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A Polícia e os Direitos Humanos: Estratégias de Ação

Carlos Magno Nazareth Cerqueira*

Introdução

O processo de democratização da sociedade brasileira, retomado formalmente com a atual Constituição Federal, exige das instituições sociais a obrigação de se ajustarem ao regime do Estado democrático de direito estatuído naquele documento legal. Isto põe a necessidade da construção de políticas criminais consoante os princípios e fundamentos inscritos na nossa Constituição.

O fato de ter sido em duas oportunidades Secretário de Estado e Comandante Geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro[1] e de ter participado da grandiosa experiência de governo, que foi a de implementar programas de segurança pública inspirados nos princípios constitucionais, muito me anima a participar desse seminário sobre os Direitos Humanos no Brasil.

Essa experiência culminou com a realização, no Rio de Janeiro, de um curso de direitos humanos patrocinado com o apoio do Setor de Cooperação Técnica do Centro de Direitos Humanos das Nações Unidas de Genebra.[2] É a partir dos resultados desse treinamento que pretendo desenvolver o tema desse ensaio: as estratégias de ação para implementar um programa de direitos humanos para as polícias brasileiras.

A declaração universal dos direitos humanos e a polícia

Basta ler os artigos da Declaração para se perceber a importância dos órgãos policiais para a promoção e a garantia dos direitos ali estatuídos. Esta importância pode ser demonstrada pelos direitos que se reportam diretamente ao terreno das políticas criminais. Destacamos, como exemplo, os que tratam:

§         da liberdade, da vida e da segurança pessoal;

§         da integridade física das pessoas, dos maus-tratos e da tortura;

§         do não ser preso ou detido arbitrariamente;

§         da presunção de inocência;

§         da proteção da lei;

§         da invasão da privacidade;

§         da liberdade de pensamento, consciência e religião;

§         da liberdade de opinião e expressão;

§         da liberdade de reunião e de associação pacífica.

Pela enumeração acima fica clara a estreita e necessária ligação da polícia com os direitos humanos. Não pode a polícia, no seu papel de responsável pelo controle da criminalidade e manutenção da ordem, esquecer os seus compromissos com as regras estabelecidas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A justiça criminal e os direitos humanos

Parto do entendimento de que as regras internacionais das Nações Unidas para a administração da justiça e da polícia são suficientes para subsidiar qualquer programa de ação para a área da segurança pública. Antes de falarmos dos programas específicos para o setor policial, penso ser necessário recorrer a algumas observações sobre o funcionamento do sistema de justiça criminal e as suas implicações para os direitos humanos.

É impossível tratar deste tema sem se reportar à pesquisa coordenada pelo professor Eugênio R. Zaffaroni sobre os sistemas penais e os direitos humanos na América Latina. Sobre os sistemas penais adverte para a sua ineficácia e repressividade por causa de dois fatos: leis que não tutelam adequada e suficientemente os direitos humanos e leis que têm um conteúdo repressivo desnecessário para tal tutela. Isto ele chamou de defeitos práticos do sistema penal.[3]

Zaffaroni apresenta como fatores responsáveis por essa ineficácia e exagerada repressividade as práticas dos diferentes grupos humanos que constituem os diferentes setores do sistema de justiça criminal; para o referido autor a violência, a setorização, a burocratização e a corrupção são os principais defeitos práticos do sistema penal. Afirma que esses defeitos acabam sendo disfarçados por aqueles grupos humanos com a construção de ideologias de justificação públicas e privadas.

Não cabe agora discutir os defeitos do sistema de justiça criminal, mas tão somente mostrar como o sistema atua solidariamente nas violações dos direitos humanos e nas justificações para tais violações. É daí que surge o discurso da incompatibilidade dos direitos humanos com a atividade de controle do crime; o discurso de que os direitos humanos protegem o criminoso e não se preocupam com as vítimas e outros do mesmo teor.

Embora o objetivo deste texto seja a discussão sobre o papel da polícia no campo da promoção e das garantias dos direitos humanos, não se pode deixar de mostrar o fato da polícia pertencer ao sistema de justiça criminal e, muito menos, afirmar a necessidade da administração da justiça criminal em seu conjunto comprometer-se com a promoção e a garantia daqueles direitos.

Vale lembrar Nilo Batista[4] ao dizer que “o desempenho dos aparelhos policiais não pode ser compreendido fora do quadro jurídico que legitima suas rotinas e dissimula a maior parte de seus abusos, nem fora dos vínculos institucionais que os converte, ao lado do Ministério Público, da Justiça Criminal e da administração penitenciária, numa totalidade funcional. Ou seja, para falar da violência do Estado e os aparelhos policiais é necessário falar da base legislativa e do sistema penal que a partir dela se estrutura e opera.”

As políticas criminais e os direitos humanos

A afirmação de Nilo Batista[5] de que existem políticas criminais diversas, vez que os grandes debates sobre a política criminal se travam entre finalidades políticas diversas que pretendem modelar o instrumento jurídico, mostra que há políticas criminais para todas as posições políticas. Não é sem razão que criminólogos como Lopez-Rey[6] e Garcia-Pablos de Molina[7] destacam a necessidade de políticas criminais compromissadas com os princípios democráticos.

Como as políticas de segurança pública são espécies de políticas criminais no campo da atuação policial é preciso ficar marcada a exigência delas também estarem compromissadas com o respeito aos direitos humanos.



* Coronel, Vice-Presidente do Instituto Carioca de Criminologia. Foi Assessor Especial do Gabinete do Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro; Secretário de Estado da Polícia Militar e Comandante Geral (1983-87/1991/94) e Chefe do Estado-Maior - PMERJ. Especialização em Políticas Públicas (UFRJ) e em Psicologia do Trabalho (FGV).

[1]Participei dos governos de Leonel Brizola, no Rio de Janeiro, nos períodos de 1983/87 e 1991/94.

[2] O manual de treinamento para os policiais organizado pelas Nações Unidas e utilizado neste curso, no Rio de Janeiro, está sendo editado pelo Instituto Carioca de Criminologia com o título: “A Polícia e os Direitos Humanos”.

[3] Ver Zaffaroni, Eugenio R.(coordenador) em “Sistemas Penales y Derechos Humanos en América Latina (Primer Informe)”, documentos e questionários elaborados para o Seminário de San José(Costa Rica) realizada em julho de 1983, patrocinado pelo Instituto Latino Americano de Direitos Humanos (ILANUD), pp. 50.

 

[4] Ver artigo de Nilo Batista, “A Violência do Estado e os Aparelhos Policiais” publicado na Revista Discursos Sediciosos- Crime, Direito e Sociedade, nº 4, do Instituto Carioca de Criminologia.

[5] Ver Nilo Batista, “Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro”, Editora Revan, RJ, 1990, pp. 36.

[6] Ver Lopez Rey, Manuel, “Criminologia. Criminalidad y Planificación de la Politica Criminal, Biblioteca Juridica Aguillar, 1975, vol II.

[7] Ver Garcia-Pablos de Molina, Antonio, “Criminologia. Uma Introdução a seus Fundamentos Técnicos, Ed. Revista dos tribunais, 1992, pp. 275.

 

A polícia brasileira e os direitos humanos

Utilizaremos como fonte de consulta os padrões internacionais postos pelas Nações Unidas para a administração policial. A partir deles pretendo, apoiado na minha experiência pessoal, delinear um quadro para esboçar algumas medidas que poderão subsidiar as estratégias da ação política para envolver a atuação policial no campo dos direitos humanos.

As missões da polícia

As estratégias neste campo terão como objetivo principal superar a idéia da incompatibilidade da proteção dos direitos humanos com a atividade policial de controle da criminalidade. Para isto se propõe fazer constar no elenco das missões da polícia brasileira a da promoção e proteção dos direitos humanos.

Outra idéia que deve ser superada é a de imaginar a Declaração Universal dos Direitos Humanos como uma carta que só privilegia os direitos olvidando os deveres. Vale lembrar que ao lado de um direito vem sempre um dever; por exemplo, para o direito à segurança pessoal é necessário que alguém ou algum órgão se responsabilize pela sua garantia.

No caso da polícia fica suficientemente claro que todos aqueles direitos, pertinentes à área da segurança pública, na Declaração, são deveres policiais.

A deontologia policial

A Polícia, para cumprir seus deveres, necessita ter especiais poderes (poder de polícia); é evidente que estes poderes, além de serem limitados, devem estar orientados pelo interesse público. Deve ser enfatizado que esses poderes só podem ser utilizados no cumprimento das missões policiais.

É importante registrar que a limitação do poder policial constitui uma forma de proteção dos direitos humanos que as Nações Unidas consagram com a edição do Código de Conduta para os policiais.

As estratégias neste campo deverão estar orientadas para superar algumas idéias-força imperantes na cultura policial ou mesmo no imaginário popular referente ao controle do crime. Entre elas destacam-se as seguintes: a do uso ilimitado do poder policial; que os fins justificam os meios; que a crueldade dos criminosos justifica qualquer ação violenta policial e ainda a tese da incompatibilidade dos direitos humanos com a repressão ao crime nos países menos desenvolvidos.

Hoje tem sido intensa e proveitosa a discussão sobre os valores éticos da polícia[1]; proveitosa porque os autores que tratam desse tema vêm mostrando a necessidade dos valores institucionais serem declarados expressa e publicamente e,ainda, poderem ser utilizados como uma forte ferramenta administrativa.

O fato da polícia ser um serviço público que pode usar a força e armas de fogo contra a sociedade exige que estejam estreitamente relacionados os seus aspectos éticos, legais e técnicos. É desta forma que se superam as teses que hoje dominam a cultura policial e popular e que servem de estímulo e tolerância às violações de direitos cometidas pelos policiais.

De pronto sugere-se a adoção pelas polícias brasileiras do Código de Conduta, editado pelas Nações Unidas, e a criação de Conselhos de Ética[2].

Os planejamentos policiais

As recomendações das Nações Unidas são no sentido de constarem explicitamente nos planejamentos estratégicos e nos planos operacionais os aspectos éticos e legais fundados nos princípios de respeito e obediência à lei, respeito pela dignidade inerente à pessoa humana e respeito pelos direitos humanos.

Tal recomendação serve para reforçar a idéia do relacionamento estreito dos aspectos técnicos, legais e éticos da atividade policial. Vale consultar um documento oficial do Canadá[3] que ao discutir aspectos pertinentes ao planejamento estratégico sugere, para as polícias canadenses, um modelo de enunciado de missão.

Neste modelo são apresentados os três elementos da missão: a) enunciado da missão: estabelece os objetivos gerais da polícia; b) o enunciado dos meios utilizados para atender a esses objetivos; e c) um enunciado dos valores fundamentais: os princípios fundamentais que orientarão a polícia na obtenção dos objetivos e no atendimento dos requisitos da excelência.

Não é difícil verificar-se que essa declaração da missão articula de forma exemplar os aspectos técnicos, legais e éticos. Vale como exemplo a transcrição do modelo proposto pelo governo canadense:

Missão da polícia

“Como componente do sistema de justiça criminal e em consonância com a “Carta Canadense de Direitos e Liberdades, a polícia é responsável pela manutenção da paz, da ordem e da segurança públicas. Ela é encarregada de prevenir o crime e as contravenções, de descobrir os autores e de citá-los na justiça. Ela tem igualmente a responsabilidade de tranqüilizar os cidadãos quanto aos medos e às preocupações que podem provocar o crime”.

Meios utilizados

“A polícia cumpre sua missão aplicando o Código Criminal do Canadá, as outras leis e regulamentos federais, estaduais e municipais; investigando os crimes e as contravenções; patrulhando seu território; participando da prevenção da criminalidade; prestando socorro e colaborando com os cidadãos, os organismos comunitários, o sistema judiciário, os serviços correcionais e com os diferentes níveis de governo”.

Valores fundamentais

O policial:

§         defende os princípios enunciados na “Carta Canadense de Direitos e Liberdades” e as garantias que ela defere aos cidadãos;

§         é membro da comunidade e reflete o princípio de que a polícia é o público e o público a polícia;

§         trabalha em parceria com a comunidade local, consultando-a afim de estabelecer as prioridades locais para a aplicação dos serviços policiais frente ao crime e a ordem pública; ele se esforça também para obter a sua cooperação na busca das soluções para os seus problemas;

§         oferece ao público serviços de qualidade elevada, destinados a manter a segurança, a paz e a ordem na comunidade. Considera também as necessidades específicas das vítimas, dos grupos minoritários e vulneráveis, tais como, mulheres, jovens e idosos;

§         identifica os problemas locais de crime e de desordem e investiga as suas causas, para assegurar uma intervenção rápida nos incidentes onde a vida está em perigo;

§         ameniza os medos sem fundamento referentes aos riscos de vitimização e de todos os outros problemas relativos ao crime e à ordem pública;

§         trabalha em cooperação com outros órgãos que oferecem serviços ao público, com os outros níveis de governo e com os outros componentes do sistema de justiça criminal;

§         faz um uso razoável e moderado dos poderes que a lei lhe confere e é consciente dos problemas e dos riscos associados ao uso arbitrário de tais poderes;

§         utiliza a força em último recurso, quando não há outro meio possível. Toda a força deve ser utilizada de acordo com a natureza e as circunstâncias do incidente;

§         se comporta de forma a manter a confiança e o respeito do público, adotando as normas profissionais que o protegem da corrupção e da má conduta, assegurando a imparcialidade na aplicação das leis, e protegendo-se das pressões políticas e de outras influências;

§         é responsável perante a comunidade, de maneira formal pelos mecanismos democráticos estabelecidos, assim como de maneira informal pelos mecanismos de debate e de consulta.

Como sugestão fica a idéia da obrigação de fazer constar nos documentos operacionais, manuais técnicos, planos e políticas operacionais das polícias, sempre que possível relacionadas, as questões técnicas, éticas e legais de forma a ir se cristalizando, seja no ambiente formal, seja no ambiente informal das organizações policiais, a compreensão dessas questões como elementos essenciais da missão policial.

O policiamento nos regimes democráticos

Os problemas que as estratégias para essa área deverão superar dizem respeito às questões que envolvem aspectos dos serviços públicos em regimes democráticos, tais como: prestação de contas à sociedade; subordinação aos poderes políticos; imparcialidade político-partidária e atendimento adequado às demandas do público.

No caso da polícia, as estratégias deverão enfocar a relação com o poder civil e com a comunidade nas atividades de controle da criminalidade e a dos direitos políticos nas atividades de manutenção da ordem.

No caso do relacionamento da polícia com o poder civil deve ficar claro a natureza civil do policiamento e a necessidade da subordinação da polícia ao poder político. As estratégias nesse setor devem superar a prática tradicional das polícias brasileiras de operarem com independência e sem controle dos órgãos do executivo ou do legislativo.

Neste campo o alvo das estratégias serão os policiais e os políticos que juntos terão de construir uma relação política que preserve uma atitude imparcial e não-partidária. Fica a polícia obrigada a seguir as diretrizes políticas dos governos eleitos para a área da segurança. Ficam os políticos obrigados a definirem diretrizes que atendam aos objetivos da lei e da justiça e assegurem a imparcialidade e o não-partidarismo das atividades policiais. Com isto pode-se certamente superar a má vontade que existe nos quadros policiais com relação a qualquer subordinação política.

Na questão da prestação de contas, a polícia deve reconhecer a sua obrigação para aceitar o controle legal, político e econômico das suas atividades; por outro lado, as autoridades públicas deverão reconhecer a necessidade de organizar os sistemas de controle e de prestação de contas da polícia aos representantes legais e à sociedade.

As estratégias para disciplinar esta área devem referir-se à institucionalização dos controles externos e interno das polícias[4] ; no caso do controle legal, os controles externos, por parte da justiça criminal e da sociedade, verificarão o cumprimento dos aspectos éticos e legais. Com a mesma finalidade se organizarão os controles internos.

No caso do controle político, os controles externos, por parte do poder executivo, legislativo e da sociedade, terão como escopo o acompanhamento das políticas de segurança pública; este controle pode ser feito por meio de apresentações periódicas e sistemáticas dos resultados das diversas operações policiais.

No caso do controle econômico, o objetivo será o de verificar como os recursos da instituição estão sendo utilizados pela administração pública. A forma de organização dos controles externos poderá ser idêntica às comentadas acima.

Desde logo é importante frisar a necessidade de se encontrar formas políticas de assegurar o comprometimento das autoridades públicas da área da segurança com a política dos direitos humanos. Uma proposta no sentido de obrigar-se a que todos os planejamentos e documentos operacionais explicitem claramente os valores estatuídos pelos direitos humanos pode ser uma forma da autoridade pública vir a demonstrar o seu compromisso com esses valores. Esta estratégia é tão ou mais importante do que qualquer forma de controle externo ou interno.

Para facilitar a organização desses controles vejo como essencial a construção de sistemas para o monitoramento das polícias brasileiras, elaborando-se um quadro de indicadores para acompanhar o desempenho organizacional e pessoal.

No aspecto referente ao exercício dos direitos políticos, a polícia brasileira se defronta com os diferentes tipos de manifestações coletivas que fazem parte da atividade policial de manutenção da ordem.

O tema sugere a necessidade de alguns esclarecimentos sobre o papel da polícia e dos cidadãos no caso de reuniões e manifestações públicas. São interessantes as observações feitas em um estudo das Nações Unidas[5] sobre a ordem pública, o papel da polícia e os abusos dos direitos.

Diz o estudo que uma reunião pública que acabe em desordem deve ser dispersada pela polícia por razões de ordem pública ou de abuso dos direitos dos participantes. Deixa claro o documento que o interesse da comunidade ou o bem estar geral tem prevalência sobre o direito de reunião quando se trate de evitar desordens ou violências. Da mesma forma como não se deve permitir ao Estado abusar de seu poder, não pode o cidadão abusar de sua liberdade; esse estudo considera abusivo o exercício de um direito quando ele é exercido contra o espírito e o alcance do mesmo.

É correto perceber-se a necessidade de policiais e cidadãos se entenderem para que haja um equilíbrio adequado entre a preservação da ordem pública e o exercício de direitos por parte dos cidadãos ou dos grupos de manifestantes. Eu tenho defendido a necessidade de se pensar em uma “nova concepção de ordem pública, na qual a colaboração e a integração comunitária sejam referenciais importantes”[6]. Esta afirmação já deixa transparecer a necessidade da participação popular e do relacionamento polícia-povo para um eficaz trabalho, tanto no campo da manutenção da ordem pública, quanto no campo do controle da criminalidade.

Fica evidente que o apoio popular é uma variável importante para a eficiência da organização policial, e esse apoio só é conseguido se há confiança popular; essa confiança só se estabelece quando há um bom relacionamento, e bom relacionamento se dá quando as práticas de um e outro se apoiam no respeito mútuo.

A idéia de que a comunidade deve participar do esforço de promover a sua própria segurança não tem encontrado maiores resistências na área policial, até por ser uma forma tradicional da polícia tratar o problema da participação popular; participar como informante ou testemunha dos crimes tem sido o papel atribuído à comunidade.

Tenho desenvolvido a idéia de que existe uma concepção de ordem pública autoritária e outra democrática[7]; a primeira repousa na hipótese da unanimidade, isto é, no consenso obrigatório, não havendo possibilidade para os dissidentes. A segunda, a democrática, abre espaço para o conflito, permitindo que o consenso possa ser construído livremente e não seja obrigatório; há possibilidade para os dissidentes se expressarem e se manifestarem. Fica bastante evidente ser diferente a participação comunitária em um modelo e outro.

Na hipótese do modelo democrático, que é o que nos interessa comentar, a participação comunitária pode ser vista sob o aspecto político e técnico-operacional; no primeiro, a comunidade se coloca no papel de definir, junto com o poder público, as políticas criminais e, também, de controlar as ações da polícia na execução das políticas de segurança pública. No outro aspecto, o técnico- operacional, a comunidade, além da participação tradicional como informante ou testemunha, assume obrigações com a própria ordem pública.

Costumo dar um tratamento à questão da ordem pública com uma visão totalmente positiva, substituindo a idéia tradicional de manutenção da ordem para a de construção da ordem pública[8]. Com isto pretendo ver o problema da auto-regulação coletiva na própria atividade policial.

A tradicional idéia de manutenção da ordem impõe como condição necessária e primeira o uso da coerção ou da força onde a ordem é pensada como estabilidade social e os conflitos como desordem ou anarquia. No modelo democrático, onde os conflitos podem ser pensados como fonte de mudanças e não de anarquia, acredita-se mais nos mecanismos de negociação e de persuasão que juntos a polícia e a comunidade podem desenvolver para a solução de determinados conflitos; aí pode-se falar de construção da ordem onde a participação popular é fundamental.

Falou-se de um outro grande desafio para a polícia e para a sociedade: o da construção da ordem pública. A polícia deverá aceitar o controle da sociedade e a sua participação como parceira na formulação das políticas de segurança pública, ou na colaboração nas estratégias de prevenção do crime. A sociedade deverá estar pronta para prestar a colaboração que se fizer necessária e possível às atividades policiais.

As estratégias para a situação de manutenção da ordem deverão superar as tradicionais práticas das polícias brasileiras, forjadas nos longos períodos de regimes autoritários, de tratamento parcial e arbitrário. Sugere-se a necessidade de novas regras de atuação para as polícias e novos referenciais teóricos que venham substituir as teses da doutrina de segurança nacional, que hoje ainda dominam o campo do treinamento policial.

Com relação ao atendimento das demandas da sociedade, requisito exigido pelos regimes democráticos para as suas polícias, entendo que a melhor sugestão seja o da adoção do modelo comunitário da prevenção do crime.[9] Já é bastante conhecido este modelo pelas polícias estaduais, o que facilitará certamente o desenvolvimento e a aplicação do policiamento comunitário.

A polícia e a não-discriminação

As estratégias para as políticas de não-discriminação vão esbarrar em um dos maiores problemas da sociedade brasileira e, por conseqüência do sistema penal, que é a cultura da discriminação. História recente de escravidão e crenças teóricas fundadas na interpretação positivista do controle do crime são os fatores maiores para a construção das ideologias discriminatórias que povoam o imaginário social brasileiro.

Para ficar só no campo da análise do controle da criminalidade vale o observado por Eugênio Zaffaroni[10] sobre o controle ideológico nas universidades e centros de pesquisa. Diz ele que esse controle se processa, de um lado, ensinando-se um direito penal de forma puramente dogmática- positivista-jurídica e, de outro, uma criminologia (quando se ensina) sob a inspiração das teses positivistas, somada a uma completa desconsideração pelo ensino dos Direitos Humanos.

O quadro apresentado pelo referido autor é o da formação dos advogados que operam no sistema penal como juízes, promotores, defensores e policiais; é também o quadro propício para a construção das crenças que fundamentam as ideologias que inspiram políticas criminais essencialmente centradas na figura do criminoso, mostrado como um ente patológico. Com todos esses ingredientes teóricos, é fácil a construção da imagem infra-humana do criminoso e a decretação da sua exclusão do rol das pessoas com dignidade humana.

Esse é o cenário de discriminação que deve ser superado, não só no ambiente das polícias, mas nos diversos setores do sistema penal e, igualmente, no ambiente político e universitário, que formulam, de um lado, as políticas criminais e, de outro lado, constróem ideologias e formam os profissionais que serão os operadores do direito e da justiça.

Para vencer a cultura da discriminação vai ser preciso, também, reexaminar os critérios estabelecidos pela polícia para montar o seu quadro de fatores de risco e de suspeitos. É importante saber como ele é construído, vendo o manual de polícia de O. W. Wilson, bastante conhecido e utilizado pelos policiais latino americanos. Nele é citado August Vollmer como o idealizador da classificação de pessoas e coisas que implicam em riscos, isto é, a possibilidade de que crimes sejam cometidos; entre as pessoas destacam-se as seguintes: criminosos, ambulantes, prostitutas, homossexuais, embriagados, loucos, agentes subversivos, agitadores, fanáticos entre outros. Ao elencar os locais que devem ser considerados fatores de risco aponta um que merece ser transcrito em espanhol(para evitar dúvidas) e sem qualquer outro comentário: “regiones pobladas por negros”.[11]

Tudo isto mostra que as estratégias para a implantação de políticas não-discriminatórias não podem perder de vista a necessidade de mudanças de atitudes em vários setores da sociedade brasileira, particularmente no ambiente político e burocrático das formulações das políticas de segurança pública.

No âmbito das polícias sugerem-se programas de treinamentos específicos para a mudança de atitudes discriminatórias e ensino da criminologia com uma visão mais crítica e contemporânea do crime e do criminoso.



[1] Ver Wasserman, Robert e Moore, Mark H., “Valores Éticos e Policiamento” no Caderno de Polícia, nº 10, PMERJ, pp.1 a 16.

[2] Adotei na PMERJ o Código de Ética da ONU e criei o Conselho de Ética da Corporação e os Comitês de Ética das unidades operacionais.

[3] Documento de reflexão elaborado pela Procuradoria Geral do Canadá, “Une Vision de l’Avenir de la Police au Canada: Police- Défi 2000, colaboradores, Barry Leigton e André Normandeau.

[4] Ver meu artigo “Questões preliminares para a discussão de uma proposta de diretrizes constitucionais sobre s segurança pública”(mimeo) pp.26 a 29, publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 22, 1998.

[5] Ver Serie de Estudios sobre Derechos Humanos, Nº 3, “La liberdad del individuo ante la ley: Análisis del artículo 29 de la Declaración Universal de Derechos Humanos”, por Erica-Irene A. Daes, relatora especial de la Subcomisión de Prevención de Discriminaciones y Protección a las Minorias, Nações Unidas, Nueva York, 1990,pp. 135 a 147.

[6] Ver Plano Diretor da Polícia Militar do Rio de Janeiro, para o período de 1984 a 1987, edição alterada, 1986.

[7] Ver meu artigo “Remilitarização da segurança pública: a operação Rio”, Revista Discursos Sediciosos- Crime, Direito e Sociedade, nº 1, Relume Dumará, pp.161.

[8] Ver meu artigo “Políticas de segurança pública para um Estado de direito democrático chamado Brasil”, Revista Discursos Sediciosos- Crime, Direito e Sociedade,nº3, pp., 130.

[9] Ver meu artigo “Polícia Comunitária: Uma nova visão de política de segurança pública”, Revista Discursos Sediciosos- Crime, Direito e Sociedade, nº 4.

[10] Ver Eugenio Zaffaroni,.(coordenador), “Sistemas Penales y Derechos Humanos en América Latina” (Informe Final), relatório da pesquisa desenvolvida pelo Instituto Latino-Americano de Direitos Humanos, pp., 402.

[11] Ver Wilson, O. W. “Administración de la Policía”, Editorial Limusa, Mexico, 1974, pp. 120 e 121.

As investigações criminais

As estratégias de ação para o campo das atividades da polícia judiciária deverão enfrentar algumas práticas bastante enraizadas na cultura policial que são as seguintes: prender para depois investigar; torturar para obter confissão; atribuição prematura de culpa; interferências arbitrárias em relação à privacidade dos suspeitos; níveis intoleráveis de parcialidade nos procedimentos investigatórios.

A questão política da investigação criminal brasileira só pode ser entendida no campo dos debates sobre a legislação processual penal. Zaffaroni,[1] sempre lembrado neste texto por claras e óbvias razões, afirma que ao se insistir na tese da instrução bonapartista de 1808, o árbitro principal do processo penal latino-americano será, sem dúvida, o poder executivo e os seus organismos policiais. Tal lembrança serve para mostrar que o quadro brasileiro não é diferente, bastando ver o grau de independência dos organismos policiais que fazem polícia judiciária no Brasil.

A situação brasileira ainda é mais grave, a meu juízo, por apresentar um modelo de organização de polícia judiciária bastante diferente das polícias estrangeiras. Creio que a explicação se encontra na exposição de motivos do Código de Processo Penal brasileiro. Percebe-se que o legislador, ao defender a permanência do inquérito policial, repudiando o juizado de instrução, prefere o critério geográfico ao critério político; a imensa extensão territorial brasileira como argumento para inviabilizar os juizados de instrução favorece manter nas mãos do executivo e sobretudo dos órgãos policiais o processo penal.

Interessante ver que a polícia judiciária se organizou como se fosse um juizado de instrução, criando a figura do delegado de polícia, dono do inquérito policial, como o juiz é o dono da instrução criminal; em torno do inquérito policial criou-se o escrivão e o cartório nos mesmos moldes da justiça criminal.

O juizado de instrução que ao legislador se mostrava inviável, por ser o Brasil um país de grande extensão territorial, serve como modelo para a organização da polícia judiciária em torno do inquérito policial. Basta ver ou conhecer como se organizam as polícias que fazem investigação em outros países para confirmar as observações que faço sobre a natureza especial da polícia judiciária brasileira. Esta é uma das razões que, a meu ver, estariam dificultando a implantação do controle dessa atividade pelo Ministério Público.

Qualquer estratégia para estabelecer o real controle da atividade de investigação criminal deve começar pela desjudicialização da polícia. As outras estratégias que se sugerem para o aperfeiçoamento das investigações criminais são temas propostos pelas regras internacionais das Nações Unidas.

De pronto, as propostas apontam para a realização de treinamento para os policiais sobre os aspectos éticos, técnicos e legais da investigação criminal; esforço do governo para dotar os setores da polícia judiciária dos recursos científicos e técnicos indispensáveis para o trabalho investigativo; intercâmbio sistemático com os centros de pesquisa universitários e as próprias universidades para a capacitação dos peritos criminais ou mesmo para a realização de perícias que envolvam sofisticados instrumentos científicos e técnicos; intercâmbio com polícias estrangeiras que disponham de serviços de investigação criminal de reconhecida competência.

Algumas estratégias nos aspectos relacionados ao monitoramento da administração das investigações se mostram importantes não só para acompanhamento do desempenho organizacional e pessoal da polícia, mas também como forma de prevenir possíveis violações das garantias individuais e processuais dos investigados pela polícia.

Dados sobre registros e instauração de inquéritos; sobre esclarecimento de crimes; tempo médio da realização dos inquéritos e outros que possam servir de indicadores da eficácia e da eficiência do trabalho investigatório deverão compor os sistemas de controle administrativo. Sugiro, como conveniente e oportuno, aceitar a recomendação de Zaffaroni[2] para o controle parlamentar das atividades do Ministério Público, vez que é um órgão também importante na promoção e garantia dos que são investigados pela polícia.

Outra área que necessita de controle é a dos informantes confidenciais; regras precisam ser definidas para estabelecer a relação da polícia com os informantes. A realidade brasileira neste domínio é bastante problemática, constituindo-se em uma fonte de sérios e graves abusos policiais; informantes da polícia normalmente travestidos de policiais, muitas vezes são utilizados para fazer o jogo sujo das investigações criminais.

O ato da prisão, do encarceramento e o uso da força

As estratégias para o ato de prisão deverão levar em conta a superação de práticas tradicionais de abuso de poder, tais como: prisões arbitrárias e desnecessárias; prisões que não obedecem o rito processual; e técnicas de prisão inadequadas às condições e circunstâncias no momento da prisão.

As estratégias para trabalhar as questões do encarceramento devem preocupar-se em prevenir atos de tortura e de maus tratos, assegurando um tratamento que respeite a dignidade humana; assegurar as condições especiais de tratamento para as mulheres e adolescentes; assegurar interrogatórios dos presos de acordo com as leis e o respeito à dignidade humana.

No caso do uso da força as estratégias devem enfrentar as práticas rotineiras do uso desnecessário e abusivo da força e das armas de fogo pelos policiais, incluindo o descaso para com a vida e a integridade física dos policiais, dos criminosos e suspeitos e de terceiros.

O uso da força pela polícia brasileira costuma ser um dos grandes problemas para a imposição de políticas de respeito aos direitos humanos. Não se pode pensar nas estratégias para superar esta situação se não se tem conhecimento do quadro que fomenta e possibilita este cenário de violações. Quando se tratou das políticas da não-discriminação foram feitos alguns comentários para explicar e tentar entender esse quadro de violações e, mais grave do que isso, o quadro de tolerância para tais violações. Sem atacar com determinação essas questões, as estratégias acabarão ficando no discurso ou quando muito nas boas intenções. A minha experiência como administrador público nesta área me habilita a fazer tais recomendações. Sei como é difícil enfrentar e vencer esse quadro.

Vale outra vez introduzir os dados encontrados por Zaffaroni[3] na pesquisa do ILANUD, na América Latina. Ao constatar o desprezo pela vida humana verificou que há um número grande de mortes causadas pela polícia. Dá conta também do desprezo pela integridade da pessoa ao constatar a presença da tortura nas sessões de entrevistas ou interrogatórios de presos ou de suspeitos.

Nas questões referentes à criminalização o autor se refere aos processos de estigmatização, das violações no encarceramento e da “policização”.

Bastante interessante são os seus comentários sobre o processo que ele chama de “policização”. Creio que não se pode trabalhar a questão da polícia e dos direitos humanos sem conhecermos este processo. Tenho trabalhado com este tema[4] e procurado mostrar aos policiais os malefícios que a violência arbitrária e desnecessária, adotada por eles contra os criminosos e suspeitos, acaba atentando contra a própria (deles) integridade física e psicológica.

Constata Zaffaroni que o controle social dos setores humildes se faz com os policiais recrutados nesses mesmos setores. Os policiais são utilizados no controle da criminalidade permitindo-lhes o uso de desmedida violência contra os criminosos e suspeitos oriundos daqueles estratos sociais marginalizados, sem maiores preocupações com os custos sociais que isto representa. Zaffaroni mostra que as vítimas diretas da violência do sistema penal, isto é, os mortos, sejam criminosos, sejam policiais, todos pertencem ao mesmo estrato social e são igualmente vítimas de violações dos direitos humanos.

Ele não aceita como correta as críticas daqueles que refutam a sua tese da “policização” como violação dos direitos humanos. Tenho, como policial, defendido essa tese e procurado divulgá-la no meio policial por achá-la útil, tanto para a promoção dos direitos humanos dos policiais, quanto para a prevenção das violações policiais.

Aqueles que defendem a política do governo do Rio de Janeiro de premiar com promoção ou gratificação financeira os policiais que se destacam no “enfrentamento” certamente encontraram uma forma, talvez inconsciente, de compensar os males que essas bravuras trazem para a integridade física e psicológica dos policiais.

Após esses comentários cabe examinar algumas estratégias para aperfeiçoar a atuação da polícia nas questões referentes ao uso da força, à prisão e ao encarceramento. Inicialmente a exigência de treinamento específico para as situações aqui examinadas, trabalhando-se as questões éticas e legais ao lado das questões técnicas da prisão, do interrogatório, do tratamento na prisão e do uso da força e das armas de fogo.

Junto ao treinamento impõe-se a criação de um sistema de controle interno que propicie as condições reais e objetivas para que as chefias e os supervisores acompanhem os resultados dos programas de treinamento e o desempenho do pessoal nessas áreas.

As instituições de controle externo se ocupariam também desse acompanhamento, articulado com os órgãos policiais ou separadamente, conforme dispusessem os instrumentos reguladores desses procedimentos.

No caso específico do uso da força e de armas de fogo pela polícia, as estratégias recomendadas seriam as da formulação de regras específicas nas quais devessem constar além dos aspectos éticos, legais e técnicos, proibições para as práticas tradicionais de treinamento policial militar inspirados no treinamento de contra-guerrilheiros e a utilização de marchas (cantos de guerra) que instigam a violência ou a discriminação de pessoas e de grupos.

Será preciso definir com objetividade os casos de violência legal apresentando qual deve ser o papel do policial em casos de resistência e desacato, ou fuga, de forma a se evitar mensagens ou situações ambíguas, tais como, “uso da energia necessária” ou “agir com dureza” e quejandas.

Devem ser estimulados pesquisas e estudos no ambiente universitário sobre o uso da força de forma a aprimorar o treinamento dos policiais e se buscar procedimentos mais eficazes para os policiais administrarem os conflitos que encontrarem pela frente na sua rotina de trabalho. Devem ser programados treinamento especial para o policial aprender a lidar com esses conflitos e estar preparado para controlar sua agressividade e utilizar processos de resolução pacífica de conflitos, aprendendo a usar métodos de mediação, persuasão e negociação visando a limitar o uso da força e de armas de fogo.

Da mesma forma devem ser estudados os efeitos da vitimização policial provocados pelo uso sistemático da violência e os estresses provocados pelas condições de trabalho policial. Comissões internas devem ser criadas para avaliar as situações em que o uso da força e das armas de fogo produzam ferimentos e mortes, seja nos policiais, seja nos criminosos, seja em terceiros.[5]. Essas comissões avaliarão somente os aspectos técnicos e éticos do uso da força e das armas de fogo, deixando para as comissões disciplinares a verificação do aspecto legal.

A polícia e as vítimas

Uma área muito esquecida pelas políticas criminais brasileiras é a da assistência às vítimas dos crimes e do abuso do poder policial. As políticas de direitos humanos devem também desenvolver ações visando a proteção e a reparação das vítimas.

As Nações Unidas têm regras estabelecidas para esta situação particular. Elas estão preocupadas, primeiro, com as estratégias policiais de prevenção do crime e do abuso do poder para diminuir a vitimização; segundo, uma vez ocorrido o processo vitimizador, com a institucionalização da proteção e dos processos de reparação das vítimas. É importante registrar que elas não excluem da categoria das vítimas os policiais vitimizados na sua atividade profissional.

José Maria Rico dedica um capítulo da sua obra sobre segurança pública[6] ao tema do tratamento das vítimas e das testemunhas mostrando a sua importância para as políticas criminais. No Brasil deve ser louvado o esforço da Associação Brasileira de Vitimologia no sentido de chamar atenção das autoridades públicas e da sociedade para esse doloroso problema.

As estratégias nesta área apontam para o treinamento dos policiais e o desenvolvimento de programas especiais para a proteção das vítimas e das testemunhas.

A investigação das violações dos direitos humanos cometidas pelos policiais.

Deve ficar claro que é responsabilidade dos governos estaduais não só a promoção e a proteção dos direitos humanos da população sob a sua administração, mas sobretudo a investigação de todas as queixas de violações desses direitos pelos policiais, sejam elas decorrentes de abuso dos poderes, sejam elas decorrentes de arbitrariedades cometidas sob o manto da condição de autoridade pública.

Para que isto ocorra, é imprescindível que as autoridades políticas, legislativas e judiciárias estejam de fato compromissadas, administrativa e publicamente, com as políticas dos direitos humanos. Infelizmente, no cenário brasileiro, não é raro ver administradores públicos e políticos expressarem o seu repúdio a essas políticas, alegando que elas só servem para proteger criminosos e intimidar a ação policial.

Qualquer estratégia para criar sistemas eficazes de controle das violações dos direitos humanos deverá partir desse compromisso político sob pena de se constituir em meros controles formais entregues a abnegadas instituições especializadas ou públicas.

Comentários finais

O objetivo deste ensaio foi o de refletir sobre as estratégias para incluir nas políticas criminais, notadamente nas políticas da área da segurança, as recomendações das Nações Unidas para a realização integral da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Ficou evidente o papel importante que o sistema de justiça criminal e particularmente a polícia desempenham para a promoção e a proteção de direitos como a segurança, a liberdade, o direito à vida, entre outros, essenciais para a qualidade de vida da população. Fiel a esse escopo procurei apresentar um elenco de propostas, a meu juízo capazes de ajudar a construir programas eficazes para a polícia cumprir as normas estatuídas naquela Declaração.

Entendo que, à guisa de comentários finais, se façam algumas outras considerações bastante pertinentes e necessárias para o projeto deste estudo. Uma delas é sobre a polícia como fator de insegurança pública; é bastante freqüente a criminalidade violenta fomentar exigências de contrapartida violenta por parte da polícia, acabando quase sempre for desenvolver na organização policial aqueles “caracteres negativos do sistema penal” mostrado pela pesquisa de Zaffaroni; vale relembrar outro aspecto, relatado pelo referido autor, que são os altos níveis de violência das organizações policiais, comprometendo a integridade física e psicológica dos policiais: a policização.

Insisto em mostrar que a administração pública deve, por um lado, preocupar-se com os níveis de deterioração individual dos policiais e, por outro, igualmente importante, ocupar-se com os níveis da deterioração organizacional que torna a polícia um fator de insegurança pública. Vale ver sobre isso Lopez-Rey ao assinalar o papel do sistema penal, ora como elemento da prevenção, ora como elemento condicionador da criminalidade.[7]

O quadro de violações policiais, seja nos aspectos éticos, seja no legal, modela uma polícia violenta e perigosa, tanto para os criminosos, quanto para a população. Acredito fortemente que a ética policial fundada nas recomendações da ONU pode desempenhar um papel crucial para o enfrentamento deste quadro grave de desempenho policial. Tenho trabalhado esta questão ao estudar a criminalidade policial[8] dentro da ótica da violação dos direitos humanos, entendendo que o código de ética das Nações Unidas é um poderoso instrumento político e administrativo para evitar as violações contra a população, e sobretudo a violação dos direitos à vida, à integridade física e mental dos policiais.

Deve ficar claro que uma polícia violenta é sempre perigosa e não deve interessar nem à sociedade e muito menos aos policiais. A minha experiência, com uma administração policial compromissada com o respeito às políticas dos direitos humanos, constata que a crítica mais contundente contra essa política vem dos setores policiais envolvidos com o crime e a criminalidade. O discurso impiedoso contra os criminosos quase sempre esconde práticas de tolerância e cumplicidade com o crime.

Este quadro da criminalidade policial é suficiente para mostrar a necessidade de se ter uma polícia devidamente controlada pelas regras estabelecidas pelas Nações Unidas. Não acredito que os bons policiais não se engajem em um projeto que tenha como alvo a construção de uma polícia eficaz e produtora de segurança.

É bom que se lembre também que pensar nas violações policiais somente do ângulo do policial violador é adotar a postura positivista criminológica, que aqui foi criticada por concentrar a atenção no criminoso, esquecendo-se das condições sociopolíticas, como se elas não existissem ou não fossem importantes para explicar essa criminalidade. Como administrador, pude vivenciar também a grande influência que a ideologia discriminatória de setores do ambiente externo(políticos, econômicos, militares etc) exercem no ambiente policial; esta influência não pode ser desconsiderada, particularmente na situação brasileira, pois além de propiciar o quadro de violações policiais, as valoriza como instrumentos necessários para o controle da criminalidade violenta.

Para encerrar, quero reafirmar algumas teses que tenho defendido como essenciais para o processo de democratização das políticas de segurança pública: o da desmilitarização e o da integração do sistema de justiça criminal.

Desmilitarização não é o afastamento das organizações policiais militares do campo da segurança pública, vez que essa atuação não fere os princípios democráticos; a desmilitarização que proponho é a que refuta as políticas criminais interpretadas como política de guerra e submetidas ao controle doutrinário das teses da segurança nacional. A desmilitarização que urge acontecer neste setor deve entender a segurança pública como uma atividade civil submetida aos poderes políticos e à justiça comum.

Por isso é fundamental que as estratégias sugeridas para a implantação das políticas de direitos humanos para as polícias brasileiras contemplem também as FFAA, vez que a Constituição Federal ampliou a possibilidade de intervenção dos militares na área da segurança pública. Urge que o treinamento de direitos humanos seja obrigatório para os militares das FFAA e que eles se submetam aos mesmos critérios estabelecidos para as polícias, quando estiverem operando no campo da segurança pública: controle das violações pela justiça comum e submissão ao poder civil.

Quanto ao sistema de justiça criminal insisto na necessidade dessas estratégias alcançarem a todos os seus integrantes: juízes e promotores criminais; defensores públicos; os integrantes dos setores de custódia e tratamento dos presos. Lembrando Zaffaroni, vale recomendar o ensino obrigatório de Direitos Humanos e de Criminologia nas faculdades de Direito, e mais, constarem tais disciplinas dos processos seletivos e do treinamento, em todos os diferentes níveis da carreira, dessas categorias profissionais.

Precisa ser ressaltado o desafio gigantesco que essas estratégias terão de enfrentar para a sua implantação no âmbito das polícias brasileiras, dominadas por uma cultura autoritária e antidireitos humanos. É importante que os bons policiais compreendam a necessidade de se associarem aos setores da sociedade e da administração pública interessados em transformar as organizações policiais; acredito que somente a cumplicidade dos bons poderá acabar com os altos níveis de violação dos direitos humanos da polícia brasileira


[1] Zaffaroni, op. cit. pp 166 a 173.

[2] Zaffaroni, op. cit. pp. 137.

[3] Zaffaroni, op. cit., pp., 403 a 428.

[4] Ver meu texto “Vítimas do Abuso do Poder Político: Violência Policial”(mimeo) apresentado no 7º Simpósio Internacional de Vitimologia, junho, 1991, Rio.

[5] Criei na PMERJ a “Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e Estresse”, CIPAE, para avaliar o uso da força e das armas de fogo e o estresse dos policiais.

[6] Ver Rico, Jose Maria e Salas, Luis “Delito, Insegurança do Cidadão e Polícia”, Biblioteca da Polícia Militar, 1992, pp 263 a 285.

[7] Ver Lopez-Rey, op. cit.

[8] Ver meu artigo “Outros aspectos da criminalidade da Polícia” publicado na Revista Discursos Sediciosos- Crime, Direito e Sociedade, nº 5.

 

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