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Tecido Social
Correio Eletrônico da Rede Estadual de Direitos Humanos - RN

N. 045 – 05/05/04

Quem defende as propagandas machistas é um babacão!

Este título está em plena sintonia com o estilo de um “tal” colunista e publicitário Alex Medeiros que, em suas colunas no Jornal de Hoje de 3 e 5 de maio, não tendo argumentos minimanente razoáveis para defender suas teses a favor da propaganda da concessionária Via Costeira de Natal (RN) em que o rosto de uma mulher quebrado a pau é usado para vender serviços de mecânica, funilaria e pintura, não encontra nada melhor a fazer do que chamar as mulheres que defendem seus direitos de “Torquemadas-de-saia” ou, bancando o macho-man papa-jerimum ferido na sua virilidade, dizer que “as feministas do Caribe e as daqui mesmo, na falta de uma roupa pra lavar ou um fogão pra pilotar” estariam fazendo panfletagem virtual contra o próprio, que defendeu heroicamente a agência Lúmina e a concessionária Via Costeira contra “a histérica censura que quiseram fazer ao direito de criação e expressão”.

O ilustríssimo colunista potiguar afirma que “só quem não tem a menor noção de criatividade e linguagem poderia imaginar que quem deveria ir à oficina é a pessoa (humana, como dizem) e nunca o automóvel que a vítima ocupava”. Sério? Puxa vida, rapaz, estas entidades de direitos humanos são mesmo um punhado de atrasados mentais, não é? Pois, com certeza, quem acha isso da propaganda não tem o menor resquício de inteligência.

Agora, só quem não possui a menor capacidade de associação mental pode não entender imediatamente que naquela propaganda o rosto da mulher quebrado é usado como metáfora da carroceria amassada de um carro. Ou seja, o anúncio usa a violência contra a mulher para representar, simbolicamente, um carro arrebentado. Afinal de contas, qual a diferença? São dois objetos de consumo machucados, não é?

Mas, segundo o heróico publicitário arauto da liberdade de expressão e criação, o rosto da propaganda não seria de uma mulher espancada e sim acidentada. Pode até ser, do mesmo jeito que os prisioneiros iraquianos que as fotos divulgadas no canal de TV norte-americano CBS mostram se apinhando nús um encima do outro podem estar simplesmente realizando uma orgia gay e não estar sendo torturados por soldados do Tio Sam. Mas só quem não tem a menor noção do que acontece no mundo real poderia achar que aqueles iraquianos não estão sendo torturados ou, ao ver a propaganda da Via Costeira, não ter como primeira (e, na maioria dos casos, única) impressão a de que o rosto representado é de uma mulher que acaba de apanhar. Nem que seja apenas porque a violência doméstica é uma realidade profundamente enraizada no dia a dia do brasileiro, já que uma de cada três mulheres, neste país, é espancada no próprio lar.

Porque as entidades feministas e de direitos humanos só viram degradação no anúncio com a mulher e não em um anúncio da mesma campanha que representa o rosto de um homem machucado com a mesma chamada?, se pregunta o célebre publicitário. Não lhe passa pela cabeça que possa ser pelo mesmo motivo, porque a primeira impressão que se tem ao ver o rosto da mulher é que foi espancada enquanto a primeira coisa que se pensa do homem é que foi acidentado. É a realidade social do Brasil e a percepção das coisas que ela gera nas pessoas que produz isso, não o juízo das entidades de direitos humanos. Não é de um mau gosto menor usar a violência contra um homem ou contra quem quer que seja para vender um serviço, mas entre mau gosto e agressão à dignidade da pessoa há uma discreta diferença.

Proclama solenemente nosso herói: “Quem agride a dignidade humana é salário mínimo de R$ 260, turistas que atraem meninas pobres em Ponta Negra, verbas de educação desviadas para fins particulares, a fome que destroi o tecido social da Nação”. Não diga, é mesmo? Uma “puta sacada”, sem dúvida. Parabéns por ter chegado, finalmente, a esta consciência, porque nós lutamos contra estas barbáries todos os dias, há décadas.

Militantes dos direitos humanos neste Estado morreram por estar investigando grupos de extermínio, outros são ameaçados de morte e sofrem sérias limitações das próprias liberdades para manter sua segurança, entidades e instituições de todos os municípios do RN denunciam, atuam, combatem todo dia contra a exclusão social urbana e rural, a prostituição de menores, a corrupção do poder público, a falta de esgoto, postos de saúde e escolas nos bairos pobres, a violência contra as mulheres, a destruição do meio-ambiente, etc. Pessoas e entidades que integram nossa Rede Estadual lidam todo dia com a mais completa miséria, trabalham em contato direto com mulheres violentadas ou estupradas, com crianças, adolescentes, idosos, negros, portadores de deficiência, homossexuais discriminados, com vítimas de todo tipo de violência e abusos.... Lutamos há anos contra as estruturas distorcidas do próprio Estado em nome da justiça e dos direitos dos cidadãos: temos representações contra membros do Executivo estadual, contra juízes e desembargadores, etc.

Todos nós lutamos no dia a dia, há muito tempo, contra as agressões à dignidade humana mencionadas pelo excelentíssimo senhor Medeiros. Ficamos felizes em constatar que um mauricinho que tem como máximo horizonte seu umbigo e dedica sua vida a produzir lucro para ele e os seus sem fazer absolutamente nada para o próximo tenha reconhecido e declarado o que nós, desde que existimos, vamos dizendo, gritando e denunciando.

É justamente porque conhecemos muito bem, porque muitas e muitos de nós lidam todo dia com a violência real contra a mulher, que fizemos uma representação junto ao Ministério Público contra a propaganda da Via Costeira. Talvez nosso prezado colunista, em seu afã de alardear sua macha latinidade, se lixe das sensações que uma imagem como aquela provoca nas mulheres que sofrem na própria pela abusos e violências, que são espancadas pelo companheiro (marido, ex-marido, namorado) ou pelo irmão, o pai, o padrasto, etc. Para elas, que acordam todo dia com o rosto arrebentado, uma imagem como aquela usada para vender serviços de mecânica, funilaria e pintura é o equivalente de pegar uma lâmina e abrir, com sistematicidade cirúrgica, toda as cicatrizes que guardam no corpo e na alma.

O ardido defensor da democracia afirma que as entidades feministas e de defesa dos direitos humanos gostariam de jogar na fogueira a liberdade de expressão e criação. Obrigado, amigo: já sofremos demais – e de verdade, na nossa pele - os horrores da censura. Ninguém como nós defende mais ardentemente a liberdade de expressão. Fomos nós que a pregamos quando um regime militar que durou vinte anos a violentava brutalmente. Os arautos da liberdade de última hora, que a utilizam apenas quando lhes convêm e para defender mesquinhos interesses corporativistas, nunca passaram pelo pau-de-arara, a prisão política ou o exílio, como muitos dos que defendem os direitos humanos.

Não queremos fogueiras nem censura. Esta, aliás, já existe e nós a execramos: é o que pratica DE FATO, todo dia, a grande mídia verde-amarela, omitindo o que os patrões – as grandes oligarquias nacionais, o grande capital estrangeiro – não querem que o povo saiba. O que queremos é que sejam respeitados os direitos estabelecidos em nossa Constituição Federal, que garante a liberdade de expressão e criação e, ao mesmo tempo, que ninguém pode agredir, insultar ou ofender a dignidade da pessoa.

Não duvido que nosso arrojado defensor da liberdade acharia o máximo uma propaganda que mostrasse negros acorrentados trabalhando na roça com a chamada “Spa Fulano de Tal. Tá na cara que precisam”, ou outra que mostrando o rosto ensanguentado de uma criança vítima de guerra afirmasse: “É porque não usou o sabonete tal”. Viva a diferença de opiniões e a liberdade de pensamento! Felizmente, existe também uma Constituição que impede que a dignidade do ser humano seja pisada. A diferença entre censura e ética, entre respeito do homem e da mulher e coerção da liberdade de expressão é a mesma que há entre o exercício pleno e consciente da democracia e um regime totalitário e puritano. Nós sempre defendemos o primeiro.

Felizmente, tem pelo menos algo razoavelmente sensato nas críticas do nosso exímio jornalista e publicitário: efetivamente, errei na grafia de Voslkswagen. Vou lhe dar mais um motivo para me atacar duramente: escrevi “hematomas” sem “h”. Escrevo em uma língua que não é a minha materna: pode acontecer. Ainda bem, assim tem motivos muitos mais sólidos dos que apontou para me criticar.

Antonino Condorelli

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