
promessas de investimentos, como se, por uma mágica, fossem
encontrados os recursos financeiros.
Os governos
continuam errando quando entregam a militares ou a quadros
policiais a direção das secretarias de segurança e de outros órgãos-chave.
Por exemplo, o governo do PSDB no Rio de Janeiro entregou sua política
de segurança a um general do Exército. Da mesma forma agiu o PT
no início de sua gestão nos únicos dois estados por ele
governados. E assim fazem os outros partidos.
Por uma concepção
civil de segurança
Desmilitarizar a
segurança é prevenir e perseguir o crime em todas as camadas
sociais; é investigar os criminosos para poupar os inocentes; é
fazer com que as polícias e o judiciário ajam como instituições
de funcionários públicos a serviço e não acima da sociedade;
é subordinar as polícias aos governos eleitos e à estrita
legalidade; é capacitar os partidos políticos para definir políticas
de segurança; é restringir as Forças Armadas apenas à função
de defesa externa.
Os crimes
cometidos pelos integrantes das camadas ricas da sociedade são
normalmente mais nocivos à coletividade do que a maior parte dos
crimes cometidos por delinqüentes originários das camadas
pobres. Eles impedem que o Estado tenha recursos para as políticas
sociais que fariam cair grandemente a criminalidade entre as
classes pobres.
Todos estes tipos
de crime permanecem impunes como decorrência da concepção
presente em todas as nossas instituições de segurança pública.
A polícia evita investigá-los, não é preparada para isso,
inibe-se com medo de ser processada por atos ilegais e é
facilmente corruptível. O Ministério Público não tem estrutura
e dedicação. O Judiciário multiplica sua lentidão e torna-se
cuidadoso e brando.
Numa concepção
civil de segurança, as polícias devem revolucionar sua
capacidade de informação e investigação, de tal modo que
possam chegar ao criminoso sem constranger a sociedade e sem que
ela seja jogada num constante clima de guerra. Deve ser afastada a
prepotência e a violência que trata o cidadão como um
subordinado às forças de polícia.
Na concepção
atual, os cidadãos são tratados como se fossem hierarquicamente
inferiores ao mais baixo na escala hierárquica dos policiais. Na
concepção civil de segurança, os policiais são funcionários públicos
remunerados para servir a todos os cidadãos conforme os direitos
que lhes são constitucionalmente assegurados e as leis vigentes
nas relações sociais. Deve ser banido o uso da violência,
embora não o uso da força justificada pela legalidade.
As idéias de uma
segurança de natureza civil pressupõem a subordinação real e não
apenas retórica das polícias aos governos. Quem dirá quais são
os interesses da sociedade e como estes devem ser providos são os
governos eleitos e a legislação vigente. Caberá apenas ao Poder
Judiciário interpretar a lei e determinar qualquer intervenção
inibidora.
Para que os
governos assumam efetivamente o controle das polícias, é necessário
que os políticos demonstrem capacidade de formular políticas de
segurança pública e consolidar o apoio social a elas.
A limitação do
papel das Forças Armadas à defesa externa do país é
fundamental para a vitória de uma concepção civil de segurança
e para acabar com a tutela que pretendem exercer como se fossem a
instituição máxima da nação. A transformação das polícias
militares em polícias de caráter civil será parte integrante
desta modificação necessária.
Transformar as PMs
em polícias de caráter civil
A crise de
ineficiência e deformação da polícia civil também é imensa.
O modelo novo das polícias militares não pode ser o das atuais
polícias civis. Nem é adequado que estas absorvam total ou
parcialmente as polícias militares. Estas devem ser reorganizadas
tendo em vista sua transformação em polícia completa, com
predominância da atividade de prevenção, mas com a prerrogativa
de investigar antes para prevenir melhor, e investigar na seqüência
do crime. Elas deverão portanto ter um ramo uniformizado,
largamente majoritário, mas também um ramo não-uniformizado,
necessário à investigação. É essencial para tudo isso que
suas relações com o Ministério Público e o Poder Judiciário
sejam diretas, sem a intermediação das polícias civis como
hoje. Sua organização deve abandonar o modelo militar,
distribuindo-se em unidades menores, e passando a funcionários
civis as tarefas não-policiais. Deve adotar carreira única,
simplificando os diversos graus, perder o privilégio de justiça
própria, ter disciplina e hierarquia garantidas por um novo
regulamento disciplinar, com sanções, porém sem a atual prisão
disciplinar.
Paralelamente a
isso, as polícias civis deverão se adaptar à função de polícia
predominantemente destinada a auxiliar o poder judiciário, que
hoje desempenham muito mal. Elas devem continuar tendo setores
especializados para combater crimes de maior complexidade, tais
como assassinatos de autoria desconhecida, seqüestros, crimes
do colarinho branco etc. A guarda de presos precisará sair de
sua responsabilidade.
Os setores de perícia
técnica ou médica, atualmente vinculados às polícias civis,
precisarão ser independentes, constituindo uma terceira grande
unidade policial, subordinada como as outras às secretarias de
segurança pública.
Os governos civis
devem exercer efetivamente o comando das polícias por meio das
secretarias de segurança. Elas terão a autoridade de transmitir
as orientações de governo, distribuir as tarefas básicas,
resolver os conflitos de competência, criar sistemas de informação,
controlar os de comunicação, fiscalizar internamente o
cumprimento da lei e, em estreita vinculação com o ministério público,
prevenir, reprimir e investigar os crimes cometidos por policiais.
As secretarias de
segurança também deverão renovar toda sistemática de combate
ao crime organizado, criando forças conjuntas de investigação e
repressão que integrem as polícias e outras instituições de
governo, como por exemplo as secretarias de finanças, as
procuradorias de Estado, as instituições científicas.
Os municípios
precisam também integrar-se ao sistema de segurança – através
das guardas municipais – para cumprir tarefas mais simples, como
o atendimento primário em postos policiais de bairro, o
policiamento de trânsito, a vigilância de escolas e de centros
comerciais. Também as tarefas de combate a incêndios podem
passar aos municípios.
Finalmente, com
um modelo civil de segurança
|