Recebemos
e, com grande prazer, divulgamos esta carta ao Presidente
do Senado Federal, José Sarney, escrita por João Baptista
Herkenhoff , histórico
militante dos Direitos Humanos no Brasil, sobre a Reforma
do Poder Judiciário que está sendo discutida no Congresso,
manifestando à adesão de Tecido
Social e da Rede Estadual de Direitos Humanos
do Rio Grande do Norte às posições expressas no documento.
Redação de Tecido Social
CARTA
AO PRESIDENTE DO SENADO FEDERAL SOBRE A REFORMA DO PODER
JUDICIÁRIO
Excentíssimo Senhor
Senador José Sarney, Digníssimo Presidente do Senado Federal
Excentíssimo Senhor
Senador José Jorge, Digníssimo Relator da Reforma do Judiciário
Excentíssimo Senhor
Senador Edson Lobão, Digníssimo Presidente da Comissão de Constituição, Justiça
e Cidadania
João Baptista Herkenhoff, brasileiro,
casado, com 68 anos de idade, residente no Estado do Espírito
Santo (endereço no final), portador do título de eleitor
289414/06, zona 001, de Vitória, vem, através do presente
documento, fazer uso da franquia prevista no art. 5º,
inc. XXXIV, letra “a”, da Constituição
Federal, ou seja, vem exercer o “direito
constitucional de petição”.
O direito que pretende exercitar é um
direito fundamental, o de participação na vida política
do país.
Quer, portanto, o requerente comparecer,
por meio desta petição, perante a Presidência do Senado
Federal, perante a Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania e perante a Comissão de Reforma do Poder Judiciário
para pedir:
a) que
superada que foi a fase da primeira discussão da reforma
da Justiça, o Senado Federal abra ainda mais o debate
sobre a matéria, que não é uma
questão privada, nem corporativa, mas um “direito fundamental
do povo”;
b) que não obstante o assunto esteja em pauta há
doze anos, não
encerre o Senado apressadamente seus trabalhos, sem antes
promover um debate nacional sobre a Justiça.
Mesmo que se perceba justa impaciência com relação
à necessidade de remédios que corrijam a lamentável situação
em que se encontra a Justiça no país, o debate amplo do
tema, segundo parece ao peticionário, não deve ser sacrificado
em homenagem à pressa. O essencial é a
discussão cabal, universal, não é a rapidez de
conclusões insuficientes que decepcionem as esperanças
do povo.
Como se verá, os pedidos das letras “a”
e “b” aparecem bastante concretos
no correr desta impetração.
O peticionário tem consciência plena de
que está na contra-mão ao tomar a presente iniciativa,
como é demonstrado a seguir.
Não
obstante esteja na contra-mão, o requerente pede a palavra.
Pede a palavra, não no sentido literal de pretender falar
à face do Senado. Pede a palavra para expressar modestamente
sua cidadania e para apelar no sentido de que o debate
sobre as questões da Justiça se amplie significativamente:
O pleiteante está na contra-mão, pelas
razões que alinha a seguir, embora seu pedido seja rigorosamente
legítimo:
a) está
na contra-mão se requer seu ingresso no debate, como simples
cidadão. As tertúlias sobre a Justiça sempre se situaram
no círculo dos atores do mundo jurídico.
Exceção a essa discussão restrita foi o período
pré-constituinte e constituinte, quando a sociedade civil
manifestou seu anseio de construção de uma nova Justiça. Se examinamos as emendas
populares que trataram das questões da Justiça (emendas
30, 56, 57, 75 e 102, por exemplo), verificaremos que
seus proponentes foram associações de moradores, centros
culturais, clubes de mães, sindicatos e federações de
trabalhadores urbanos e rurais, associações de pequenos
produtores, sociedades pró-melhoramento de regiões;
b) está
na contra-mão se pede a palavra como Juiz de Direito,
soldado raso da magistratura.
Quando se trata de discutir o Poder Judiciário
sempre se privilegiou a palavra das cúpulas – os membros
dos tribunais superiores.
Na verdade, se é
para ouvir magistrados, quem sabe dos problemas da Justiça
são principalmente os juízes de Direito, juízes do trabalho,
juízes de primeiro grau. Estes lidam, concretamente, com os dramas da
Justiça. Eliézer
Rosa, o grande magistrado carioca, disse há muitos anos
que os magistrados dos tribunais são magistrados de “ausentes”
– as partes, sobretudo os pobres, nunca estão na presença
dos desembargadores e muito menos dos ministros;
c) está na contra-mão por sua proveniência
– o Estado do Espírito Santo. Diga-se em rodeios: o princípio
federativo ainda não foi inteiramente implantado no país. Também quando se debate a Justiça as vozes ouvidas com maior freqüência são aquelas que ecoam
nos Estados mais poderosos.
Este é um desvio a ser corrigido.
Todos os Estados têm o direito de comparecer, com
igualdade, na mesa dos debates;
d) está
ainda mais na contra-mão por ser um magistrado aposentado. Pouco se ouvem os aposentados, em todos os campos
de atividade, inclusive na Justiça.
Entretanto, os aposentados é que são titulares
da experiência, portadores da História, testemunhas que
ligam o passado e o presente;
e) está
também o peticionário na contra-mão se pede a palavra
como pesquisador e escritor, alguém que publicou 33 livros,
a maioria tratando de questões candentes do Direito e
da Justiça:
Se Vossas Excelências, pessoalmente ou
com ajuda dos dignos e eficientes Assessores Parlamentares,
se debruçarem sobre nossos livros (presentes no acervo
da Biblioteca Pedro Aleixo, do Congresso Nacional), verão
que abordam, de longo tempo, as inquietações que freqüentam
agora o noticiário:
- os rumos que
o Direito e a Justiça devem seguir;
as deficiências do Poder Judiciário (Para
onde vai o Direito?);
- o papel do
jurista como agente de mudança, não como força de reação
ao avanço social (O Direito dos Códigos e o Direito da Vida);
- a tarefa de
interpretar as leis, com olhos postos no futuro, não com
aprisionamento ao passado (Como
Aplicar o Direito);
- a missão do
jurista na construção de uma sociedade nova (Direito e Utopia);
- a falência
da prisão e a busca de novos caminhos para a Justiça Criminal
(Crime: tratamento sem prisão);
- a recusa do
processo como instrumento de massacre da pessoa humana
(O Direito Processual e o Resgate do Humanismo);
- a construção
do Direito e da Justiça como tarefa universal (Direitos Humanos – uma idéia, muitas vozes; Gênese dos Direitos Humanos; Direitos
Humanos – a construção universal de uma utopia);
- a importância
social e política do juiz do interior (Pela Justiça, em São José do Calçado);
- a necessidade de alargamento da cidadania a todas as pessoas,
indistintamente (Ética,
Educação e Cidadania)
- a proposta de descida da Justiça Criminal às partes (Uma Porta para o Homem no Direito Criminal)
- a defesa de um papel intervencionista para o Ministério Público
(Na Tribuna do Ministério
Público);
- a idéia de
que os critérios éticos é que devem reger a História (Ética para um mundo melhor);
- a tese de
que a Justiça não é favor a ser concedido, mas exigência
de cidadania (Justiça, direito do povo; Cidadania para todos)
O pesquisador, o escritor
e o intelectual em geral estão na contra-mão porque vivemos
um tempo de imediatismo.
A pesquisa refletida, feita dentro
de parâmetros científicos, cede lugar às conclusões
apressadas, às simples opiniões pessoais e aos argumentos
de pretensa “autoridade”.
Apesar de todas as restrições que pesam
contra quem está na contra-mão, o peticionário suplica
que o debate da Justiça assuma relevância prioritária:
·
nos
termos já referidos neste texto e especialmente com a
convocação de magistrados de primeiro grau, magistrados
aposentados, magistrados dos mais diversos Estados para
que deponham perante a Comissão de Reforma do Poder Judiciário;
·
com
a ausculta pela Comissão de todos os atores do mundo jurídico
e, especialmente, advogados, membros do Ministério Público,
serventuários e funcionários da Justiça;
·
com
o deslocamento da Comissão aos diversos Estados do Brasil,
de modo que o debate se torne realmente nacional;
·
com
a franquia ampla de acesso do cidadão comum e das organizações
da sociedade civil ao debate, por meio de número gratuito
para ligações telefônicas, incentivo
às sugestões e reivindicações populares, audiências
abertas nos Estados e outros expedientes democratizantes.
Com
o objetivo principal de provocar o debate, o requerente
antecipa algumas opiniões suas sobre pontos em pauta:
- a
favor do controle externo da Justiça porque, numa Democracia,
nenhum poder, nenhuma autoridade pode estar acima de qualquer
suspeita;
- contra
a súmula vinculante porque engessa a jurisprudência e
cassa o poder das instâncias inferiores, muito mais abertas
às idéias progressistas do que os altos tribunais;
- a
favor da supressão do recurso obrigatório das decisões
contrárias aos Poderes Públicos porque esse expediente
processual significa apor um rótulo geral de suspeição
contra todos os procuradores e advogados do erário, que
estariam deixando de recorrer por preguiça ou corrupção
(segundo a ótica do legislador), e porque os processos
que sobem aos tribunais por força do recurso obrigatório
sobrecarregam as pautas de julgamento;
- contra
as férias coletivas da Justiça, aceitáveis noutros tempos
de Brasil, mas totalmente inadequadas diante do dinamismo
da vida atual;
- contra
o alargamento dos privilégios de foro, medida anti-democrática
que pretende beneficiar pessoas e situações que devem
estar sujeitas à Justiça e ao processo ordinário;
- a
favor de uma mudança de mentalidade e de cultura, que
leve o conjunto das autoridades a compreender que o bem
público não exige, permanentemente, um confronto entre
cidadão e Estado mas, pelo contrário,
o Estado deve ser o principal promotor da Cidadania e,
como conseqüência, o Poder Público deve reconhecer espontaneamente
os direitos das pessoas físicas e jurídicas, não as obrigando,
desnecessariamente, a procurar a Justiça para peticionar
direitos certos, com a conseqüente obstrução do funcionamento
dos serviços judiciários;
- a
favor de reduzir o número de recursos, mudando inteiramente
a estrutura desta matéria nos códigos brasileiros, estrutura
quase sempre copiada dos códigos europeus e inteiramente imprópria para um país pobre, de Justiça lenta
onde, normalmente, só os ricos têm assistência
de advogados nos tribunais, sobretudo nos tribunais localizados
fora do domicílio das partes;
- a
favor de democratizar a escolha dos presidentes dos tribunais,
por colégios eleitorais amplos, e não pela própria cúpula
judiciária, tese que defendemos há decênios;
- a
favor do aumento da idade mínima para ser juiz
pois o cargo não exige apenas saber técnico mas
a experiência que só a vida proporciona;
- pela
abertura das portas da Justiça ao povo, com supressão
dos julgamentos secretos (salvo quando envolvem questões
íntimas das partes) e com repúdio a todas as formas de
barrar a presença das pessoas comuns nos julgamentos (através,
por exemplo, da exigência de determinado traje para entrar
nas salas de audiência, procedimento que constitui um
abuso num país de descamisados e descalços).
Para
quem tem militado pelo exercício pleno da cidadania, mesmo
em circunstâncias históricas muito mais adversas - o
que lhe custou sacrifícios pessoais –, enviar esta petição
ao Senado é o cumprimento de um dever de consciência.
Vitória,
12 de julho de 2004.
João Baptista Herkenhoff
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