Carlos Magno Nazareth
Cerqueira*
Introdução
O processo de
democratização da sociedade brasileira, retomado
formalmente com a atual Constituição Federal, exige das
instituições sociais a obrigação de se ajustarem ao
regime do Estado democrático de direito estatuído
naquele documento legal. Isto põe a necessidade da
construção de políticas criminais consoante os
princípios e fundamentos inscritos na nossa
Constituição.
O fato de ter sido
em duas oportunidades Secretário de Estado e Comandante
Geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro e
de ter participado da grandiosa experiência de governo,
que foi a de implementar programas de segurança pública
inspirados nos princípios constitucionais, muito me
anima a participar desse seminário sobre os Direitos
Humanos no Brasil.
Essa experiência
culminou com a realização, no Rio de Janeiro, de um
curso de direitos humanos patrocinado com o apoio do
Setor de Cooperação Técnica do Centro de Direitos
Humanos das Nações Unidas de Genebra. É
a partir dos resultados desse treinamento que pretendo
desenvolver o tema desse ensaio: as estratégias de ação
para implementar um programa de direitos humanos para as
polícias brasileiras.
A declaração universal dos
direitos humanos e a polícia
Basta ler os
artigos da Declaração para
se perceber a importância dos órgãos policiais para a
promoção e a garantia dos direitos ali estatuídos. Esta
importância pode ser demonstrada pelos direitos que se
reportam diretamente ao terreno das políticas criminais.
Destacamos, como exemplo, os que tratam:
§
da liberdade, da vida e da segurança
pessoal;
§
da integridade física das pessoas, dos
maus-tratos e da tortura;
§
do não ser preso ou detido
arbitrariamente;
§
da presunção de inocência;
§
da proteção da lei;
§
da invasão da privacidade;
§
da liberdade de pensamento, consciência e
religião;
§
da liberdade de opinião e expressão;
§
da liberdade de reunião e de associação
pacífica.
Pela enumeração
acima fica clara a estreita e necessária ligação da
polícia com os direitos humanos. Não pode a polícia, no
seu papel de responsável pelo controle da criminalidade
e manutenção da ordem, esquecer os seus compromissos com
as regras estabelecidas pela Declaração Universal
dos Direitos Humanos.
A justiça criminal e os
direitos humanos
Parto do
entendimento de que as regras internacionais das Nações
Unidas para a administração da justiça e da polícia são
suficientes para subsidiar qualquer programa de ação
para a área da segurança pública. Antes de falarmos dos
programas específicos para o setor policial, penso ser
necessário recorrer a algumas observações sobre o
funcionamento do sistema de justiça criminal e as suas
implicações para os direitos humanos.
É impossível tratar
deste tema sem se reportar à pesquisa coordenada pelo
professor Eugênio R. Zaffaroni sobre os sistemas penais
e os direitos humanos na América Latina. Sobre os
sistemas penais adverte para a sua ineficácia e
repressividade por causa de dois fatos: leis que não
tutelam adequada e suficientemente os direitos humanos e
leis que têm um conteúdo repressivo desnecessário para
tal tutela. Isto ele chamou de defeitos práticos
do sistema penal.
Zaffaroni apresenta
como fatores responsáveis por essa ineficácia e
exagerada repressividade as práticas dos diferentes
grupos humanos que constituem os diferentes setores do
sistema de justiça criminal; para o referido autor a violência, a
setorização, a burocratização e a corrupção são os
principais defeitos práticos
do sistema penal. Afirma que esses defeitos acabam
sendo disfarçados por aqueles grupos humanos com a
construção de ideologias de justificação públicas e
privadas.
Não cabe agora
discutir os defeitos do sistema de justiça criminal, mas
tão somente mostrar como o sistema atua solidariamente
nas violações dos direitos humanos e nas justificações
para tais violações. É daí que surge o discurso da
incompatibilidade dos direitos humanos com a atividade
de controle do crime; o discurso de que os direitos
humanos protegem o criminoso e não se preocupam com as
vítimas e outros do mesmo teor.
Embora o objetivo
deste texto seja a discussão sobre o papel da polícia no
campo da promoção e das garantias dos direitos humanos,
não se pode deixar de mostrar o fato da polícia
pertencer ao sistema de justiça criminal e, muito menos,
afirmar a necessidade da administração da justiça
criminal em seu conjunto comprometer-se com a promoção e
a garantia daqueles direitos.
Vale lembrar Nilo
Batista
ao dizer que “o desempenho dos aparelhos policiais não
pode ser compreendido fora do quadro jurídico que
legitima suas rotinas e dissimula a maior parte de seus
abusos, nem fora dos vínculos institucionais que os
converte, ao lado do Ministério Público, da Justiça
Criminal e da administração penitenciária, numa
totalidade funcional. Ou seja, para falar da violência
do Estado e os aparelhos policiais é necessário falar da
base legislativa e do sistema penal que a partir dela se
estrutura e opera.”
As políticas criminais e os
direitos humanos
A afirmação de Nilo
Batista
de que existem políticas criminais diversas, vez que os
grandes debates sobre a política criminal se travam
entre finalidades políticas diversas que pretendem
modelar o instrumento jurídico, mostra que há políticas
criminais para todas as posições políticas. Não é sem
razão que criminólogos como Lopez-Rey e
Garcia-Pablos de Molina
destacam a necessidade de políticas criminais
compromissadas com os princípios democráticos.
Como as políticas
de segurança pública são espécies de políticas criminais
no campo da atuação policial é preciso ficar marcada a
exigência delas também estarem compromissadas com o
respeito aos direitos humanos.
A polícia brasileira e os
direitos humanos
Utilizaremos como
fonte de consulta os padrões internacionais postos pelas
Nações Unidas para a administração policial. A partir
deles pretendo, apoiado na minha experiência pessoal,
delinear um quadro para esboçar algumas medidas que
poderão subsidiar as estratégias da ação política para
envolver a atuação policial no campo dos direitos
humanos.
As missões da polícia
As estratégias
neste campo terão como objetivo principal superar a
idéia da incompatibilidade da proteção dos direitos
humanos com a atividade policial de controle da
criminalidade. Para isto se propõe fazer constar no
elenco das missões da polícia brasileira a da promoção e proteção
dos direitos humanos.
Outra idéia que
deve ser superada é a de imaginar a Declaração Universal
dos Direitos Humanos como uma carta que
só privilegia os direitos olvidando os deveres. Vale
lembrar que ao lado de um direito vem sempre um dever;
por exemplo, para o direito à segurança pessoal é
necessário que alguém ou algum órgão se responsabilize
pela sua garantia.
No caso da polícia
fica suficientemente claro que todos aqueles direitos,
pertinentes à área da segurança pública, na Declaração, são
deveres
policiais.
A deontologia policial
A Polícia, para
cumprir seus deveres, necessita ter especiais poderes
(poder de polícia); é evidente que estes poderes, além
de serem limitados, devem estar orientados pelo
interesse público. Deve ser enfatizado que esses poderes
só podem ser utilizados no cumprimento das missões
policiais.
É importante
registrar que a limitação do poder policial constitui
uma forma de proteção dos direitos humanos que as Nações
Unidas consagram com a edição do Código de Conduta para
os policiais.
As estratégias
neste campo deverão estar orientadas para superar
algumas idéias-força imperantes na cultura policial ou
mesmo no imaginário popular referente ao controle do
crime. Entre elas destacam-se as seguintes: a do uso
ilimitado do poder policial; que os fins justificam os
meios; que a crueldade dos criminosos justifica qualquer
ação violenta policial e ainda a tese da
incompatibilidade dos direitos humanos com a repressão
ao crime nos países menos desenvolvidos.
Hoje tem sido
intensa e proveitosa a discussão sobre os valores éticos
da polícia;
proveitosa porque os autores que tratam desse tema vêm
mostrando a necessidade dos valores institucionais serem
declarados expressa e publicamente e,ainda, poderem ser
utilizados como uma forte ferramenta
administrativa.
O fato da polícia
ser um serviço público que pode usar a força e armas de
fogo contra a sociedade exige que estejam estreitamente
relacionados os seus aspectos éticos, legais e técnicos.
É desta forma que se superam as teses que hoje dominam a
cultura policial e popular e que servem de estímulo e
tolerância às violações de direitos cometidas pelos
policiais.
De pronto sugere-se
a adoção pelas polícias brasileiras do Código de
Conduta, editado pelas Nações Unidas, e a criação de
Conselhos de Ética.
Os planejamentos policiais
As recomendações
das Nações Unidas são no sentido de constarem
explicitamente nos planejamentos estratégicos e nos
planos operacionais os aspectos éticos e legais fundados
nos princípios de respeito e obediência à lei, respeito
pela dignidade inerente à pessoa humana e respeito pelos
direitos humanos.
Tal recomendação
serve para reforçar a idéia do relacionamento estreito
dos aspectos técnicos, legais e éticos da atividade
policial. Vale consultar um documento oficial do
Canadá
que ao discutir aspectos pertinentes ao planejamento
estratégico sugere, para as polícias canadenses, um
modelo de enunciado de missão.
Neste modelo são
apresentados os três elementos da missão: a) enunciado
da missão: estabelece os objetivos gerais da polícia; b)
o enunciado dos meios utilizados para atender a esses
objetivos; e c) um enunciado dos valores fundamentais:
os princípios fundamentais que orientarão a polícia na
obtenção dos objetivos e no atendimento dos requisitos
da excelência.
Não é difícil
verificar-se que essa declaração da missão articula de
forma exemplar os aspectos técnicos, legais e éticos.
Vale como exemplo a transcrição do modelo proposto pelo
governo canadense:
Missão da polícia
“Como componente do
sistema de justiça criminal e em consonância com a
“Carta Canadense de Direitos e Liberdades, a polícia é
responsável pela manutenção da paz, da ordem e da
segurança públicas. Ela é encarregada de prevenir o
crime e as contravenções, de descobrir os autores e de
citá-los na justiça. Ela tem igualmente a
responsabilidade de tranqüilizar os cidadãos quanto aos
medos e às preocupações que podem provocar o
crime”.
Meios utilizados
“A polícia cumpre
sua missão aplicando o Código Criminal do Canadá, as
outras leis e regulamentos federais, estaduais e
municipais; investigando os crimes e as contravenções;
patrulhando seu território; participando da prevenção da
criminalidade; prestando socorro e colaborando com os
cidadãos, os organismos comunitários, o sistema
judiciário, os serviços correcionais e com os diferentes
níveis de governo”.
Valores fundamentais
O policial:
§
defende os princípios enunciados na “Carta
Canadense de Direitos e Liberdades” e as garantias que
ela defere aos cidadãos;
§
é membro da comunidade e reflete o princípio de
que a polícia é o público e o público a polícia;
§
trabalha em parceria com a comunidade local,
consultando-a afim de estabelecer as prioridades locais
para a aplicação dos serviços policiais frente ao crime
e a ordem pública; ele se esforça também para obter a
sua cooperação na busca das soluções para os seus
problemas;
§
oferece ao público serviços de qualidade elevada,
destinados a manter a segurança, a paz e a ordem na
comunidade. Considera também as necessidades específicas
das vítimas, dos grupos minoritários e vulneráveis, tais
como, mulheres, jovens e idosos;
§
identifica os problemas locais de crime e de
desordem e investiga as suas causas, para assegurar uma
intervenção rápida nos incidentes onde a vida está em
perigo;
§
ameniza os medos sem fundamento referentes aos
riscos de vitimização e de todos os outros problemas
relativos ao crime e à ordem pública;
§
trabalha em cooperação com outros órgãos que
oferecem serviços ao público, com os outros níveis de
governo e com os outros componentes do sistema de
justiça criminal;
§
faz um uso razoável e moderado dos poderes que a
lei lhe confere e é consciente dos problemas e dos
riscos associados ao uso arbitrário de tais
poderes;
§
utiliza a força em último recurso, quando não há
outro meio possível. Toda a força deve ser utilizada de
acordo com a natureza e as circunstâncias do
incidente;
§
se comporta de forma a manter a confiança e o
respeito do público, adotando as normas profissionais
que o protegem da corrupção e da má conduta, assegurando
a imparcialidade na aplicação das leis, e protegendo-se
das pressões políticas e de outras influências;
§
é responsável perante a comunidade, de maneira
formal pelos mecanismos democráticos estabelecidos,
assim como de maneira informal pelos mecanismos de
debate e de consulta.
Como sugestão fica
a idéia da obrigação de fazer constar nos documentos
operacionais, manuais técnicos, planos e políticas
operacionais das polícias, sempre que possível
relacionadas, as questões técnicas, éticas e legais de
forma a ir se cristalizando, seja no ambiente formal,
seja no ambiente informal das organizações policiais, a
compreensão dessas questões como elementos essenciais da
missão policial.
O policiamento nos regimes
democráticos
Os problemas que as
estratégias para essa área deverão superar dizem
respeito às questões que envolvem aspectos dos serviços
públicos em regimes democráticos, tais como: prestação
de contas à sociedade; subordinação aos poderes
políticos; imparcialidade político-partidária e
atendimento adequado às demandas do público.
No caso da polícia,
as estratégias deverão enfocar a relação com o poder
civil e com a comunidade nas atividades de controle da
criminalidade e a dos direitos políticos nas atividades
de manutenção da ordem.
No caso do
relacionamento da polícia com o poder civil deve ficar
claro a natureza civil do policiamento e a necessidade
da subordinação da polícia ao poder político. As
estratégias nesse setor devem superar a prática
tradicional das polícias brasileiras de operarem com
independência e sem controle dos órgãos do executivo ou
do legislativo.
Neste campo o alvo
das estratégias serão os policiais e os políticos que
juntos terão de construir uma relação política que
preserve uma atitude imparcial e não-partidária. Fica a
polícia obrigada a seguir as diretrizes políticas dos
governos eleitos para a área da segurança. Ficam os
políticos obrigados a definirem diretrizes que atendam
aos objetivos da lei e da justiça e assegurem a
imparcialidade e o não-partidarismo das atividades
policiais. Com isto pode-se certamente superar a má
vontade que existe nos quadros policiais com relação a
qualquer subordinação política.
Na questão da
prestação de contas, a polícia deve reconhecer a sua
obrigação para aceitar o controle legal, político e
econômico das suas atividades; por outro lado, as
autoridades públicas deverão reconhecer a necessidade de
organizar os sistemas de controle e de prestação de
contas da polícia aos representantes legais e à
sociedade.
As estratégias para
disciplinar esta área devem referir-se à
institucionalização dos controles externos e interno das
polícias ;
no caso do controle legal, os controles externos, por
parte da justiça criminal e da sociedade, verificarão o
cumprimento dos aspectos éticos e legais. Com a mesma
finalidade se organizarão os controles internos.
No caso do controle
político, os controles externos, por parte do poder
executivo, legislativo e da sociedade, terão como escopo
o acompanhamento das políticas de segurança pública;
este controle pode ser feito por meio de apresentações
periódicas e sistemáticas dos resultados das diversas
operações policiais.
No caso do controle
econômico, o objetivo será o de verificar como os
recursos da instituição estão sendo utilizados pela
administração pública. A forma de organização dos
controles externos poderá ser idêntica às comentadas
acima.
Desde logo é
importante frisar a necessidade de se encontrar formas
políticas de assegurar o comprometimento das autoridades
públicas da área da segurança com a política dos
direitos humanos. Uma proposta no sentido de obrigar-se
a que todos os planejamentos e documentos operacionais
explicitem claramente os valores estatuídos pelos
direitos humanos pode ser uma forma da autoridade
pública vir a demonstrar o seu compromisso com esses
valores. Esta estratégia é tão ou mais importante do que
qualquer forma de controle externo ou interno.
Para facilitar a
organização desses controles vejo como essencial a
construção de sistemas para o monitoramento das polícias
brasileiras, elaborando-se um quadro de indicadores para
acompanhar o desempenho organizacional e pessoal.
No aspecto
referente ao exercício dos direitos políticos, a polícia
brasileira se defronta com os diferentes tipos de
manifestações coletivas que fazem parte da atividade
policial de manutenção da ordem.
O tema sugere a
necessidade de alguns esclarecimentos sobre o papel da
polícia e dos cidadãos no caso de reuniões e
manifestações públicas. São interessantes as observações
feitas em um estudo das Nações Unidas
sobre a ordem pública, o papel da polícia e os abusos
dos direitos.
Diz o estudo que
uma reunião pública que acabe em desordem deve ser
dispersada pela polícia por razões de ordem pública ou
de abuso dos direitos dos participantes. Deixa claro o
documento que o interesse da comunidade ou o bem estar
geral tem prevalência sobre o direito de reunião quando
se trate de evitar desordens ou violências. Da mesma
forma como não se deve permitir ao Estado abusar de seu
poder, não pode o cidadão abusar de sua liberdade; esse
estudo considera abusivo o exercício de um direito
quando ele é exercido contra o espírito e o alcance do
mesmo.
É correto
perceber-se a necessidade de policiais e cidadãos se
entenderem para que haja um equilíbrio adequado entre a
preservação da ordem pública e o exercício de direitos
por parte dos cidadãos ou dos grupos de manifestantes.
Eu tenho defendido a necessidade de se pensar em uma “nova concepção de
ordem pública, na qual a colaboração e a integração
comunitária sejam referenciais importantes”.
Esta afirmação já deixa transparecer a necessidade da
participação popular e do relacionamento polícia-povo
para um eficaz trabalho, tanto no campo da manutenção da
ordem pública, quanto no campo do controle da
criminalidade.
Fica evidente que o
apoio popular é uma variável importante para a
eficiência da organização policial, e esse apoio só é
conseguido se há confiança popular; essa confiança só se
estabelece quando há um bom relacionamento, e bom
relacionamento se dá quando as práticas de um e outro se
apoiam no respeito mútuo.
A idéia de que a
comunidade deve participar do esforço de promover a sua
própria segurança não tem encontrado maiores
resistências na área policial, até por ser uma forma
tradicional da polícia tratar o problema da participação
popular; participar como informante ou testemunha dos
crimes tem sido o papel atribuído à comunidade.
Tenho desenvolvido
a idéia de que existe uma concepção de ordem pública
autoritária e outra democrática;
a primeira repousa na hipótese da unanimidade, isto é,
no consenso obrigatório, não havendo possibilidade para
os dissidentes. A segunda, a democrática, abre espaço
para o conflito, permitindo que o consenso possa ser
construído livremente e não seja obrigatório; há
possibilidade para os dissidentes se expressarem e se
manifestarem. Fica bastante evidente ser diferente a
participação comunitária em um modelo e outro.
Na hipótese do
modelo democrático, que é o que nos interessa comentar,
a participação comunitária pode ser vista sob o aspecto
político e técnico-operacional; no primeiro, a
comunidade se coloca no papel de definir, junto com o
poder público, as políticas criminais e, também, de
controlar as ações da polícia na execução das políticas
de segurança pública. No outro aspecto, o técnico-
operacional, a comunidade, além da participação
tradicional como informante ou testemunha, assume
obrigações com a própria ordem pública.
Costumo dar um
tratamento à questão da ordem pública com uma visão
totalmente positiva, substituindo a idéia tradicional de
manutenção da ordem para a de construção da ordem
pública.
Com isto pretendo ver o problema da auto-regulação
coletiva na própria atividade policial.
A tradicional idéia
de manutenção da ordem impõe como condição necessária e
primeira o uso da coerção ou da força onde a ordem é
pensada como estabilidade social e os conflitos como
desordem ou anarquia. No modelo democrático, onde os
conflitos podem ser pensados como fonte de mudanças e
não de anarquia, acredita-se mais nos mecanismos de
negociação e de persuasão que juntos a polícia e a
comunidade podem desenvolver para a solução de
determinados conflitos; aí pode-se falar de construção
da ordem onde a participação popular é fundamental.
Falou-se de um
outro grande desafio para a polícia e para a sociedade:
o da construção da ordem pública. A polícia deverá
aceitar o controle da sociedade e a sua participação
como parceira na formulação das políticas de segurança
pública, ou na colaboração nas estratégias de prevenção
do crime. A sociedade deverá estar pronta para prestar a
colaboração que se fizer necessária e possível às
atividades policiais.
As estratégias para
a situação de manutenção da ordem deverão superar as
tradicionais práticas das polícias brasileiras, forjadas
nos longos períodos de regimes autoritários, de
tratamento parcial e arbitrário. Sugere-se a necessidade
de novas regras de atuação para as polícias e novos
referenciais teóricos que venham substituir as teses da
doutrina de segurança nacional, que hoje ainda dominam o
campo do treinamento policial.
Com relação ao
atendimento das demandas da sociedade, requisito exigido
pelos regimes democráticos para as suas polícias,
entendo que a melhor sugestão seja o da adoção do modelo
comunitário da prevenção do crime.
Já é bastante conhecido este modelo pelas polícias
estaduais, o que facilitará certamente o desenvolvimento
e a aplicação do policiamento comunitário.
A polícia e a não-discriminação
As estratégias para
as políticas de não-discriminação vão esbarrar em um dos
maiores problemas da sociedade brasileira e, por
conseqüência do sistema penal, que é a cultura da
discriminação. História recente de escravidão e crenças
teóricas fundadas na interpretação positivista do
controle do crime são os fatores maiores para a
construção das ideologias discriminatórias que povoam o
imaginário social brasileiro.
Para ficar só no
campo da análise do controle da criminalidade vale o
observado por Eugênio Zaffaroni
sobre o controle ideológico nas universidades e centros
de pesquisa. Diz ele que esse controle se processa, de
um lado, ensinando-se um direito penal de forma
puramente dogmática- positivista-jurídica e, de outro,
uma criminologia (quando se ensina) sob a inspiração das
teses positivistas, somada a uma completa
desconsideração pelo ensino dos Direitos Humanos.
O quadro
apresentado pelo referido autor é o da formação dos
advogados que operam no sistema penal como juízes,
promotores, defensores e policiais; é também o quadro
propício para a construção das crenças que fundamentam
as ideologias que inspiram políticas criminais
essencialmente centradas na figura do criminoso,
mostrado como um ente patológico. Com todos esses
ingredientes teóricos, é fácil a construção da imagem
infra-humana do criminoso e a decretação da sua exclusão
do rol das pessoas com dignidade humana.
Esse é o cenário de
discriminação que deve ser superado, não só no ambiente
das polícias, mas nos diversos setores do sistema penal
e, igualmente, no ambiente político e universitário, que
formulam, de um lado, as políticas criminais e, de outro
lado, constróem ideologias e formam os profissionais que
serão os operadores do direito e da justiça.
Para vencer a
cultura da discriminação vai ser preciso, também,
reexaminar os critérios estabelecidos pela polícia para
montar o seu quadro de fatores de risco e de suspeitos.
É importante saber como ele é construído, vendo o manual
de polícia de O. W. Wilson, bastante conhecido e
utilizado pelos policiais latino americanos. Nele é
citado August Vollmer como o idealizador da
classificação de pessoas e coisas que implicam em
riscos, isto é, a possibilidade de que crimes sejam
cometidos; entre as pessoas destacam-se as seguintes: criminosos, ambulantes,
prostitutas, homossexuais, embriagados, loucos, agentes
subversivos, agitadores, fanáticos entre
outros. Ao elencar os locais que devem ser considerados
fatores de risco aponta um que merece ser transcrito em
espanhol(para evitar dúvidas) e sem qualquer outro
comentário: “regiones pobladas
por negros”.
Tudo isto mostra
que as estratégias para a implantação de políticas
não-discriminatórias não podem perder de vista a
necessidade de mudanças de atitudes em vários setores da
sociedade brasileira, particularmente no ambiente
político e burocrático das formulações das políticas de
segurança pública.
No âmbito das
polícias sugerem-se programas de treinamentos
específicos para a mudança de atitudes discriminatórias
e ensino da criminologia com uma visão mais crítica e
contemporânea do crime e do criminoso.
As investigações criminais
As estratégias de
ação para o campo das atividades da polícia judiciária
deverão enfrentar algumas práticas bastante enraizadas
na cultura policial que são as seguintes: prender para
depois investigar; torturar para obter confissão;
atribuição prematura de culpa; interferências
arbitrárias em relação à privacidade dos suspeitos;
níveis intoleráveis de parcialidade nos procedimentos
investigatórios.
A questão política
da investigação criminal brasileira só pode ser
entendida no campo dos debates sobre a legislação
processual penal. Zaffaroni,
sempre lembrado neste texto por claras e óbvias razões,
afirma que ao se insistir na tese da instrução
bonapartista de 1808, o árbitro principal do processo
penal latino-americano será, sem dúvida, o poder
executivo e os seus organismos policiais. Tal lembrança
serve para mostrar que o quadro brasileiro não é
diferente, bastando ver o grau de independência dos
organismos policiais que fazem polícia judiciária no
Brasil.
A situação
brasileira ainda é mais grave, a meu juízo, por
apresentar um modelo de organização de polícia
judiciária bastante diferente das polícias estrangeiras.
Creio que a explicação se encontra na exposição de
motivos do Código de Processo Penal brasileiro.
Percebe-se que o legislador, ao defender a permanência
do inquérito policial, repudiando o juizado de
instrução, prefere o critério geográfico ao critério
político; a imensa extensão territorial brasileira como
argumento para inviabilizar os juizados de instrução
favorece manter nas mãos do executivo e sobretudo dos
órgãos policiais o processo penal.
Interessante ver
que a polícia judiciária se organizou como se fosse um
juizado de instrução, criando a figura do delegado de
polícia, dono do inquérito policial, como o juiz é o
dono da instrução criminal; em torno do inquérito
policial criou-se o escrivão e o cartório nos mesmos
moldes da justiça criminal.
O juizado de
instrução que ao legislador se mostrava inviável, por
ser o Brasil um país de grande extensão territorial,
serve como modelo para a organização da polícia
judiciária em torno do inquérito policial. Basta ver ou
conhecer como se organizam as polícias que fazem
investigação em outros países para confirmar as
observações que faço sobre a natureza especial da
polícia judiciária brasileira. Esta é uma das razões
que, a meu ver, estariam dificultando a implantação do
controle dessa atividade pelo Ministério Público.
Qualquer estratégia
para estabelecer o real controle da atividade de
investigação criminal deve começar pela
desjudicialização da polícia. As outras estratégias que
se sugerem para o aperfeiçoamento das investigações
criminais são temas propostos pelas regras
internacionais das Nações Unidas.
De pronto, as
propostas apontam para a realização de treinamento para
os policiais sobre os aspectos éticos, técnicos e legais
da investigação criminal; esforço do governo para dotar
os setores da polícia judiciária dos recursos
científicos e técnicos indispensáveis para o trabalho
investigativo; intercâmbio sistemático com os centros de
pesquisa universitários e as próprias universidades para
a capacitação dos peritos criminais ou mesmo para a
realização de perícias que envolvam sofisticados
instrumentos científicos e técnicos; intercâmbio com
polícias estrangeiras que disponham de serviços de
investigação criminal de reconhecida competência.
Algumas estratégias
nos aspectos relacionados ao monitoramento da
administração das investigações se mostram importantes
não só para acompanhamento do desempenho organizacional
e pessoal da polícia, mas também como forma de prevenir
possíveis violações das garantias individuais e
processuais dos investigados pela polícia.
Dados sobre
registros e instauração de inquéritos; sobre
esclarecimento de crimes; tempo médio da realização dos
inquéritos e outros que possam servir de indicadores da
eficácia e da eficiência do trabalho investigatório
deverão compor os sistemas de controle administrativo.
Sugiro, como conveniente e oportuno, aceitar a
recomendação de Zaffaroni
para o controle parlamentar das atividades do Ministério
Público, vez que é um órgão também importante na
promoção e garantia dos que são investigados pela
polícia.
Outra área que
necessita de controle é a dos informantes confidenciais;
regras precisam ser definidas para estabelecer a relação
da polícia com os informantes. A realidade brasileira
neste domínio é bastante problemática, constituindo-se
em uma fonte de sérios e graves abusos policiais;
informantes da polícia normalmente travestidos de
policiais, muitas vezes são utilizados para fazer o jogo
sujo das investigações criminais.
O ato da prisão, do encarceramento e o
uso da força
As estratégias para
o ato de prisão deverão levar em conta a superação de
práticas tradicionais de abuso de poder, tais como:
prisões arbitrárias e desnecessárias; prisões que não
obedecem o rito processual; e técnicas de prisão
inadequadas às condições e circunstâncias no momento da
prisão.
As estratégias para
trabalhar as questões do encarceramento devem
preocupar-se em prevenir atos de tortura e de maus
tratos, assegurando um tratamento que respeite a
dignidade humana; assegurar as condições especiais de
tratamento para as mulheres e adolescentes; assegurar
interrogatórios dos presos de acordo com as leis e o
respeito à dignidade humana.
No caso do uso da
força as estratégias devem enfrentar as práticas
rotineiras do uso desnecessário e abusivo da força e das
armas de fogo pelos policiais, incluindo o descaso para
com a vida e a integridade física dos policiais, dos
criminosos e suspeitos e de terceiros.
O uso da força pela
polícia brasileira costuma ser um dos grandes problemas
para a imposição de políticas de respeito aos direitos
humanos. Não se pode pensar nas estratégias para superar
esta situação se não se tem conhecimento do quadro que
fomenta e possibilita este cenário de violações. Quando
se tratou das políticas da não-discriminação foram
feitos alguns comentários para explicar e tentar
entender esse quadro de violações e, mais grave do que
isso, o quadro de tolerância para tais violações. Sem
atacar com determinação essas questões, as estratégias
acabarão ficando no discurso ou quando muito nas boas
intenções. A minha experiência como administrador
público nesta área me habilita a fazer tais
recomendações. Sei como é difícil enfrentar e vencer
esse quadro.
Vale outra vez
introduzir os dados encontrados por Zaffaroni
na pesquisa do ILANUD, na América Latina. Ao constatar o
desprezo pela vida humana verificou que há um número
grande de mortes causadas pela polícia. Dá conta também
do desprezo pela integridade da pessoa ao constatar a
presença da tortura nas sessões de entrevistas ou
interrogatórios de presos ou de suspeitos.
Nas questões
referentes à criminalização o autor se refere aos
processos de estigmatização, das violações no
encarceramento e da “policização”.
Bastante
interessante são os seus comentários sobre o processo
que ele chama de “policização”. Creio que não se pode
trabalhar a questão da polícia e dos direitos humanos
sem conhecermos este processo. Tenho trabalhado com este
tema e
procurado mostrar aos policiais os malefícios que a
violência arbitrária e desnecessária, adotada por eles
contra os criminosos e suspeitos, acaba atentando contra
a própria (deles) integridade física e psicológica.
Constata Zaffaroni
que o controle social dos setores humildes se faz com os
policiais recrutados nesses mesmos setores. Os policiais
são utilizados no controle da criminalidade
permitindo-lhes o uso de desmedida violência contra os
criminosos e suspeitos oriundos daqueles estratos
sociais marginalizados, sem maiores preocupações com os
custos sociais que isto representa. Zaffaroni mostra que
as vítimas diretas da violência do sistema penal, isto
é, os mortos, sejam criminosos, sejam policiais, todos
pertencem ao mesmo estrato social e são igualmente
vítimas de violações dos direitos humanos.
Ele não aceita como
correta as críticas daqueles que refutam a sua tese da
“policização” como violação dos direitos humanos. Tenho,
como policial, defendido essa tese e procurado
divulgá-la no meio policial por achá-la útil, tanto para
a promoção dos direitos humanos dos policiais, quanto
para a prevenção das violações policiais.
Aqueles que
defendem a política do governo do Rio de Janeiro de
premiar com promoção ou gratificação financeira os
policiais que se destacam no “enfrentamento” certamente
encontraram uma forma, talvez inconsciente, de compensar
os males que essas bravuras trazem para a integridade
física e psicológica dos policiais.
Após esses
comentários cabe examinar algumas estratégias para
aperfeiçoar a atuação da polícia nas questões referentes
ao uso da força, à prisão e ao encarceramento.
Inicialmente a exigência de treinamento específico para
as situações aqui examinadas, trabalhando-se as questões
éticas e legais ao lado das questões técnicas da prisão,
do interrogatório, do tratamento na prisão e do uso da
força e das armas de fogo.
Junto ao
treinamento impõe-se a criação de um sistema de controle
interno que propicie as condições reais e objetivas para
que as chefias e os supervisores acompanhem os
resultados dos programas de treinamento e o desempenho
do pessoal nessas áreas.
As instituições de
controle externo se ocupariam também desse
acompanhamento, articulado com os órgãos policiais ou
separadamente, conforme dispusessem os instrumentos
reguladores desses procedimentos.
No caso específico
do uso da força e de armas de fogo pela polícia, as
estratégias recomendadas seriam as da formulação de
regras específicas nas quais devessem constar além dos
aspectos éticos, legais e técnicos, proibições para as
práticas tradicionais de treinamento policial militar
inspirados no treinamento de contra-guerrilheiros e a
utilização de marchas (cantos de guerra) que instigam a
violência ou a discriminação de pessoas e de
grupos.
Será preciso
definir com objetividade os casos de violência legal
apresentando qual deve ser o papel do policial em casos
de resistência e desacato, ou fuga, de forma a se evitar
mensagens ou situações ambíguas, tais como, “uso da
energia necessária” ou “agir com dureza” e
quejandas.
Devem ser
estimulados pesquisas e estudos no ambiente
universitário sobre o uso da força de forma a aprimorar
o treinamento dos policiais e se buscar procedimentos
mais eficazes para os policiais administrarem os
conflitos que encontrarem pela frente na sua rotina de
trabalho. Devem ser programados treinamento especial
para o policial aprender a lidar com esses conflitos e
estar preparado para controlar sua agressividade e
utilizar processos de resolução pacífica de conflitos,
aprendendo a usar métodos de mediação, persuasão e
negociação visando a limitar o uso da força e de armas
de fogo.
Da mesma forma
devem ser estudados os efeitos da vitimização policial
provocados pelo uso sistemático da violência e os
estresses provocados pelas condições de trabalho
policial. Comissões internas devem ser criadas para
avaliar as situações em que o uso da força e das armas
de fogo produzam ferimentos e mortes, seja nos
policiais, seja nos criminosos, seja em terceiros..
Essas comissões avaliarão somente os aspectos técnicos e
éticos do uso da força e das armas de fogo, deixando
para as comissões disciplinares a verificação do aspecto
legal.
A polícia e as vítimas
Uma área muito
esquecida pelas políticas criminais brasileiras é a da
assistência às vítimas dos crimes e do abuso do poder
policial. As políticas de direitos humanos devem também
desenvolver ações visando a proteção e a reparação das
vítimas.
As Nações Unidas
têm regras estabelecidas para esta situação particular.
Elas estão preocupadas, primeiro, com as estratégias
policiais de prevenção do crime e do abuso do poder para
diminuir a vitimização; segundo, uma vez ocorrido o
processo vitimizador, com a institucionalização da
proteção e dos processos de reparação das vítimas. É
importante registrar que elas não excluem da categoria
das vítimas os policiais vitimizados na sua atividade
profissional.
José Maria Rico
dedica um capítulo da sua obra sobre segurança pública
ao tema do tratamento das vítimas e das testemunhas
mostrando a sua importância para as políticas criminais.
No Brasil deve ser louvado o esforço da Associação
Brasileira de Vitimologia no sentido de chamar atenção
das autoridades públicas e da sociedade para esse
doloroso problema.
As estratégias
nesta área apontam para o treinamento dos policiais e o
desenvolvimento de programas especiais para a proteção
das vítimas e das testemunhas.
A investigação das violações
dos direitos humanos cometidas pelos policiais.
Deve ficar claro
que é responsabilidade dos governos estaduais não só a
promoção e a proteção dos direitos humanos da população
sob a sua administração, mas sobretudo a investigação de
todas as queixas de violações desses direitos pelos
policiais, sejam elas decorrentes de abuso dos poderes,
sejam elas decorrentes de arbitrariedades cometidas sob
o manto da condição de autoridade pública.
Para que isto
ocorra, é imprescindível que as autoridades políticas,
legislativas e judiciárias estejam de fato
compromissadas, administrativa e publicamente, com as
políticas dos direitos humanos. Infelizmente, no cenário
brasileiro, não é raro ver administradores públicos e
políticos expressarem o seu repúdio a essas políticas,
alegando que elas só servem para proteger criminosos e
intimidar a ação policial.
Qualquer estratégia
para criar sistemas eficazes de controle das violações
dos direitos humanos deverá partir desse compromisso
político sob pena de se constituir em meros controles
formais entregues a abnegadas instituições
especializadas ou públicas.
Comentários finais
O objetivo deste
ensaio foi o de refletir sobre as estratégias para
incluir nas políticas criminais, notadamente nas
políticas da área da segurança, as recomendações das
Nações Unidas para a realização integral da Declaração Universal
dos Direitos Humanos.
Ficou evidente o
papel importante que o sistema de justiça criminal e
particularmente a polícia desempenham para a promoção e
a proteção de direitos como a segurança, a liberdade, o
direito à vida, entre outros, essenciais para a
qualidade de vida da população. Fiel a esse escopo
procurei apresentar um elenco de propostas, a meu juízo
capazes de ajudar a construir programas eficazes para a
polícia cumprir as normas estatuídas naquela Declaração.
Entendo que, à
guisa de comentários finais, se façam algumas outras
considerações bastante pertinentes e necessárias para o
projeto deste estudo. Uma delas é sobre a polícia como
fator de insegurança pública; é bastante freqüente a
criminalidade violenta fomentar exigências de
contrapartida violenta por parte da polícia, acabando
quase sempre for desenvolver na organização policial
aqueles “caracteres
negativos do sistema penal” mostrado pela pesquisa
de Zaffaroni; vale relembrar outro aspecto, relatado
pelo referido autor, que são os altos níveis de
violência das organizações policiais, comprometendo a
integridade física e psicológica dos policiais: a
policização.
Insisto em mostrar
que a administração pública deve, por um lado,
preocupar-se com os níveis de deterioração individual
dos policiais e, por outro, igualmente importante,
ocupar-se com os níveis da deterioração organizacional
que torna a polícia um fator de insegurança pública.
Vale ver sobre isso Lopez-Rey ao assinalar o papel do
sistema penal, ora como elemento da prevenção, ora como
elemento condicionador da criminalidade.
O quadro de
violações policiais, seja nos aspectos éticos, seja no
legal, modela uma polícia violenta e perigosa, tanto
para os criminosos, quanto para a população. Acredito
fortemente que a ética policial fundada nas
recomendações da ONU pode desempenhar um papel crucial
para o enfrentamento deste quadro grave de desempenho
policial. Tenho trabalhado esta questão ao estudar a
criminalidade policial
dentro da ótica da violação dos direitos humanos,
entendendo que o código de ética das Nações Unidas é um
poderoso instrumento político e administrativo para
evitar as violações contra a população, e sobretudo a
violação dos direitos à vida, à integridade física e
mental dos policiais.
Deve ficar claro
que uma polícia violenta é sempre perigosa e não deve
interessar nem à sociedade e muito menos aos policiais.
A minha experiência, com uma administração policial
compromissada com o respeito às políticas dos direitos
humanos, constata que a crítica mais contundente contra
essa política vem dos setores policiais envolvidos com o
crime e a criminalidade. O discurso impiedoso contra os
criminosos quase sempre esconde práticas de tolerância e
cumplicidade com o crime.
Este quadro da
criminalidade policial é suficiente para mostrar a
necessidade de se ter uma polícia devidamente controlada
pelas regras estabelecidas pelas Nações Unidas. Não
acredito que os bons policiais não se engajem em um
projeto que tenha como alvo a construção de uma polícia
eficaz e produtora de segurança.
É bom que se lembre
também que pensar nas violações policiais somente do
ângulo do policial violador é adotar a postura
positivista criminológica, que aqui foi criticada por
concentrar a atenção no criminoso, esquecendo-se das
condições sociopolíticas, como se elas não existissem ou
não fossem importantes para explicar essa criminalidade.
Como administrador, pude vivenciar também a grande
influência que a ideologia discriminatória de setores do
ambiente externo(políticos, econômicos, militares etc)
exercem no ambiente policial; esta influência não pode
ser desconsiderada, particularmente na situação
brasileira, pois além de propiciar o quadro de violações
policiais, as valoriza como instrumentos necessários
para o controle da criminalidade violenta.
Para encerrar,
quero reafirmar algumas teses que tenho defendido como
essenciais para o processo de democratização das
políticas de segurança pública: o da desmilitarização e
o da integração do sistema de justiça criminal.
Desmilitarização
não é o afastamento das organizações policiais militares
do campo da segurança pública, vez que essa atuação não
fere os princípios democráticos; a desmilitarização que
proponho é a que refuta as políticas criminais
interpretadas como política de guerra e submetidas ao
controle doutrinário das teses da segurança nacional. A
desmilitarização que urge acontecer neste setor deve
entender a segurança pública como uma atividade civil
submetida aos poderes políticos e à justiça comum.
Por isso é
fundamental que as estratégias sugeridas para a
implantação das políticas de direitos humanos para as
polícias brasileiras contemplem também as FFAA, vez que
a Constituição Federal ampliou a possibilidade de
intervenção dos militares na área da segurança pública.
Urge que o treinamento de direitos humanos seja
obrigatório para os militares das FFAA e que eles se
submetam aos mesmos critérios estabelecidos para as
polícias, quando estiverem operando no campo da
segurança pública: controle das violações pela justiça
comum e submissão ao poder civil.
Quanto ao sistema
de justiça criminal insisto na necessidade dessas
estratégias alcançarem a todos os seus integrantes:
juízes e promotores criminais; defensores públicos; os
integrantes dos setores de custódia e tratamento dos
presos. Lembrando Zaffaroni, vale recomendar o ensino
obrigatório de Direitos Humanos e de Criminologia nas
faculdades de Direito, e mais, constarem tais
disciplinas dos processos seletivos e do treinamento, em
todos os diferentes níveis da carreira, dessas
categorias profissionais.
Precisa
ser ressaltado o desafio gigantesco que essas
estratégias terão de enfrentar para a sua implantação no
âmbito das polícias brasileiras, dominadas por uma
cultura autoritária e antidireitos humanos. É importante
que os bons policiais compreendam a necessidade de se
associarem aos setores da sociedade e da administração
pública interessados em transformar as organizações
policiais; acredito que somente a cumplicidade dos bons
poderá acabar com os altos níveis de violação dos
direitos humanos da polícia brasileira